Santo Antão, o santo da renúncia

espiritualidade

Um dos santos mais radicais e influentes no mundo!

RENÉ FULOP-MILLER

OS SANTOS QUE ABALARAM O MUNDO

SANTO ANTÃO

Tradução de Oscar Mendes
oitava edição

1976

 

LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA

TÍTULO DA EDIÇÃO NORTE AMERICANA:
THE SAINTS THAT MOVED THE WORLD
Translated by Alexander Gode and Erika Filóp-Miller
Copyright by René Filóp Miller

Direitos para a língua portuguesa reservados à
LIVRARIA JOSE OLYMPIO EDITORA S.A.

Rio de Janeiro, Brasil


DURANTE MIL E QUINHENTOS ANOS, as "tentações de Santo Antão" cativaram a imaginação de artistas e escritores. A impressão que deixaram pode ser acompanhada desde os mestres da mais velha escola bizantina, até Cézanne e Félicien Rops, dos mais remotos cronistas até Flaubert e Anatole France. Atanásio, o famoso bispo de Alexandria, conheceu pessoalmente Antão, o homem cuja vida e cujo caráter iriam manifestar tamanhos poderes infalíveis de fascinação. Na sua Vita St. Antonii, o bispo deixou uma descrição, em primeira mão, da personalidade e da estranha vida de Antão, que se estendeu por mais de cem anos.

Além de ser a primeira narrativa da vida de qualquer santo, esta Vita é também a primeira biografia não limitada a simples cópia de acontecimentos exteriores, mas lança uma vista para o interior dos conflitos íntimos de seu assunto. Pode ser chamada a primeira biografia psicológica da literatura mundial. O autor foi um piedoso bispo do quarto século, sem qualquer espécie de dúvida religiosa a perturbá-lo. Lendas e milagres, visões sagradas e aparições do demônio eram para ele fatos tão reais como nomes de pessoas e lugares, ou datas. Seu herói foi o primeiro eremita, cujo ambiente e modo de vida são estranhos e por vezes incompreensíveis aos leitores modernos. Todavia, o conflito básico na vida deste homem foi um conflito eternamente humano, que não pode ser evitado por quem quer que lute por obedecer ao chamado de sua natureza mais elevada: o conflito entre a tentação carnal e a contenção espiritual.

Antão nasceu cerca do ano 251 , na aldeiazinha de Coma, hoje chamada Quemã-el-Arune, na província de Beni Suef, no Alto Egito. Era filho de ricos captas, cujas terras de plantio, de cerca de 130 acres, estavam localizadas às margens do Nilo, na província de Faium, no Alto Egito. Então, como hoje, era o Egito uma terra sem chuva. No alto o céu ostentava-se eternamente azul e sereno. Havia apenas uma fonte dágua, o Nilo. A prosperidade ou a penúria dos lavradores dependiam dos caprichos misteriosos do "grande rio".

No inverno, na primavera e no verão, o Nilo era uma lúgubre e suja extensão dágua, deslizando preguiçosamente ao longo de suas margens üridas e arenosas. Somente o esforço mais persistente e um imenso gasto de trabalho árduo podiam arrancar dele aquele mínimo de água que o homem, o animal e o solo requerem.

Dia após dia , o jovem Antão, com uma junta de búfalos, ocupava-se na tarefa de conservar em movimento a roda dágua de seu pai. Era um típico felá jovem, de forte constituição e pele bronzeada, maçã s do rosto salientes, grandes olhos negros e densas pestanas de rosto e estatura notável, resumo e repetição de seus antepassados. Ali ficava ele, encarapitado numa estranha espécie de assento, vigiando a procissão infindável, que descia água adentro e voltava a subir à margem, de potes de barro vazios e cheios, ligados aos raios salientes duma roda vertical, montada sobre os dentes duma outra horizontal, que os búfalos empurravam, vagarosa e constantemente, girando, girando, girando.

Enquanto não chegasse o outono, essa faina não podia ser interrompida. Depois, bem de súbito, o rio plácido e preguiçoso inchava e principiava a fluir com grande rapidez. Sua cor cinzenta passava a vermelha e verde. Continuava a subir; inundava suas margens; transformava a região, até às colinas na orla do deserto, num vastíssimo lago.

Finalmente as águas baixavam. E chegava a época do ano em que Antão devia a companhar seu pai, com as mãos transbordantes de sementes, semeando o grão na lama fértil deixada pelas águas do rio. Dentro em pouco, as margens do Nilo mudavam-se num brilhante campo de trigo ondulante. Uma ou duas colheitas, muitas vezes, graças à abundante riqueza do rio, tantas como seis colheitas, seguiam-se uma à outra, em rápida sucessão. Era o tempo da fartura e da abundância, em que o pai de Antão podia acrescentar novas somas às suas economias dos anos anteriores.

Desde a sua mais tenra infância, conhecia Antão o Nilo, como a mesma e grande experiência central que fora para seus antepassados. Ensinava-lhe que os labores de todos os homens nada são em si mesmos, que aquilo que o homem necessita, seu pão quotidiano e seus bens terrenos, é-lhe dado como graça. Para Antão e sua família o doador dessa graça era o Nilo, mas no Nilo havia Deus que governava e expressava Sua vontade.

Naquela época, ninguém sabia donde vinha o "grande rio" e onde se situava sua fonte. Não havia explicação para suas misteriosas cheias e secas, exceto que o próprio Deus passava a correr sobre as águas tumultuosas, ano após ano, para abençoar os campos dos homens.

No Nilo, Deus se manifestava em Sua onipotência, a onipotência da Natureza; e na igrejinha da vila de Coma, o padre proclamava Seus divinos mandamentos. O pai de Antão vivia sua vida em estrita adesão àqueles mandamentos e transmitia a seu filho o espírito de sua própria piedade inata e incondicional. A simplicidade e na­turalidade de sua fé, características de todos os felás, estavam profundamente arraigadas na natureza peculiar da Cristandade Copta.

Esta religião não era realmente uma religião jovem ou nova.
Todos os seus traços característicos haviam sido prefigurados na fé dos velhos egípcios. O deus Amon do Alto Egito já tinha sido um deus em três pessoas, e Set, o assassino de Osíris, fora uma primitiva encarnação do demônio cristão. A introdução do Cristianismo ali fora antes uma suave transição, sem ficção ou conflito, e nos cristãos coptas, como o pai de Antão, piedosa tradição de milhares de anos vivia latente com vigor ininterrupto.

Para Antão a doutrina de Cristo era uma lei que não podia ser posta em discussão. Seu pai estivera sempre atento para conservar afastada dele qualquer influência externa que pudesse perturbar-lhe a pureza da fé. Enquanto outros meninos brincavam, jogavam e divertiam-se a valer, Antão ficava em casa e passava suas horas livres em piedosas orações.

Para o espírito do velho lavrador, a pior ameaça à salvação de seu filho era o saber mundano, tal como era cultivado nas escolas gregas. Os gregos eram estrangeiros intrusos no Egito, e proprietários ou dirigentes de grandes propriedades, onde exploravam o felá nativo. O ódio racial, intensificado pelo ressentimento social, produzira no pai de Antão aguda desconfiança contra tudo quanto os gregos ensinavam em suas escolas. Um mero conhecimento das letras de seu alfabeto era, no seu modo de pensar, um passo falso inicial, fora do caminho da verdadeira fé. Uma vez caída a gente no encanto daqueles símbolos mágicos, estava-se fadado a ser presa do ceticismo do pensamento grego, bem como da exploração por parte dos gregos senhores de terras. De modo que o jovem Antão não foi mandado à escola e cresceu analfabeto. Sua bagagem espiritual e mental ficara limitada ao que o padre da igreja local tinha a oferecer as suas leituras da Bíblia capta e nas piedosas lições que nela baseava.

A medida que o menino crescia e se aproximava da varonilidade, as belas moças felás da vizinhança começaram a atrair-lhe a atenção. Muitas vezes aquelas moças passavam por ali, caminhando através dos campos, altivas na graça de seu passo elástico, balançando habilmente os potes de barro na cabeça, os corpetes em forma de blusas soltas revelando naturalmente o contorno firme de seus seios cor de bronze. Antão parava e ficava a contemplá-las, como se fascinado pela beleza delas. Os outros rapazes podiam acompanhar as moças, podiam falar-lhes e gozar-lhes da companhia, mas Antão, o filho obediente, cumprindo as estritas ordens de seu pai, voltava para casa e rezava até poder libertar seu pensamento das sedutoras donzelas e concentrar-se de novo apenas em Deus.

Estava Antão quase com vinte anos quando, em rápida sucessão, morreram-lhe o pai e a mãe. Achava-se agora só, com exceção duma irmã mais moça, ainda menor. Herdara campos, pastos e rebanhos e fazia o melhor que podia para dirigir a riqueza de seu pai que se tornara agora sua. Econômica e honestamente ajuntava dracma a dracma, ávido de aumentar as somas que seu pai lhe havia deixado.

Passava seus dias em atos de piedade e retidão, justamente como antes da morte de seu pai, pois era um bom filho e vivia de acordo com as lições de sua primitiva educação. E quando este moço, privado da guia paterna, ouvia na igreja as lições tiradas da Bíblia, tomava-as como as ordens dum pai cuja autoridade era mesmo maior do que a do outro que havia morrido. Como filho obediente, esforçava-se cada vez com mais zelo, cada vez com mais rigor, por viver fielmente de acordo com os mandamentos de seu Pai Celestial. Nos anos de sua infância,, esforçara-se por agradar a seu pai da terra, mas agora via cada vez mais claramente que era seu dever tornar-se digno da graça de Deus, lutando por atingir o mais alto grau de perfeição interior.

Um domingo de manhã, cerca de seis meses depois da morte de seus pais, es tava Antão sentado no banco da família, na igreja da aldeia. Ali estava ele, belo e esbelto jovem, filho obediente, escutando atentamente as ordens de seu Pai. Seus olhos estavam presos aos lábios do padre . Os ouvidos, tão atentos que nem uma palavra sequer poderia escapar-lhes. O padre lia o Evangelho, segundo S. Mateus: "E eis que alguém se aproximou e Lhe disse: 'Mestre, que coisa boa farei para ter a vida eterna?' E Jesus respondeu-lhe: "Se queres entrar na Vida, guarda os mandamentos." Disse-lhe o jovem: "'Tudo isso tenho guardado; que me falta ainda?" Disse-lhe Jesus: "Se queres ser perfeito, vai vender tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois vem seguir-Me.'' E Antão levantou-se, deixou a igreja, foi e vendeu sua terra e seus rebanhos, e deu o dinheiro aos pobres da aldeia. Pois sentiu que as palavras que Cristo dissera ao moço rico da Galileia aplicavam-se a ele, o jovem rico de Coma.

Não sabemos o que aconteceu ao moço rico da Galileia e se ele executou as palavras que o Senhor lhe dissera, 250 anos antes da época de Antão. Mas isto sabemos: Antão, o rico jovem de Coma, que viveu no terceiro século depois de Cristo, cumpriu a exortação dirigida tanto tempo antes ao jovem da Galileia. Decidiu viver sua vida de acordo com o preceito de Cristo e é para nós. o exemplo mais antigo e mais conhecido do que acontece a um homem que segue o pedido do Evangelho em suas plenas consequências.

Da noite para o dia o rico jovem tornara-se pobre. Seu pão quotidiano não mais estava garantido. Enfrentava agora todas as privações da pobreza.

No domingo seguinte, era um jovem mortificado, vestido com os farrapos da pobreza, quem se sentava na igreja aldeã de Coma e ouvia o padre ler o seguinte trecho do Sermão da Montanha: "Não andeis, pois, ansiosos pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã a si mesmo trará seu cuidado; ao dia bastam os seus próprios males.''
E mais uma vez Antão sentiu que as palavras se dirigiam a ele.

Levou sua irmã para um asilo de donzelas e tomou seu caminho para alcançar a perfeita solidão, onde não há necessidade de pensar nas coisas do amanhã.

A decisão de Antão significava completo rompimento com sua antiga vida. Para levá-la a efeito, necessitava ele do conselho dum homem de sabedoria e experiência. O padre da aldeia não poderia auxiliá-lo. Era um homem piedoso e vivia sua vida de acordo com a letra da lei, mas ao mesmo tempo, como era costume na Igreja Capta, era proprietário de terras e de outros bens terrenos e tinha mulher e filhos. Sua voz recitava o mandamento do Senhor, mas não sabia ele como poderia o conselho nele contido ser traduzido em atos práticos. Havia, todavia, naquela época certo número de cristãos piedosos, que viviam no Egito, verdadeiros "homens retos", forçados a fugir às perseguições do imperador romano Décio, e que agora viviam para sua fé numa reclusão sossegada. Um destes homens tinha uma choupanazinha não longe dos limites de Coma e foi a ele que Antão procurou, para guiá-lo no dilema em que se achava.

* As citações bíblicas desta edição (7a) transcrevem-se da Bíblia Sagrada, segundo os originais hebraico e grego, tradução em língua portuguesa das Sociedades Bíblicas Unidas, Rio de Janeiro, 1947.-N. da E.

Encontrou um ancião, envolto numa capa de pêlo de camelo, que o abrigava em lugar da camisa que os lavradores coptas geralmente usavam. Possuía apenas uma dura esteira, sobre a qual dormia, e ganhava miserável paga, tecendo esteiras e cestos. Dele aprendeu Antão como opor-se às tentações mundanas, com a força da oração e do trabalho, como dominar os apetites sensuais, pelo jejum e pela mortificação; aprendeu quão importante era que seus alimentos lhe proporcionassem apenas mero sustento e que deveriam consistir em nada mais do que pão e água e algumas tâmaras.

Antes de deixar o velho eremita, com ele aprendeu Antão a tecer esteiras e cestos de folhas de palmeira.

Todas estas coisas, porém, apenas diziam respeito, por assim dizer, às exterioridades do ascetismo. O caminho interior para o alvo foi apontado a Antão pela natureza, a natureza característica do Egito. Quando ainda criança já lhe haviam falado da onipotência de Deus, e agora, no começo do seu noviciado ascético, mostrava-lhe o caminho que o afastaria do mundo dos homens para o mundo da absoluta solidão.

Na sua simples grandeza, a paisagem do Egito jazia diante de Antão como uma reprodução admirável do súbito rompimento que ele estava contemplando. Ao longo das margens do Nilo estendia-se a fértil província de Faium, funda e verde extensão de pastos e de campos, símbolo de vida e de abundância. Depois, subitamente, não muito distante dos limites da aldeia de Coma, toda aquela luxuriância dava lugar a uma aridez inabitável, onde a própria natureza parecia ter-se tornado ascética. Não era isto precisamente a espécie de abrupta mudança que o mandamento do Evangelho exigia?

Envolto numa capa de pêlo de camelo, despojado até mesmo da menor trouxa de bens terrenos, Antão adentrou-se no deserto. Encontrou um sarçal e escolheu-o para seu futuro abrigo, embora parecesse mais adequado a fojo de animais errantes do deserto, do que a morada dum ser humano. Em seguida, pensou afinal que distante de todas as tentações mundanas, libertado de todos os cuidados referentes às coisas do mundo, poderia começar sua vida de devoção imperturbável. Mas esta abrupta mudança da abundância e da vida para a esterilidade e a solidão mostrou ser mais um problema para o moço egípcio do que para a paisagem egípcia. Na natureza, a vegetação luxuriante transformava-se abruptamente em aridez irremediável, contudo eram coisas distintas e uma nada sabia da outra. Antão, todavia, tinha de passar de uma para outra, da abundância à esterilidade, da vida à solidão; e, embora não carregasse consigo bens terrenos de qualquer espécie, estava contudo carregando, inconscientemente, invisivelmente, a bagagem das recordações de tudo quanto deixara para trás.

Mal começara a acostumar-se à sua nova vida quando, com horrenda malícia, seu invisível pacote pôs-se a desempacotar, por si mesmo, os indignos despojos que continha: ponto por ponto sua vida inteira, a vida que ele tinha abandonado, o mundo a que havia renunciado. Via de novo seus campos cultivados e seu gado pastando, e teve saudade deles e sentiu quanto significavam para ele. Via o contorno firme dos seios cor de bronze das belas raparigas felás. Pensava frequentemente no dinheiro que recebera em paga de sua terra, o dinheiro que havia dado aos pobres. E de novo os algarismos, que ele recordava até ao último vintém, voltavam marchando pela sua mente, somando-se até a um perfeito total.

Fazia o que o velho "homem reto" lhe havia aconselhado que fizesse: empregava todos os seus esforços em concentrar-se na oração e buscava também refúgio no trabalho físico de tecer esteiras. Mas cada dia de sua vida solitária aumentava o poder de sua memória.

Como seu perverso propósito fosse perturbar-lhe o trabalho e a devoção, começou a empregar toda espécie de ardis imaginosos: mostrava-lhe seus campos perdidos, produzindo cem vezes mais frutos, e seu gado perdido aumentando em proporções de grandes manadas.

Mas Antão replicava a isso. rezando com mais fervor ainda, trabalhando ainda mais duramente. Tornou-se mais rigoroso em seu jejum, mais sem piedade na sua auto punição Os pensamentos inimigos tinham que ser expulsos pela oração, pelo trabalho, pelo jejum, pela flagelação. E então uma noite, quando estava quase certo de que havia alcançado êxito afinal, ao erguer a vista depois de rezar, viu diante de si uma moça. Carregava na cabeça um pote d'água e sua blusa estava aberta, mostrando-lhe o pescoço e o seio.

Era uma das raparigas felás a quem vira· muitas vezes passar pelos campos. A moça despojou-se de suas vestes e deitou-se por baixo do sarçal. Antão tentava não a ver, tentava buscar refúgio na oração, Mas a moça não desistia; passou a noite inteira a tentá-lo com todas as espécies de gestos lascivos. Ele, porém, conservava os olhos voltados para Deus, implorando-Lhe que viesse em seu socorro. Por meio das preces mais ardentes, resistiu à tentação. Quando por fim, surgiu a aurora, a moça, como uma aparição, havia desaparecido no crepúsculo da manhã.

Mas imediatamente outra figura apareceu em seu lugar, igualmente real e igualmente verdadeira, como se a que o havia tentado durante a noite pela sua beleza se houvesse transformado agora na sua asquerosa contraparte. Um negrinho de lábios grossos ali estava diante dele, inteiramente nu e destituído até mesmo do mais primitivo senso de vergonha, fitando-o com um olhar bestialmente degenerado. Parecia-se com um membro de uma daquelas tribos selvagens, que viviam na floresta, ao longo da fronteira da Núbia, tribos fundamente desprezadas pelos egípcios, pela sua desenfreada sensualidade. Dois chifres adornavam-lhe a cabeça, sinal entre os negros das florestas do gozo da plena potência viril. A princípio Antão teve medo daquela estranha figura, mas depois verificou, de súbito, que deveria ser o diabo e que ninguém mais senão o diabo estivera a tentá-lo a noite inteira, na forma da bela rapariga felá.

Quando a aparição notou que seu disfarce havia sido descoberto, revelou sua identidade, dizendo: "Sou o advogado da impureza e me chamam o espírito da fornicação. Quantos não atraí eu das veredas da castidade, com minhas tentações! A muitos iludi e a muitos derrubei; contudo, agora, quando te ataquei, como a outros tenho atacado, não fui bastante forte."

Encorajado por esta confissão de fraqueza da parte do atacante e cheio de desdém, Antão exclamou, pleno de orgulho: "Bem desprezível és, pois tua mente é negra e tens a força duma criança!"

Desta forma foi o espírito negro vergonhosamente derrotado e desapareceu instantaneamente.

Graças à sua firme resolução, Antão havia conseguido vencer as tentações daquela noite. Mas ao mesmo tempo fora levado a verificar uma força que, na sua piedade e castidade, não havia conhecido antes: a força poderosa do diabólico adversário! Mesmo neste primeiro ataque, o grande adversário havia dado a Antão uma prova de seu verdadeiro poder demoníaco. Antão havia renunciado ao mundo, mas o demônio sabia como dar entrada em sua solidão.

Descera sobre ele com tentações mundanas, justamente quando todos os esforços de Antão estavam concentrados em Deus e havia-se apoderado de suas recordações, perturbando-o com fantasias e visões falazes.

Antão era um devoto cristão. Para ele Deus era uma realidade, uma causa ativa, uma experiência viva. Os mandamentos de Deus eram ordens que tinham de ser cumpridas. Determinavam eles todos os atos de Antão. E o adversário de Deus, o demônio, era para ele também uma realidade concreta. Quem o enfrentava , como o grande tentador, era o diabo encarnado, um ser real e tangível.

Não era Antão o primeiro, nem o último homem, a acreditar no demônio. Os velhos egípcios tinham-no visto sob a forma de Set e Tifon; os zoroastrianos, participantes da luta incessante da luz contra a treva, haviam-no encontrado com o nome de Arimã; sob o disfarce de Mara, havia tentado Buda, o Iluminado; e tanto Jó, como Cristo no deserto, conheciam-no como Satanás, o mesmo acontecendo aos devotos partidários da fé cristã. Lutero sentiu-se tão encolerizado com a sua presença que lhe lançou um tinteiro. A crença irrestrita no demônio continuou Renascença adentro e no tempo dos humanistas e pintores, tais como Bosch, Breughel, Schongauer, Dürer, Grünewald, pintaram-no não precisamente como uma figura simbólica, mas como uma pessoa física em quem acreditavam do intimo do coração.

Coube ao pensamento racionalístico da Era da Ilustração despojar o diabo de sua realidade verdadeira e assim despojar as lutas do homem contra a tentação satânica de sua pungência dramática.

Tudo quanto ficou foram conceitos abstratos e um problema moral.

E m nossa era, a consciência psicológica, com sua concepção do conflito do bem e do mal, como um problema simplesmente psicomecânico, na organização binomial do homem, tem convindo em reinterpretar as tentações do demônio como complexos perturbadores de nossos instintos animais. São estes reprimidos pelo ego moralmente consciente para o subconsciente, onde mantêm uma luta subterrânea contra a ditadura do pensamento consciente. A fim de lograr acesso à esfera da consciência, os instintos recalcados tornam-se aptos a utilizar estratagemas hábeis. Assumem trajes e máscaras simbólicos.

Deste ponto de vista, o demônio aparece como uma simples máscara, ora obsoleta, dos desejos do homem, alucinação patológica de sua fantasia. De acordo com tal interpretação, as visões diabólicas de Antão eram símbolos meramente imaginativos dos instintos proscritos que seu ego ascético, no intuito de repudiar qualquer conexão com eles, visualizava com ingênuo engano de si próprio como fenômeno externo. A tentadora rapariga felá era uma projeção do próprio desejo ardente e rebelado de Antão; sob a máscara do rapaz negro das florestas da Núbia outra coisa não havia senão a própria cupidez detestada de Antão, e seu temor inicial, diante do aparecimento daquele rapaz, era simplesmente o medo de seu próprio subconsciente.

