O Inferno

inferno espiritualidade

Se existe - O que é - Como poderemos evitá-lo

O INFERNO

Se existe - O que é - Como poderemos evitá-lo

POR

Mons. de SÉGUR

SEGUNDA EDIÇÃO

Aprovada pelo Exmo e Revmo Sr. D. Antonio

Bispo do Porto

PORTO

Livraria Católica Portuense

1905

Aprovação canônica

Pode publicar-se.

Porto, 2 de Setembro de 1905.

+ A, Bispo do Porto

 

BREVE

DIRIGIDO POR

sua Santidade o Papa Pio IX ao autor

PIO IX, PAPA

Amado Filho, Saúde e Bênção Apostólica.

Nós vos felicitamos de todo o coração por não deixardes de seguir fielmente e com tanto proveito a vossa vocação de arauto do Evangelho. As vossas publicações são bem depressa espalhadas entre o povo por meio de milhares de exemplares.

Se os vossos escritos são tão procurados, é porque agradam; e se não tivessem o dom de atrair os espíritos, de penetrar até ao íntimo dos corações e de produzir neles os seus benéficos efeitos, não poderiam agradar.

Aproveitai, pois, a graça que Deus vos concedeu, continuai a trabalhar com ardor e a cumprir vosso ministério de evangelização.

Quanto a Nós, vos prometemos da parte de Deus uma grandiosa proteção para poderdes trazer ao caminho da salvação um número de almas cada vez mais considerável, e granjeardes deste modo uma magnífica coroa de glória.

Nesta expectativa, recebei, como penhor da proteção divina e dos outros dons do Senhor, a Bênção Apostólica, que vos concedemos, muito amado Filho, com todo o afeto do Nosso coração, para vos testemunhar a Nossa paternal benevolência.

Dado em Roma, junto de S. Pedro, aos 2 de Março de 1876, trigésimo ano do Nosso Pontificado.

Pro IX, Papa.

 

PRÓLOGO

Era em 1837. Dois alferes, ainda moços, que, há pouco, tinham saído de Saint-Cyr, visitavam os monumentos e raridades de Paris. Entraram na igreja da Assunção, junto das Tulherias, e estacaram a observar os quadros, as pinturas e todas as obras artísticas daquele belo edifício. Nem sequer pensavam em orar.

Um deles viu ao pé dum confessionário um padre, ainda novo, com sobrepeliz, que adorava o SS. Sacramento. "Olha para este padre, disse ao seu camarada; sem dúvida espera por alguém. — Talvez por ti, respondeu o outro rindo-se. — Por mim? Para que? — Quem sabe? Talvez para te confessar. — Para, me confessar?! Pois bem, apostas que sou capaz de ir lá? — Tu, ires confessar-te?! Ora!" E pôs-se a rir, sacudindo os ombros. "Apostas? repetiu o oficial novo, com um modo zombeteiro e decidido. Apostemos um bom jantar, acompanhado de uma garrafa de vinho de Champagne. — Aceito a aposta do jantar e do vinho. Desafio-te a ires confessar-te." Dito isto, o outro dirigiu-se ao padre e falou-lhe ao ouvido; este levantou-se, entrou no confessionário, enquanto o fingido penitente lançava para o seu camarada um olhar de vencedor, e ajoelhava como para confessar-se.

"Tem graça!", murmurou o outro; e assentou-se, para ver em que viria dar aquilo. Esperou cinco minutos, dez minutos, um quarto de hora. "O que é que ele faz? perguntava a si mesmo, com uma curiosidade quase impaciente. O que poderá ele ter dito todo este tempo?"

Emfim, o confessionário abriu-se, o padre saiu com o semblante animado e grave, e; depois de ter sondado o jovem militar, entrou na sacristia. O oficial levantou-se também, vermelho como a crista dum galo, puxando pelo bigode com ar um pouco dissimulado, e deu sinal ao seu amigo que o seguisse, afim de saírem da igreja.

— Confessaste deveras. Com efeito, ganhaste bem o teu jantar. Queres que seja esta tarde?

— Não, respondeu o outro com mau humor; hoje não. Qualquer dia nos veremos. Tenho o que fazer e preciso de me retirar de ti." Apertando a mão de seu companheiro, afastou-se precipitadamente, de má fisionomia.

O que se teria passado entre o alferes e o confessor? Ei-lo: Apenas o padre abriu a portinha do confessionário, conheceu, pelas maneiras do jovem oficial, que este ia ali, não para confessar-se, mas para fazer zombaria. Tinha ele ousado dizer-lhe, concluindo não sei que frase: "A religião! confissão! Eu zombo de tudo isso!"

O padre era homem atilado. "Perdão, meu caro senhor, disse interrompendo-o com brandura; vejo que o que fazeis não é a sério. Deixemos de parte a confissão e conversemos alguns instantes. Gosto muito dos militares, e, segundo me parece, vós sois um jovem bom e amável. Dizei-me: qual é a vossa graduação?" O oficial começava a reconhecer que tinha cometido uma sandice.

Contente por achar um meio de sair deste embaraço, respondeu cortesmente: "Sou apenas alferes. Saí ainda há pouco de Saint-Cyr.

— Alferes? E ficareis muito tempo alferes?

— Eu sei lá. Dois anos, ou três, quatro talvez. — Depois passarei a tenente. — E depois? — Depois serei capitão. — Capitão? em que idade se pode ser capitão? — Se tiver fortuna, respondeu o oficial sorrindo, posso ser capitão aos vinte e oito ou vinte e nove anos. — E depois? — Oh! depois é difícil. Fica-se muito tempo capitão. Depois passa-se a major, em seguida a tenente-coronel, e depois a coronel.

— Muito bem! Aí estais vós coronel aos quarenta ou quarenta e dois anos de idade.

E depois? — Depois serei general de brigada e depois general de divisão. — E depois? — Depois não resta senão o grau de marechal; mas as minhas aspirações não chegam a tanto. — Embora; mas não chegareis a casar-vos? — Talvez chegue, talvez; mas será só quando for oficial superior. — Pois bem!

Então sereis casado, oficial superior, general de brigada, general de divisão ou talvez até marechal de França, quem sabe? E depois, senhor?, acrescentou o padre com autoridade. — Depois? depois? replicou o oficial, quase confuso. Oh! crede; não sei o que sucederá depois. — Vede como isto é singular, disse então o sacerdote com um acento cada vez mais grave. Sabeis o que se passará até então e não sabeis o que depois sucederá. Pois bem, eu o sei e vou dizê-lo.

Depois, senhor, morrereis. Apenas morrerdes, aparecereis diante de Deus para serdes julgado. Se continuardes a viver como até agora, sereis condenado e ireis arder eternamente no inferno. Eis aqui o que depois sucederá!"

O jovem, aterrado e enfastiado deste remate, parecia querer esquivar-se. "Um instante mais, senhor, continuou o padre. Tenho ainda algumas palavras a dizer-vos, Sois honrado, não é verdade? Pois bem, eu também o sou. Viestes aqui zombar de mim; deveis por isso dar-me uma reparação.

Peço-a, exijo-a em nome da honra. Será além disso muito simples. Haveis de me afiançar que, por espaço de oito dias, de noite, antes de vos deitardes, posto de joelhos, direis em voz alta: "Um dia hei de morrer, mas riu-me disso. Depois da minha morte serei julgado, mas riu-me disso.

Depois do meu julgamento serei condenado, mas riu-me disso. Irei arder eternamente no inferno, mas riu-me disso."

Direis isto; mas dai-me a vossa palavra de honra de que não haveis de faltar, não é verdade?"

Se tiverdes necessidade de mim, aqui me achareis sempre no meu posto. Não vos esqueçais da palavra dada." Depois separaram-se, como vimos.

O novo oficial jantou só. Via-se que estava vexado. À noite, antes de se deitar, hesitou um pouco; mas tinha dado sua palavra de honra; não faltou ao prometido, "Morrerei, serei julgado; irei talvez para o inferno..." Não teve ânimo de acrescentar: "riu-me disso."

Assim decorreram alguns dias, Sua penitência lembrava-lhe continuamente e parecia zunir-lhe aos ouvidos. À sua índole, como a das noventa e nove centésimas partes dos jovens, tinha mais de dissipado que de mau. O oitavo dia não passou sem que o oficial voltasse, então desacompanhado, à igreja da Assunção. Confessou-se com contrição sincera, e saiu do confessionário com o rosto banhado de lágrimas e a alegria no coração.

Segundo alguém me certificou, ele foi depois um digno e fervoroso cristão. Foi a meditação do inferno que, com a graça de Deus, operou aquela mudança. Ora, o fruto que ela produziu no espírito deste novo oficial, porque o não produzirá no vosso, caro leitor?

É preciso, pois, meditar no inferno enquanto é tempo.

Cumpre pensar no inferno. É uma questão pessoal a sua existência, e, confessa-lo, é profundamente temível. Aquela questão é proposta a cada um de nós; e, bom ou mau grado nosso, necessita duma solução positiva.

Vamos pois, se quiserdes, examinar, breve mas rigorosamente, duas coisas: 1º- se existe inferno; 2º- o que é o inferno. Apelo aqui unicamente para a vossa fé e probidade.

O INFERNO

Se existe Inferno

Há inferno: tem sido esta a crença de todos os povos em todos os tempos

O que todos os povos tem sempre acreditado em todos os tempos, constitui o que se chama uma verdade de senso comum, ou, se assim quiserdes dizer, uma verdade de sentimento comum, universal. Aquele que não quisesse admitir uma destas grandes verdades universais, não teria, como muito bem se diz, senso comum. Com efeito, só um insensato poderá imaginar que pode ter razão contra todo o mundo.

Ora, em todos os tempos, desde o princípio do mundo até aos nossos dias, todos os povos tem acreditado no inferno.

Debaixo dum ou doutro nome, de formas mais ou menos, alteradas, tem recebido, conservado e proclamado a crença em castigos terríveis e eternos, em que o fogo aparece sempre, como punição dos maus depois da sua morte.

É este um fato certo, e que tem sido tão claramente estabelecido pelos nossos grandes filósofos cristãos, quo seria supérfluo, por assim dizer, dar-nos ao trabalho de prová-lo.

Desde o princípio do mundo acha-se a existência dum inferno eterno de fogo consignada em termos bem claros nos mais antigos dos livros conhecidos, que são os de Moisés. Não os cito aqui, notai bem, senão sob o ponto de vista puramente histórico.

O nome de inferno acha-se aí com todas as suas letras.

No Deuteronômio o Senhor diz pela boca de Moisés: "O fogo acendeu-se na minha cólera, e os seus ardores penetrarão até as profundezas do inferno (et ardebit usque ad inferni novissima)."

No livro de Jó, igualmente escrito por Moisés, segundo afirmam os maiores sábios, os ímpios, cuja vida é cheia de gozos, e que dizem a Deus: "Não temos necessidade de vós, nem queremos a vossa lei; de que vale servir-vos e orar?", estes ímpios "caem num instante no inferno (in puncto ad inferna descendunt)."

Jó chama ao inferno "a região das trevas, a região envolvida nas sombras da morte, a região da desgraça e das trevas, onde não há ordem alguma, mas reina o horror eterno (sed sempiternus horror inhabitat)." Eis aqui testemunhos certos, mui respeitáveis, que remontam á origem primitiva da história.

Mil anos antes da era cristã, nesse tempo em que ainda não existia a história grega, nem romana, Davi e Salomão falam frequentemente do inferno, como duma grande verdade de tal modo conhecida e reconhecida de todos, que não há mesmo necessidade de a demonstrar. No livro dos Salmos, Davi diz, entre outras coisas, falando dos pecadores e que eles serão lançados no inferno (convertantur peccatores in infernum). Que os ímpios serão confundidos e precipitados no inferno (et deducantur in infernum.)" Noutra parte fala das "dores do inferno (dolores inferni)." Salomão não é menos formal. Ao referir os desígnios dos ímpios, que querem seduzir e perder o justo, atribuindo-lhes estas palavras: "Devoremo-lo vivo, como faz o inferno (sicut infernus)." E naquela famosa passagem do livro da Sabedoria, em que descreve tão admiravelmente a desesperação dos condenados, acrescenta: "Eis o que dizem no inferno (in inferno) aqueles que pecaram; porque a esperança do ímpio desvanece-se como a fumaça que o vento leva."

Em outro de seus livros, chamado o Eclesiástico, diz ainda: "À multidão dos ímpios é como um embrulho de estopa, e o seu último fim é a chama de fogo (flamma ignis); são os infernos, as trevas e as penas (et in fine illorum inferi, et tenebrae, et paenae).”

Dois séculos depois, mais de oitocentos anos antes de Cristo, o grande profeta Isaías dizia: "Se existe Inferno— Como caíste do alto dos céus, ó Lúcifer? tu, que dizias em teu coração: subirei até a altura do céu e serei semelhante ao Altíssimo", eis-te precipitado no inferno, no fundo do abismo (ad infernum detraheris, in profundum laci)." Numa outra passagem de suas profecias, Isaías fala do fogo eterno do inferno. "Os pecadores, diz ele, ficam aterrados. Qual dentre vós poderá habitar com o fogo devorador (cum igne devorante) e com as chamas eternas (cum ardoribus sempiternis)?" O profeta Daniel, que viveu duzentos anos depois de Isaías, diz, falando da ressurreição e do Juízo final: "E a multidão dos que dormem no pó despertarão, uns para a vida eterna, outros para um opróbrio que nunca terá fim." O mesmo testemunho foi dado por parte dos outros profetas até ao precursor do "Messias, S. João Batista, que também falava ao povo de Jerusalém do fogo eterno do inferno, como de uma verdade conhecida por todos, e de que jamais ninguém duvidou. "Eis que Cristo chega, exclama ele. Padejará o seu grão, recolherá o trigo (os escolhidos) nos seus celeiros; quanto à palha (os pecadores), lança-la-á no fogo que nunca se apaga (in igne inextinguibili)."

Tal é o Tártaro dos gregos e dos latinos, "Os ímpios que desprezaram as leis santas, são precipitados no Tártaro, para nunca saírem dele e para sofrerem aí tormentos horríveis e eternos", diz Sócrates, citado por Platão, seu discípulo.

E Platão diz: "Deve-se dar credito às tradições antigas e sagradas, que ensinam que depois desta vida a alma será julgada e punida severamente, se não viveu como devia." Aristóteles, Cícero e Sêneca falam destas mesmas tradições, que se perdem na noite dos tempos.

Homero e Virgílio revestiram-as com colorido de suas imortais poesias. Quem não leu ainda a narração da descida de Enéas aos infernos, onde, sob o nome de Tártaro, de Platão, etc., descobrimos as grandes verdades primitivas, desfiguradas mas conservadas pelo paganismo? Os suplícios dos malvados aí são eternos, e um desses malvados nos é pintado como “fixado eternamente no inferno." Esta crença universal, incontestável e incontestada foi também aceita e reconhecida pelo primeiro filósofo cético, Bayle. Seu colega no voltaireanismo e na impiedade, o inglês Bolinzbroke. declarou-a com igual franqueza. Diz formalmente: "A doutrina dum estado futuro de recompensas e de castigos, parece que se perde nas trevas da antiguidade: precede tudo o que sabemos de certo.

Logo que começamos a desenrolar o caos da história antiga, achamos esta crença, da maneira mais sólida, no espírito das primeiras nações que conhecemos." Encontra-se vestígios dela entre as superstições informes dos selvagens da América, da África e da Oceania. O paganismo da Índia e da Pérsia, guarda dela vestígios bem notáveis, e, enfim, o maometismo conta o inferno no número dos seus dogmas.

No seio do Cristianismo é escusado dizer que o dogma do inferno é claramente ensinado como uma das grandes verdades fundamentais que servem de base ao edifício da Religião. Até os protestantes, que tudo tem atacado com a sua louca doutrina do livre exame, não ousaram tocar no dogma do inferno. Coisa estranha, inexplicável!

No meio de tantas ruínas, Lutero, Calvino e os outros corifeus da Reforma tiveram de deixar de pé esta terrível verdade, que deveria entretanto ser-lhes tão importuna!Meus filhos, evitai o inferno!

Logo, todos os povos em todos os tempos conheceram e reconheceram a existência do inferno. Portanto, este dogma terrível faz parte do tesouro das grandes verdades universais que constituem a luz da humanidade. Assim, não é possível a um homem sensato pô-la em dúvida dizendo, na loucura duma orgulhosa ignorância: Não há inferno!

Logo, o inferno existe.

Há inferno: o inferno não foi nem podia ser inventado

Se, o que é impossível, se desse crédito àquela estranha invenção; se, por uma impossibilidade ainda mais evidente, todos os povos, subjugados pela palavra do sobredito filósofo, chegassem a crer no inferno, seria este um grande acontecimento. Ora dizei-me: o nome do inventor, o século, o país onde viveu poderiam deixar de ser consignados na história? Não. Ora, há porventura algum homem assinalado como tendo introduzido no mundo esta doutrina terrível, tão contrária às paixões às mais enraizadas do espírito humano, do coração e dos sentidos? Não. Logo, o inferno não foi inventado.

E não foi inventado, porque não podia sê-lo, A eternidade das penas do inferno é um dogma que a razão não pode compreender; pode conhecê-lo, mas não compreendê-lo porque é superior à razão.

Como quereis, pois, que o homem pudesse inventar uma coisa que não é capaz de compreender?