Contudo, quer o homem resista às tentações de sua mais baixa natureza com o contorno e forma do demônio, quer pense a respeito delas em termos de abstrações éticas, ou as visualize como a erupção de desejos recalcados permanece o fato de que existe um poder que interfere com todas as aspirações mais elevadas do homem, poder com o qual toda vida humana tem de avir-se. Crença no demônio, ou interpretações éticas e psicológicas, são simplesmente maneiras diferentes de explicar um mesmo e único fenômeno.

"Em séculos anteriores", disse Goethe: "os grandes pontos de vista sobre a vida eram concebidos em formas concretas; hoje nós os concebemos como ideias abstratas. Naqueles tempos o poder criativo do homem era maior; hoje, é a sua habilidade analítica e poder de destruição."

Do anacoreta do quarto século, dotado de maior "poder criativo" e concebendo o tentador em forma concreta, não se podia, logicamente esperar, a o combater o demônio, que usasse dos mesmos, meios que os homens de hoje, quando acreditam no poder da análise e levam suas perturbações psicológicas ao estudo de especialistas diplomados. O exorcismo do "demônio", nos dias de hoje, é feito pela técnica de libertar do subconsciente elementos penosos e recalcados, elevando-os ao nível da consciência.
Antão concebia o demônio como encarnado e real e como tal lutava contra ele. Sua luta contra a tentação não podia ser simplesmente um processo de auto-análise intelectual, escancarando os recessos do subconsciente à luz da consciência; tornava-se um vigoroso drama de grande alcance. O herói deste drama é um valente combatente contra o Inimigo, contra o eterno adversário do homem , e ao termo desta sobre-humana luta, o mundo não vê um paciente curado, mas um santo vitorioso.

A luta de Antão com o demônio estava cheia de elementos que desafiam a compreensão racional, mas todos eles encontram explicação na "lógica visual" de um homem que era capaz de ver aquilo em que acreditava. Goethe, que possuiu em grau único a habilidade de observar e de decifrar o significado das coisas que o cercavam, e que, justamente por causa disto, viera a conhecer os limites da observação e da compreensão, escreveu certa vez: "Por que andarmos à busca da significação dos fenômenos, quando os fenômenos mesmos nos ensinam a lição?"
Para Antão, o asceta, as coisas materiais do mundo tinham um demônio, e o demônio era verdadeiramente "o príncipe deste mundo. "Para escapar à garra do demônio, primeiro que tudo tinha ele que tentar ultrapassar o limite do poder do demônio. Devia mudar-se do reino dos vivos para o reino dos mortos. Para atingir . isto, decidiu trocar seu refúgio, sob o sarça!, por um túmulo, o abrigo da morte, totalmente isolado do mundo e dos vivos.

No Egito, o túmulo tinha significação muito maior do que tem na nossa civilização. A vida temporal do homem era para o egípcio uma simples peregrinação no caminho para a vida eterna. Um abrigo terrestre era apenas um repouso para o viajante, mas um túmulo era uma “mansão de eternidade". Isto explica por que os túmulos , estavam designados a desempenhar papel tão preeminente na cena egípcia. Verdadeira cidade dos mortos, eram eles cavados na rocha da montanha que borda o deserto líbio. Tinham a dureza e a perenidade do granito e de sua majestática altitude olhavam para baixo com desdém, para a efêmera mesquinhez das habitações de adobe dos vivos.

Para os cristãos coptas, que mantinham o velho conceito egípcio da efemeridade da vida sobre a terra e de que a vida depois da morte era a consecução da verdadeira essência de todo ser, o túmulo retinha sua importância fora do comum. Isto era especialmente verdadeiro aos olhos de um asceta, cujos atos e pensamentos se concentravam na mortificação da carne e para o qual o túmulo era o pórtico para a vida eterna. E contudo a ideia de que uma pessoa viva decidisse fazer dum túmulo sua morada é difícil de compreender, não apenas dum ponto de vista moderno, mas era igualmente desconcertante para os contemporâneos de Antão.

O antigo culto sepulcral egípcio forma interessante fundo histórico para este extraordinário projeto. O espinhaço de túmulos ao longo do deserto líbio tornou-se o palco preparado para um inigualável drama espiritual.

Pesados blocos de granito isolavam as "mansões de eternidade" do mundo lá embaixo, e durante séculos ninguém tinha ousado penetrar naqueles túmulos. Antão pôs-se a caminho de seu novo abrigo, levando consigo um piedoso amigo da aldeia. Este amigo iria fechar a entrada do túmulo depois que Antão nele entrasse, deixando apenas uma estreita brecha, através da qual, de vez em quando passaria o simples essencial de pão e água, sem o qual o próprio Antão não poderia viver.

Antão entrou e achou-se numa ante-sala em forma de abóbada, cuja fraca iluminação devia-se a uma réstia de luz que vinha da entrada. As paredes estavam cobertas de relevos representando cenas de caçada e animais sagrados de longínqua antiguidade, a espécie de decoração com que os velhos egípcios costumavam adornar os lugares de repouso de seus mortos.

Dali um escuro corredor conduzia ao túmulo propriamente dito, embaixo. Antão foi palpando o caminho, cuidadosamente, em meio das trevas. Mas tão logo atingira o fim do corredor e entrara na sala subterrânea a que ele conduzia, uma voz colérica elevou-se dentre as trevas, dizendo: "Que estás fazendo aqui no reino dos mortos?

Como ousas fazer o que vivente algum jamais ousou?" Eram palavras humanas que a voz proferia, mas os sons eram ao mesmo tempo tênues e penetrantes e pareciam vir do reino dos espíritos.

Antão recuou, mas havia aprendido a lição de suas experiências anteriores e soube imediatamente que tudo aquilo era mais uma vez obra do demônio. Fora certamente o demônio que ordenara ao espírito dum morto que voltasse ao lugar onde repousava seu corpo, a fim de impedir que Antão encontrasse qualquer paz no túmulo solitário. Mas Antão não desistiria de sua decisão de morar com os mortos. Começou a rezar. Ergueu a voz e rezou alto, ecoando as palavras de devoção em redor dele nas trevas. Mas um eco de centenas e milhares de vozes respondia dentre a treva, tentando mergulhar-lhe a oração num alarido de blasfêmias. Sabia ele que fora o demônio quem ordenara a vinda daquele coro especial, lá do reino dos mortos! Era o demônio, de cujo domínio mundano fugira ele, que estava agora tentando interferir em seus piedosos propósitos, por meio daquelas vozes diabólicas.

Deus não concede vida fácil àqueles a quem escolheu. Experimenta-os, entregando-os às tentações do mal. Entregou Jó, o mais piedoso dos homens, e até mesmo Jesus, Seu unigênito filho, às mãos do tentador. O mesmo fazia agora dando ao demônio mão livre para tentar a firmeza de Seu piedoso filho de Coma.

Grandes complicações tinha Antão com o demônio. Quando começava a rezar, suas piedosas palavras eram abafadas pelo barulho de gritos fantasmais. O demônio, porém, tinha grandes complicações com Antão também. Pois Antão não se deixava intimidar pela algazarra diabólica e continuava simplesmente a cumprir seus exercícios de devoção. E assim a luta continuava, por dias e semanas, por meses talvez, ou mesmo por anos. Não se pode dizer quanto tempo durava, pois no túmulo não há relógio para bater horas.
Não há sol ou lua para se erguer ou se pôr. Não há tempo no túmulo.

Das profundezas de sua miséria, chamava Antão: "Oh! meu Senhor, ajudai-me e iluminai-me!" Mas logo que pronunciava estas palavras, via em torno de si uma multidão de centenas e milhares de luzes sulfúreas e de cada luz ouvia também uma voz separada.

E de repente, parecia que as vozes fantasmais e as luzes sulfúreas se misturavam. As vozes bruxuleavam como fogos-fátuos e as luzes explodiam num canto espectral. "Escuta, Antão! Viemos iluminar-te!" E isto era seguido por uma explosão de gargalhadas diabólicas e por uma trovoada de aplausos selvagens. Mas não havia ali bocas que pudessem gargalhar, nem mãos que pudessem palmear. Gargalhadas e palmas vinham de nenhuma parte, daquele mesmo escuro nenhures que havia mandado as vozes e as luzes, o reino dos espíritos, com os quais o demônio havia enchido o túmulo.

Antão redobrava seu rigor ascético. Durante dias, não comia nem bebia. Por longos trechos de tempo negava-se qualquer sono, pois sabia que somente uma mais intensa concentração de sua alma poderia ajudá-lo a triunfar das maquinações do demônio. Mas os ataques aumenavam de fúria. Dir-se-ia que o demônio se alimentava do estômago vazio de Antão, matava sua sede na garganta resseca de Antão e encontrava estranho repouso nas noites indormidas de Antão.

Quando se tornou claro que os fantasmas e suas zombarias haviam fracassado, o diabo recorreu a métodos mais drásticos de ataque. Ordenou a suas coortes que se encarniçassem contra o corpo enfraquecido de Antão, que o torturassem, que lhe dessem pontapés, coices e lhe batessem até ser vencida sua paixão pela prece. Os espíritos obedeciam e lançavam-se contra Antão com tal fúria que ele perdia os sentidos, caindo inconscientemente no chão.

Por esta ocasião, o amigo de Antão chegou ao túmulo, trazendo-lhe nova provisão de pão e água, mas quando deu o sinal na entrada, não recebeu resposta. Empurrou a pesada rocha para um lado e entrou. Chamou de novo e, quando de novo o silêncio foi a resposta, dominou seu medo e foi descendo vagarosamente pelo escuro corredor até ao quarto inferior. Depois de por muito tempo apalpar o caminho em redor, encontrou por fim o corpo caído de Antão. Arrastou o corpo inerte do túmulo e carregou-o nos ombros até à igreja da aldeia de Coma.

A notícia de que o filho de Coma mais temente a Deus tinha sido encontrado morto excitou a vila inteira e logo a igrejinha se encheu duma multidão de aldeões enlutados e soluçantes, que desejavam ajudar o padre a enterrar o corpo de Antão, ou simplesmente contemplar-lhe a venerada face pela última vez. Um grupo deles, conduzido pelo amigo de Antão, foi encarregado de fazer o velório do cadáver, durante a noite. Mas em meio da noite, quando todos aqueles bons homens, com exceção do amigo de Antão, estavam profundamente adormecidos, aquele a quem estavam eles encarregados de velar, aquele a quem todos julgavam morto, ergueu-se de seu sono letárgico. Sentou-se, vendo seu amigo, acenou-lhe, chamando-o, e fez-lhe compreender que desejava ir embora. Sem uma palavra, saíram os dois cautelosamente, passando por cima dos vigilantes adormecidos e deixaram a igreja. Dentro em breve os dorminhocos acordaram e acharam o caixão vazio. Por esse tempo já Antão, apoiado no braço de seu amigo, estava a caminho de volta para o túmulo, onde tencionava prosseguir sua luta contra o demônio de novo.

Entrando no túmulo, gritou, desafiadoramente: "Aqui estou eu! Vê! Faz o pior! Nada me separará jamais de Cristo meu Senhor! "

E depois começou a cantar as palavras do salmo: "Embora uma haste acampasse contra mim, contudo meu coração nenhum medo sentiria."
Enraivecido pela desafiadora firmeza do obstinado homem de Deus, o diabo, com seu demoníaco poder, ordenou aos animais de granito dos frisos das paredes que se vivificassem. Imediatamente o túmulo se encheu do furor de animais que rugiam, silvavam e bramiam. Para onde quer que Antão se voltasse, por toda parte em redor dele, havia bandos de lobos, leões selvagens, leopardos, ursos e touros. Serpentes venenosas enroscavam-se em suas pernas. Olhos vorazes faiscavam na treva. Bocas ávidas ameaçavam devorá-lo. Chifres pontudos estavam prontos a escorneá-lo. Aranhas gigantescas teciam suas teias para prendê-lo.

Mas Antão, cheio de firmeza, recusava-se a esse novíssimo meio de intimidação de seu adversário, pois via claramente que aquelas bestas selvagens não passavam de produtos dum capricho infernal.

Portanto, exclamou com toda a coragem: "Se alguma força tivessem, bastaria ter vindo um de vocês. Mas o Senhor privou vocês de força e dessa forma procuram amedrontar-me pelo número."

E depois voltou-se para o próprio demônio e desafiou-o: "É um sinal de teu desespero haveres tomado a forma de animais selvagens. Olha para mim agora, a salvo dentro do baluarte de minha fé! Se realmente pensas que podes exercer teu poder sobre mim, não demores, bate!"
Então o diabo, na sua raiva impotente, ordenou a seus animais que arrancassem as paredes de granito do túmulo. Imediatamente obedeceram eles. Os leões e leopardos com suas poderosas patas, os ursos com sua força desajeitada, os touros com seus chifres, os lobos com seus dentes afiados, todos começaram a empurrar e puxar, a morder e roer, a cavar e esburacar, e as serpentes também ajudavam e os escorpiões e todos os animais rastejantes e coleantes do inferno, que o diabo havia convocado.

As paredes do túmulo começaram a tremer. Dentro em pouco ruiriam e com elas o teto abobadado se desmoronaria. Mas então, repentinamente, em vez de abater-se, abriu-se! E um glorioso esplendor de luz radiante desceu em meio das trevas do túmulo. E em qualquer parte onde aquele clarão chegasse, a treva tinha de ceder e com ela desapareciam os monstros gerados pelo demônio.
Antão compreendeu que a luz significava a presença do Salvador e perguntou: "Onde estais vós, Senhor meu Jesus? Por que não viestes mais cedo para ajudar-me?"

Uma voz que promanava da luz respondeu, dizendo: "Antão, eu estava junto de ti todo o tempo. Estava a teu lado e vi tua luta; e porque enfrentaste virilmente teu inimigo, sempre haverei de proteger-te."
Quando Antão olhou em redor, as paredes estavam de novo firmes no lugar e as bestas selvagens haviam voltado aos frisos esculpidos no rochedo.

Encarado por um psicanalista moderno, à sua mesa, o caso de Antão com o demônio, inclusive sua visão da luz, reduz-se, nada deixando senão um complexo de ilusões patológicas. O psiquiatra, desejoso de aplicar aos fenômenos religiosos o que aprendeu analisando sonhos em casos individuais, interpretaria as bestas vorazes do demônio como símbolos fálicos, representação típica de impulsos eróticos recalcados. À luz desta espécie de interpretação psicológica, a radiante visão de Cristo transforma-se, simplesmente, no conjunto de imagens ilusórias que é a expressão característica dum processo de sublimação.

Não obstante, na vida de Antão os acontecimentos do túmulo constituem a fase mais importante na gênese de sua santidade.

Quando finalmente deixou o túmulo, Antão estava com trinta e seis anos de idade e atrás de si jaziam dezesseis anos, que gastara unicamente na sua luta com o demônio.

No dia em que Cristo apareceu diante dele, numa visão de luz, assegurando-lhe Seu auxílio, Antão deixou o túmulo e saiu para o deserto. Seguiu o caminho que muitos grandes santos e profetas antes e depois dele tiveram de seguir, antes de poderem cumprir sua missão. Moisés, Elias, .João Batista, o próprio Cristo, S. Paulo, e muitos e muitos outros.
O objetivo de Antão era o solitário Monte Pispir, no deserto.

Cruzou o Nilo, deixando para trás o deserto Iíbio, e penetrou no deserto da Arábia. A paisagem na sua extrema desolação era como um vasto túmulo da Natureza. Uma grande extensão estéril e arenosa espraiava-se diante dele, manchada por esparsos e brunos cones de rocha nua. Havia vales petrificados como leitos de rios que secaram, e os poucos vestígios de vida e vegetação neste deserto, os sicômoros, tamargueiras e palmeiras dessoradas tinham o aspecto de fantasmas, com seus galhos estendidos como a querer agarrar o ar ressequido. Um silêncio de morte estendia-se pesado sobre esta terra, raramente interrompido pelo bafo estrídulo do tórrido simum, que soprava do Saara. A luz do sol abrasador era tão intensa que a paisagem parecia vítrea e irreal. E depois, repentinamente, o zobaa, o elevado turbilhão de areia, levantaria em remoinhos pilares de poeira até ao céu e o sol perderia sua força e o dia se transformaria em noite.

Com a maior dificuldade havia Antão coberto cerca da metade da distância, através do deserto, quando se viu forçado a uma parada brusca. Diante dele, bem no meio da vastidão arenosa, jazia um imenso disco de prata. Fora sem dúvida a magia negra do demônio que largara aquela coisa cintilante ali na areia do deserto.
Fracassara no seduzir Antão por meio de tentações volutuosas; não obtivera êxito em atemorizá-lo com fantasmas, demônios e espíritos; de modo que agora tentara despertar nele a concupiscência das riquezas do mundo, esperando assim atingir seu alvo, que era desviá-lo da estrada direta para Deus.

Antão não podia ser enganado assim tão facilmente. "Oh l " exclamou ele. "Reconheço nisto obra tua. Mas deves saber que tua vontade não poderá prevalecer contra a minha!" Depois que pronunciou estas palavras, a prata desapareceu como se tivesse sido absorvida pela areia do deserto.

Poucas milhas adiante, estava Antão atravessando um barranco quando um enorme pedaço de ouro subitamente bloqueou-lhe o caminho. Seu brilho era tão intenso que até mesmo o ofuscante sol do deserto não podia igualá-lo.. Apenas um instante parou Antão, como se enceguecido pelo áureo esplendor, e sua mão, sobre a qual parecia ter ele perdido o domínio, estendeu-se ávida para o precioso metal. Mas justamente a tempo conteve-se, verificando que era de novo o demônio, procurando tentá-lo e instilar nele o desejo cobiçoso pelos bens terrestres. Censurou-se e concentrou-se na oração, esperando libertar-se assim da visão áurea. Mas o pedaço de ouro, como se fosse mesmo uma coisa real, não se movia. Então Antão valeu-se dum ardil próprio. Numa pronta decisão, pulou por cima do pedaço de ouro, como alguém que saltasse sobre um fogo flamejante, e, sem olhar para trás, correu, o mais depressa que podia, adiantando-se cada vez mais no deserto.

Depois de muitos dias, alcançou Antão, finalmente, o oásis de Meiamum, o moderno Der-el-Memum, último pouso nesta parte do deserto. Era aqui que ele tinha de desviar-se da estrada principal, na sua caminhada em direção ao Monte Pispir. Antes de deixar o oásis, Antão fez um trato com uma das pessoas que ali viviam.

Duas vezes por ano, esse homem lhe levaria uma provisão de pão a seu abrigo no deserto. Antão prometeu pagar-lhe, em troca deste serviço, com o produto de suas esteiras de palma.

O Monte Pispir, com suas cônicas formações rochosas, dum castanho-avermelhado, podia ser tomado como o arquétipo dessa vasta e desolada região. Depois duma dificultosa ascensão, Antão atingiu por fim o platô, coroado pelas ruínas, roídas pelo tempo, dum forte abandonado. Suas paredes derruídas proporcionavam abrigo a chacais do deserto e a multidões de répteis inimigos da luz do sol.

Antes de poder estabelecer-se ali dentro, teve Antão de limpar a abóbada subterrânea, sob as ruínas do velho forte, que havia escolhido para sua nova morada. Pôs para fora ou .matou toda persistente multidão de chacais, serpentes e escorpiões.

Mesmo depois, porém, não iria achar paz nem repouso. Olhava em redor de seu novo esconderijo e logo descobria que estava cercado de demônios, que entravam e saíam, andando por ali, atarefados, no antigo quarto sob as ruínas, como se aquele houvesse sido sempre a morada deles. Como conscienciosos mercenários do inferno, estavam sempre exercitando sua tarefa, mas sem dúvida, como humildes subordinados que eram, não tinham a seu dispor a arte e a habilidade de seu patrão. O próprio diabo, depois de dezesseis anos de esforços infrutíferos para seduzir Antão, havia-se transferido para vítimas mais prometedoras e deixara a seus escravos o encargo de conservar Antão ocupado e vigiá-lo de contínuo, no receio de que ele pudesse aproveitar-se dum momento de descuido, para lograr escapar-se para o lado de Deus. Isto explica por que os métodos agora empregados pelos adversários de Antão para atraí-lo, desviando-o de Deus, fossem de todo completamente estúpidos e mesquinhos.

Quando Antão, emaciado e exausto, após severo jejum, agachava-se a um canto de seu quarto, um diabinho barrigudo aproximava-se dele, estalando os beiços, dando palmadinhas na pança cheia e prometendo ao eremita faminto todas as espécies imagináveis de festins luculianos. Quando suas vigílias se prolongavam até ao meio da noite, via-se subitamente cercado por uma multidão de diabinhos, fedendo a inferno, bocejando sonolentamente e oferecendo-se para arranjar-lhe uma cama confortável de penugem de aves, onde pudesse espichar-se e reconfortar-se por algum tempo. Quando ele estava com sede, traziam bandejas cheias das mais escolhidas bebidas e sentavam-se em alegre beberronia. Quando ele tentava concentrar-se com suas orações, faziam um infernal pandemônio e quando ele estava atarefado em tecer esteiras, arrebatavam-lhe das mãos o trabalho semi-acabado. Alguns procuravam lisonjeá-lo e prometiam-lhe glória e poder; outros ameaçavam-no; outros ainda ridicularizavam-no; e todos os servos do demônio tentavam, cada um a seu jeito, desviá-lo de sua vida de piedade e devoção.

Eram para Antão um aborrecimento contínuo, uma peste constante, e cada vez que os afugentava dali, voltavam com nova e diferente série de ardis estúpidos. Mas Antão, a quem o grande Inimigo, com suas poderosas armas de sensualidade e concupiscência das riquezas terrestres, não fora capaz de conquistar, não poderia por certo abalar-se pelas tentações em miniatura de toda aquela mesquinha miuçalha do inferno. Não consentia que o desviassem de qualquer uma de suas piedosas observâncias. E sempre, quando chegava a ocasião da entrega de nova provisão de pão, pelo homem do oásis, as esteiras acabadas estavam prontas, esperando por ele, na cisterna.

Durante vinte anos Antão passou seus dias na companhia daqueles turbulentos diabos, rejeitando-lhes as ofertas a tempo e a hora, rezando, jejuando e tecendo esteiras. E talvez ali houvesse ficado nas ruínas do Monte Pispir, até ao fim de seus dias, combatendo os diabinhos, dia após dia, se não houvesse ocorrido no mundo exterior alguma coisa que, de repente, veio ocasionar uma mudança em sua vida.

O homem que fora contratado para prover Antão de pão caiu doente e de certa vez mandou em seu lugar um rapaz. Este era uma espécie de garoto bem esperto e a estranheza de sua missão despertou-lhe a curiosidade. Depois de haver posto o pão na cisterna, começou a observar o forte do deserto. De repente, ouviu um barulho que provinha de alguma parte por baixo das ruínas, e quando caminhou naquela direção, seguiu-se uma explosão de vociferações injuriosas, dentre a qual podia claramente distinguir diferentes vozes. Isto o afligiu, pois não podia deixar de pensar que o eremita talvez estivesse sendo atacado por bandidos. De modo que continuou a olhar e afinal descobriu uma abertura, através da qual podia avistar o interior do quarto sob as ruínas. Com grande espanto seu, o eremita ali estava, sozinho.