É certo que o inferno, inferno eterno, não pode ser compreendido pela razão; e a razão insurge-se contra ele, quando não é alumiada e ilustrada pelas luzes sobrenaturais da fé. Como veremos mais adiante, a razão qualifica de injustiça a justiça divina porque pune com penas eternas o pecador impenitente e nega a possibilidade de tais tormentos.

O dogma do inferno é o que se chama "uma verdade inata", isto é, uma dessas luzes de origem divina que brilha em nós, mau grado nosso; que está no íntimo da nossa consciência, gravada nas pHá inferno: Deus revelou-nos a existência delerofundezas da alma como um diamante negro, que brilha com resplendor sombrio.

Ninguém pode arrancá-lo da alma, porque foi Deus que o pôs nela. Pode-se cobrir este diamante e o seu brilho sombrio; pode-se afastar dele a vista e esquecê-lo por algum tempo, pode-se negá-lo por palavras; mas, embora se não queira, crê-se nele, e a consciência não cessa de proclamá-lo.

Os ímpios que zombam do inferno, tem interiormente muito medo dele. Os que dizem que lhes parece que não há inferno, mentem a si mesmos e mentem aos outros.

É um desejo ímpio do coração, antes que uma negação razoável do espírito. No último século um destes insolentes escrevia a Voltaire que tinha descoberto a prova metafísica da não existência do inferno, "Sois muito feliz, respondeu-lhe o velho patriarca dos incrédulos; eu estou muito longe disso."

Não, o homem não inventou o inferno.

Não o inventou, nem podia inventá-lo. O dogma do inferno eterno de fogo remonta até Deus. Faz parte da grande revelação primitiva, que é a base da Religião e da vida moral do gênero humano.

Logo, existe inferno.

Há inferno: Deus revelou-nos a existência dele

Jesus Cristo confirmou solenemente esta revelação, e quatorze vezes no Evangelho nos fala do inferno. Não diremos aqui todas as suas palavras, para não as repetirmos. Não vos esqueçais, caro leitor, de que é Deus que fala, e que disse: "O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar".

Algum tempo depois da sua admirável transfiguração no monte Tabor, Jesus dizia as seus discípulos e à multidão que o seguia:"Se vossa mão (isto é o que tendes de mais precioso) é para vós ocasião de pecado, cortai-a: vale mais entrar na outra vida com uma só mão, do que com ambas ir para o inferno, para o fogo que nunca se apaga, onde o verme do remorso não morre e o fogo não se extinguirá jamais.

Se vosso pé ou vosso olho é para vós ocasião de pecado, cortai-o, arrancai-o e lançai-o para longe de vós: vale mais entrar na vida eterna com um pé ou com um só olho, do que ser lançado com os vossos dois pés ou com ambos os olhos na prisão do fogo eterno, (in gehennam ignis inextinguibilis), onde o remorso não cessa e o fogo não se apaga. (et ignis non extinguitur)".

Falando do que acontecerá no fim do mundo, diz: “Então o Filho do homem enviará os seus Anjos, que agarrarão os que tiverem praticado o mal, e os arrojarão na fornalha do fogo (in caminum ignis), onde haverá pranto e ranger de dentes. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça".

Quando o Filho de Deus predisse o Juízo final, no vigésimo quinto capítulo do Evangelho de S. Mateus, fez nos conhecer de antemão os próprios termos da sentença que há de pronunciar contra os réprobos: "Retirai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno (discedito au me, maledicti in ignem aeternum)". E acrescentou: "Estes irão para o suplício eterno (in supplicium aeternum)". Pergunto-vos: há porventura alguma coisa mais explícita?

Os apóstolos, encarregados pelo Salvador de desenvolverem sua doutrina e completarem suas revelações, falam-nos do inferno e do suas chamas eternas duma maneira não menos inteligível. Para não citar senão algumas do suas palavras, lembremo-nos do que disse S. Paulo aos cristãos de Tessalônica, na sua pregação sobre o Juízo final, que o Filho de Deus "tirará vingança, na chama do fogo (in flamma ignis"), dos ímpios que não tem querido obedecer a Deus e que não obedecem ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo; terão de sofrer penas eternas na morte, longe da face do Senhor (paenas dabunt in interit aeternas)".

O apóstolo S. Pedro diz que os pecadores terão parte no castigo dos maus anjos que o Senhor precipitou nas profundezas do inferno, nos suplícios do Tártaro (rudentideun inferai detractoe in Tartarum tradidit ads)". Chama-os "filhos da maldição, (maledictiones filius), aos quais estão reservados os horrores das trevas".

S. João fala-nos também do inferno e de seu fogo eterno. A respeito do Anticristo e de seu falso profeta, diz: "Serão lançados vivos no abismo ardente de fogo e de enxofre (in stagnum ignis ardentis sulphoro), para aí serem atormentados de dia e de noite por todos os séculos dos séculos (crusciabuntur die ac nocte in saecula saecula)Há inferno: Deus revelou-nos a existência dele.

Emfim, o Apóstolo S. Judas fala-nos do inferno, mostrando-nos os demônios e os réprobos "presos por toda a eternidade no meio das trevas e sofrendo as penas do fogo eterno (ignis aetemni paenam sustinentes)".

E em todo o curso de suas epístolas inspiradas insistem os apóstolos continuamente no temor dos juízos de Deus e nos castigos eternos que aguardam os pecadores impenitentes.

E em todo o curso de suas Epístolas inspiradas insistem os apóstolos continuamente no temor dos juízos de Deus e nos castigos eternos que aguardam os pecadores impenitentes.

Após ensinamentos tão claros, é porventura de admirar que a Igreja nos apresente a eternidade das penas e do fogo do inferno como um dogma de fé propriamente dito?

E isto de tal modo, que aquele que ousasse negá-lo, ou somente duvidar dele, seria por esto fato herege. Portanto, a existência do inferno é um artigo de fé católica, e estamos dele tão certos, como da existência de Deus. Logo, há inferno.

Em resumo: o testemunho de todo o gênero humano e das suas mais antigas tradições, o testemunho da natureza humana, da reta razão de coração e de consciência, e, além disso, o testemunho do ensino infalível de Deus e da sua Igreja são concordes em atestar-nos com uma certeza absoluta que há inferno, inferno de fogo e de trevas, inferno eterno, para castigar os ímpios e os pecadores impenitentes.

Caro leitor, poderá uma verdade ser estabelecida de maneira mais peremptória?

 

Se é certo que existe inferno, como é nunca alguém voltou de lá?

O inferno existe para castigo dos réprobos e não para deixá-los voltar ao mundo, Quando nele se cai, nele se fica.

Dizeis que nunca ninguém voltou de lá?

É verdade na ordem habitual da Providência. Mas é porventura certo que nunca ninguém voltou do inferno? Estais certos de que, para mostrar a sua misericórdia e justiça, Deus nunca permitiu que aparecesse na terra um condenado?

Na Sagrada Escritura e na história há provas do contrário, por mais supersticiosa que se tenha tornado a crença quase geral nas almas que vem do outro mundo, seria inexplicável, se não tivesse por fundamento a verdade.

Permiti-me que vos conte aqui alguns fatos cuja autenticidade parece incontestável, e que provam a existência do inferno, pelo tremendo testemunho dos que de lá voltaram.

O Dr. Raymundo Diocres

— Na vida de S. Bruno, fundador da ordem dos Cartuxos, encontra-se um fato, estudado a fundo pelos doutíssimos Bolandistas, e que apresenta à crítica, a mais séria, todos os caracteres históricos de autenticidade; um fato acontecido em Paris em pleno dia, na presença de muitos milhares de testemunhas, e cujas narrações foram recolhidas por contemporâneos; enfim, que deu nascimento a uma grande Ordem religiosa.

Um célebre doutor da Universidade de Paris, chamado Raymundo Diocres, acabava de falecer no meio da admiração universal e da tristeza de todos os seus discípulos. Era no ano de 1082. Um dos mais sábios doutores daquele tempo, conhecido em toda a Europa pela sua ciência, talento e virtudes, por nome Bruno, estava então em Paris com quatro companheiros, e tomou por um dever assistir as exéquias do ilustre morto. O cadáver tinha sido depositado na grande sala da chancelaria, próximo à Igreja de Notre-Dame, e uma multidão imensa cercava o leito, onde, segundo o uso do tempo, estava exposto o morto, coberto com um simples véu.