Excitado por esta· estranha experiência, o rapaz voltou a correr para o oásis e relatou tudo quanto tinha acontecido. No dia seguinte, um grupo de homens encaminhou-se para as ruínas. Também eles ouviram as vozes injuriosas; também eles olharam através da fresta e viram que o eremita estava sozinho. A história que contaram de volta levantou todo o Meiamum e logo, em consequência, a população inteira partiu em peregrinação ao Monte Pispir para resolver o enigma.

Chamaram e bateram nas paredes, mas quando nenhuma resposta veio, decidiram forçar a entrada. Nesse momento o eremita saiu ao encontro deles, calmo e imperturbável, e, às suas impetuosas perguntas, respondeu, ainda profundamente envolto no seu caso com os demônios: "Não tenham receio! Se um homem tem conhecimento de seus meios, os diabos não lhe podem fazer dano". Ouvindo esta calma menção dos diabos, os homens e mulheres que o cercavam foram tomados dum acesso emotivo. Quando Antão notou que muitos recuavam amedrontados, confortou-os, dizendo: "Aqueles demônios estão apenas fanfarronando, com seus estúpidos ardis.

Falam e ameaçam Mas são apenas demônios menores e uma oração fervorosa basta para embaraçá-los".

Tendo assim falado, Antão deu as costas e regressou a seu quarto sob as ruínas. Mas a multidão, profundamente excitada, ao saber que o eremita do Monte Pispir tinha conseguido vencer o eterno inimigo do homem, o diabo, desceu para o oásis e enviou uma caravana para espalhar a grande nova por todo o deserto. Dentro em pouco foi conhecido em todos os oásis de todas as partes do deserto, ao longo de todo o Nilo e por toda Faium, que havia um homem vivendo no Monte Pispir, que havia vencido o demônio.

Um santo! E ali chegavam, vindas através do deserto, de todas as direções, inumeráveis caravanas, cujo objetivo era o santo do Monte Pispir. As escarpas do deserto e o vale de Meiamum dentro em breve se converteram num vasto acampamento para uma multidão de milhares de pessoas. Muitos havia que tinham vindo por simples curiosidade, desejosos de ver com os próprios olhos o santo que havia dominado o demônio. Mas havia alguns também, torturados de preocupações e cuidados, que tinham vindo para receber o conforto e conselho de um homem a quem a santidade dotara duma sabedoria mais do que humana. Havia os aleijados e os cegos, que esperavam ser libertados de suas doenças pelo toque da mão dum santo. E finalmente havia as multidões daqueles que buscavam Deus e tinham vindo para ficar e aprender com Antão o segredo da vitória sobre o demônio.

Chegavam todos às ruínas e chamavam o santo, perguntando-lhe se podia ouvi-los e responder-lhes às perguntas. E como o próprio Senhor havia, em certa ocasião, cumprido Sua missão entre os homens, da mesma forma Antão, Seu discípulo e santo, teria de fazê-lo agora.

Perceberam os diabos das ruínas que seu tempo estava perdido, que Antão escaparia deles para sempre, por meio das boas obras que o aguardavam lá fora. Redobraram seus esforços, inventaram novos ardis e tentações, bloquearam a saída. Mas os quarenta anos que o Senhor lhes concedera para tentar e experimentar Seu santo estavam terminados. Enviou Seus anjos, em radioso esplendor, para as ruínas, e eles tomaram Antão, levando-o para o alto. Quando os diabos viram isto, tentaram evitá-lo. Mas os anjos disseram: "Se vocês conhecem alguma ação má praticada por este homem, falem, e nós o abandonaremos a vocês."

Desta forma foram os diabos confundidos. Não podiam responder, e os anjos pegaram Antão e subiram com ele bem alto, sobre as ruínas, depositando-o depois delicadamente do lado de fora dos muros.

Na idade de vinte anos, o jovem Antão havia obedecido à ordem de Deus, tinha deixado o mundo dos homens e retirara-se para a solidão. Agora, na idade de quarenta e quatro anos, achava-se de volta entre os homens. Mas isto também de acordo com a vontade de Deus, pois Deus tinha escolhido Antão para guiar aqueles que ansiavam por guia, e havia muitos desta espécie em meio da multidão no Monte Pispir.

Durante décadas, este homem estivera em contato apenas com seres sobrenaturais e, agora, repentinamente, achava-se. frente a frente de novo com criaturas mortais. Quão diferentes eram estes dois mundos! Os fantasmas e animais do túmulo, os diabos sob as ruínas, e em contraste com eles essa piedosa gente, em busca desesperada de Deus! Quão diferentes eram as vozes confusas, odientas e injuriosas dos demônios, das vozes pueris e confiantes de homens piedosos! Durante quarenta anos tivera Antão , de defender sua própna alma contra o demônio, mas agora tornara-se tarefa sua libertar as almas dos outros das garras do diabo. O homem, que tinha dominado o demônio, tinha de revelar-se dominador de novo, quando chamado a executar o trabalho para Deus entre os homens. De sua própria vida solitária no deserto, tirava ele a força para ser um chefe de homens. Ensinar-lhes-ia o que a solidão lhe havia ensinado. Seu exemplo mostrava-lhes como a prece, o jejum e o trabalho podem sobrepujar as tentações dos sentidos e abrir o caminho que leva para Deus. A parábola bíblica da árvore seca que deu fruto tornou-se realidade e a árvore humana do deserto e da solidão produziu o fruto duma comunidade ascética de homens.

O forte do deserto tornou-se um centro de vida. Os barrancos e grutas, os túmulos abandonados e as cisternas secas transformaram-se em abrigos para homens que rezavam fervorosamente a seu Deus, cantavam salmos e jejuavam e mortificavam seus corpos. Sob a direção de Antão, o paradoxo duma comunidade de eremitas, de uma sociedade de homens que haviam abandonado o mundo dos homens, começou a tomar forma. Um mundo crescia sobre o qual o Príncipe -deste Mundo não tinha poder. Só assim podia consumar-se o triunfo de Antão sobre o demônio, pois agora não era mais um mero indivíduo enfrentando o arqui-inimigo com firme resolução, mas um novo mundo de homens, completo e independente.

Antão permaneceu entre seus discípulos, até que a solidão se tornou para eles o que fora para ele a trave mestra da vida. Depois deixou-os. Abandonou o Monte Pispir e penetrou mais além no deserto. Ali viveu numa caverna, sobre um monte que era ainda mais alto, ainda mais inacessível, ainda mais desolado. O poder, que o demônio havia tentado exercer sobre ele, fora vencido, e pela primeira vez pôde ele viver sem ser perturbado na contemplação de Deus. Mas apenas dois anos de sua vida terrena permitiu Deus que ele devotasse à desinteressada visão das coisas celestiais. As no­ tícias de que no meio do deserto novo mundo havia surgido-um mundo de esplendor celestial sobre a terra-tinham-se espalhado para além do deserto e de Faium. Tinham a travessado o Al to e Baixo Egito e alcançado a Síria e todas as terras vizinhas. E em toda parte, nas cidades e nas vilas, homens abandonavam seus lares, renunciavam a seus bens terrestres e seguiam para o deserto, metendo-se em cavernas e vivendo uma vida de renúncia e solidão.

Assim veio a acontecer que, certo dia, o segundo refúgio de Antão no deserto foi de novo cercado por uma multidão de homens clamantes. Sua obra, começada no Monte Pispir, continuara a crescer e a espalhar-se e agora o alcançara de novo, lá no alto da sua clausura da montanha. As ladeiras e cristas do Monte Pispir já se haviam desde muito tornado demasiado estreitas e já o deserto, abrangendo a Tebaida e a Nítria, estava coberto de colônias de anacoretas, que haviam seguido nas pegadas de Antão, desejosos de imitar-lhe o modo de vida.

De novo teve Antão de retomar sua obra entre homens. Sua obra, que o havia acompanhado e que agora exigia que ele a completasse.

Enquanto Antão vivia entre homens, dedicava-se de todo coração às necessidades dos homens. Mas quando, cumprida a sua tarefa, retirava-se de novo para uma caverna isolada - e de cada vez penetrava mais fundo no deserto, mais alto nas montanhas, e mais completamente isolado - tornava-se de novo o mais solitário dos solitários, o santo da solidão. Como mediador entre Deus e os homens, tinha de viver por vezes em completa solidão, para depois ouvir a voz de Deus em toda a sua pureza e clareza e depois tinha de regressar ao convívio dos homens a fim de transmitir-lhes as palavras de Deus e deixar que Seus mandamentos assumissem realidade terrestre entre eles.

Como a fortaleza de um rei da solidão, o retiro montanhoso de Antão olhava do alto vasto reino de renúncia, que seu exemplo havia feito crescer no deserto. Cinco mil homens, criaturas da piedade de Antão, mudos no seu silêncio, devotados em suas orações, presos no círculo de seus atos divinos, levavam ali uma vida de absoluta devoção às coisas eternas. A força do exemplo que ele dera tinha feito de Antão o chefe soberano de cinco mil homens livres, súditos por voluntária disciplina.

Depois, num dia do ano 311 , o mundo exterior irrompeu no reino de espiritualidade sem fim de Antão. Uma torrente de angústia galgou, vinda de baixo, a altura altaneira até Antão. Um homem de Alexandria subiu até sua caverna e, com toda excitação com que o sofrimento mundano gosta de exprimir suas queixas, disse: "Em Alexandria, centenas e centenas daqueles que professam sua fé em Nosso Senhor Jesus Cristo são castigados em público, são enviados para as minas ou lançados na prisão, são torturados e queimados ou, para divertir a multidão no circo, são alimentados para servir de pasto a animais selvagens na arena". O homem continuou a explicar que o Imperador Maximino Daia tinha ordenado a perseguição, e que oficiais romanos e gladiadores a estavam levando a cabo. Falava como alguém para quem a perseguição pelos carrascos do mundo significa dor e a quem a dor pode inspirar medo. Mas Antão escutava-lhe as palavras como alguém que esteve face a face com o demônio encarnado. Esta história a respeito de editos imperiais e do fato de que oficiais romanos tentavam induzir os cristãos de Alexandria a abandonar sua vida de piedade não podia torná-lo cego ao fato de que o mesmo adversário de Deus, que o havia tentado em sua solidão, estava usando da fraqueza dos homens, lá embaixo na cidade, para levar adiante seus planos diabólicos. Resolvido a enfrentar seu velho adversário lá fora no mundo, com a mesma impávida confiança em Deus que tivera na solidão do deserto, Antão deu ao homem o seguinte recado: "Diga-lhes que irei!"

Antão deixou o deserto agora pela primeira vez. Estava com sessenta e um anos. Pôs-se a caminho de volta ao mundo, homem alto, pálido e emaciado pelo jejum, a barba e o cabelo desgrenhados.

Seu único traje era uma branca pele de carneiro, que lhe descia até aos pés, e levava na mão direita um pesado cajado.
Desceu a íngreme encosta, atravessou com dificuldade a fulva areia do deserto e, seguindo as margens verdes do Nilo, continuou sempre a andar, até alcançar por fim as muralhas de Alexandria.
Entrou na cidade pela Porta do Sol.

Até então tudo quanto vira Antão do mundo fora Coma, a aldeia de sua infância, que consistia numas poucas choupanas de barro, e o deserto com seus arbustos e túmulos, suas ruínas dilapidadas e suas cavernas. Agora, pela primeira vez, punha o pé numa grande cidade, a segunda grande cidade do Império Romano e a mais populosa e mais bela do Oriente.

Um novo mundo cheio de cor estendia-se diante dele, em todo o turbulento alvoroço duma cidade oriental. Via gregos de capas curtas, romanos de toga, judeus barbados de cafetãs de linho, árabes com albornozes, egípcios usando roupas listradas de várias cores, negros, cartagineses, e todos falando ao mesmo tempo nas suas várias línguas nativas. Os olhos de Antão, acostumados ao matiz castanho-escuro, à calma estagnada dos rochedos do deserto, estavam deslumbrados por aquela orgia de cores, de movimentos; e seus ouvidos, acostumados ao silêncio infrangível, mal toleravam aquela maré afogante de barulho.

Poucos passos além da Porta do Sol, achou-se Antão cercado por uma multidão que gesticulava e vociferava, oferecendo cestos de frutas, jarros cheios d'água, doces, comida, tapetes, roupas, todas as mercadorias que tinham para vender. Ao mesmo tempo, prestidigitadores e truões, mágicos e dançarinos, tentavam atrair-lhe a atenção. Os diabos do Monte Pispir não tinham sido mais persistentes e enfadonhos. Era aquilo o mercado de Racótis, o quarteirão egípcio de Alexandria.

Escapando daquele confuso turbilhão, Antão chegou ao pé duma imponente escadaria, flanqueada por dois obeliscos e tendo como cúpula um gigantesco arco. Levava a um suntuoso edifício, adornado dos mesmos estranhos animais que Antão havia visto nos túmulos do deserto. Eram os relevos de Apis, o boi sagrado, e o edifício, um templo do deus egípcio Serápis, era o centro da doutrina pagã nesta parte do mundo.

Caminhava agora Antão por uma longa avenida, orlada de ambos os lados por colunatas de mármore. Aqui via ele longas fileiras de pilares de pedra. Coroando cada um deles havia uma cabeça esculpida, também feita de pedra e sem corpo. Eram os bustos de famosos filósofos gregos, eretos ao longo da rua que levava ao centro da cidade. Suntuosos edifícios de muitos andares atraíam-lhe a atenção. Atingira a parte mais elegante da cidade, o Bruquíon, onde as mansões dos ricos, os prédios da administração e os teatros municipais estavam localizados. Quanto mais andava, mais profundamente se sentia envolvido num mundo estranho e desconhecido. Era mais difícil para ele abrir caminho através· da turbulenta multidão, do que através das massas in findáveis de areia no deserto A cada poucos passos era obrigado a parar.

Homens passavam, trajados de mantos coloridos, com flores e animais bordados, gordas bolsas presas aos cinturões, como prova de sua riqueza, os vermelhos calções adornados de estrelas douradas que cintilavam mais ofuscantemente do que o pedaço de ouro no barranco do deserto. Mulheres, de toucados escarlates, roçavam nele, e, com suas túnicas transparentes, exibiam seus encantos mais desavergonhadamente do que a nua moça felá sob o sarça!
Quando afinal chegou a um parque onde bordos, abetos e Jarícios ofereciam sombra e frescor, sentiu-se muito mais exausto do que sob o crestante sol do deserto.

O crepúsculo surpreendeu-o perto do porto, com seus longos cais de granito. A noite caiu, mas não lhe trouxe descanso para os olhos e os ouvidos. O barulho do porto misturava-se ao bramido do mar, e uma luz cortava as trevas, mais fantástica do que os fogos-fátuos dos espíritos infernais no túmulo. Era a luz do famoso farol, símbolo do grande porto, erguendo-se a uma altura de quatrocentos pés, na pequena ilha de Faros.

Na madrugada da manhã seguinte, o turbilhão colorido da vida metropolitana estava de novo em pleno curso. Antão, contudo, não se mostrava impressionado por ele. Como tampouco ficara impressionado pelo pedaço de ouro no deserto! Para ele a pompa da cidade não passava duma ilusão diabólica. E assim continuou a andar, até chegar por trás da deslumbrante fachada de Alexandria, onde o diabo prosseguia sua obra abertamente, onde seus obedientes servos torturavam os piedosos discípulos de Cristo.

Os "obedientes servos do demônio" eram oficiais imperiais, juízes, legionários, guardas de prisão, carrascos, que levavam a cabo as perseguições cristãs que Maximino Daia , o imperador romano do Oriente, havia ordenado. Daia era um pagão supersticioso e pensava que a causa do declínio do império estava no desprazer dos velhos deuses, encolerizados pela tolerância que se tinha para com o Deus dos Cristãos. Para reconquistar o favor dos deuses e salvar o império, Daia ordenou que os cristãos abjurassem sua fé e sacrificassem aos deuses oficiais. Aqueles que o recusassem deveriam ser mortos, sacrificados aos grandes deuses de Roma. O império decadente, perdida a coragem militar, face a face afinal com o colapso econômico, era presa de terrores supersticiosos, via em cada desastre a obra de poderes demoníacos e reagia contra tudo isto com fanática crueldade.

Nos tribunais de Alexandria, sentenças e mais sentenças eram dadas contra os cristãos; as prisões ·estavam apinhadas deles; eram arrebanhados em estreitas celas e tratados como réus de alta traição. Eram supliciados, chicoteados· e torturados, e, quando ainda assim se recusavam a abjurar sua fé, eram mandados para a Tebaida, a trabalhos forçados, nas pedreiras de pórfiro.

Na ante-sala do hipódromo, havia sempre grupos de cristãos, vestidos apenas de peles de animais, esperando sua sorte - serem lançados às feras na arena. Fora dos muros da cidade, erguiam-se piras sobre as quais outros teriam de sofrer a morte de mártires.

A alta e branca figura do santo do deserto, como visitante vindo dum mundo melhor, apareceu de súbito na prisão de Alexandria, em meio da multidão de cristãos algemados. Viera para consolar os que sofriam; para fortalecê-los na sua fé. Trazia-lhes a palavra de Deus, que lhes fora negada por tanto tempo, pois seus padres estavam na prisão, suas igrejas fechadas e seus escritos sagrados queimados em público. "Sede fortes na fé", dizia ele. "A vitória é vossa, pois dentro em breve vossas cadeias serão partidas e gozareis da glória celeste".
E unissonamente respondiam os prisioneiros: "Se morrermos com Ele, viveremos com Ele.
Se padecermos com Ele, reinaremos com Ele.
Se O negarmos Ele nos negará."

Guardas rigorosos eram postados nas portas da prisão. Ninguém tinha permissão de entrar. Mas quando a estranha figura do santo macilento se aproximava, os guardas enchiam-se de respeitoso temor e, em vez de detê-lo, afastavam-se para um lado e deixavam-no passar.

Carcereiros empedernidos mantinham vigilância sobre os prisioneiros, mas não impediam o estranho de saudar os fiéis com o proibido sinal-da-cruz. Não o punham a ferros, mas deixavam-no entrar e sair à vontade. Este homem, que ousava entrar ali, por sua livre escolha, não agia assim por sua própria força apenas. Tal ousadia não podia ser imaginada. Deveria ser aquele estranho Ser, o Deus dos Cristãos, que o assistia e inspirava, dando-lhe força.

No acampamento, onde os condenados a trabalhos forçados aguardavam a partida, ouviu-se subitamente a voz do santo do deserto: "Permanecei fortes na fé! Vossa marcha para o exílio vos conduzirá ao triunfo e à vitória". Os olhos das vítimas tornavam-se brilhantes. De hinos nos lábios, partiam como se o fizessem para uma jornada de prazer e alegria. Os guardas batiam nos presos para apressá-los. Mas nenhum guarda ousava tocar o santo, que permanecia no meio deles. Sua intrépida coragem só poderia ser o dom dum demônio poderosíssimo.

Nas câmaras de tortura alinhavam-se os prisioneiros para serem flagelados. O santo aparecia entre eles. "Sede fortes na fé!", dizia ele. "O Senhor cicatrizará vossas feridas!" E os gemidos de dor transformavam-se em hinos de louvor. Nenhum chicote se levantava contra o estrangeiro, de receio do cajado que ele trazia na mão, o qual só poderia ser o instrumento dum poder mágico.

Na ante-sala do hipódromo, em meio dos cristãos envoltos em peles de animais, apareceu o santo do deserto e disse bem alto: "Sede fortes na fé! Aquele que padece conquistará!" E nenhum dos incrédulos ousava lançar uma pele de animal sobre os ombros do santo.
Se batesse no chão com seu cajado, a terra se abriria e tragaria quem quer que ousasse insultá-lo.
Fora dos muros da cidade, cristãos estavam sendo queimados.

De olhos moribundos viam o santo, que aparecia subitamente entre eles. Ouviam a voz do mensageiro de Deus, que os confortava e aconselhava a permanecerem fortes. Morriam com um sorriso nos lábios e sua derradeira palavra era: "Creio!" Depois, enquanto se empilhava lenha para novas fogueiras, o santo ficava ali perto, gritando no mesmo elevado tom de voz o mesmo desafio: "Creio!" Contudo ninguém ousava erguer um dedo contra ele.

O juiz do mais alto tribunal não despachava intimações para obrigar o estrangeiro a comparecer perante ele, mesmo que fosse mais culpado do que os outros cristãos, mesmo que tivessem sido mais flagrantes suas ofensas aos deuses oficiais, pois fora ele que havia incitado os outros a permanecerem firmes na sua adesão ao Deus estrangeiro.

Contudo, mesmo que não houvesse sido intimado, certo dia surgiu o santo em meio dos acusados sentados no banco dos réus. Viera de espontânea vontade. "Sede fortes na fé!", disse ele, confortando os prisioneiros. "Se fordes condenados aqui, sereis absolvidos no Céu! E depois, cada um deles, chegada a sua vez, afirmou sua crença: "Creio!" E eram levados para fora. Por fim, ninguém mais restou no banco dos prisioneiros, senão o santo. Mas o promotor de justiça não havia preparado processo contra ele e o juiz abandonou o tribunal, a toda a pressa.

O governador era responsável perante o imperador pela meticulosa execução dos editos imperiais. Deveria ter sido dever seu deter aquele homem cujas atividades em Alexandria não podiam ser interpretadas senão como perigosas para a segurança do Estado. Contudo o governador nada fez para intimar o estrangeiro a comparecer à sua presença. Temia o desprazer do imperador e dos deuses, mas temia mais ainda a cólera desse estrangeiro, que era tido como feiticeiro e mágico.

Certa manhã estava o governador em seu gabinete, quando entra um homem correndo, com a notícia de que o terrível estrangeiro se aproximava do palácio. "Detenha-o!", ordenou o governador.

"Não permita que ele entre no meu palácio!" Mas nenhum dos guardas do portão e nenhum dos servos de dentro teve a coragem de bloquear-lhe a passagem. Sem ser molestado, acertou com o caminho para a sala do governador e lá entrou. O governador estava por demais tolhido para pronunciar uma palavra e pôde apenas escutar mansamente a trovejante arenga que o estrangeiro proferiu no seu dialeto copta. Durante todo o tempo olhava cheio de temor para o nodoso cajado, pois qualquer movimento dele poderia indicar que o estrangeiro estava a ponto de invocar-lhe o mágico poder, para escancarar a terra e tragar tanto o governador como seu palácio. Quando a branca figura por fim se foi e o governador viu-se ainda ileso em seu gabinete, lançou um profundo suspiro de alívio.