No momento em que se principiava a cantar uma das lições do Ofício de defuntos, que começa assim: "Responde-me, quão grandes e numerosas são tuas iniquidades", uma voz sepulcral saiu debaixo do véu fúnebre, e toda a multidão de povo que assistia, ouviu estas palavras: "Por justo juízo de Deus sou acusado". Todos correram para junto do cadáver; ergueu-se o pano mortuário; o infeliz estava imóvel, gelado, perfeitamente morto. A cerimônia, por um momento interrompida, foi de novo começada. Os assistentes estavam cheios de espanto e penetrados de terror. Repetia-se o Ofício; chegou-se à referida lição: "Responde-me". Desta vez, à vista de todo o povo, ergueu-se o morto, e com uma voz mais forte e ainda mais acentuada, disse; "Por justo juízo de Deus sou julgado", e tornou a cair. O terror do auditório chegou ao seu auge. Os médicos examinaram o morto. O cadáver estava frio e rígido. Não houve coragem de continuar, e o Ofício e ficou adiado para o dia seguinte.

 

As autoridades eclesiásticas não sabiam o que se deveria resolver. Uns diziam: "É um réprobo; é indigno das orações da Igreja". Outros diziam: "Não, tudo isto é sem dúvida mui terrível; mas, enfim, todos nós não seremos porventura acusados primeiro, depois julgados por um justo juízo de Deus?" O Bispo foi desta opinião, e no dia seguinte as exéquias recomeçaram à mesma hora. Bruno e seus companheiros compareceram, como na véspera. A Universidade e Paris inteira apinharam-se em Notre-Dame. A mesma lição: "Responde-me", o cadáver do dr. Raymundo ergueu-se, sentou-se, E com uma pausa, que gelou de terror todos os que assistiam, exclamou: "Por justo juízo de Deus estou condenado"; e tornou a cair imóvel.

Desta vez ninguém ficou com dúvida. O terrível prodígio manifesto até à evidência não dava lugar a discussões. Por ordem do Bispo e do Cabido despojou-se o cadáver das insígnias de suas dignidades, e foi levado ao monturo de Montfaucon.

Ao sair da grande sala da chancelaria, Bruno, de idade de quase quarenta e cinco anos, decidiu-se irrevogavelmente a deixar o mundo, e foi, com seus companheiros, procurar nas solidões da Grande-Cartuxa, perto de Grenoble, um retiro onde pudessem, mais tranquilos, assegurar a sua salvação e preparar-se assim para os justos juízos de Deus.

Eis, pois, um réprobo, que voltou do inferno, não para sair dele, mas para ser a mais irrecusável das testemunhas do inferno.

O religioso de S. Antonino

— O sábio Arcebispo de Florença, S. Antonino, refere nos seus escritos um fato não menos aterrador, que, pelo meado do século quinze, encheu de espanto o norte da Itália. Um jovem, ilustre por sua nobreza, aos dezesseis ou dezessete anos teve a desgraça de ocultar um pecado mortal na confissão e de comungar naquele estado, e foi adiando de semana para semana, de mês para mês a confissão de seus sacrilégios, continuando entretanto a confessar-se e a comungar por um miserável respeito humano. Torturado pelos remorsos, procurou alívio nas grandes penitências, de modo que passava por um santo.

Porém, não o encontrando nelas, entrou em um mosteiro. "Ali, ao menos, pensou ele, direi tudo e expiarei seriamente os meus horrorosos pecados." Para sua desgraça, foi acolhido como um santinho pelos superiores, que já o conheciam de fama, e a sua vergonha aumentou por isso ainda mais. Deixou a sua confissão para mais tarde, redobrou as penitências, e um, dois, três anos se passaram neste lastimoso estado. Não ousava revelar o peso horrível e vergonhoso que o oprimia.

Enfim, uma doença mortal veio facilitar-lhe o meio de fazer uma boa confissão. "Agora, que estou doente, disse ele, vou confessar tudo. Quero fazer uma confissão geral antes de morrer." Mas, dominado pela soberba, de tal modo embrulhou a confissão das suas culpas, que o confessor nada pôde perceber.

Alguns momentos antes da hora marcada para as exéquias, um dos religiosos, ao ir tocar o sino, viu de repente diante de si, junto do altar, o defunto cercado de cadeias que, de abrasadas pelo fogo, pareciam vermelhas, e divisou na sua figura alguma coisa de incandescente. Aterrado, o pobre religioso caiu de joelhos com os olhos fixos na horrorosa aparição. Então o réprobo lhe disse: "Não oreis por mim. Eu estou no inferno por toda a eternidade. "Contou a lamentável história da sua funesta vergonha e dos seus erros, e em seguida desapareceu, deixando na igreja um tão mau cheiro que se espalhou pelo convento, como para atestar a verdade de tudo o que o religioso acabava de ver e ouvir. Avisados os superiores estes mandaram imediatamente levar o cadáver, julgando-o indigno de sepultura eclesiástica.

A meretriz de Nápoles

— S. Francisco de Jerônimo, celebre missionário da Companhia de Jesus no começo do século dezoito, fora encarregado de dirigir as missões de Nápoles. Certo dia, em que pregava numa praça dali, algumas mulheres de má vida, reunidas por convite de uma dentre elas chamada Catarina, esforçavam-se em perturbar o sermão com descantes e exclamações ruidosas, para obrigar o padre a retirar-se; mas ele não deixou de concluir o seu sermão, dando mostras de não se inquietar com as suas insolências.

Algum tempo depois foi de novo pregar na mesma praça. Ao ver fechada a porta e toda a casa de Catarina, onde ordinariamente havia grande tumulto, num profundo silêncio exclamou o santo: "Oh! que aconteceu à Catarina?

— Padre, não sabe? A desgraçada morreu ontem de tarde sem poder pronunciar uma só palavra.

— Catarina morreu? replicou o santo; morreu de repente? Entremos e vejamos. "Abriram a porta; o santo subiu a escadaria, e seguido de uma multidão de gente, entrou na sala onde o cadáver estava, estendido no chão, sobre um pano mortuário, circundado de quatro velas, segundo o uso do país. Observou-a por algum tempo com olhos espantados, e depois disse em voz alta: "Catarina, onde estás agora?" O cadáver nada respondeu. O santo repetiu: "Catarina, dize-me onde estás agora. Ordeno-te que me digas onde é a tua morada." Então, com grande espanto de todos, os olhos do cadáver abriram-se, seus lábios agitaram-se convulsivamente, e, com voz aterradora, respondeu: "No inferno! estou no inferno!" A estas palavras, os que as ouviram fugiram espantados, e o santo desceu com eles, repetindo: "No inferno! Oh, Deus! No inferno! Ouvistes? No inferno!"

A impressão deste prodígio foi tão viva, que muitos que dele foram testemunhas: não ousaram entrar em suas casas sem primeiro se terem confessado.

O amigo do Conde Orlof

— No século atual deram-se três fatos do mesmo gênero, cada qual mais autêntico, e que chegaram ao meu conhecimento. O primeiro passou-se quase na minha família. Aconteceu ele na Rússia, em Moscou, pouco tempo antes da horrível campanha de 1812. Meu avô materno, o conde Rostopchine, governador militar de Moscou, era muito amigo do general conde Orloff, célebre pela sua bravura, mas mais ímpio do que valente.

Tinha deixado Moscou havia duas ou três semanas, quando uma manhã muito cedo, no momento em que meu avô se vestia, alguém abriu precipitadamente a porta do seu quarto. Era o conde Orloff, vestido de roupa branca, em chinelas, com os cabelos eriçados, o olhar espantado, e pálido como um morto. "Que é isso, Orloff? Sois vós, a esta hora, com semelhante traje? Que tendes, que vos aconteceu?

— Meu amigo, respondeu o conde Orloff, parece-me que estou doido. Acabo de ver o general V.

— O general V.? Pois ele já voltou?

— Ah! não, replicou Orloff, assentando-se num canapé e segurando a cabeça com as mãos. Não, não voltou e é isso o que me espanta."

Meu avô não compreendia nada, e procurava sossegá-lo. "Contai-me o que vos aconteceu e o que quer dizer tudo isso."

Então, esforçando-se por dominar a sua comoção, o conde Orloff narrou o seguinte: "Meu caro Rostopchine, há algum tempo o general V. e eu juramos mutuamente que o primeiro que morresse viria dizer ao outro se além do túmulo existe alguma coisa.

Esta manhã, há apenas meia hora, estava, tranquilamente na minha cama, tendo pouco antes acordado, e não pensava sequer no meu amigo, quando de repente se abriram as cortinas do meu leito e vi a dois passos de mim o general V., em pé, pálido, e com a mão direita sobre o peito. Disse-me: "Existe inferno, e eu caí nele." E desapareceu imediatamente. Corri depressa a procurar-vos. A minha cabeça parte-se. Que coisa tão estranha! Não sei o que devo pensar."

Meu avô sossegou-o como pôde. Era difícil, Falou-lhe de sonhos, e que ele talvez dormisse ainda. Disse-lhe que há muitas coisas extraordinárias e inexplicáveis, e outras trivialidades deste gênero, que dão consolação aos espíritos fortes. Depois mandou atrelar os cavalos e reconduziu o conde Orloff à sua casa.