E todos da pagã Alexandria lançaram um profundo suspiro de alívio, quando o "demônio da Cristandade", com seu nodoso cajado de feiticeiro, abandonou por fim a cidade. O "demônio" fora embora mas sua mensagem permanecia. Continuava a viver e demonstrava sua energia vital, auxiliando os cristãos perseguidos a manter sua heroica resistência.
Quando Antão deixou Alexandria era já o ano 312. A derradeira perseguição, a derradeira tentativa organizada de desarraigar a religião cristã chegava a seu termo.
De volta ao deserto, retomou Antão sua vida de solidão. Mas durante os anos que se seguiram, anos que ele gastou afastado do mundo e do tempo, na contemplação de Deus, teve lugar uma decisiva mudança histórica no mundo, para além de seu desértico domínio. "Nosso número crescerá, mesmo que a vossa espada tente reduzir-nos, pois o sangue dos mártires é sementeira de cristãos!"

Estas proféticas palavras, proferidas no começo da era das perseguições cristãs, foram finalmente realizadas. Romanos e mais romanos, de todas as estradas da vida, de todas as classes sociais, convertiam-se à fé da Cruz. Altos oficiais, dignitários, soldados, homens e mulheres, até mesmo cortesãos da roda do imperador pagão, saudavam se uns aos outros, abertamente com o ·sinal-da-cruz.

O novo imperador, Constantino, o Grande, estava-se preparando para uma decisiva batalha contra seu rival Maxêncio. Desceu dos Alpes para o norte da Itália e ali implorou a seu deus Apolo que o favorecesse com um sinal. Mas Apolo conservou-se silencioso. Seu tempo de sinais e milagres havia passado.

Depois , subitamente, no azul sem nuvens do firmamento, viu Constantino ·aquilo que ele sabia ser o símbolo de fé adotado pelos cristãos. E por baixo dessa visão flamejante, leu estas palavras escritas a fogo: "Com este signo vencerás!"
Compreendeu a profecia e adotou a Cruz como sua divisa. O monograma das duas primeiras letras do nome de Cristo estava inscrito em grego no estandarte imperial e gravado nos escudos dos soldados. Dessa forma, pôs-se o exército em marcha para a batalha decisiva contra Maxêncio. Na ponte Milviana, fora de Roma, Constantino derrotou seu adversário e chegou à conclusão de que o Deus dos Cristãos havia ganho aquela vitória para ele. Convencido da invencibilidade da Cruz, promulgou em Milão o famoso edito de tolerância, pelo qual eram concedidos aos cristãos plena proteção e o direito de livre culto público. Dentro de poucos anos, a fé perseguida tinha-se tornado a religião oficial do império.

Um dia, o pequeno oásis de Meiamum encheu-se de agitação. Havia chegado uma caravana tal como nunca vira antes o deserto.

Nobres, suntuosamente trajados, cavalgavam camelos , acompanhados por escravos, intérpretes e guias. Depois chegou uma caravana de camelos de carga, ao peso de toda espécie de equipamentos de viagem, água e alimentos, roupas e tendas. Os viajantes haviam vindo de muitíssimo distante. Haviam partido da capital do império, cruzaram o oceano e o deserto, sendo Meiamum seu destino. A história que contavam era difícil de acreditar pelos habitantes simples do oásis. Vinham de ordem de Constantino, o "divino imperador", e traziam uma mensagem para o santo do deserto. A aldeia inteira porfiava em pôr-se a serviço dos nobres visitantes que pagavam profusamente cada sugestão ou auxílio que recebiam. Alguns dos aldeões que, de vez em quando, carregavam água e alimento para o Monte Pispir, em troca de esteiras prontas de palha, ofereceram-se para escoltar os estrangeiros até ao limite do "reino das cavernas". Uma cisterna seca, no sopé da montanha, onde costumavam eles depositar provisões, marcava o ponto além do qual não lhes era permitido ir. Não havia guardas, não havia sinal de advertência, mas a lei tinha suas raízes na reverência do coração deles, que lhes proibia, na sua indignidade, de pôr o pé sobre o domínio sagrado daqueles que haviam renunciado ao mundo.

Os aldeões disseram a senha. Depois de algum tempo, um homem emaciado, de aspecto rústico, emergiu de uma das cavernas, visivelmente atemorizado pelo extraordinário espetáculo ali na cisterna. Levou algum tempo a destacar-se suficientemente de seu mundo de solidão, de prece e de mortificação, para compreender as coisas mundanas que os estrangeiros estavam discutindo. Finalmente compreendeu que estavam ali por ordem do "imperador dos cristãos" e traziam uma carta do supremo chefe para o santo do deserto.

Explicou que não podia ser guia deles, porque não sabia onde estava o santo. Apenas dois homens em todo o povoado , sabiam o caminho, mas o retiro deles achava-se quase a duzentas cavernas mais no alto, em alguma parte, em meio do caos de rochedos e barrancos. Levaria um dia, concluiu ele, para ir e voltar à cisterna, com um  dos homens que poderia servir-lhes de guia.

Os emissários do imperador tiveram de esperar pacientemente na cisterna. No dia seguinte Macário, o homem que conhecia o caminho, apareceu. Esquadrinhou, suspeitoso, os estrangeiros, com suas roupas suntuosas da cabeça aos pés, pois queria ficar inteiramente certo de que não eram eles justamente uma outra daquelas visitas ardilosas do demônio. Foi-lhe novamente dito, mais de uma vez, que estavam ali por ordem do "imperador dos cristãos" e, finalmente, concordou em guiá-los até Padre Antão. Mas tinham de deixar, junto à cisterna, todos os seus camelos e escravos, sua bagagem. seus odres de água, sua comida e suas roupas.

Caminharam através duma terra cheia de silêncio. Os homens aue viviam ali permaneciam invisíveis, ocultos em suas cavernas.
Afundando-se na areia, galgando as ladeiras rochosas e descendo de novo através de vales e barrancos, era aquela uma caminhada árdua para a gente corrompida da cidade. Caminharam durante dois dias e duas noites e, quando finalmente atingiram o lugar onde o santo se achava retirado, sentiam-se exaustos, extenuados, torturados pela fome e pela sede.

Macário subiu até a caverna para anunciar a chegada da missão do imperador. Mas, ao alcançar a abertura, parou reverentemente e depois voltou. O santo estava ocupado com suas devoções e não podia ser perturbado Suas orações duravam horas. Quase um dia inteiro se passou, até que houvesse ele terminado e Macário pudesse anunciar a chegada dos estrangeiros.
- Padre-disse o discípulo, - o imperador dos cristãos enviou um legado trazendo-lhe uma carta.

Mas Antão não se mostrou impressionado. "Não lhe deveria causar surpresa, - disse ele, - que o imperador me tenha escrito, como um homem a outro homem. Mas pode surpreendê-lo saber que Deus acaba agora mesmo de falar-me!" Com solenes cerimônias, o legado entregou a Antão o rolo imperial. Quebrou o selo e desenrolou o papiro. Mas não era hábil na arte de ler e entregou o documento a Macário, para que este pudesse interpretar-lhe o conteúdo. "O imperador, - disse Macário - teve conhecimento de vossa santa vida e vos pede que o aconselheis como poderá ele viver e governar no verdadeiro espírito de Nosso Senhor. Pede-vos que lhe envieis vossa resposta e que lhe mandeis vossa bênção." Antão, nada familiarizado com a arte de escrever, confiou a Macário a tarefa de traçar sua resposta nas costas do papiro. Quanto a essa resposta, não conheceu hesitação. Certo, como poucos outros haviam sido, de como devia ser a vida no espírito do Senhor, ditou sem uma pausa: "Praticai a humildade e desprezai o mundo, e lembrai-vos de que no dia do juízo, tereis de prestar contas de todos os vossos atos."

Enquanto os emissários do imperador se curvavam profundamente e se empenhavam nas cerimônias prescritas de despedida, Antão fez o sinal-da-cruz sobre eles e retirou-se de novo para o interior de sua caverna. O legado regressou, levando ao imperador do mundo o conselho rigoroso que o santo da renúncia lhe havia dado.

Dentro em pouco o humilde oásis de Meiamum tornou-se um florescente centro turístico. As simples choupanas de barro foram transformadas em estalagens e os aldeões tornaram-se carregadores d'água, comerciantes e guias através do labirinto de rochedos, até ao Monte Pispir e seu povoado de anacoretas. Pois desde que o imperador dos cristãos havia enviado seus emissários a pedir o conselho do santo do deserto e sua bênção, a natureza dos viajantes, que paravam em Meiamum para indagar do povoado dos eremitas, havia mudado. Não eram mais exclusivamente peregrinos, metidos em burel, porém, mais e sempre mais frequentemente cristãos nobres e ricos, que vinham para imitar o exemplo dado pelo imperador e pedir a Padre Antão para lançar sua bênção sobre seus negócios seculares. No começo, chegavam estes homens, principalmente de Alexandria e das próximas cidades egípcias, mas depois de certo tempo apareceram entre eles outros que tinham vindo da Síria e até mesmo de bem mais distante, da Itália. As vezes, delegações inteiras, tais como as das municipalidades de Ravena e Milão, pararam em Meiamum, a caminho para verem o famoso santo do deserto.

Lá na cisterna, cada novo recém-vindo era interrogado rigorosamente por Macário, o discípulo de Antão. "Por que viestes aqui?
Que desejais?" Se o recém-chegado era um peregrino vestido de burel, ávido de ficar e achar refúgio naquele reino de renúncia do mundo e da mundanidade, Macário escoltava-o pelo caminho íngreme, até à caverna do Padre, que lhe ensinava o modo de vida agradável a Deus. E a palavra da senha era "Jerusalém!"

Mas se o homem era um simples turista, um daqueles que se apresentavam na cisterna com ricas roupas e bolsas repletas amarradas ao cinturão, desejando obter do santo seu conselho e sua bênção para seus negócios mundanos, Macário levava-o primeiro à sua própria caverna. Ali instruía-o na doutrina que Padre Antão havia resumido para o imperador do mundo: "Praticai a humildade, desprezai o mundo, e lembrai-vos de que no dia do juízo, tereis de prestar contas de todos os vossos atos." Somente depois é que o levava até à caverna do santo. E a palavra de senha era "Egípcio!"

Antão saia, erguia a mão, abençoando, e retirava-se de novo para sua caverna.
A despeito deste cuidadoso exame de que estava encarregado Macário, o número de "egípcios" continuava a aumentar. Perturbavam Antão na sua contemplação divina. Um dia Macário subiu com um peregrino e a senha com que anunciou sua chegada foi "Jerusalém!" Não recebeu resposta. Entrou na caverna. Estava vazia.

Naquele mesmo momento, o velho eremita estava bem distante, descansando sobre um rochedo donde podia avistar toda a Tebaida.
Havia caminhado um dia inteiro, buscando um retiro onde pudesse retomar sua vida de solidão, desconhecido e tranquilo. Mas aonde quer que fosse, encontrava o deserto habitado por anacoretas cansados do mundo. Seu reino havia-se espalhado bem adentro da Tebaida e em parte alguma havia um lugar onde pudesse ocultar-se daqueles que o buscassem.

A noite chegou e passou-se. Nova aurora brilhou e ele não podia ainda decidir qual caminho tomar. Então viu à distância uma imensa nuvem de areia, movendo-se rapidamente na sua direção. Quando chegou ela mais perto, viu homens armados de lanças e sabres, cavalgando camelos e cavalos, e rebanhos de cabras e gazelas domesticadas, em meio da nuvem de poeira. A primavera havia chegado e na primavera os beduínos estavam de mudança do deserto para as terras distantes, ao longo da costa, em busca de novas pastagens para seus rebanhos.

Antão decidiu juntar-se àqueles nômades do deserto. Não sabiam, nem cuidavam de saber quem fosse o velho. Mas o destino deste e o deles convergiam na distância. Depois do primeiro dia de jornada, chegaram a uma parte do deserto ainda inteiramente desabitada. Eram longos trechos sem nada mais senão areia e além desta rochedos e barrancos. Durante três dias viajaram juntos, através daquelas regiões desoladas.

Os companheiros de Antão eram pagãos a quem o deserto havia ensinado a andar com sede e com fome. Antão era um asceta que andava com sede e com fome, por causa de sua fé. Compreendiam-se uns aos outros no seu poder de renúncia. Os beduínos eram silenciosos, porque o deserto havia-lhes ensinado a ser calados. Antão era silencioso, porque obedecia a um mandamento interior. Compreendiam-se uns aos outros no serem silenciosos. Os nômades pagãos, eternos emigrantes, estavam mais perto dele do que os cristãos ricos que viviam nas mansões do mundo.

Juntos cruzaram a vastidão central do deserto árabe. Depois Antão e seus companheiros atravessaram a planície de Bacará. Longe, à distância, à sua direita, passaram pelo Monte Colzin, a cujos pés, muitos séculos no futuro, iria ficar a cidade de Suez. Chegaram para descansar a um platô, onde encontraram uma fonte e algumas palmeiras raquíticas, com frutos maduros. Dali podiam descortinar a linha costeira e para além do oceano os picos do Monte Sinai. Os beduínos tinham ainda um dia de viagem até chegarem às verdes pastagens à margem do Mar Vermelho. Mas Antão havia chegado a seu destino. Perto da fonte havia uma caverna e nela poderia ele viver sua vida de absoluta reclusão.

Ali permaneceu durante vinte anos. Vinte anos de culto sossegado, que foram para ele um momento eterno de bendita absorção em Cristo e Deus. Mas para seus companheiros cristãos lá no mundo, estes mesmos vinte anos foram uma sucessão vexatória de querelas teológicas, a respeito da definição correta do conceito de Deus e da divindade de Cristo.

Desde a conversão de Constantino, o Cristianismo não foi mais uma seita perseguida. Era agora uma religião poderosa, e os cristãos tinham a defrontar diferentíssimos problemas. Como a mais premente das tarefas de fortificar sua igreja estava a formulação dum dogma definitivo; só este poderia garantir a difusão universal e a permanência de sua fé. O resultado foi uma áspera controvérsia a respeito da natureza de Cristo. Basicamente, era esta a questão: dever-se-ia considerar o Senhor, cujas iniciais ornavam agora os escudos das legiões do imperador e cuja Cruz de martírio aparecia com grandeza simbólica nas praças de mercado das cidades e burgos, como um Deus que havia assumido forma humana, ou simplesmente como um homem que atingira uma perfeição quase divina?

O conflito era de consequências fatais e sua decisão formou o dogma que tem permanecido como fundamento da Igreja estabelecida desde então.

Para os gregos pagãos, com sua clareza racional, a doutrina cristã da identidade de Deus Pai e de Deus Filho· tinha sempre parecido "estranha loucura". Mesmo entre a cristandade grega, algumas destas. dúvidas sobreviviam. Então Ario, presbítero de Alexandria, tentou tornar a fé cristã mais prontamente acessível ao espírito céptico e especulativo dos gregos. Repôs o insondável mistério em termos racionais. Estribando-se na autoridade de certas passagens da Escritura, insistia que só Deus era incriado e eterno e concluía disto que Cristo tinha que ser uma criatura de Deus e, como tal, sujeito às leis da instabilidade e da transição. Com este dogma. que ia a meio caminho da razão humana, Ario conquistou os gregos de Alexandria, filosoficamente adestrados, bem como, mais tarde, por meio de hábil popularização de seus sermões, grandes massas do povo comum.

Alexandre, o arcebispo ortodoxo de Alexandria, olhava a inovação de Ario como perigosa heresia. Ordenou ao presbítero que cessasse de difundir sua doutrina, e, quando Ario se recusou a obedecer, Alexandre excomungou-o.

Ario reagiu com clara rebelião. Pediu a muitos dos mais influentes bispos da Igreja Oriental - entre eles Eusébio, o bispo da sede imperial de Nicomédia - que examinassem seus ensinamentos e conseguiu assegurar-se a sanção e apoio deles. Assim o padre excomungado veio a tornar-se o cabeça duma considerável facção, um perigoso adversário da cristandade ortodoxa.

Nesta crise, a doutrina tradicional foi vigorosamente mantida pelo jovem diácono Atanásio. Sua eloquência tinha o mesmo poder de fascinação da de Ario e, por meio dela, conseguiu comunicar novo vigor e vitalidade à doutrina da identidade de Deu s e de Cristo. Em apoio de sua controvérsia, de que Deus Pai e Deus Filho eram um só, citava as próprias palavras de Cristo: "Eu e meu Pai somos só um."

Em breve a apaixonada controvérsia entre Ario e Atanásio ultrapassou os limites da diocese de Alexandria. Bispos e padres da Síria à Itália, da Espanha às praias do Mar Negro, eram partidários veementes pró ou contra uma ou outra causa. Todavia, não apenas teólogos, mas as massas e as classes, a população inteira, tomaram parte na disputa. Altos dignitários imperiais, bem como marinheiros de mais baixa extração, operários, bem como ociosos parasitas estavam nela envolvidos. Tão grande era a excitação que verdadeira revolta rebentou na própria cidade de Alexandria. Dentro em breve toda a Cristandade estava dividida em dois campos opostos e o problema da identidade de Deus e Cristo viera a tornar-se um problema político, afetando o império inteiro. O próprio imperador teve de pôr a mão no caso, tentando servir de mediador entre as facções combatentes.

De coração era Constantino ainda realmente um pagão, e a princípio todo aquele conflito lhe pareceu uma rixa pedante de teólogos. Seu poder, porém, como chefe, estava dependente, em larga escala, de seus partidários cristãos e assim decidiu-se a preservar a unidade da Igreja a qualquer custo. Sua tentativa de mediação, enviando um delegado a Alexandria, fracassou, e em 325 convocou um concílio geral, a realizar-se em Nicéia, perto da sede imperial de Nicomédia, onde um credo compreensivo e unitivo deveria ser formulado.

Trezentos bispos, de todas as partes do mundo, compareceram à convocação do imperador. Vieram do Egito e da Asia Menor, da Africa, da Espanha e da Itália, das montanhas do Cáucaso, da Armênia e da Pérsia. Vieram de navio, através do mar da Ascânia, ou por terra, a cavalo, a jumento, a mula, acompanhados de padres e escravos.

O imperador empregou toda a pompa de sua soberania para prover duma sede digna este primeiro grande concílio da Igreja. Funcionários da corte - até havia pouco perseguidores mortais dos cristãos - estavam em festivo serviço, e as armas dos legionários - usadas não havia muito em cruéis tentativas de suprimir a fé cristã - eram erguidas para saudar os hóspedes que chegavam. Em solene procissão, a guarda imperial escoltava os bispos até ao palácio.

O próprio concílio, com seus agudos contrastes, era um acontecimento que igual o mundo jamais vira. No salão da assembleia, magnífico altar fora erigido e, diante dele, o imperador es tava sentado num trono de ouro. Dali presidia ele, com seu traje de púrpura, de pesada seda, bordado de pedras preciosas. A dignidade de seu porte, a contenção de sua fisionomia, eram a majestade encarnada. Mas a seus pés, mais embaixo no salão, os bispos com suas apaixonadas disputas ofereciam um espetáculo de turbulenta discórdia. A maior parte deles trazia ainda as marcas do martírio que haviam sofrido. Com corpos mutilados, escaldados, queimados ou cegos pelos seus opressores, estavam agora engajados numa luta pela verdade de sua doutrina. "Cristo é um homem!" "Cristo é Deus! "

" A verdade é razão!" "A verdade é mistério!" "A Escritura prova que há um só Deus!" "A Escritura prova que Cristo é Deus!"

Os bispos combatiam em grego. O imperador só falava latim, mas via os disputantes excitados e o montante de suas palavras era-lhe sumariado por um intérprete. Era-lhe difícil apreender a causa de tanto barulho. O problema como tal deixava-o frio. Desejava um acordo e isto dissera no apelo que dirigira em latim aos bispos em assembleia.

Para satisfazer o desejo do imperador, tentaram os bispos estabelecer uma definição de Cristo, que pudesse mostrar-se aceitável por todos. "Homo-ousion", sugeriu um dos chefes ortodoxos "igual, em essência". "Homoi-ousion", corrigiu um dos bispos arianos, "semelhante em essência". A diferença era apenas dum i, a menor letra do alfabeto grego. Com renovada fúria a contenda incendiou-se de novo a respeito da correta definição de Cristo e a respeito do i, que deveria haver ou não haver nela.
"

A respeito de que estão eles discutindo agora?" - perguntou o imperador, cuja paciência estava sobremodo esgotada. "A respeito duma letra!", respondeu o intérprete. Mas os contestantes sabiam que o i, que os separava, era também uma separação do céu e da terra, de Deus e do homem.

Constantino ficou cansado do debate infindável e insistiu por uma decisão.
Quando os votos foram lançados, "homo-ousion" triunfou sobre "homoi-ousion", Atanásio sobre Ario, Cristo Deus sobre Cristo Homem, o mistério sobre a razão. Duzentos e vinte bispos assinaram o credo de identidade de essência. Os que se recusaram foram estigmatizados como heréticos e o anátema da Igreja lançado contra eles.

Por decreto imperial a decisão do concílio tornou-se lei obrigatória em todo o império.
Aparentemente, fora restaurada a unidade da Igreja. Mas a decisão do concílio e o anátema da Igreja não eram bastantes em si mesmos para erradicar a heresia da razão. Era banida do largo do mercado, mas vivia por trás de portas fechadas, na conversa secreta e nas cartas confidenciais.

A derrota em Nicéia esporeou Ario para que lutasse com maior determinação. Era um organizador nato e sabia como entrar em contato com seus ocultos simpatizantes, tanto no Ocidente como no  Oriente, nas alcovas de senhoras como nas galés, nas mansões episcopais como nas barracas. Sabia como fazer uso, tanto dos modos da população como das intrigas da corte. Conhecia bem a impressão que causavam os chavões simples e o valor publicitário das melodias populares e conseguia encaixar sua doutrina numa canção, com todas as marcas duma alusão direta.

Dos púlpitos, era proclamado o Credo de Nicéia, o mistério da divindade de Cristo; mas as multidões da rua cantarolavam a canção da heresia ariana: "Cristo foi apenas um homem!" E cada vez mais casualmente, a canção rebelde das multidões da rua era ouvida nos lares, em reuniões privadas ou em banquetes em Nicomédia.

Uma lei imperial tornou ofensa, suscetível de punição, a adesão à doutrina ariana. Mas a irmã do imperador, Constância, cortesãos de Nicomédia e até mesmo Eusébio, o bispo da sede imperial, eram simpatizantes de Ario. E dentro em pouco, os bispos arianos exilados estavam de volta a suas sés e os bispos atanasianos incorriam em desfavor. De modo que veio a acontecer que a heresia "fosse protegida e mantida dentro do aprisco que a condenara".

A pressão que os arianos pudessem vir a suportar estava em aumento e o imperador, a cuja solicitação fora Ario exilado, insistia agora pela sua reintegração na Igreja. Atanásio, que fora feito arcebispo de Alexandria em cumprimento dos derradeiros desejos de seu predecessor Alexandre, rejeitou a recomendação do imperador. Chegou então sua vez de ser mandado para o exílio. Após a morte de Constantino, regressou ele à sé episcopal e a cidade lhe fez entusiástica acolhida. Toda Alexandria estava cintilante de luzes e a estrada do porto até ao seu palácio coberta de preciosos tapetes.

Mas removidos os tapetes das ruas e apagadas as luzes, o bispo regressante contemplou sua cidade à luz do dia comum. Notou então, com grande desgosto, que a doutrina herética havia aproveitado sua ausência, lograra acesso até ao âmago de seu domínio, clandestinamente aqui, em lamentável confissão ali e, afinal, mesmo em aberta rebelião. Quando pregava de seu púlpito, não estava mais dirigindo-se a um rebanho unido na fé. A congregação de fiéis estava intercalada de oponentes arianos que faziam o melhor que podiam para interromper o sermão. A revelação divina era contestada pela força de doutrinas da razão e a casa do Senhor assemelhava-se a um foro de debates públicos.

Por todo o Ocidente e também em largas porções do Oriente, tinham os arianos adquirido força. Agora o Egito, a derradeira fortaleza restante da fé ortodoxa, estava ameaçado de tombar vítima da  doutrina herética. Mas se o Egito caísse, Cristo perderia seu derradeiro e mais forte bastião.
Com todo o fervor de sua fé, Atanásio tentou reconquistar os desertores, mas em sua fria razão, os heréticos permaneciam incomovíveis. Podia ele citar as Escrituras, ou referir-se aos Padres, mas cada prova era contraditada por outra, cada passagem da Bíblia - confrontada com uma que provava o contrário e cada argumento dele suscitava um contra-argumento dos outros. Em virtude de seu poder episcopal, Atanásio excomungava os heréticos, mas estes carregavam com orgulho seus anátemas, convictos de que eram eles que estavam lutando e sofrendo pela verdadeira fé.

Naquele tempo não era ainda o Papa .reconhecido como autoridade infalível em matéria de dogmas. Os imperadores cristãos reclamavam o direito de decidir disputas religiosas dentro de seus reinos.! E o novo imperador, Constâncio, filho de Constantino, era partidário do arianismo. Parecia haver uma conspiração diabólica do mundo inteiro contra a divindade de Cristo.
Mas se o mundo não podia prestar auxílio, o deserto poderia.
No deserto havia um santo que tinha visto a divindade de Cristo.
Cristo havia-lhe falado dentre uma visão de luz sobrenatural. Cristo havia - o recebido da Sua divina graça, havia-lhe enviado Seus anjos e o libertara dos demônios da treva.

Era um testemunho vivo da divindade de Cristo. E foi para ele que Atanásio apelou nesta hora de necessidade.

Escolheu seus emissários dentre seus mais fiéis partidários. Sobre camelos e mulas, partiram no cumprimento de sua missão. Mas a tarefa que tinham diante de si, de encontrar o santo e trazê-lo a Alexandria, não era nada fácil. Por fim chegaram à cisterna do Monte Pispir e indagaram onde estava o santo, mas não receberam resposta. Desde o dia em que Macário fora ver Antão e encontrara sua caverna vazia, não tentara acompanhar o Padre. Sabia e compreendia que Antão desejava ficar sozinho com Deus. Mas agora a Igreja estava à sua procura, porque o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo estava em perigo, e Macário e seu companheiro e discípulo Amanas prontificaram-se a satisfazer o pedido dos delegados do bispo de ajudá-los na sua difícil busca.

1. O dogma da infabilidade papal só foi definido por Pio IX, pela Constituição "Pastor Aeternus". Entretanto mesmo antes competia sempre ao Papa dar a última decisão em questões de fé, bem como convocar concílios e presidi-los por um seu delegado. Independentemente de qualquer autoridade imperial, coube a Pedro reunir o Primeiro Concílio de Jerusalém, conforme narram os ATOS DOS APÓSTOLOS no c. XIV, vers. 6 e seg. (N. do T.)

Viajaram do Monte Pispir à Tebaida. Os homens que viviam ali eram eremitas em suas cavernas e nenhuma caverna sabia coisa alguma da outra. Repetidas vezes atravessaram o oásis, mas todas as suas indagações a respeito dum homem que saíra para o deserto, havia uns vinte anos passados, foram baldadas. Não havia estradas que conduzissem através daquele oceano de areia e as marcas que as caravanas deixavam atrás de si eram rapidamente cobertas pela areia amontoada. As montanhas nos desertos eram um labirinto de rochedos, escarpas e gargantas. E ali estavam os delegados em busca dum homem que havia decidido viver isolado. Era uma aventura sem esperança. Mas recusaram-se a perder a esperança. Haviam viajado dias sem fim. Seus odres d'água estavam vazios. O vento do deserto impelia nuvens de poeira e pilares de areia no caminho deles.

Miragens iludiam-nos. Suas energias estavam a pique de ceder. Mas eles não voltaram as costas. Viajaram para diante, cada vez mais para dentro do deserto. Tinham de encontrá-lo. E o encontraram.

O fato é que um beduíno, a quem finalmente encontraram, lhes forneceu a informação certa. Lembrava-se de que havia muito tempo, quando era ainda menino e viajara com seu pai , através do deserto, para encontrar novas pastagens para seus rebanhos, ao longo das praias do Mar Vermelho, tinham levado consigo um velho silencioso, que havia ficado depois num platô das montanhas. Conduziu-os ao lugar onde o haviam deixado.
"Jerusalém!" exclamou Macário. E o velho santo de noventa anos saiu da caverna, com a nevada barba chegando-lhe até aos pés. "A Igreja do Senhor desejava falar-vos, Padre Antão."

Quando Antão se viu face a face com os emissários da Igreja, encheu-se de reverência e caiu de joelhos. O piedoso menino lavrador de Coma ainda estava vivo no velho. Envergonhados com tamanha humildade, os visitantes ergueram-no e lhe transmitiram o motivo de sua missão. Com toda a prolixidade do pedantismo teológico, explicaram a infeliz controvérsia que havia irrompido a respeito da divindade de Cristo. Macário traduzia tudo quanto os delegados diziam em grego, palavra por palavra, em copta.

Para Antão, porém, aquilo permanecia grego. Era-lhe difícil compreender o que tudo aquilo queria dizer. "A Igreja vos chama", interpretou Macário, "para que possais dar testemunho da divindade de Cristo."

Antão tinha permanecido obediente filho da Igreja. Os pedidos da Igreja, eram para ele autênticas ordens de Deus. Justamente como outrora havia respondido ao apelo para distribuir seus bens e sair para o deserto, estava pronto agora a obedecer. Mas a linguagem da Igreja tinha mudado desde que ele a ouvira pela última vez da boca do padre da aldeia de Coma e, a principio, não pôde compreender inteiramente o que dele se esperava. Dar testemunho da divindade de Cristo? Não era isso o mesmo que lhe pedirem para dar testemunho de que o Sol estava brilhando lá em cima no céu? "Ora!" exclamou ele. "Não a veem eles?"

"Os verdadeiros cristãos, sim, mas os arianos..." E explicaram-lhe a heresia de Ario, como tinha começado a contenda e que muitos bispos e membros do clero e até mesmo o imperador cristão tinham ficado do lado de Ario.

Não podia ele entender aquilo. Mas de súbito lembrou-se duma visão que certa vez contemplara acima da fonte. Havia um altar ali, à brilhante luz do dia, e jumentos o cercavam, tentando derrubá-lo. E quando os delegados fizeram outra tentativa de explicar-lhe a diferença entre "homo-ousion" e "homoi-ousion", interrompeu-os, dizendo: "Não precisais ir mais adiante. Compreendo.
Os jumentos estão tentando derrubar o altar. Irei."

Ajudaram o velho a montar num camelo e tomaram a curta estrada através do deserto, pelo caminho de Suez, até Alexandria.
Certa manhã da primavera, do ano 338, chegaram às portas da cidade. Amparado por seus discípulos, Antão entrou em Alexandria. A turbulenta multidão mostrava-se cheia de reverência, à vista de seu majestático aspecto, e abria passagem para ele e seus acompanhantes. Nenhum mensageiro havia anunciado a chegada de Antão; nenhuma recepção solene fora preparada; mas a mera presença dele impunha respeito e obrigava a multidão a recuar para um lado, fazendo ala à sua passagem, na solenidade silenciosa duma espontânea acolhida. Era um santo que caminhava pelas ruas de Alexandria.

Os mercadores cerraram suas tendas, os braços das balanças foram trancados, os ferreiros, oleiros e agiotas fecharam suas barracas, os padeiros não fizeram pão, os açougueiros não cortaram carne, no porto tanto o pescado como cargas valiosas foram largados nos cascos dos navios, as tavernas ficaram desertas, os fogões nas cozinhas apagaram-se, as mulheres esqueceram-se do pó e do carmim, os ricos não pensavam em suas bolsas, e de todas as casas fluía gente para a rua, pois ninguém queria perder o espetáculo da passagem de um santo. A pompa suntuosa de Alexandria foi esquecida. A cidade dava a aparência dum lugar de jejum e penitência.

Diante das portas da basílica, centenas de cristãos. bem como de pagãos, judeus e heréticos, tinham-se reunido cedo, pela manhã, todos esperando ouvir as palavras que o santo iria pronunciar. O arcebispo tinha planejado celebrar o santo ofício na manhã seguinte, mas a multidão impaciente persuadiu-o a fazê-lo na noite daquele mesmo dia. Não havia tempo para ornamentar a basílica. Estava fracamente iluminada por umas poucas velas. O trono do arcebispo, reservado para o santo hóspede, estava posto no semicírculo da abside, perto do altar. Ali sentou-se Antão com seu traje de burel branco, com o clero à sua esquerda, trajado com pompa eclesiástica.

O arcebispo, usando o pálio branco, como sinal de seu poder pontifício, subiu ao púlpito. Depois duma curta oração, leu tre­chos dos Apóstolos e dos Profetas. Depois veio o sermão. "Acredita­mos - disse ele - em um só Deus, Pai Onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. E em Nosso Senhor Jesus Cristo filho de Deus, o qual foi gerado pelo Pai, que é da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, duma mesma substância com o Pai, por quem tudo que há no céu e na terra foi feito, o qual por nós homens e pela nossa salvação desceu à terra e se tornou carne, fez-se homem, padeceu e ressuscitou no terceiro dia..."

Uma voz em meio da multidão protestou. Antão ficou espantado diante desta indecorosa interrupção da cerimônia religiosa, e vol­tou-se para Macário, a fim de saber o que a voz tinha dito.

"O Senhor - traduziu Macário - era apenas um homem, criado por Deus e sujeito à morte e à transição."
Antão ergueu-se. Seu elevado porte permanecia ereto ao lado do altar. As colunas ao longo das vias públicas de Alexandria não eram mais desempenadas do que o santo nonagenário. Os ouvidos da multidão estavam atentos como um só ouvido, os olhos olhavam como um só olho, eletrizados pela imponente figura do santo.
"Eu O vi!", exclamou ele.

Era a voz de um homem para quem a verdade sobrenatural de Cristo se tornara real pela experiência direta e pela visão. Havia um tom decisivo nessa voz que não podia ser abalado por qualquer especulação ou contra-argumento. Nenhum raciocínio, nenhuma contradição poderia tocar as palavras do santo. Um arrepio correu pelas naves: "Ele O viu! Ele viu o Próprio Senhor!"

E sem esperar pelo sinal do arcebispo, a multidão caiu de joelhos e entoou fervorosa oração. O espírito tinha-se apoderado dela, como nos tempos das primeiras comunidades apostólicas. E enquan­to a multidão permanecia no êxtase desse culto, o bispo subiu ao altar e celebrou o santo rito à mesa do Senhor. Lá no alto, o coro cantava e o povo respondia: "Pois a Sua misericódia dura eterna­ mente."

No altar, as cortinas do sacrário foram abertas e o povo avan­çou, comprimindo-se, para participar da sagrada comunhão. E os heréticos também entravam em grande número, arrependidos e prontos a abjurar sua falsa doutrina, a fim de serem considerados dignos da participação do sacramento de novo.

Os tempos haviam mudado desde a última visita de Antão a Alexandria. Na manhã seguinte, o governador apareceu diante dele e pediu-lhe: "Pai, temos necessidade de vós! Ficai conosco e continuai vosso ministério entre os homens!"
Mas a tarefa de Antão estava cumprida e ele replicou: "Peixe, fora d'água, morre; o mesmo acontece a monges que ficam com homens do mundo: desviam-se de seu voto de quietude. Por isso, assim como deve o peixe apressar-se em entrar n'água, devemos nós voltar depressa para a montanha."

Quando Antão partiu de volta para o deserto, os doentes em seus leitos e as crianças em seus berços eram carregados até ele na rua, para que pudesse lançar-lhes a bênção. Atanásio acompanhou An­tão até às portas da cidade. Ali tirou seu manto episcopal e deu-o ao santo para que o levasse de volta para o deserto, como sinal da gratidão da Igreja.

A fé no Cristo Eterno, como fora professada por Antão em Ale­xandria, estava destinada a tornar-se o credo dominante da Cristandade. No momento, porém, formidáveis obstáculos permaneciam no caminho duma vitória ortodoxa final. Imperadores arianos perseguiam a verdadeira fé com todo o seu poder e força, e o próprio Atanásio foi enviado três vezes a exílio. Os povos jovens do Norte, entre eles os vândalos e godos, que invadiram o império com forças indomáveis, abraçaram oCristianismo, sob sua forma ariana. Mas por fim, nenhuma interferência mundana, nenhuma perseguição brutal pôde quebrar a fé em Cristo Deus. Os grandes Padres das eras que se seguiram, inclusive Ambrósio e Agostinho, professaram­-na e, finalmen te, sob o imperador Teodósio, o mesmo fez todo o império cristão.

"O próprio Cristianismo estivera então em jogo", disse Carlyle a respeito da época da contenda ariana. "Se os arianos tivessem vencido, o Cristianismo ter-se-ia reduzido a simples lenda."

E de fato, se naquele tempo o Cristo ariano houvesse vencido o Filho de Deus, Seus sublimes ensinamentos poderiam ter-se reduzido meramente a uma daquelas doutrinas éticas, que passam tão de­pressa, com os mutáveis padrões de moralidade. Somente um Deus poderia manter Seu lugar nos corações dos homens durante quase dois mil anos e exercer Seu poder de redenção, que hoje como antigamente, dá alívio e bênção aos fiéis. E não é apenas a Igreja Católica que repousa sobre o dogma da divindade de Cristo. A mesma garantia de que Deus apareceu sob forma humana deu à mensagem luterana sua força viril.

Se Cristo tivesse sido simplesmente um homem, a alegria jubi­ losa da fé cristã não poderia ter nascido. Não haveria ressurreição, nem milagre do Espírito Santo, nem graça, nem. sacramento, nem redenção. Não haveria a misericordiosa Mãe de Deus, não haveria Natal, não haveria Páscoa.

Os áridos conceitos do racionalismo ariano não poderiam ter jamais engendrado as obras-primas imortais da arte cristã. Foi a as­ censão de Cristo que inspirou o movimento para o céu das pesadas massas de pedra, erguendo-se em pilastras e colunas, e os arcobo­ tantes, as arcadas e abóbadas das igrejas e catedrais góticas. o sofrimento terrestre de um Deus irradia das cores arclentes rios mosaicos em Ravena. O poder de redenção do filho de Deus é louvado nos painéis do altar dos Van Eyck, em Gand. O abençoado conhecimento de que um Deus viveu na terra guiou o seráfico pincel de Fra Angélico. E todos os seus anjos, bem como as amoráveis mado­nas de Memling, Rafael, Murillo, as crucifixões, piedades, ascensões de Dürer, Grünewald e todos os grandes pintores e escultores, o milagre inteiro de cor, linha e forma da arte cristã, no Ocidente, brotaram exclusivamente da mais fervente absorção em conhecimento através da fé. El Greco, o visionário santo, utilizou seu gê­nio para mostrar a luz sobrenatural na qual o Senhor apareceu a S. Antão e outros grandes santos. E finalmente, a fé no Redentor inspirou as obras de Dante, de Dostoiévski e de muitos outros, capacitando-os a ocupar o lugar elevado que mantêm para nós hoje no reino das letras.

O pequeno retintim que Ario inventou está esquecido. Mas a grande música de Cristo, o Redentor, soará através de toda a eternidade. Se tempo vier em que Sua Igreja não mais exista, a música a que a fé nEle deu origem continuará a proclamar Sua Verdade, a espalhar alegria sobre a terra, até ao dia do Juízo Final. Em todas as centenas e centenas de obras de João Sebastião Bach, em todas as suas cantatas, missas, paixões, hinos, está vocalizada a oração de alguém cuja fé se acha profundamente arraigada na confiança cena em Deus Redentor. É a Ele que Bach louva nas suas fugas, nos recitativos, nas árias e coros da Paixão segundo S. Mateus e na Missa em Si menor. No Oratório de Handel, uma voz de solo rejubila-se: "Sei que meu Redentor vive!''; e coro e orquestra respondem, num hino regozijante de "Aleluia!" Na Missa Solemnis de Beethoven há o poderoso motivo do "Et incanzat us est!" "Deus encarnado" tornou-se uma verdade eterna. Mil e seiscentos anos antes, S. Antão havia dado testemunho disso na basílica de Alexandria.

Depois que Antão voltou de Alexandria para o deserto, teve sua vida solitária interrompida somente uma vez mais. Aconteceu isto quando foi ver S. Paulo de Tebas. Piedoso jovem de nobre linhagem, Paulo havia fugido para o deserto no ano 250, planejando ocultar-se ali durante o período das perseguições de Décio. Mas pas­sadas as perseguições, não pôde ele decidir-se a voltar para o mundo.

Desde seus vinte e um anos não havia mais deitado os olhos sobre qualquer homem ou mulher. Notícia alguma a seu respeito havia chegado ao mundo lá de fora. Sua vida decorrera em isolamento silencioso.

Quando Antão foi visitá-lo, em 342, Paulo havia passado noventa anos no deserto e estava com 113 anos de idade. Naquele tempo, o próprio Antão estava com mais de noventa. Desde sua partida do Monte Pispir, era a quarta vez que tinha deixado sua solidão. Três vezes descera de sua altura para responder a um chamado de auxí­lio dos homens. Desta vez, porém, abandonava sua caverna a pedido de Deus, para ir ao encontro dum santo homem, um homem de sua própria espécie e mais velho do que ele na sua piedosa renúncia.

As crônicas descrevem sua descida entre os homens; sua subida até Paulo, o mais velho santo do deserto, é descrita numa lenda.

S. Jerônimo, para quem a lenda era a mais alta forma de verdade com que relatar este grande encontro, transmitiu-o à posteridade.

A jornada de Antão levou-o ao longo duma cordilheira de mon­tanhas através do deserto, duma desolada caverna a outra ainda mais desolada. Mas a lenda ergue a caminhada de Antão a uma esfera em que ocorrem coisas sobrenaturais, em que a realidade anda humildemente ao lado e em que a razão se conserva silenciosa.

Monstros, meio homens, meio animais, serviam-lhe de guias através das ínvias regiões. Na terceira manhã, viu ele, à luz da alvorada, uma loba, semimorta de sede, desaparecer dentro duma caverna.

Antão acompanhou-lhe o trilho, pois estava certo de haver atingido seu alvo. Quando chegou à boca da caverna, chamou: "Vós que admitis a entrada dos animais do deserto, não a negareis a um filho dos homens! Andei à procura. Encontrei! Ago:ra peço para ser re­cebido."

A estas palavras S. Paulo saiu da caverna com a loba. Os dois homens cumprimentaram-se, chamando-se pelos próprios nomes, que lhes tinham sido comunicados pelo próprio Deus. O Senhor havia prometido a Paulo enviar Antão, antes de o chamar a Si, a fim de que ainda uma vez pudesse ele falar, ser humano a outro ser hu­mano, depois de nove décadas de silêncio e solidão. Os dois idosos santos conversaram a respeito das coisas da eternidade.

Somente uma vez foram interrompidos. Um corvo chegou voando para eles. Trazia no bico um pão e colocou-o diante deles "Vede! - disse Paulo - Deus nos manda nossa comida. Durante sessenta anos recebi cada dia meio pão; mas com a vossa chegada, Cristo dobrou a ração de Seus soldados."

Terminada a refeição, ambos passaram a noite em oração. Paulo sabia que era sua última oração na terra, pois estava ciente de que a visita de Antão anunciava sua partida deste mundo. Havia chegado a hora de seu regresso a Deus. Para poupar a seu visitante o espetáculo de sua morte, pediu a Antão que voltasse à sua caverna e lhe trouxesse o manto da Igreja, que recebera de Atanásio. Antão satisfez-lhe o desejo e apressou-se em voltar à sua caverna. Três dias de viagem separavam sua caverna da de Paulo. Longa jornada para tão velho homem! Mas Antão cobriu esta distância com a velocidade dum passarinho.

Quando Antão chegou de novo à caverna, encontrou Paulo de joelhos, a rezar. Ajoelhou-se também para rezar. Mais depois percebeu, pela rigidez do corpo de Paulo, que era um morto que ali estava de joelhos, na atitude da prece.

Profundamente pesaroso, Antão tomou o corpo do santo, para preparar o lugar de seu derradeiro repouso. Não tinha instrumen­tos para cavar uma cova. Mas ao circunvagar a vista, sem saber como fazer, viu dois leões que caminhavam na sua direção. Poucos passos adiante pararam e com suas garras começaram a cavar uma cova.

Antão depositou o corpo nela e cobriu-o com o manto da Igreja.
Depois ajoelhou-se ao lado da cova para chorar a morte de S. Paulo.

E ouviu o eco de sua voz multiplicado num grande coro de lamentação, e, quando ergueu a vista, viu todos os animais do deserto reu­nidos em torno do túmulo. Tinham vindo chorar a perda de seu amigo.

O próprio Antão foi agraciado com mais quatorze anos de vida na terra.
O jovem de Coma, que há tanto tempo havia seguido o conselho do Evangelho e trocara os bens terrestres e os deleites mundanos pelas privações e reclusões numa caverna, havia completado cem anos. Os peregrinos que chegavam agora à caverna do rígido asceta encontravam um velho bondoso, radiante de alegria e serenidade.

Seus visitantes chegavam muitas vezes com a tristeza no coração; talvez sofressem alguma doença ou estivessem enredados nos cuidados do mundo. Mas bastava verem-no para terem mudada a tristeza em alegria, a doença curada e tranquilizados os espíritos dos oprimidos pelos cuidados mundanos. Quanto às numerosas pessoas que iam pedir-lhe conselho, recebia-as com a grado e uma só palavra sua de bondade era bastante. As nuvens rompiam-se e toda a escuridão e confusão desapareciam.

Um homem de Alexandria relatou, ao voltar duma visita ao santo no deserto, que, quando estava esperando diante da escura entrada da caverna, percebera subitamente que a escuridão da mesma era na realidade um brilho radiante e que a caverna parecia uma abó­bada cheia de luz sobrenatural. Quando o santo saiu , foi como se um corpo de luz emergisse dum a massa de esplendor informe.