Dez ou doze dias depois deste estranho sucesso, um postilhão trouxe a meu avô, entre outras notícias, a da morte do general V. na manhã daquele mesmo dia em que o conde Orloff o viu e ouviu, à mesma hora em que lhe apareceu em Moscou, o infeliz general, tendo saído para reconhecer a posição do inimigo, foi ferido no peito por uma bala e caiu imediatamente morto.

"Existe inferno, e eu caí nele!" Eis as palavras dum que de lá voltou.

A senhora do bracelete de ouro

"Estava ela em Londres no inverno de 1847 a 1848, Era viúva, tinha então quase vinte e nove anos de idade, e era mundana, rica e de fisionomia agradável. Entre os elegantes que frequentavam o seu salão, notava-se um lord ainda novo, cuja a frequência a comprometia singularmente, e cujo procedimento era além disso, pouco edificante.

"Uma tarde, ou antes, uma noite (porque já tinha dado meia noite), a referida senhora lia na sua cama não sei que romance, com o fim de conciliar o sono. Apenas o relógio deu uma hora, apagou a luz. Começava a adormecer, quando, com grande espanto seu, viu um clarão pálido, estranho, que parecia vir da porta do salão, espalhou-se pouco a pouco pelo quarto, e foi aumentando gradualmente.

Estupefata, abriu muito os olhos, não sabendo o que aquilo queria dizer. Começava a aterrar-se. quando viu abrir-se lentamente a porta do salão e entrar no seu quarto o lord, cúmplice dos seus pecados. Antes de lhe poder dizer uma palavra, o homem estava junto dela, apertou-lhe o braço erguendo pelo pulso e, com voz estridente, disse-lhe em inglês; "Existe inferno." A dor que sentiu no braço foi tal, que ficou sem sentidos.

"Quando, daí a meia hora, voltou a si, chamou a criada de quarto. Esta ao entrar, sentiu um grande cheiro de queimado; e aproximando-se da sua senhora, que com dificuldade podia falar, viu no pulso uma queimadura tão profunda, que o osso estava à vista e as carnes quase consumidas, e tinha de largura a mão de um homem. Da porta do salão até à cama, e da cama à mesma porta, viu no tapete as pegadas dum homem, que chegaram a queimar o tecido dum a outro lado. Por ordem da sua senhora abriu a porta do salão, e encontrou mais alguns vestígios no tapete.

"Pela manhã a infeliz dama soube, com um terror fácil de conceber, que naquela noite, à uma hora, o seu lord fôra achado morto junto a uma mesa que tinha mandado transportar para o seu quarto, onde expirou, depois de se ter embriagado.

"Ignoro, continuou o superior, se esta terrível lição converteu a desgraçada; mas o que sei, é que ela ainda vive, e que, para ocultar os sinais da sinistra queimadura, traz no pulso esquerdo, à maneira de bracelete, uma atadura de ouro, que não abandona nem de noite nem de dia. Repito: este fato foi-me narrado por um próximo parente daquela senhora, cristão fervoroso, e a cuja palavra dou todo o crédito.

"Na família não se fala disto; e eu mesmo vô-lo confio ocultando os nomes das pessoas."

Apesar do véu em que esta aparição tem estado e deve estar envolvida, parece-me impossível pôr em dúvida a sua terrível autenticidade. Certamente a dama do bracelete não teria desde então necessidade de que alguém lhe viesse provar a existência do inferno.

A prostituta de Roma

— No ano de 1873, alguns dias antes da Assunção, deu-se em Roma uma dessas terríveis aparições de almas do outro mundo, que corroboram eficacissimamente a verdade da existência do inferno. Numa dessas casas infames, que a invasão sacrílega do domínio temporal do Papa fez abrir em muitos lugares de Roma, uma infeliz donzela tinha uma ferida na mão, que a obrigou a ser transportada ao hospital da Consolação.

Ninguém pôde acalmar a desesperação e o terror desta desgraçada, que logo ao alvorecer se foi embora, deixando toda a casa penetrada de horror, apenas se soube da morte, no hospital, de sua infeliz companheira.

Neste entretanto adoeceu a dona da casa garibaldina exaltada, e como tal conhecida pelos seus irmãos e amigos. Mandou a toda pressa chamar o cura da freguesia. Antes de ir a semelhante casa, o respeitável sacerdote consultou a autoridade eclesiástica, a qual delegou para este fim um digno Prelado, Monsenhor Sirolli, pároco de S. Salvador in Lauro. Este, munido de instruções especiais, apresentou-se e exigiu logo da doente, em presença de muitas testemunhas, a inteira e plena retratação dos escândalos de sua vida, de suas blasfêmias contra a autoridade do Sumo Pontífice, e de todo o mal que fizera ao próximo. A infeliz fê-la sem hesitar, confessou-se e recebeu o Sagrado Viático com grandes sentimentos de arrependimento e humildade. Sentindo que ia morrer, suplicou com lágrimas ao bom pároco que não a abandonasse, aterrada, como estava, do que tinha presenciado. Mas a noite aproximava-se, e Monsenhor Sirolli, colocado entre a caridade, que lhe dizia que ficasse, e o decôro, que o obrigava a não passar a noite em tal lugar, mandou pedir à polícia dois guardas, que vieram, fecharam a casa e a guardaram, até que a agonizante exalou o último suspiro.

Roma inteira conheceu bem depressa estes trágicos acontecimentos. Como sempre, os ímpios e os libertinos zombaram deles, não se aproveitando da lição; os bons utilizaram-se deles, para serem ainda melhores e mais fiéis aos seus deveres.

À vista de semelhantes fatos, cuja lista podia ainda alongar-se mais, pergunto ao leitor reto e consciencioso se é razoável repetir, com a multidão dos descrentes, a famosa frase que serviu de epígrafe: "Se é certo que existe inferno, como é que nunca ninguém voltou de lá?"

Mas ainda que, com ou sem razão, se não quisesse admitir os fatos tão autênticos que acabo de narrar, não ficaria menos inabalável a certeza absoluta da existência do inferno.

Com efeito, a crença do inferno não repousa sobre estes prodígios, que não são de fé, mas sim sobre as razões do bom senso, que já expusemos, e principalmente sobre o testemunho divino e infalível de Jesus Cristo, dos profetas e dos apóstolos, assim como sobre o ensino formal, invariável e inviolável da Igreja Católica.

Os prodígios podem corroborar a nossa fé ou reanimá-la. Por esta razão, julgamos dever citar aqui alguns, bem capazes de fechar a boca aos que ousam dizer: "Não há inferno"; de confirmar na fé os que são tentados a dizer: "Existe porventura o inferno?" e, emfim, de consolar e iluminar ainda mais aqueles que, fieis e dóceis ao ensino da Igreja, dizem com ela: "Existe inferno."

 

Porque é que tanta gente se esforça em negar a existência do inferno

Primeiramente, é porque a maior parte dessa gente tem interesse grande e direto em negá-lo. Os ladrões, se pudessem, acabariam com a polícia; do mesmo modo, todos os que sentem remorsos estão sempre dispostos a fazer o possível e o impossível por se persuadirem que não há inferno, sobretudo inferno de fogo. Sentem que, se o inferno existe, é para eles. Fazem como os poltrões, que cantam fortemente no meio da escuridão da noite, com o fim de se entreterem e de não sentirem o medo que os aflige.

Escrevem isto nos seus livros, mais ou menos científicos e filosóficos; repetem-o, ora alto, ora baixo, em todos os tons e de todas as maneiras; e, graças a este ruidoso concerto, terminam por crer que ninguém acredita no inferno, e que, por consequência, tem o direito de não acreditar também.

Tais foram, no último século, quase todos os chefes da incredulidade voltairiana. Haviam estabelecido por A+B que não havia Deus, nem Paraíso, nem Inferno; queriam, deste modo ficar tranquilos. E entretanto a história mostra-os, uns após outros, tomados de horrível pânico no momento da morte, retratando-se, confessando-se e pedindo perdão a Deus e aos homens. Um deles, Diderot, escrevia a respeito da morte de Alembert: "Se eu não estivesse junto dele, ter-se-ia retratado, como todos os outros." E mesmo assim pouco faltou, porque ele tinha pedido um padre.

Todos sabem que Voltaire, no leito da morte, pediu duas ou três vezes com instância que lhe chamassem o pároco de S. Sulpício; porém seus discípulos cercaram tão bem a sua cama, que o padre não pode chegar ao pé do velho moribundo, que expirou num acesso de raiva e de desespero.

Vê-se ainda em Paris o quarto onde se passou esta cena trágica.

Os que gritam mais fortemente contra o inferno, creem nele mais do que nós. No momento da morte cai a máscara, e então vê-se o que estava coberto. Já se não ouvem aqueles arrazoados inspirados pelo interesse e ditados pelo medo.

Em segundo lugar, é a corrupção do coração que faz negar a existência do inferno. Quando se não quer deixar a má vida que conduz ao inferno, começa-se a dizer que ele não existe, embora se sinta o contrário.

O inferno consiste, em segundo lugar, na pena horrível do fogoImaginemos um homem cujo coração, fantasia, sentidos e hábitos quotidianos são regulados e absorvidos por um amor culpável. Entrega-se todo às suas paixões, sacrifica-se por elas inteiramente. Ide então falar-lhe do inferno! Falareis a um surdo.

E se algumas vezes, no meio dos gritos da paixão, ouve a voz da consciência e da fé, logo lhe impõe silêncio, não querendo ouvir a verdade, que lhe brada no coração e lhe entra pelos ouvidos.

Ide falar do inferno a esses homens libertinos que povoam os liceus, as oficinas, as fábricas e os quarteis. Responder-vos-ão com frases de cólera e com gargalhadas diabólicas, mais poderosas para eles do que os argumentos da fé e do bom senso. Não querem que o inferno exista.

Um dia vi um, que se encaminhou para mim, levado por um resto O inferno consiste, em segundo lugar, na pena horrível do fogode fé. Exortei-o quanto me foi possível a não desonrar-se com o seu procedimento, a viver como cristão, como homem e não como bruto. "Tudo isso é bonito e bom, respondeu-me, e talvez seja verdadeiro; mas o que eu sei é que, quando o vício me assalta, fico como um tolo; não ouço nem vejo nada, e julgo que não existe Deus nem inferno. Se houver inferno, para lá irei; isso pouco me importa".

E nunca mais o tornei a ver.

E os avarentos, os usurários e os ladrões?

Que argumentos irresistíveis acham nos seus cofres de ferro contra a existência do inferno! Restituir o que roubaram, abandonar o dinheiro, as libras?! Antes mil mortes, antes o inferno, se existe.

Havia um velho usurário normando, que nem mesmo no momento da morte se quis resolver a deixar tudo o que tinha adquirido injustamente. Consentiu, não se sabe como, em restituir somas enormes, e só faltava pouco mais de 15.500 réis. O padre não pôde obter dele a restituição desta quantia. O desgraçado morreu sem sacramentos. Para o seu coração de avarento, bastou aquela pequena quantia para fazer-lhe esquecer o inferno.

Todos estes, quando ficam confundidos por alguma dessas grandes razões de bom senso, que já expusemos, apelam para os mortos, esperando assim escapar às censuras dos vivos. Chegam a figurar-se e a dizer que acreditariam no inferno, se algum morto ressuscitasse diante deles e lhes afirmasse que o inferno existia. Puras ilusões, que mesmo Jesus Cristo se dignou dissipar, como vamos ver.

Embora os mortos ressuscitassem muitas vezes, o ímpio não acreditaria no inferno.

Um dia Nosso Senhor passava em Jerusalém, perto duma casa cujos alicerces ainda existem, e que pertencera a um jovem fariseu chamado Nicêncio. Este tinha morrido havia algum tempo. Sem o nomear, Jesus tomou ocasião do que se tinha passado para instruir os seus discípulos, assim como a multidão que o seguia.

"Houve um homem rico, disse Jesus, que se vestia de purpura e linho, e que todos os dias se banqueteava esplendidamente. À sua porta jazia um pobre mendigo, por nome Lázaro, coberto de chagas, que desejava comer as migalhas caídas da mesa do rico; mas ninguém lhas dava. Ora o pobre morreu, e foi levado pelos Anjos ao seio de Abraão, isto é, ao paraíso. O rico morreu também, e foi sepultado no inferno. Aí, no meio dos tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão, e Lázaro em seu seio.

Então em altos gritos, exclamou: "Abraão, meu pai, tende piedade de mim; mandai a Lázaro que molhe a ponta do seu dedo na água e que venha refrescar-me a língua, porque estou sofrendo horríveis tormentos nestas chamas. — Meu filho, respondeu-lhe Abraão, lembra-te que durante a vida gozaste dos prazeres, ao passo que Lázaro padeceu. Agora ele está consolado e tu sofrendo. — Ao menos, replicou o rico, enviai Lázaro, eu vô-lo peço, a casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, e que lhes diga os tormentos que aqui se padecem para que não venham, como eu, cair neste lugar. — Tem Moisés e os Profetas, respondeu Abraão; ouçam-os. Não, pai, replicou o condenado; isso não basta. Mas se algum morto os fôr avisar, então farão penitência". E Abraão lhe disse: "Se eles não escutam Moisés e os Profetas, embora ressuscite um morto não acreditarão na sua palavra".

Esta grave parábola do filho de Deus é a resposta antecipada às ilusões dos que, para crerem no inferno e converterem-se, exigem ressurreições e milagres. Se ao redor deles abundassem milagres de toda a natureza, ainda não acreditariam.

Seriam como os judeus, que, à vista dos milagres do Salvador, e particularmente da ressurreição de Lázaro, em Betânia, não tiraram senão esta conclusão: "Que devemos fazer? Eis que todo o povo corre atrás dele. Matemo-lo." E mais tarde, à vista dos milagres quotidianos, públicos e absolutamente incontestáveis de S. Pedro e dos outros Apóstolos, disseram também: "Estes homens fazem milagres que não podemos negar. Mandemo-los prender e proibamos-lhes que preguem dora em diante o nome de Jesus." Eis o que produzem ordinariamente os milagres e as ressurreições dos mortos na presença dos que tem o espírito e o coração corrompidos.

Quantas vezes não se tem repetido a frase verdadeiramente louca, dita por Diderot, um dos maiores ímpios do século passado: "Ainda que todo o Paris, dizia um dia, me viesse afirmar que vira ressuscitar um morto, preferia antes crer que Paris estava louco, do que admitir um milagre."

Ainda os maiores pecadores desejem ver milagres; mas inteiramente são dominados pelas mesmas tendências, tem tomado as mesmas resoluções; e se um resto de bom senso os impede de proferir semelhantes absurdos, na prática não fazem mais nem menos.

O QUE É O INFERNO

Das ideias falsas e supersticiosas acerca do inferno

Primeiro que tudo, cumpre afastar-nos com cuidado de todas as ficções populares e supersticiosas, que alteram em tantos espíritos a noção verdadeira e católica do inferno, Muitos forjam um inferno fantástico e ridículo, e depois dizem: "Não creio no inferno, pois é absurdo e impossível. Não, não creio nem posso crer no inferno."

Com efeito, se o inferno fosse o que dizem muitas mulheres, aliás boas, teríeis cem vezes, mil vezes razão de não acreditardes nele. Todas estas invenções são dignas de figurar ao lado dos contos que se fabricam para entreter a imaginação do vulgo. Não é isto o que ensina a Igreja; e se algumas vezes, afim de comoverem mais vivamente os corações, alguns autores e pregadores julgaram poder empregar a fantasia, sua boa intenção não os impediu de procederem mal, visto que a ninguém é permitido desfigurar a verdade e expô-la à irrisão dos homens sensatos, sob o pretexto de amedrontar os ignorantes, para mais facilmente os fazer sair do caminho da perdição. Bem sei que muitas vezes se experimenta um grande embaraço em fazer compreender ao povo os terríveis castigos do inferno; e como a maior parte da gente precisa de representações materiais para conceber as coisas mais elevadas, é quase preciso falar do inferno e do suplício dos condenados de uma maneira figurada. Mas é muito difícil fazê-lo com moderação; e muitas vezes, repito, com as mais excelentes intenções cai-se no impossível, ou antes, no ridículo.

Não, o inferno não é isto, De um modo bem diferente, é grande e terrível. Vamos vêl-o.

 

O inferno consiste, em primeiro lugar, na grande pena da condenação

A condenação é a separação total de Deus. O condenado é uma criatura total e definitivamente separada do seu Deus.

Foi Jesus Cristo, que nos mostrou a condenação como a pena primária e dominante dos réprobos. Deveis lembrar-vos dos termos da sentença que Ele pronunciará contra os réprobos no Juízo final, e de que já falamos atrás: "Retirai-vos de mim, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e seus anjos".

Notai bem: a primeira palavra da sentença do Soberano Juiz faz-nos compreender a primeira pena do inferno, que é a separação de Deus, a privação de Deus, a maldição de Deus; por outras palavras, é a condenação ou reprovação.

Ora, figurai-vos o estado daquele homem que, num momento, absoluta e totalmente, perdeu a vida, a luz, a felicidade, o amor e, enfim, o que para ele era tudo. Imaginai este vácuo súbito e absoluto no qual se abisma um ser criado para amar e possuir Aquele do qual se vê privado.

Um membro da Companhia de Jesus, P. Surin, que se tornou celebre no século décimo sétimo pelas suas virtudes, ciência e infortúnios, sentiu durante quase vinte anos as angústias deste terrível estado.