O homem, cujo ser inteiro brilhava com tanto conforto e alívio, passara oitenta anos no deserto. Sua irradiação era fruto de severa renúncia; sua sabedoria havia amadurecido na sossegada reclusão, distante do mundo ; os tesouros de sua alma tinham vencido por meio de terríveis privações. Ele, que havia abandonado a vida do mundo, obtivera abundância de vida. Nele está revelada a eterna verdade de um dos segredos da existência humana: as energias mais plenas e mais profundas só podem ser libertadas pela solidão e pela renúncia.

O temor de Deus tinha impelido Antão a abandonar o mundo e o temor de Deus tinha-o tornado o rigoroso senhor de seu corpo e de sua alma. Mas ao alcançar seu centésimo ano, o temor de Deus havia-se transformado em amor, e a negação tornava-se triunfante sim! Agora Antão podia dizer: "Não temo a Deus. Amo-O . E o amor afugenta o medo." O que até agora tinha ele alcançado por meio do temor de Deus, o amor lho dava agora em abundância.

Como uma mensagem de alegria, entregava-o a seus discípulos, Ele, que havia jejuado durante a vida, ensinava agora que o amor vale mais do que o jejum. Ele, que tinha mortificado seu corpo durante oitenta anos, aconselhava aos que o seguiam: "Alimentai-vos bem, porque quando o arco está demasiado tendido se parte!"

Obedecendo ao Senhor, com temor e veneração, Antão havia deixado seu retiro do Monte Pispir para ir ter com os homens; atendera-lhes ao apelo indo até Alexandria. Mas de cada vez que cum­prira este dever havia-se apressado em voltar para a solidão de sua caverna. Era bem distante dos homens seus semelhantes que ele buscava servir ao Senhor. Mas agora, no seu amor a Deus, via em cada coisa criada uma revelação do Senhor, e sua obra entre os homens veio a ser para ele uma devoção tão profunda, como suas orações numa caverna solitária. No amor de Deus aprendera a amar os homens. Não temia que, por causa dos homens, viesse a negligenciar o Senhor e por isso ouvia-os com toda a paciência. Nada e ninguém era insignificante demais e até mesmo  os vasos mais frágeis e aqueles que haviam decaído da graça podiam estar ainda certos de seu amor.

Lá embaixo no deserto, grupos de eremitas haviam, entrementes, formado comunidades monásticas. Um dia, um deles foi visitar Antão. Seus irmãos o haviam expulsado porque caíra ele vítima de toda espécie de tentações. Antão ajudou-o e mandou-o de volta para que fosse readmitido. Mas ele apareceu mais uma vez diante de Antão, queixando-se: "Eles recusam-se a aceitar-me, Padre!" E de novo Antão mandou que regressasse, encarregando-o da seguinte mensagem: "Um navio naufragou no mar e perdeu toda a carga que levava, e à custa de muito esforço o navio vazio conseguiu afinal chegar à terra. É desejo vosso afundar o navio que voltou a salvo do mar?" E os irmãos aceitaram-no de volta, dando-lhe o lugar que tinha antes entre eles.

Enquanto vivera no temor do Senhor; Antão tinha visto o deserto cheio de demônios. Agora ele amava a Deus, e o deserto tornou-se uma revelação do Criador, pois o via através dos olhos de quem ama. Durante horas, durante dias sem fim, sentava-se em frente de sua caverna, profundamente absorto na contemplação do panorama do deserto, que se estendia lá embaixo. A natureza tornou-se o primeiro livro que o santo iletrado podia ler. Grandes pensamentos, os pensamentos de Deus, estavam inscritos na rocha e na areia, na nuvem e na palmeira. E enquanto ficava sentado ali observando, enchia-lhe a alma a mesma profunda devoção que sentia quando de joelhos rezava lá dentro da caverna, pois a grandeza de Deus era a mesma dentro e fora, e a mesma piedade invadia sua oração e sua contemplação da natureza.

Um sábio homem de Alexandria, que passava seus dias na soli­dão, absorvido na leitura de livros, na esperança de aprender o derradeiro significado das coisas, ouviu falar do sábio eremita e tratou de ir vê-lo. "Compreendo-disse o filósofo a Antão, que um homem prefira viver sem os outros homens, mas não posso compreender como seja possível viver recluso, sem o consolo dos livros." Mas An­tão respondeu: "Meu livro é o mundo de todas as coisas criadas e quando desejo ler as palavras de Deus nele, encontro-o aberto diante de mim."

Enquanto viveu no temor de Deus, tinha Antão passado seu tem­po, nos momentos não tomados pela oração, em teceres te iras, pois aprendera do honesto velho de Coma que o trabalho pode servir para dissipar a tentação. Mas agora: que o temor se mudara em amor, tudo, inclusive seu trabalho, tornava-se uma expressão de amor.

Certa manhã, quando tinha mais de cem anos, Antão dirigiu-se à fonte para refrescar os lábios ressequidos. De repente, compreen­deu que aquela água que bebia era uma mensagem divina de bênção e de fertilidade. A água era a água viva de Deus. Um gole dela mudou-o. E ao voltar à sua caverna, a mensagem que ela continha invadiu-lhe todos os pensamentos. Não caminhava através de estéreis tratos de rochedos e areia. Caminhava sobre a terra de Deus.

E ao baixar a vista, via que o solo árido tinha-se mudado em acres férteis, em virtude da magia da água viva. Caminhava e o solo mostrava-se coberto de brotos verdes, folhas espantavam no ar e, a cada passo que avançava, as hastes cresciam, amadureciam em es­pigas de grão rico. Como havia feito tantos anos antes, quando jovem lavrador, Antão parava e palpava as espigas com as mãos como se avaliasse a colheita vindoura. E quando voltou para sua caverna, entrou no escuro dela deixando atrás de si o esplendor de um campo de trigo amadurecido. Quem se ajoelhou para rezar era um antigo anacoreta mas nele batia o coração dum jovem lavrador, que dava graças pelos dons da terra.

O campo de trigo diante da caverna era apenas uma visão. Larga extensão de areia semeada de rochedos esperava Antão quando de novo ele saiu. Mas naquela visão, o Senhor tinha expresso Sua vontade com uma comparação e uma metáfora. "Lavra a minha terra!" disse Ele. E Antão agiu de acordo com sua visão. Suas mãos esta­vam ávidas de obedecer ao receberem ordem agora de semear e ceifar.

De alguns dos peregrinos obteve Antão os instrumentos mais essenciais e alguns punhados de sementes. Cavou um buraco perto da fonte. A fonte encheu-o. Com sua pá, cavou regos longitudinalmente e perpendicularmente ao solo do deserto. A água acompanhou-o.

Ergueu represas em redor e a água inundou o lugar que ele havia delimitado como seu campo, embebendo-lhe as crostas ressequidas pelo sol. O solo árido do deserto estava mudado em marga úmida e fértil. Antão tomou suas sementes e semeou-as largamente. E de­ pois de algum tempo, as folhas começaram a espontar e as hastes cresceram e brotaram grãos. O que fôra uma visão viera a tornar-se realidade. O deserto florescia. Chegado o tempo, Antão reuniu sua colheita, separou o grão da palha, moeu-o entre duas pedras, fez com ele uma massa, tirou faísca de pederneira, soprou um fogo-e sobre a rocha aquecida cozeu seu primeiro pão.

Duas mãos solitárias haviam realizado este milagre, haviam transformado o deserto platô em acres férteis. Mãos acostumadas a rezar meteram a pá dentro do solo, cavaram, semearam e colheram a messe. Um homem habituado à oração havia transformado as vastidões estéreis num campo de trigo, pois a oração daquele que tinha vivido no temor do Senhor mudara-se, por meio do amor, na oração criadora de trabalho.

Com esta experiência do milagre do crescimento e da fertilidade, nova forma de piedade rebentou em Antão, a piedade da participação na grandeza de Deus. E ao tempo da colheita, foi como se a terra estivesse a proferir um amém cheio de gratidão!

Com seus férteis campos, Antão escrevia seu nome no livro da criação. Era a assinatura dum santo lavrador. O lavrador de Coma tinha obtido a perfeição como lavrador de Deus.

Como tal encontram-no seus últimos visitantes: como um lavrador de Deus, um santo que semeava e regava, reunia a colheita e cozia seu pão. E este eremita lavrador, embora homem idoso, tinha ainda o vigor inquebrantável e o viço da juventude; seu corpo es­tava ereto, o passo elástico, os olhos claros e penetrantes e a. voz poderosa e ressonante. Completara cento e três anos e conservara tão moça virilidade depois de uma vida de privações e de mortificação da carne, exposta ao sol comburente e aos ventos impiedosos do de­serto e a todas as maneiras e espécies de temperatura.

Seus visitantes olhavam aquele vigor juvenil como prova de miraculosa intervenção de Deus. Era, contudo, um milagre que quadra perfeitamente com os resultados das modernas investigações. Os quadros estatísticos do cientista americano T. S. Young, por exemplo, demonstram que as pessoas que gozaram excepcionalmente de longa vida estavam, na sua totalidade, acostumadas a uma forma frugal de existência. E o professor Raimundo Pearl, do Hospital Johns Hopkins, um dos mais conhecidos peritos em questões de longevidade, resumiu suas descobertas na afirmativa de que "a marcha de nossa vida é o marcador de passo de sua duração!"

De plena posse de seu vigor na idade de cento e cinco anos, Antão foi finalmente arrebatado pela morte. Nenhuma doença, nenhum declínio de vitalidade anunciaram a vinda do fim; mas um dia, quando estava trabalhando em seu campo, de segadeira na mão, pronto a cortar a messe, a voz de Deus informou-o de que aquela deveria ser a última colheita que ele faria.

Dessa forma, uma estranha e maravilhosa vida tinha chegado a seu termo, uma vida da qual oitenta anos tinham sido passados em absoluta solidão. Considerado do ponto de vista de nosso tempo­ que só conhece uma pressa febril e uma vacuidade bocejante - é quase inconcebível que um homem houvesse passado tão longo espaço de tempo em rigorosa reclusão, e ainda mais, satisfeito com ela.

Mas para Antão cem anos de vida com Deus eram apenas um dia de eternidade. Há algo de afim com isto na mais moderna concepção científica do fenômeno do tempo Desde Bergson que já não é mais óbvio que o tempo deva ser medido com matemática exatidão, como se fosse apenas um acontecimento externo e absoluto. Tornou-se necessário considerá-lo também como um fator interno e psicológico.
Assim considerado, seu progresso não depende de relógios e alma naques, pois conquista permanência de acordo com a intensidade da vida interior do homem. Suas unidades são "anos da alma".

Quando Antão sentiu que sua derradeira hora estava a aproximar-se enviou seus discípulos favoritos, Macário e Amanas, a seus filhos do deserto com a mensagem de que aqueles que desejassem vê-lo mais uma vez ainda se apressassem em vir. Quando eles chegaram, eram mais do que ele esperava. Pois todos os habitantes do deserto haviam vindo: os eremitas de seus distantes rochedos; os cenobitas do Nilo, já congregados em grupos, sob a direção dum aba­de; os anacoretas do deserto nítrio e os do deserto de Esquetis, que viviam em regiões impérvias e não tinham outro guia senão as estrêlas. Velhos barbados e adolescentes, de ramos de palmeiras nas mãos, com o sinal-da-cruz nos peitos. Era um exército de peregrinos mas não tinham vindo para marchar diante de um general que pas­sasse em revista suas tropas; tinham vindo porque um pai amoroso desejava despedir se de seus devotados filhos. Caminhou ao longo - de suas fileiras, abençoou-os e pediu-lhes que perseverassem em seus hábitos de devoção a Deus; e quando chegava diante de algum que tinha uma pergunta ou um derradeiro pedido a fazer, escutava-o cheio de paciência e respondia com toda a simpatia e bom conselho.

Em peso e quantidade, o pão que Antão tinha preparado era suficiente apenas para uns poucos dos visitantes. Mas satisfez a todos eles, como no tempo do milagre dos sete pães do Senhor. Quando a festa do amor terminou no deserto o hospedeiro retirou-se para sua caverna, pois sua derradeira hora tinha chegado. Mais uma vez, re­zou fervorosamente e, voltando-se para seus discípulos Macário e Amanas, disse: "O Senhor está me chamando."

Pediu para ser enterrado num lugar sem nenhum sinal ou símbolo, pois desejava que seu corpo pertencesse à terra e não aos homens.

Antão morreu em 17 de janeiro do ano 856 de Nosso Senhor.

Havia encontrado por fim seu derradeiro lugar de repouso; nin­guém sabia onde, quando na primavera seguinte a terra em redor de sua caverna começou a reverdecer de novo, quando o grão cresceu e em breve estava pronto para ser de novo colhido.

Mas também a semente que Antão tinha semeado pelo exemplo de sua vida ascética em breve brotaria e daria fruto. O deserto era a sua nativa morada, mas difundiu-se e espalhou-se, cresceu e ama­dureceu por todo o mundo e através dos séculos. Pois tempo viria em que as colônias de eremitas nas cavernas e túmulos e ruínas haveriam de transformar-se nos conventos e mosteiros da Idade Média, semelhantes a fortalezas.

O abandono do mundo realizado por Antão inspirou o movimen­to monástico dos séculos posteriores. Teve seu ponto de partida na ideia negativa de renúncia e desenvolveu-se no sentido de tornar-se um fator criativo, na vida cultural dos tempos subsequentes. Assim o nome de Antão, o iletrado, ficou inscrito, graças à obra que seu exemplo produziu, na história cultural de toda a humanidade.

Os começos primitivos da forma monástica de vida desenvolve­ram-se no deserto egípcio, enquanto Antão se achava ainda entre os vivos. Um de seus discípulos, chamado Pacômio, havia reunido um grupo de eremitas na solitária ilha de Tabenis, no Nilo, organi­zando-os, sob sua chefia, numa comunidade devocional. Ao tempo da morte de Antão, havia não menos de nove ou dez desses grupos, contando cada um com cerca de mil eremitas. Outro discípulo de Antão, Hilarião, transplantou a semente de ascetismo do deserto do Egito para a Palestina, onde fundou numerosas colônias de anaco­retas, vivendo juntos, sob a direção dum superior, em congregações de celas separadas, que vieram a ser conhecidas como "lauras". De modo que Hilarião tornou-se o apóstolo do monasticismo oriental, pois as "lauras" difundiram-se rapidamente da Palestina para a Síria, para a Pérsia, Babilônia e outras partes, através do Oriente.

Para estas primeiras comunidades, um conjunto de regras especí­ficas, as regras da castidade, da pobreza e da obediência, que no correr do tempo assumiram a importância de votos básicos para todas as formas de monasticismo, foi formulado por S. Basílio, o Grande, que havia começado sua carreira como orador pagão e, tendo-se dedicado a uma vida de ascetismo cristão, veio a ocupar por fim a sede episcopal de Cesaréia.

A difusão do monasticismo no Ocidente, onde iria ser de tão duradoura significação cultural, efetuou-se graças aos efeitos dum livro, a Vita St. Antonii, de Atanásio, um desses documentos escritos cujo impacto tem mudado a face da Terra. Atanásio era um admirador de Antão. Dos vinte anos de sua vida no exílio, passara seis como eremita entre eremitas no deserto egípcio, e quando veio a escrever sua narrativa da vida de Antão, produziu um relato do milagre de uma vida toda devotada a Cristo.

A primeira cidade sacudida pela mensagem contida neste livro foi precisamente a mais não-cristã do novo império da Cristandade: a cidade de Roma.

Em Roma, a velha fé pagã tinha-se mantido, a despeito do fato de ter sido o Cristianismo declarado a religião oficial do império.

No Senado poderosa facção de pagãos lutava por proteger seus direitos tradicionais. Nas basílicas cristãs, os cristãos oravam a Cristo, mas nos templos pagãos os pagãos continuavam a sacrificar a seus deuses pagãos. Enquanto que mulheres e crianças eram predominantemente partidários da nova fé no Redentor cristão, seus maridos e pais permaneciam fiéis aos deuses do passado. A estrutura social de Roma não tinha sido realmente afetada pela doutrina cristã. A nobreza, os patrícios e os ricos continuavam sua vida de abundância e luxo, que lhes era tornada possível pelos escravos e pelos pobres que eles exploravam e desprezavam. E até mesmo os cristãos, cujo Evangelho ensinava diferente modo de vida, não podiam escapar ao fascínio das convenções sociais. Todos em Roma, pagãos e cristãos igualmente, viviam na excitação do luxo e dos prazeres mundanos. Era a fuga duma civilização perseguida pelo senso de sua ruína iminente.

Os homens, enfatuados pelo orgulho, sempre em busca de melhores posições e de mais cargos, em nada pensavam senão em dinheiro e poder. As mulheres gastavam o tempo em rendas e folhas de camisa. Vestidas com trajes suntuosos, com cabeleiras de ouro na cabeça, aquelas bonecas empoadas e pintadas eram transportadas em liteiras de marfim, de banquete a banquete, de dança a dança, até que, exaustas ao peso de suas joias, buscavam o apoio de seus escravos, para levarem-nas a seus leitos de ócio. Até mesmo os padres cristãos, que interpretavam o Evangelho na igreja, tinham sucumbido às tentações dessa vida. Com roupas elegantes, perfumados com esquisitos perfumes, o cabelo cuidadosamente cacheado, os dedos carregados de anéis, saíam aos saltinhos na ponta dos pés, a visitar os palácios de seus paroquianos, grandemente preocupados em não mancharem a pelica macia de seus sapatos. Uma religião havia triunfado, mas não o seu espírito, e os vencedores, agora poderosos e ricos eles próprios, tinham esquecido a doutrina de seu Mestre, o Galileu, que declarara não possuir nenhum bem terrestre.

Era este o mundo em que o livro de Atanásio lançou sua história da vida de Santo Antão. Contava a vida dum lavrador egípcio, que havia renunciado ao mundo e a todos os seus bens e prazeres, que tinha vivido na pobreza sua vida de devoção e de privação, para ser capaz de seguir a verdadeira doutrina de Cristo. Foi pelo chocante contraste entre esta forma ascética de vida e as dissolutas orgias dos romanos daquele tempo que a Vita de Atanásio causou tão profunda e abaladora impressão na consciência da sociedade romana.

Um homem no distante Egito tinha dado o exemplo. E mulheres em Roma, tanto pagãs como cristãs, foram as primeiras a alistar-se numa tentativa de emulação com a vida ascética do santo do deserto.

Entre elas havia descendentes das mais nobres famílias, dos Júlios e Marcelinos, dos Gracos e Cipiões. Uma a uma, foram libertando seus escravos, distribuíram as fortunas herdadas, rejeitaram esplêndidos pretendentes, trajavam-se como os pobres e rivalizavam umas com as outras em levar uma vida de privações e de castidade como virgens e viúvas, cujo amor pertencia ao Senhor. Uns após outros foram os palácios convertidos em conventos e mosteiros. Dentro em pouco os homens também foram arrebatados pelo entusiástico exemplo delas. Senadores e cônsules abandonaram seus cargos e honrarias, trocaram suas togas de púrpura e as roupas custosas de seus cargos por humildes buréis e viviam a vida de monges, em pobreza e devoção.

Quando S. Jerônimo chegou, como jovem estudante, de seu lar na Dalmácia, à cidade de Roma, onde desejava completar seus estudos de Direito e de Teologia, descobriu que a vida naquele centro de prazeres mundanos já estava profundamente afetada pelos ideais do ascetismo cristão e, dentro em pouco, ele também foi inteiramente dominado pelo fascínio do novo movimento. Ele próprio, em período posterior, iria passar considerável espaço de tempo como eremita, nas terras desertas de Cálcis, mas agora, a pedido de Marcela, nobre romana, cujo palácio no Aventino servia de quartel-general do movimento monástico, tornou-se o dirigente e chefe conselheiro do círculo ascético de Roma.

O movimento do monasticismo espalhou-se de Roma para a Africa Setentrional. Expandiu-se para a Gália e por toda parte do mundo ocidental. E à medida que sua esfera de influência se estendia, ganhava ele força até que pôde imprimir sua marca característica nos séculos seguintes.

O mesmo temor de Deus, que havia levado Antão, o pai do movimento monástico, à solidão do deserto, inspirava agora todos aqueles, e numerosos, que repudiavam seus desejos naturais e humanos e recusavam cumprir seus elementares deveres como membros duma sociedade mundana, que trocavam suas casas por cavernas no deserto ou por celas em conventos e mosteiros, que distribuíam suas fortunas para viver uma vida de penúria, que abandonavam seus amigos e famílias para viver na solidão, em condições contrárias aos insuntos e háb i tos da natureza humana, que renunciavam a todos os pedidos de participação nas atividades sociais e cívicas, a fim de passar seus dias na oração e nas práticas devotas.

O temor de Deus - que é o primeiro chamado da voz da consciência - induzia aquelas multidões de homens e mulheres a voltar as costas a uma sociedade decadente, que jazia prostrada na sua impiedade mundana. O temor de Deus encorajava-os a retirar seu apoio dum Estado construído sobre um sistema de exploração do pobre e de injustiças perpetradas pelos ricos. E aquele mesmo temor de Deus produziu aqueles excessos horripilantes de flagelação e jejum, cujos relatos enchem páginas e páginas da história do primitivo monasticismo.

Mas um tempo chegou, no desenvolvimento do movimento monástico, exatamente como na vida de Antão, em que o temor de Deus foi transformado em amor de Deus; e então os mais gloriososcapítulos da história monástica dos séculos seguintes foram escritos.

O que havia começado como um movimento anti-social veio a mudar-se agora em importante fator social. O repúdio à mundanidade engendrou nova forma de afirmação de vida, e os homens e mulheres, que abandonaram sua tarefa no mundo, tornaram-se os criadores duma nova cultura e duma nova forma de sociedade.

A importância da força cultural, que irradiava dos conventos e mosteiros e tinha suas primitivas origens nas cavernas do deserto, é atestada pela história da primitiva Idade Média.

As intrincadas distinções de posição e dignidade que engendra o impiedoso egoísmo das sociedades mundanas perderam toda a sua significação nas humildes cavernas e celas de anacoretas, monges e monjas, que olhavam os mais pobres dos pobres como seus iguais, como filhos do mesmo pai, como unidos a eles por um laço de universal fraternidade. Graças a esta ascética auto-renúncia, que havia brotado do amor a Deus, simpatias semi-adormecidas pelo sofrimento alheio despertaram com ardente impetuosidade e a comiseração passiva tornou-se ativa em forma de auxílio prático.

Em cavernas e celas, onde não havia nem patrões orgulhosos, nem servos desprezíveis, uma comunidade de trabalhadores livres veio a formar-se. Aqui, onde cada qual vivia do trabalho de suas mãos, o trabalho retomava de novo a nobre posição que lhe tinha sido consagrada pelos profetas lavradores e operários, pelo filho do carpinteiro de Nazaré e pelo fabricante de tendas de Tarso. Aquilo que a piedade exigia , as mãos trabalhadoras estavam prontas a executar .