Para livrar uma pobre e santa religiosa da obsessão do demônio, que resistira a mais de três meses de exorcismos, de orações e austeridades, o caridoso padre levou o seu heroísmo a oferecer-se como vítima, se a misericórdia divina se dignasse ouvir os seus rogos e livrar aquela infeliz criatura. Foi atendido; e Nosso Senhor permitiu, para santificação do seu servo, que o demônio se apoderasse imediatamente do seu corpo e o atormentasse durante longos anos. Nada mais autêntico do que os fatos admiráveis públicos a que deu lugar a possessão do pobre P. Surin, e que seria muito longo referir aqui. Depois do seu livramento recolheu num escrito, que ainda se conserva, tudo o que sofreu naquele estado sobrenatural, em que o demônio, apoderando-se materialmente, por assim dizer, das suas faculdades e sentidos, lhe fazia sentir uma parte das suas impressões e do seu desespero de réprobo.

"Parecia-me, diz ele, que todo o meu ser e todas as potências da minha alma e o meu corpo eram impelidas com uma veemência inexprimível para o Senhor Deus; via que Ele era a minha suprema felicidade, o meu bem infinito, o único objeto da minha existência, e ao mesmo tempo sentia uma força irresistível que me arrancava de Deus e me retinha longe Dele; de sorte que, criado para viver, via-me e sentia-me privado d'Aquele que é a vida; criado para a verdade e para a luz, conhecia-me absolutamente repelido da luz e da verdade; criado para amar, vivia sem amor, privado inteiramente do amor; criado para o bem, estava sepultado no abismo do mal.

"Não posso, continua ele, comparar as angústias e os desesperos desta, inexprimível aflição, senão ao estado duma flecha vigorosamente lançada para um alvo donde a repele incessantemente uma força invencível; impelida irresistivelmente para diante, é sempre e invencivelmente repelida para traz."

Isto é apenas um pálido símbolo daquela terrível realidade, que se chama a condenação.

A condenação é necessariamente acompanhada do desespero. É a este desespero que Nosso Senhor chama no Evangelho "o verme" que rói os condenados. "Tudo isto vale mais, disse Jesus, do que ir para essa prisão de fogo onde o verme dos réprobos nunca morre (ubi vermis corum non moritur)."

O verme dos condenados ó o remorso, é o desespero. Tem o nome de verme, porque na alma pecadora e condenada nasce da corrupção do pecado, como nos cadáveres os vermes nascem da corrupção da carne. Enquanto vivemos não podemos imaginar exatamente o que são o remorso e o desespero dos condenados, pois que neste mundo, onde nada é perfeito, o mal anda sempre acompanhado com o bem, e o bem misturado com algum mal. Por mais violentos que possam ser nesta vida os desesperos e remorsos, são sempre aliviados por certas esperanças, e também pela impossibilidade de suportar o sofrimento, quando ele excede uma determinada medida. Mas na eternidade tudo é perfeito, permiti-me a expressão; o mal então é perfeito como o bem, isto é, não há alívio, nem esperança, nem possibilidade de mitigação, como adiante explicaremos. O remorso e o desespero dos condenados serão completos, irrevogáveis, sem remédio, sem sombra de alívio, sem a possibilidade de serem suavizados: são absolutos quanto é possível, porque o mal absoluto não existe.

"À vista dos bem-aventurados, diz a Sagrada Escritura, os condenados serão possuídos dum formidável terror, e aflitos gritarão, gemendo: "Ai! que nos enganamos (ergo ervravimus), e nos afastamos do verdadeiro caminho! Trilhamos as sendas da iniquidade e da perdição, desprezamos o caminho do Senhor. De que nos serviram as riquezas, e os prazeres? Tudo passou como uma sombra, e eis-nos agora perdidos e abismados na nossa perversidade." E o escritor sagrado acrescenta; "Assim dizem no inferno os pecadores condenados."

Ao desespero acrescerá o ódio, fruto também da maldição: "Retirai-vos de mim, malditos!"

E que ódio! O ódio de Deus, o ódio perfeito do Bem infinito, da Verdade mesma, do eterno Amor, da Bondade da Beleza, da Paz, da Sabedoria, da Perfeição infinita e eterna! Ódio implacável, sobrenatural, que absorve todas as potências do espírito e do coração do condenado.

O réprobo não poderia odiar o seu Deus se lhe fosse permitido, como aos bem-aventurados, contempla-o face a face, com todas as suas perfeições e indizíveis esplendores,

Mas não é assim que no inferno se vê a Deus. Os réprobos não o sentem senão nos terríveis efeitos da sua justiça, isto é, nos tormentos; por isso odeiam a Deus, como odeiam os castigos que sofrem, como odeiam a condenação e a maldição.

No século passado um padre virtuoso, ao exorcizar um possesso em Messina, perguntou ao demônio; "Quem és tu? — Sou o ser que não ama a Deus", respondeu o espírito mau. E em Paris, num outro exorcismo, perguntando o ministro de Deus ao demônio: "Onde estás?", respondeu este com furor. "Nos infernos para sempre. — E quererias ser aniquilado? — Não, afim de poder sempre odiar a Deus." O mesmo poderia dizer cada um dos condenados: odeiam eternamente Aquele que deviam amar eternamente.

"Mas, diz muita gente, Deus é a mesma Bondade. Como quereis, pois, que Ele nos condene?"

Não é Deus que condena; é o pecador que se condena. O terrível fato da condenação tem por causa, não a Bondade de Deus, mas somente sua Santidade e Justiça. Deus, assim como é Bom, é Santo, e a sua Justiça é tão infinita no inferno, como a sua Bondade e Misericórdia são infinitas no céu. Não ofendais a Santidade de Deus e ficai certos de que não sereis condenados. O réprobo possui o que escolheu livremente, desprezando todas as graças do seu Deus. Escolheu o mal, tem o mal; ora, na eternidade, o mal tem o nome de inferno. Se tivesse escolhido o bem, teria o bem, e possui-lo-ia eternamente. Isto é perfeitamente lógico, e neste ponto, como sempre, a fé concorda admiravelmente com a reta razão e com a equidade, Portanto, a primeira pena dos réprobos, o primeiro elemento desta horrível realidade, que se chama inferno, é a condenação, acompanhada da maldição divina, do desespero e do ódio de Deus.

 

O inferno consiste, em segundo lugar, na pena horrível do fogo

Há fogo no inferno: isto é de fé revelada.

Lembrai-vos das palavras tão claras, tão formais do Filho de Deus: "Retirai-vos de mim, malditos, para o fogo (in ingnem), para a prisão de fogo; e o fogo não se apagará jamais. O Filho do homem enviará seus Anjos, que apartarão os que tiverem praticado o mal, para lançá-los na fornalha de fogo (in caminum ignis)." Palavras divinas e infalíveis, que foram repetidas — pelos Apóstolos, e que são a base do ensino da Igreja. No inferno os condenados sofrem a pena de fogo.

Lê-se na historia eclesiástica que dois homens, que seguiam no terceiro século os cursos da celebre escola de Alexandria, no Egito, tendo um dia entrado numa igreja, onde o padre pregava sobre o fogo do inferno, um deles zombou do que ouvia, ao passo que o outro, possuído de temor e de arrependimento, converteu-se e fez-se religioso, para melhor assegurar a sua salvação. Daí a algum tempo o primeiro morreu de repente. Deus permitiu que ele aparecesse ao seu antigo companheiro, ao qual disse: "A Igreja ensina a verdade, quando prega o fogo eterno do inferno. Os padres ainda não dizem a centésima parte do que é."

O fogo do inferno é sobrenatural e incompreensível.

— Ah! quem pode neste mundo exprimir ou mesmo conceber as grandes realidades eternas? É impossível aos padres dizer tudo, porque o seu espírito e a sua palavra curvam-se debaixo deste peso. Se se diz do céu: "Os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o espírito humano pode compreender o que Deus tem preparado para os que O amam", pode-se igualmente, com relação à Justiça infinita, dizer do inferno: "Os olhos do homem não viram, nem os ouvidos ouviram, nem seu espírito pode, nem poderá jamais conceber o que a Justiça de Deus tem preparado para os pecadores impenitentes."

"Sou atormentado cruelmente nesta chama!", gritava do fundo do inferno o mau rico do Evangelho. Para compreender o alcance desta primeira palavra do réprobo: "Sou atormentado! (Crucior!)", seria necessário poder compreender o alcance da segunda: "nesta chama (in hac flamma)."

O fogo deste mundo é imperfeito, como tudo o que existe nele, e as chamas materiais não são, apesar do seu horrível poder, mais do que um fraco símbolo das chamas eternas de que fala o Evangelho.