O poder duma vontade, que havia sido acerada na disciplina ascé­tica, tornava possível que anacoretas, monges e monjas concebessem seus planos de assistência aos necessitados, numa escala tão compreensiva, que podem muito bem ser denominados os primeiros grandes trabalhadores sociais. No quarto século eremitas no deserto egípcio cultivavam o solo árido do deserto com o suor de seus rostos; semeavam e colhiam e reduziam sua própria e escassa ração, ao passo que enviavam cargas inteiras de navio à Líbia e a Alexandria para alimentar os indigentes dali.

Nossa era orgulha-se justamente de suas realizações de bem-estar social, de seus hospitais, de suas casas para velhos e pobres, mas não deveria esquecer que todas essas instituições devem sua existência, em última análise, aos homens e mulheres ascetas, que trabalhavam no quarto século da era cristã. Naquele tempo, Fabíola, nobre romana, pertencente ao círculo ascético de S. Jerônimo, fundou o primeiro asilo para os pobres na cidade de Roma. E Basílio, o bispo monástico de Cesaréia, construiu fora dos portões de sua cidade outra Cesaréia para os doentes e os pobres e erigiu nela os primeiros hospitais.

S. Atanásio, S. Ambrósio e S. Agostinho falavam de caridade e trabalho como "conselhos de perfeição", em verdadeira vida monástica. O gesto espontâneo de dar, numa assentada, toda uma fortuna herdada, não era mais bastante em si mesmo; requeria-se caridade contínua e o trabalho era olhado como o instrumento dessa caridade. Mas foi somente por intermédio de Bento de Núrsia, o primeiro fundador duma ordem religiosa no Ocidente, que o trabalho e a caridade lograram a posição de princípios obrigatórios.

Para os monges de Bento era um dever alimentar os pobres, vestir os nus e tratar dos doentes. Em sua regra, "Ora e labora, pois a preguiça é a inimiga da alma", unia ele intimamente a absorção espiritual e o trabalho manual numa idêntica piedade.

Bento iria desenvolver o monasticismo de Antão na mais poderosa instituição cultural do Ocidente, mas começou sua carreira inteiramente dentro do espírito da fuga renunciativa do mundo, que tinha também animado os começos do seu precursor egípcio. O filho de ricos patrícios de Núrsia, justamente como o filho de ricos lavradores de Coma, partiu todos os seus laços mundanos e refugiou-se na solidão. Na garganta de Subíaco escolheu uma caverna num rochedo alcantilado, ligado ao mundo exterior por um simples desfiladeiro de acesso extremamente aventuroso. Ali passou vários anos, praticando a mais austera penitência, até que um dia, atraídos pela sua santa vida, outros homens chegaram, ávidos de ser discípulos seus e de aceitar sua direção para seguir o exemplo que ele havia dado. Bento fundou seu primeiro mosteiro para um primeiro grupo de doze discípulos e, com o correr do tempo, como houvesse aumentado o número de seus seguidores, onze outros mosteiros, dos quais o famoso Monte Cassino foi o último e o mais importante. Assim a primeira ordem religiosa do Ocidente, a Ordem dos Beneditinos, estava formada. Iria tornar-se da mais extrema significação para o desenvolvimento total da vida cultural europeia.

Esta magnífica instituição não tinha sido planejada pelo eremita asceta em sua caverna de Subíaco. Desenvolveu-a como chefe escolhido por seus companheiros, de acordo com o espontâneo crescimento e progresso de sua obra. A Ordem dos Beneditinos, como o disse o Cardeal

Newman, era "antes um crescimento do que uma estrutura". Bento viu-se diante da tarefa de estabelecer uma regra para uma comunidade de discípulos. Todas as pequenas exigências da vida quotidiana passavam pelas regras gerais, sumariadas na famosa Regra Beneditina, que veio a ser a base do monasticismo ocidental para os quatro séculos seguintes. A Regra Beneditina proporcionava às comunidades monásticas, relativamente instáveis, a sólida estrutura de uma instituição organizada. Os laços frouxos, que haviam mantido juntos grupos de indivíduos piedosos, foram substituídos por uma união permanente, que somente a morte podia dissolver. Aqueles que abandonavam suas famílias no mundo tornavam-se membros duma família espiritual de monges. Aqueles que deixavam suas casas e lares no mundo mutável encontravam nos mosteiros uma casa imutável, uma casa do espírito, que jamais poderia ser perdida. Aqueles que renunciavam a seu trabalho centralizado no mundo eram colocados pelas regras num trabalho de padrão organizado, cujo produto se acumulava para um grupo e nunca para um único indivíduo. A autoflagelação foi substituída pela autodisciplina; a mortificação do corpo pela devoção ao trabalho.

De modo que, quando Bento teve conhecimento, uma vez, de certo eremita cujo exagerado ascetismo o levara a encadear-se a um rochedo, dentro de sua estreita caverna; mandou-lhe esta mensagem, a respeito da nova vida de piedade: "Quebre as cadeias, pois o verdadeiro servo de Deus está encadeado não a rochedos pelo ferro, mas à retidão pelo Cristo."

Nos mosteiros beneditinos, tanto o trabalho como a contemplação e o culto foram regulados por um estrito esquema e cada monge tinha suas tarefas específicas. O irmão lenhador rachava lenha, o irmão moleiro moía grãos, o irmão lavrador cavava o solo, o irmão cozinheiro preparava a comida; o irmão jardineiro trabalhava no jardim e os monges nas oficinas faziam utensílios e instrumentos e toda espécie de petrechos.

Escolástica, a irmã de Bento, que tinha seguido seu exemplo e fundara numerosos conventos, que colocara sob a mesma Regra Beneditina, mandava que suas freiras fiassem, tecessem e fizessem roupas.

Graças às regras de trabalho de Bento, os mosteiros e conventos tomaram-se instituições que se bastavam a si mesmas, sem nenhuma dependência do mundo exterior. E somente esta emancipação da necessidade de pedir e aceitar o que outros tinham a oferecer pôde engendrar a capacidade de dar e auxiliar, num espírito de completo desinteresse, sobre o qual está baseada a caridade cristã. Somente o cultivo planejado dos campos, a produção planejada nas oficinas podiam proporcionar o excesso permanente de víveres e suprimentos, que garantiam a efetividade da esmola beneditina.

O lugar da caridade esporádica foi tomado pelo trabalho organizado da assistência social. Pois o que era feito por aqueles monges beneditinos, em mosteiros bem distantes no espaço, em eras separadas por séculos, tudo formava um só todo, em virtude da estrutura da ordem, numa grande e total realização. Ultrapassava os limites dos mosteiros individuais, prolongava além da conta o espaço de vida de monges individuais. Ao beneditino, individualmente, não importava poder terminar o trabalho começado, poder viver para ver a colheita das sementes que havia semeado. Os que viessem depois dele continuariam a mesma espécie de trabalho e o completariam. Era apenas a certeza de que a ordem duraria que tomava possível aos beneditinos conceber seus vastos planos que lhes dava, a coragem de embarcar numa aventura que nenhum monge, que nenhuma geração de monges e que nenhum mosteiro poderia jamais ter esperança de levar a cabo.

A glória das realizações beneditinas só pode ser apreciada de encontro ao negro pano de fundo do tempo. Bento nascera em 480, pouco depois da queda dos derradeiros imperadores romanos. Sua vida, sua obra e as grandes consecuções de sua ordem coincidem no tempo com a migração de povos, que marcou o fim da civilização da Antiguidade. O mundo mediterrâneo jaz devastado na vigília de exércitos combatentes, como os do general romano do Oriente, Belisário, e dos godos, vândalos e lombardos invasores. A disposição de ânimo prevalecente era a da destruição iminente. As cidades estavam destruídas, a própria Roma jazia em ruínas, os distritos rurais estavam despovoados. Guerra, fome, pobreza eram os flagelos da terra.

E então, em meio dum velho mundo decadente, ergueu-se nos mosteiros reclusos dos monges beneditinos o novo mundo da Idade Média. Esses monges, que se haviam retirado do caos da época para viver em clausurada solidão suas vidas de calma serenidade, haviam descoberto o caminho que conduzia a um novo começo. Enquanto lá fora, no mundo, hordas obcecadas pelas paixões belicosas destruíam sem razão ou senso as vidas de homens e o produto de seu trabalho, os monges conservavam-se afastados das paixões mundanas e mantinham-se tranquilamente a trabalhar para construir de novo. Sua caridade estava imune do ódio partidário e do preconceito e acolhia de boa vontade quem quer que chegasse, solícita no auxílio e no consolo. Onde hordas turbulentas de guerra tinham devastado os campos, monges sossegados moviam-se para cavar o solo novamente. E no meio do caos e da devastação cuidavam de seus jardins floridos e dos campos frutíferos de grão. O que Alarico e Átila haviam talado e arruinado, os industriosos monges punham-se pacientemente a reconstruir. Em um mundo devastado pela guerra, lançavam eles novas pontes e abriam novas estradas.

No correr do tempo o exemplo deles inspirou também homens e mulheres fora das paredes dos claustros. Onde quer que fossem vistos monges cavando e arando, devotados a seu trabalho como uma nova forma de culto, homens e mulheres piedosos de todas as classes do mundo leigo ofereciam-se voluntariamente para tomar parte na grande obra de reconstrução. E à medida que o espírito desta nova piedade do trabalho invadia distritos inteiros da terra, os campos reabilitados estendiam-se mais e mais longe pelas regiões rurais, e mais e mais homens e mulheres voltavam a seus trabalhos nas oficinas e nas fazendas. Descobriam o caminho de volta a uma vida construtiva, e as regras de S. Bento, escritas para monges, tinham-se tornado uma mensagem de esperança para o mundo em geral.

Bem cedo os mosteiros beneditinos tornaram-se pontos focais na tarefa de reconstrução. Todos aqueles em cujos corações o desejo de edificar e preservar estava ainda inflamado, todos aqueles que ansiavam por se libertar da destruição e da decadência, retiravam-se para os mosteiros e submetiam-se às regras de S. Bento.

No ano 540, o patrício Cassiodoro, a quem o rei dos gados, Teodorico, o Grande, fizera ministro, decidiu retirar se do mundo para a quietude dum mosteiro. Profissionalmente era um dignitário no Estado dos ostrogodos, mas em seu coração permanecera um romano e via, com a mais profunda tristeza, como a cultura do passado, que ele estremecia, estava minada pelos atos dos novos governantes. Parecia-lhe que os mosteiros eram os derradeiros santuários onde os remanescentes da velha herança cultural poderiam conservar-se a salvo, onde um esforço sistemático da parte dos monges poderia conseguir preservar e desenvolver o saber dos antigos, em benefício das gerações vindouras. Filósofo e monge, Cassiodoro colecionou os vestígios da antiga literatura e agiu como o grande curador desses monumentos do passado "de modo que o mundo não fosse completamente submergido no barbarismo". Transformou sua casa de campo em Brútio num mosteiro, que se compunha não só de celas e duma capela, mas também duma biblioteca e dum chamado "escritório", prescreveu a seus monges, como forma de serviço religioso, o trabalho de preservar e copiar antigos códices. Monges de negros buréis curvavam-se sobre velhos papiros, traçando pacientemente letra por letra, transcrevendo e traduzindo manuscrito a pós manuscrito. Dentro em breve os outros mosteiros da Regra Beneditina seguiram o exemplo dado por Cassiodoro e com o correr dos tempos formaram-se inteiras bibliotecas de cópias e traduções. A estes labores de preservação devem as eras antigas o conhecimento dos escritos dos Padres da Igreja, S. Jerônimo, S. Ambrósio e S. Agostinho, mas também o conhecimento dos poemas de Virgílio e Horácio e os escritos em prosa dos clássicos romanos.
De modo que os mosteiros beneditinos tornaram-se, ainda em vida de seu fundador, santuários de antiga sabedoria e centros duma nova forma de saber. O treinamento no pensamento antigo, combinado com a concentração monástica, gerou a força intelectual que constituiu a nova cultura da Idade Média.

É de simbólica importância que Monte Cassino, ponto de partida do novo progresso, tivesse sido construído no mesmo ano que viu também a dissolução da Academia, derradeiro baluarte supérs­tite do antigo saber. A Ordem Beneditina é o elo que liga a Antiguidade aos Tempos Modernos.

Seu interesse pelo saber capacitou os monges beneditinos a tornarem-se os mestres dos povos jovens, a manter a continuidade da tradição educacional que, doutra forma, poderia ter sido destruída, durante a migração dos povos. Cassiodoro escreveu vários compêndios sobre as artes liberais, bem como uma gramática e, dentro em pouco, todo um corpo de monges dessa poderosa ordem aplicou-se à tarefa do magistério. Onde quer que os beneditinos fundassem novo mosteiro, organizavam também nova escola ou academia. Foi dessas instituições educacionais que se originaram posteriormente as universidades da Idade Média. Com o monge beneditino Gregório, o monasticismo, que havia tanto tempo se iniciara no deserto egípcio, atingiu seu mais alto poder no mundo político. Gregório foi coroado Papa e a História o denomina Gregório, o Grande. Pertencia aos Anícios, família de patrícios romanos, e fora a princípio um dos pretores. Mas ele, como antes Cassiodoro, sentiu-se arrastado para fora de sua posição de destaque para a quietude duma cela monástica, pelos ideais que estavam formando um novo mundo, por trás das paredes protetoras dos mosteiros. Transformou sua casa ancestral, no Monte Célio, no mosteiro de S. André. Além disso fundou seis mosteiros beneditinos na Sicília.

Cassiodoro havia enriquecido o monasticismo com o saber romano; Gregório acrescentou a habilidade organizadora romana ao caráter monástico. Seus extraordinários talentos estenderam sua influência para além de sua estreita cela até ao mundo exterior e, em 590, quando o clero, o senado e o povo romano o aclamaram Papa, não houve uma voz sequer dissidente. Naquela época já possuía o Papa o poder dum governante absoluto. Quando Gregório subiu ao trono papal, caiu este poder pela primeira vez nas mãos de um monge. Sentia que sua posição de poder universal era uma pesada carga e algum tempo depois de ter tido de abandonar a quietude de sua cela para ocupar a sé papal, escreveu numa carta a um de seus amigos: "Reflito a que desanimadora altura de avanço externo atingi, ao cair da elevada altura do meu repouso."

Sob suas vestes pontificais permaneceu fiel ao negro burel dos monges beneditinos. Estava investido do poder papal, mas como simples monge de sua ordem continuou a praticar a regra da caridade. Quando soube um dia que, a despeito de seus mais estrênuos esforços para aliviar a miséria dos pobres, um mendigo em Roma tinha morrido de fome, insistiu em que isso foi, culpa sua. Flagelou-se e redobrou seus esforços para restringir o sofrimento da pobreza. Foi então que tornou obrigação de toda igreja pôr de lado parte de suas rendas para auxiliar os necessitados.

O Papa planejou estender o poder da Igreja de Roma sobre o Universo inteiro e decidiu conquistar para a Cristandade as regiões pagãs da Bretanha e da Gália. Mas era um monge beneditino, no trono papal, quem estava traçando planos para esta campanha de conquista. Desde Júlio César era esta a segunda tentativa da parte de Roma, para estender seu domínio às Ilhas Britânicas. Quando César quis conquistar a Bretanha, enviou para lá seis de suas legiões; o monge papal, pensando na conquista, enviou quarenta monges beneditinos. As legiões de César estavam armadas até aos dentes quando atravessaram o canal para de Dover entrarem terra adentro. As regras de guerra que Gregório tinha para seus quarenta monges eram amor e caridade, e as armas de conquista o Livro dos Livros e hinos de sua própria composição. Com canções nos lábios, os conquistadores monásticos marcharam através das florestas de Kent até Cantuária, onde o Rei Engelberto tinha sua corte. Em vez de tomar-lhes as terras, traziam para elas uma nova religião e uma nova cultura. A doutrina de sua fé estava estampada num livro que apresentaram a seus exércitos anglo-saxões e uma vez que os anglo-saxões não sabiam ler ou escrever, aqueles previdentes monges, que tinham vindo difundir o Evangelho, trouxeram consigo gramáticas e cartilhas. Onde quer que trabalhassem, fundavam escolas. E dentro em pouco, graças aos monges beneditinos, o Cristianismo, cartilhas e escolas estendiam também seu domínio pela Irlanda, pela Gália e terras teutônicas.

Todavia, este grande monge no trono papal , por intermédio de quem a fé fora levada aos povos do Norte, por intermédio de quem tinham sido eles trazidos à órbita da civilização mediterrânea; que veio a ser chamado o derradeiro dos Padres da Igreja, porque, com seus escritos, completou o trabalho de consolidação espiritual que seus predecessores tinham começado; este grande monge beneditino dera à Igreja e a toda a civilização ocidental outro presente mais maravilhoso ainda: o dom da arte da música. S. Atanásio e S. Hi­larião, no Oriente, e S. Ambrósio, no Ocidente, tinham levado suas congregações de fiéis a cantar os louvores de Deus, mas foi somente por meio de Gregório, o Grande, que o canto e a música receberam valor de prece, pois estabeleceu-os comopartes integrantes da Missa.

Fora dotado do poder criador dum gênio musical e empregou-o para desenvolver, sobre as bases de melodias gregas, as solenes formas recitativas do cantochão ritual, conhecido pelo nome de canto gregoriano. Assim salvou a herança musical da Antiguidade, preservando-a na Igreja e transmitindo-a aos séculos subsequentes.

Já velho, afligido pela gota, este Papa ainda passava horas e dias na escola de canto que fundara, incansável na tarefa de fazer seus monges partilharem de seu próprio sentimento pela pureza do som e ensinando-lhes a arte de cantar para maior glória de Deus. Graças aos esforços rigorosos deste inspirado mestre de música o culto cristão veio a ser um culto de melodia e de canto e o Cristianismo uma fé cantante. E aqueles que ainda estavam fora da Igreja foram arrastados para seu redil, desde que ela se tornara uma Igreja de cantorias, em muito maior número do que o dogma, a escola e o sermão teriam sido capazes de atrair. E dentre eles foram recrutados os primeiros estudantes leigos de música, que depois sairiam para ser os primeiros professores de canto e de música da Europa ocidental. Foram os começos e deles brotou a grande música ocidental, que nas fugas de Bach abraçou céu e terra.

Durante muitos séculos depois da morte de Gregório, a Ordem dos Beneditinos manteve a direção da herança cultural dos antigos e dos materiais de construção da civilização nascente. Finalmente, no século X, esta grande ordem sucumbiu como tudo mais que está exposto ao mundo, ao mesmo eterno tentador a quem Antão, o "pai do monasticismo", tinha visto sob a forma do demônio. As tentações que fizeram cair a Ordem Beneditina, como caíram outras muitas ordens também, no correr dos tempos, foram a riqueza e a avareza. Mas sempre e em toda parte o monasticismo encontrava caminho de volta a seu ideal e fim originais, tão logo regressava à sua velha severidade ascética, à pobreza, à renúncia e à quietude.

Quando quer que isso acontecia, o monasticismo tirava disso nova energia criadora, capacitando o a atingir novas alturas nas suas realizações. Todas as grandes figuras da história das ordens monásticas: S. Bernardo, o místico de Clairvaux; S. Anselmo de Cantuária o fundador do escolasticismo; Alberto Magno, o Doutor Universal; S. Tomás de Aquino, o Doutor Angélico; S. Francisco de Assis, o Trovador de Deus; S. Boaventura, o Doutor Seráfico; todos eles fortaleceram-se na solidão, exercitaram-se na renúncia e permaneceram fiéis a seu voto de pobreza. Por mais que estes monges ocidentais dos últimos tempos da Idade Média possam ter diferido do eremita do deserto egípcio, que não sabia ler nem escrever, pertenciam todos ao seu parentesco espiritual. Na sua austeridade ele é, inconfundivelmente, o antepassado comum de todos eles.

Nos mosteiros cristãos, estabeleceu-se o ascetismo como uma poderosa instituição, que persistiu através de muito mais de quinze séculos e tornou-se a o mesmo tempo uma força que ajudou a determinar o curso da História. Contudo, a essência da ideia ascética está muito mais profundamente arraigada do que qualquer específico credo religioso. Profundamente inerente à alma humana, é não somente a aspiração de um plano espiritual mais elevado, mas também a convicção de que tal ideal pode ser atingido apenas por meio da solidão, por meio da renúncia dos bens terrestres, por meio do exercitamento do corpo e da alma, em suma, por meio dum modo ascético de vida.

A palavra "ascetismo" volta a uma base grega que significa "praticar" e foi aplicada a atletas que viviam reclusos e abstinentes, enquanto se exercitavam para uma disputa na arena. O Cristianismo aplicou esta palavra ao treinamento espiritual da alma para suas disputas com as tentações da natureza animal do homem. Sempre que indivíduos ou grupos de indivíduos tentaram erguer-se acima do nível da natureza comum, escolheram a solidão como seu novo lar, fizeram da pobreza sua condição e da abstinência seu modo de vida.

Na Índia, o berço de toda a nobreza espiritual, os brâmanes dos primitivos tempos védicos retiravam-se para a solidão e viviam como eremitas, a fim de conseguirem penetrar os derradeiros arcanos do ser. Para os hindus, o grande deus Xiva, em quem estão conjugados os princípios de destruição e restauração, deu o exemplo da vida ascética. Formavam uma imagem visual dele distante do mundo, na solidão do mais alto pico da cordilheira do Himalaia, sentado numa pele de tigre e absorto na meditação, dirigindo o curso do mundo, somente graças ao pensamento concentrado. Na doutrina dos iogas a prática do ascetismo foi formulada em sistema definido, que é uma das mais velhas tradições espirituais do homem. Buda passou sete anos de solidão silenciosa sob uma figueira, até atingir aquela ilustração oniabrangente que transformou o antigo Príncipe Gautama num Buda, isto é, num Iluminado. E os monges e monjas budistas cantavam as "imortais canções de sua serena sabedoria".2

Os padres do deus egípcio Serápis eram ascetas. Eram-no também os membros das seitas greco-judaicas dos essênios e terapeutas. O profeta Maomé retirou-se para uma caverna perto de Meca, a fim de preparar-se para sua grande obra, e mais tarde o ascetismo desempenhou parte essencial na piedade maometana. Os místicos de todas as áreas e de todas as fés asseguram-nos que a unia mystica, a verdadeira união com Deus, só é atingível na solidão e graças a um modo ascético de vida. E finalmente, o protestantismo, o acérrimo adversário do monaquismo, produziu a severidade ascética de Calvino e de Cromwell, produziu os puritanos e o pietismo.

2. Há diferença muito grande entre o ascetismo cristão e o que se pratica em qualquer outra religião, como, por exemplo, no budismo. Naquele, o ascetismo é um meio e não um fim e é empregado para assegurar a plenitude da vida. É uma forma de Vida. Nas outras religiões, é praticado como um fim em si, sem se levar em conta o elemento positivo, vital. Por isso é que o cristão não é um maniqueísta, que odeia o corpo. Quando Cristo afirmou que a carne era fraca, não se referiu ao corpo e sim à natureza humana, gafada do pecado (N. do T.).

Não somente o instinto religioso, mas também a experiência espiritual dos grandes filósofos e modeladores do pensamento ético confirmam o valor da vida ascética. Todos estão concordes em que a verdadeira compreensão só pode ser obtida por aqueles que se submetem a severa disciplina, a alguma forma de ascetismo, pois nada mais pode tornar possível aquela concentração plena, sem a qual a razão permanece estéril. Heráclito, o pai da filosofia, viveu na solidão. A doutrina idealística de Platão está baseada numa visão ascética de vida. Aristóteles chamou a vida dos buscadores de prazeres bárbara. Os estoicos, os cínicos, os neoplatonistas, Espinosa, Pascal, Schopenhauer, Tolstoi, todos ensinaram que a verdadeira vida, o verdadeiro conhecimento e a verdadeira serenidade são obtidos apenas graças à subjugação dos mais baixos instintos. O grande filósofo Kierkegaard publicou seu primeiro grande livro, Uma de Duas, sob o pseudônimo de "Victor Eremita", o eremita vitorioso.

E até mesmo Nietzsche, que proclamou sua "alegre sabedoria" como um evangelho anticristão, desenvolveu sua doutrina na solidão ascética. De Dante e Petrarca a Keats e aos românticos e até mesmo aos escritores do passado mais recente, os poetas vivem a cantar os louvores da solidão e da renúncia. E até mesmo os clássicos germânicos, cujo único interesse era "viver a vida", sentiam necessidade de repouso no "claustro mais recluso", para entrar em comunhão com seu "eu mais calmo". Não somente a Revelação de S. João foi escrita na solidão numa gruta em Patmos. Ernesto Bertram afirma que todos os livros de importância universal foram concebidos em alguma Patmos, no deserto, no cativeiro, num exílio forçado ou imposto voluntariamente.

"Não sabeis-escreveu ele-que a voz do que chama sai sempre do deserto e que as coisas que devem ser ditas a um povo e de um povo devem amadurecer nos campos do isolamento?'' E de fato, até mesmo os grandes, cujas obras e realizações foram destinadas a servir às necessidades e objetivos do mundo do dia - os pioneiros, os exploradores, os inventores e reformadores sociais-todos eles insistem em suas biografias e confissões que o pré-requisito de toda a verdadeira grandeza é a solidão, a pobreza, a negação de si mesmo - forma monástica de vida, diferente apenas em grau.

Em S. Antão, o ascetismo atinge o patético dum grande exemplo.

Na sua vida, a negação de si mesmo é levada à intensidade de um drama ou duma epopéia. O interior do deserto egípcio é um cenário que parece transferir a ação para uma atmosfera de irrealidade.

A pobreza de Antão torna-se o símbolo e protótipo de toda a pobreza; seu poder de renúncia tem as dimensões de heroísmo mitológico. Nas suas tentações o sobrenatural mistura-se com acontecimentos naturais, como se dá em todas as grandes obras literárias.

Por causa disto, sua pessoa e sua vida juntam-se a outros assuntos míticos, tornando-se um tema perenemente fascinante de arte. Não há retrato de Antão como ele foi na realidade. Há apenas o retrato que a imaginação dos artistas criou, sob a impressão do que é conhecido a respeito de seu caráter e de sua vida. Mas esta figura, precisamente porque ninguém jamais lhe determinou os contornos exatos, juntamente com o pano de fundo insólito e mágico e com as aparições sobrenaturais que caracterizam todas as fases de sua vida, permitiu que as artes desenvolvessem tal abundância de representações variadas, que os retratos de Antão constituem capitulo especial na história da pintura e da escultura.

Começando com a arte idealizadora do Cristianismo primitivo, passando pela escultura romântica, pela pintura gótica em todos os estágios, pelo início, apogeu e fins da Renascença, até aos estilos modernos e ultramodernos, não há período, não há movimento ou escola de arte que não haja produzido em seu próprio espírito específico, com suas próprias técnicas específicas, sua própria versão específica do tema antonino. A maior parte dos grandes artistas, especialmente nos tempos modernos, enriquece a tradição do tema antonino com sua interpretação pessoal. Esculpiram seu S. Antão em pedra; pintaram-no em tela; gravaram-no em cobre; desenharam-no sobre um fundo de ouro iluminado ou colocaram-no atrevidamente dentro da paisagem e do meio de suas próprias vidas. Pincel e agulha, cor e linha, luz e treva - todos os artifícios da arte serviram para tornar sua figura mais impressivamente verdadeira. Mestres italianos e espanhóis, holandeses e flamengos, franceses e germânicos, tentaram recriar em visões artísticas o rosto desconhecido, a figura desconhecida do santo do ascetismo, quer na idealização linear estilizada das convenções medievais, quer por meio do realismo comovedor e imóvel dos tempos modernos, quer ainda com técnicas impressionistas ou expressionistas.

Os irmãos Huberto e João Van Eyck, os inventores da pintura a óleo, no século XV, exibiram nos painéis de seu altar-mor, em Gand, para edificação dos fiéis, um grande colorido livro de pintura, com um dos compartimentos laterais ocupado por S. Antão, no meio dum grupo de seus monges que acompanhavam seu santo mestre na sua adoração ao Cordeiro de Deus. Lucas Van Leyden, o grande mestre da arte holandesa da Renascença, pintou S. Antão no seu encontro pessoal com S. Paulo de Tebas. Vitor Pisano, um dos pioneiros da primitiva Renascença na Itália Setentrional, pô-lo em um de seus famosos painéis. Pinturicchio, o mestre da escola da úmbria do século XV; Paulo Veronese, junto com Tintoretto, o derradeiro grande representante da escola veneziana; José Ribera, o místico hispano-italiano e fundador da escola napolitana; Guido Reni, o pintor da escola eclética do barroco italiano; todos eles o glorificaram nas cores esplendorosas de sua rica paleta. Na Espanha os principais pintores dos séculos XVI e XVII, que acrescentaram sua interpretação à tradição do tema antonino, são Francisco de Zurbarán, o mestre do retrato monástico-ascético, e Diogo Velásquez, o mais antigo precursor da arte moderna. Alberto Dürer, em quem a velha arte germânica atingiu a consumada perfeição, pintou o santo do deserto egípcio como um símbolo eternamente válido da abnegação universal, sobre o fundo de sua cidade natal de Nurembergue. E até mesmo Lucas Cranach, cujas reações e atitudes eram as dum protestante profundamente convicto, que pintou os únicos quadros conhecidos da vida de Lutero, o reformador e revoltado contra o monasticismo, contribuiu com sua representação de S. Antão, a qual só pode ser interpretada como uma expressão de respeito pelo pai do monasticismo.

As obras mais impressionantes e mais poderosas na tradição antonina são, contudo, aquelas que tratam do tema das tentações.
Uma delas recua até ao século XI, tempo em que a escultura romântica havia atingido seu ponto mais alto. Na abadia de Vézelay, na Borgonha, a mesma igreja em que S. Bernardo de Clairvaux pregava seu misticismo ascético, há, esculpida em pedra, sobre um dos capitéis, uma representação de triunfo de S. Antão sobre o demônio. Esta obra foi executada por uma época que havia assistido à progressiva secularização da Ordem dos Beneditinos e que, alarmada por este desenvolvimento, havia redescoberto a doutrina original do ascetismo e encontrado os meios de salvar o monasticismo da decadência final com a formação de novas ordens, como as dos clunicenses, dos cistercianos e cartuxos, com sua renovada acentuação de rigor e austeridade. Foi uma época cheia do espírito de reforma ascética e bem preparada para apreciar a significação de Antão, como símbolo vivo. No capitel em Vézelay, está ele de pé, flanqueado por demônios atacantes, numa pétrea imperturbabilidade, no rosto uma expressão de serenidade triunfante, própria do asceta, cuja fortaleza está arraigada em Deus. Nesta antiga obra, o drama das tentações mantém-se estático, pois é conservado, por assim dizer, não só pela rigidez do material, mas também pelo convencionalismo artístico do tempo. Foi somente no século XV, quando a arte se emancipou dos grilhões do formalismo medieval, que o tema pôde ser tratado com os livres tons móveis da ação dramática.

Naquele tempo os trabalhos anônimos de trabalhadores ligados pela tradição cediam lugar às criações do gênio individual de persona!idades artísticas. As convenções eram substituídas pela observação e os artistas percebiam e formavam não só suas visões do mundo de além, mas também o mundo da natureza no seu realismo universal.

Desta geração de individualistas, de mestres do realismo, surgiu pela primeira vez um pintor aparentado em espírito com Antão, o torturado defensor de sua alma, contra uma haste agressiva de demônios. Foi Jerônimo Bosch, holandês do século XV; acostumado ao espetáculo da fertilidade luxuriante das planícies da Flandres, habituado a viver entre robustos flamengos, cujas vidas se centralizavam em torno dos prazeres da comida e da bebida, Bosch sentiu-se, não obstante, atraído pelo austero jejuador e· habitante do deserto, Antão, pois se achava ligado a ele por profunda afinidade espiritual. A vida de Jerônimo Bosch fora torturada pelo mesmo conflito entre o bem e o mal. A este pintor flamengo, justamente como a Antão, o bem e o mal apareciam em personificações visionárias. Ele também via o demônio, ora sob o disfarce de horríveis monstros, ora sob todas as espécies de formas sedutoras. Mediante esta identidade de experiências, Bosch e Antão, a despeito do abismo de séculos que os separava, eram irmãos.

As contribuições de Bosch para a tradição antonina não são precisamente as obras dum grande pintor realista da escola flamenga, tratando certo tema; são as criações dum homem cujo coração e cuja alma tinham vivido e sofrido e lutado por abrir seu caminho, através de todas as ilações do problema antonino. Quando o pintor Bosch tomou do tema tradicional para executar sua versão própria das tentações de S. Antão, pintou realmente, ao mesmo tempo, todos os conflitos de sua vida pessoal. O que Baudelaire afirmou alhures, aludindo a si mesmo, permaneceu verdadeiro igualmente quando se trata de Bosch: "Não somente o santo, mas também o gênio, tem um demônio contra o qual deve combater." Fascinado pelo tema que conhecia tão bem, Bosch dedicou dez de seus mais maravilhosos quadros às· tentações de S. Antão. A representação realista das tentações de S. Antão pelo demônio, começada por Jerônimo Bosch, foi enriquecida e difundida pelo seu conterrâneo Pedro Brueghel, o Moço, ou "Hell Brueghel", que o tornou um drama universal, cujo palco é simultaneamente a alma do homem e a vida exterior, toda a natureza, o Universo inteiro.

Na escola de seu pai, Pedro Brueghel, o Velho, seus olhos haviam sido exercitados, desde a infância, em ver pessoas e cenários tais como exatamente são. Aprendeu a reproduzir as várias coisas em seu ambiente concreto, com consumada precisão. Mas seu eu artístico, seu gênio independente, era capaz de perceber igualmente bem o mundo invisível que está oculto por trás do mundo visível dos corpos e formas do natural. De modo que reconhecia como lei básica de toda a existência e desenvolvimento uma dualidade eterna, uma tensão polar, de criação divina e de destruição satânica.

Este princípio invade todos os detalhes da magnífica visão de Brueghel dos fatos e acontecimentos terrestres, que ele reproduzia nas suas pinturas, com toda a sua habilidade técnica e maravilhosa disposição de cores. Via os variegados deleites do mundo, mas também seus abismos traiçoeiros; a beleza ridicularizada pela feiura; a exuberância sem freios dos gozadores de festas e folganças, juntamente com a ruína trágica sobre a terra, mas também as sombras opressivas da noite, que o inferno ergue das regiões inferiores; via a linha reta cortada pela tortuosidade e a paz do povo e da terra assombrada por hordas de demônios.

No desejo ardente de Antão pela pureza, pela bondade, na sua aspiração para Deus e nas suas complicações com a impureza, com o mal, nas suas lutas com o demônio, na sua tentação sob o sarçal, no túmulo, sob as ruínas e na sua caverna - todos os elementos que comunicam tão elementar poder às concepções realísticas de Brue­ ghel tinham sido condensados em símbolos sempre válidos de significação mítica. Assim, as representações de Antão feitas por Brue ghel, compostas de elementos do mundo que ele tinha visto e dos infernos que tinha visualizado, tornaram-se uma confissão impressionante dum artista e ser humano. Nos seus quadros de Antão, a natureza não fornece simplesmente o fundo; toma parte ativa no drama. Os demônios não são meros fantasmas ou visitantes dum mundo sobrenatural. São produtos da natureza, mestiços, nos quais se misturam os traços dos holandeses e de demônios. Enquanto que Dürer se contentava com colocar a figura destacada de seu Antão egípcio, de pé, em meio da região de Nurembergue, Brueghel lançava mão na história inteira do que havia ocorrido no deserto e tinha - a como acontecida ali em casa, na Holanda.

Mas os holandeses Brueghel e Bosch não estavam sozinhos no seu tempo, com suas representações realísticas das tentações de S. Antão. Na Itália, Parentino tratou o mesmo assunto, e na Alemanha os dois grandes artistas Schongauer e Grünewald. Martim Schon­ gauer, de Colmar, na Alsácia, fez seu famoso desenho das tentações de S. Antão, que deleitou tanto Miguel Ângelo a ponto de levá-lo a copiá-lo no seu próprio estilo. Schongauer acentuou o contraste entre o bando infernal de demônios e o homem que triunfou sobre eles, em virtude de sua vontade ascética. Naquele agressivo pesadelo de caninos e garras, de dentes e unhas, de bicos e de patas, o santo mantém sua fortaleza e até mesmo sua veste e seu manto, seu cabelo e sua barba estão inteiramente intactos.

Matias Grünewald, em quem a arte moderna vê, com Velásquez, seu mais antigo precursor, foi além de seus contemporâneos e aproximou-se de seu problema dum ângulo que está o mais perto possível da familiarização com o pensamento e o sentimento modernos. Não se limitou a uma reprodução dos acontecimentos externos do drama, mas pintou também a ação interior, psicológica.

Seus retratos de S. Antão foram feitos para o altar-mor de Isenheim, que um mosteiro da Ordem dos Antoninos havia instalado em 1516 e fora dedicado a 17 de janeiro, dia de S . Antão. Foi erecto este em obediência a um propósito piedoso, mas um pintor moderno, um mestre da introspecção psicológica, é o seu autor. Nos painéis do altar, Grünewald apresenta o ascetismo em suas puas mais importantes fases: combatente e triunfante. Aqui, pela primeira vez, vê-se um Antão mergulhado no horror das profundezas mais fundas de sua alma. A expressão da busca desesperada em seus olhos, o gesto de desesperada defesa de sua mão, todo o porte desse homem falam-nos do terror inominável da tentação, da qual está ele a ponto de cair vítima. O painel oposto mostra, em agudo contraste, o pacífico idílio de Antão e S. Paulo, como hóspedes de Deus, esperando no deserto montanhoso o lendário pão, que o corvo que se aproxima traz para eles.

O elemento de realismo fantástico que já caracterizava as primeiras tentações foi conscientemente levado a um auge grotesco pelo flamengo Davi Teniers e pelo francês Jacques Callot. Teniers pintou os diabos nas ruínas, como animais grosseiros, e deu a todos os seus demônios um ar de rusticidade holandesa, ao passo que Callot imprimiu a marca de seu gênio pessoal , nas suas traduções em gravura das criações fantásticas de Brueghel.

Em 1845, Gustavo Flaubert, autor de Madame Bovary e fundador e protagonista do romance realista, parou um dia na galeria do palácio Balbiem Gênova, completamente fascinado diante das Tentações de S. Antão de Brueghel. A fascinação que o manteve ali durante horas não foi apenas o encanto duma grande obra de arte. Era a fascinação que se apodera dum homem que se encontra face a face com seu destino. Pouco depois de seu regresso de Gênova, Flaubert comprou uma gravura que Callot havia feito segundo a pintura de Brueghel. Pendurou-a no seu escritório em Croisset, onde permaneceu ela até à sua morte. Deu-lhe a inspiração para a sua obra seguinte. Com ardente entusiasmo, começou a trabalhar na primeira versão de seu famoso livro La Tentation de Saint Antoine. Durante dezoito meses trabalhou nela dia e noite, num dos períodos mais criadores de sua vida. "Onde estais, - exclamava ele mais tarde - ó felizes dias de S. Antão, quando eu punha por escrito o meu ser inteiro!"

A concepção de Madame Bovary interrompeu sua obra. Mas tão logo terminara Flaubert seu grande romance, voltou às tentações, para moldá-las em outra melhor moldura. "Estou trabalhando de novo no S. Antão - afirmava ele numa carta daquele tempo. - Estou escrevendo! Estou suando! É maravilhoso! Há momentos em que este trabalho é mesmo mais do que um delírio!" Viajou para o Oriente, foi ao Egito visitar os autênticos lugares em que Antão havia combatido o tentador, e depois de sua volta de Constantinopla, escreveu nova versão de sua dramática história. Mas não estava satisfeito ainda. Estudou centenas de fontes; as notas em cima de sua mesa iam-se empilhando e, finalmente, começou a terceira e definitiva versão. "É o trabalho de minha vida, - escreveu ele.­ Desde que a primeira ideia dele me ocorreu em Gênova, tenho estado com o pensamento incessantemente posto nele."
Vinte anos de suas melhores forças criativas foram devotados a esta obra.

Era uma profunda certeza de sua afinidade com S. Antão o que fascinava este romancista do século XIX. "Eu mesmo sou o Antão da Tentation", escreveu ele. "Gastei minha vida negando a mim mesmo os mais inocentes prazeres; gastei minha vida trabalhando duramente, de acordo com uma disciplina estritamente regulada. E por que encontro tal alívio na solidão? Certamente porque há um monge vivo dentro de mim. Tenho muitas vezes admirado aqueles homens que viveram suas vidas solitárias na renúncia ou na contemplação mística." Certa vez explicou seu modo ascético de vida, dizendo que um homem que quer ser um artista perdeu o direito de viver como os outros .homens. E durante algum tempo, ele mesmo afagou a ideia de retirar-se para um mosteiro onde pensava poder encontrar a reclusão extrema que o artista nele exigia.

Quão profundamente arraigadas fossem as tendências ascéticas de Flaubert, revelaram-no seus hábitos e modo de trabalho. Seu tempe­ ramento artístico era por natureza insubordinado e sem limites, mas passou anos e anos preso à sua mesa, combatendo com a disciplina imposta a si mesmo a enchente de conceitos imaginativos que ameaçava dominá-lo, como verdadeiras tentações. Reprimiu todos os traços de seu ingênito sentimentalismo e continuou a praticar seu ascetismo literário, até que seu estilo, especificamente pessoal, "prosa flaubertiana", com a sua impassibilidade impessoal, houvesse atingido a perfeição. O mote que este combatente dos demônios literários colocou à frente de sua Tentation de Saint Antoine foi: "Messieurs les démons, laissez-moi donc!" Por favor, deixem-me só! A inspiração, que o escritor Flaubert tinha recebido do pintor do século XVI, foi transmitida por ele, através de sua obra, aos artistas dos tempos modernos. E então a arte e a literatura engajaram-se num processo de cruzamento fertilizador esplêndido, por meio deste tema. Desta forma grande número de artistas franceses foram profundamente influenciados pela obra de Flaubert, entre eles Félicien Rops, Paulo Cézanne e especialmente Henrique Riviere, cuja série de quarenta quadros, dedicados às tentações de S. Antão, inspirou por sua vez escritores e poetas, para tentarem novas interpretações do tema antonino. Riviere, que pertenceu ao Chat Noir, aquele grupo de artistas de Montmartre, cuja denominação proveio dum conto de Edgar Allan Poe, logrou recriar as tentações de S. Antão no espírito de sua própria época, de modo que o velho tema foi penetrado de nova significação. Como Dürer, sentiu a eterna atualidade do problema; mas ao passo que Dürer tomou simplesmente o asceta egípcio e colocou-o no seu quadro, na paisagem familiar de Nurembergue, de costas voltadas para a cidade e para sua vida, Ri­viere tomou da inteira história dramática das tentações e transferiu-a do Egito para a Paris de seu tempo.

Riviere, como Rops a propósito também, meteu seu diabo dentro de modernos trajes de gala. Ao transferir Antão de sua caverna de eremita na Tebaida para Paris, transformou-o num parisiense e tentou-o com todos os vícios da grande cidade. Nas halles, que Zola chamava o estômago de Paris, o diabo mostra-lhe, na purpurina luz da alvorada, montanhas de frutas e vegetais e carcaças acabadas de abater, a fim de seduzi-lo à glutonaria. A noite leva-o aos bulevares e ali lhe mostra os tentadores prazeres da metrópole. Para despertar-lhe a cobiça, o demônio conduz Antão a uma casa de jogo e convida,o, sob o disfarce de crupiê, a aventurar apenas um franco ou dois. A assim continua, num giro insensato por toda Paris. Finalmente, como se emergisse dum pesadelo, Antão está de volta de novo no deserto. Ajoelha-se de novo diante de seu crucifixo. Anjos vêm-se aproximando, prontos a socorrer a alma do redimido e subir com ela ao céu.

Anatole France, o primeiro dos grandes cépticos modernos, foi ferido ao vivo por Antão, o combatente do Senhor, a quem os quadros de Riviere tinham feito voltar novamente à vida, com toda a perene atualidade de seu problema. Durante muito tempo, dedicou-se de todo o coração ao estudo da psicologia do ascetismo. Que houvesse feito assim, não deve ser tomado como prova apenas de outro dos muitos interesses deste artista, baseado no exercício do epicurismo e da ironia voltairiana. Por trás da máscara do céptico mantinha-se vivo algo do "estranho menino", como o próprio Anatole se refere ao seu eu infantil, cuja maior ambição tinha sido tornar-se um santo. Este menino, que não havia ficado satisfeito com a ideia de poder vir a ser "membro do Instituto", como seu pai, mas que desejava tornar-se "membro do calendário dos santos", cortou certa vez; na entusiástica prossecução de seu objetivo, a poltrona de seu pai, para dela extrair a crina de cavalo de que necessitava para fazer para si um regular traje de penitência.

Mais tarde, este mestre da zombaria e do espírito escreveu seu romance Tais, também conhecido em forma de ópera. Nele relata a história de uma cortesã, a quem o asceta Pafúncio converte à santidade, mas a secreta admiração de Anatole pelos santos, que conservara no íntimo desde a mocidade, fê-lo escolher S. Antão como o verdadeiro herói desta obra. O santo egípcio é também o tema de um dos mais brilhantes ensaios de Anatole. Nele chama Antão "o caráter mais fascinante da História."
A Igreja colocou Antão na comunidade de seus santos, mas no mundo cá fora sua imortalidade foi glorificada pelas artes.