Seria acaso possível exprimir exatamente o horror dos tormentos que sentiria um homem lançado por alguns minutos numa fornalha ardente, no suposto de que podia ali viver? Dizei-me: seria possível? Não, certamente. O que se poderá então dizer do fogo sobrenatural do inferno, desse fogo eterno, cujos horrores não tem comparação?

Contudo, como estamos no tempo, e não na eternidade, precisamos de servir-nos das pequenas realidades deste mundo, embora fracas e imperfeitas, para elevarmo-nos um pouco às realidades invisíveis e imensas da outra vida, Devemos, pela consideração dos indizíveis tormentos que causa o fogo terrestre, temer o fogo do inferno, para não cairmos nos abismos deste fogo vingador.

O P. Bussy e o homem libertino

— Um santo missionário, que viveu no começo deste século; célebre em toda a França pelo seu zelo apostólico, pela sua eloquência e virtudes, e também pelas suas originalidades, quis um dia que certo homem libertino tocasse com o dedo no fogo.

O P. Bussy dava numa grande cidade do sul da França uma importante missão, que abalava toda a população. Era na força do inverno; aproximava-se o Natal e fazia muito frio. No quarto, onde o padre recebia os homens, havia um fogareiro com bom lume.

Certo dia o padre-viu chegar um homem que particularmente lhe tinha sido recomendado por causa de suas devassidões e ditos ímpios. O P. Bussy conheceu logo que não podia fazer nada com ele.

Não obstante, disse-lhe alegremente: "Vinde cá, meu bom amigo, não tenhais medo, pois não confesso senão os que querem confessar-se. Aproximai-vos, assentai-vos nesta cadeira, e, ao passo que nos vamos aquecendo, conversemos um pouco." Abriu o fogareiro e, vendo que as brasas estavam quase reduzidas a cinzas, disse ao homem, "Antes de vos assentardes, fazei o favor de trazer-me daí uma ou duas achas." Admirado o jovem, fez entretanto o que o padre lhe pediu. "Agora haveis de mas pôr no fogareiro, lá bem para o fundo." E como ele pusesse as achas junto à porta do fogareiro, o P. Bussy agarrou-lhe no braço e levou-lho até ao fundo. O mancebo deu um grito e saltou para traz. "Ai!, gritou ele; vossa reverendíssima está maluco? Quer queimar-me! — Que tendes, meu caro amigo? replicou o padre tranquilamente. Acaso não precisais de habituar-vos? No inferno, para onde ireis, se continuardes a viver como até agora, não será somente as pontas dos dedos que vos arderão no fogo, mas todo o vosso corpo. Este pequeno fogo não é nada em comparação do outro. Vamos, vamos, meu bom amigo, coragem; é preciso habituar- vos." E quis tornar a meter-lhe o braço. O homem resistiu, como era de esperar.

Infeliz! disse-lhe então o P. Bussy, mudando de tom; refleti no que vou dizer- vos: quereis ir arder eternamente no inferno? Os sacrifícios que o bom Deus requer para que possais evitar tão horrível suplício, são porventura coisas dificultosas?" O homem libertino saiu pensativo. Refletiu nisto, e refletiu tão bem, que daí a pouco voltou a casa do missionário, fez uma boa confissão das suas culpas e entrou no bom caminho.

Tenho por certo que, de mil ou de dez mil homens que vivessem afastados de Deus, e por consequência trilhando o caminho do inferno, não haveria talvez um que resistisse à "prova de fogo." Nenhum, por mais tolo que fosse, aceitaria o seguinte ajuste: "Durante um ano poderás abandonar-te impunemente a todos os prazeres, gozar de todas as voluptuosidades, satisfazer os teus caprichos, com a única condição de passares um dia ou mesmo uma hora a arder no fogo." Repito: ninguém aceitaria o ajuste.

Quereis uma prova disto? Observai.

Os três filhos dum velho usurário

— Um pai de família, que enriquecera às custas de gravíssimas injustiças, caiu perigosamente doente. Soube que a gangrena já estava nas feridas, e contudo não pôde decidir-se a restituir o que roubara, "Se restituir, dizia ele, o que hei de deixar aos meus filhos?" O pároco, homem esperto, para salvar esta pobre alma recorreu ao seguinte expediente: Disse-lhe que, se queria sarar, lhe indicava um remédio extremamente simples, mas muito caro. Que importa! Custe ele embora mil, dois mil, dez mil francos mesmo..., respondeu vivamente o velho. Em que consiste ele? — Consiste em derramar, sobre os lugares gangrenados, gordura proveniente de alguma pessoa viva. Para isto não é preciso muito: basta achar alguém que, por dez mil francos, consinta em deixar queimar uma das mãos durante um quarto de hora.

— Ah! disse o pobre homem suspirando; temo não encontrar quem aceite o contrato. — Tendes um meio, disse tranquilamente o pároco: chamai vosso filho mais velho, pois ele ama-vos e deve ser o vosso herdeiro. Dizei-lhe: "Meu caro filho: podes salvar a vida de teu velho pai, se consentires em deixar queimar uma das tuas mãos, só durante um escasso quarto de hora." Se ele recusar, fazei igual proposta ao segundo, prometendo-lhe que será vosso único herdeiro. Se recusar, o terceiro não deixará, de aceitar."

Teve razão, e os seus três filhos também a tiveram. Deixar queimar uma das mãos durante um quarto de hora, mesmo para salvar a vida a seu pai, é sacrifício superior às forças humanas, Ora, como já disse-mos, o que é isso, comparado com o fogo eterno?

Meus filhos, evitai o inferno!

— Em 1844 conheci no seminário de S. Sulpício, em Issy, perto de Paris, um professor mui distinto de ciências naturais, e cuja humildade e mortificação todos admiravam. Era o P. Pinault, que, antes de se ordenar, fôra um dos professores mais eminentes da Escola Politécnica. Depois, elevado ao sacerdócio, ensinava física e química no seminário.

Um dia, ao fazer uma experiência, o fogo ateou-se, não se sabe como, no fósforo que manipulava, e num instante sua mão ficou envolvida em chamas. Ajudado por seus discípulos, o pobre professor esforçou-se, mas em vão, por apagar o fogo que lhe devorava a carne. Em poucos minutos a mão era uma massa informe e escandescente: as unhas tinham desaparecido. Vencido pelo excesso da dor, o infeliz perdeu os sentidos.

Mergulharam-lhe a mão e o braço num balde d'água fria, para moderar a violência deste martírio. Durante o dia e a noite gritou sempre, torturado pela dor irresistível e atroz, e quando em algum intervalo podia articular algumas palavras, dizia e repetia aos três ou quatro seminaristas que lhe assistiam: "Meus filhos, evitai o inferno!" — O mesmo grito de dor e de caridade sacerdotal escapou em 1867 dos lábios, ou antes do coração de um outro padre em circunstância análoga. Perto de Pontivy, diocese de Vannes, um cura ainda novo, chamado Lourenço, lançara-se ao meio das chamas de um incêndio para salvar uma infeliz mãe de família e duas criancinhas.

Duas ou três vezes arremessou-se com uma heroica coragem e caridade para o lugar donde partiam os gritos, e teve a ventura de trazer sãos e salvos os dois pequenitos.

Mas a mãe ficava ainda, e ninguém ousava afrontar a violência das chamas, que crescia cada vez mais. Dócil à sua caridade, o P. Lourenço atirou-se outra vez ao fogo, agarrou a desventurada mãe, já presa de terror, e pô-la fora do alcance do fogo.

Mas imediatamente o telhado abateu, e o bom padre caiu no meio das chamas.

Gritou por socorro, e com grande dificuldade foi arrancado a uma morte iminente.

Mas, ah! era demasiado tarde! O bom padre estava mortalmente queimado: tinha respirado chamas, o fogo começava a queimá-lo interiormente, e inexprimíveis sofrimentos o devoravam, Em vão os seus paroquianos procuraram socorrê-lo; tudo foi inútil. As chamas interiores continuaram a queimá-lo, e, dentro em poucas horas, o mártir da caridade foi receber no céu a recompensa da sua heroica dedicação.

Também ele, durante a sua dolorosa agonia, dizia aos que o rodeavam: "Meus amigos... meus filhos... não queirais ir para o inferno!... É terrível!... E assim que se deve arder no inferno!"

O fogo do inferno é um fogo corporal.

— Pergunta-se muitas vezes o que é o fogo do inferno e qual é a sua natureza: se é um fogo material, ou se é puramente espiritual. Muitos inclinam-se para esta opinião, por ser a que os aterra menos. Porém, não concorda com eles S. Tomás nem a teologia católica.

Como já dissemos, a fé ensina que o fogo do inferno é um fogo real e verdadeiro, um fogo inextinguível e eterno, que queima sem consumir, e penetra os espíritos e os corpos.

Isto foi revelado por Deus, e tem sido ensinado como artigo de fé pela Igreja Católica. Negá-lo, seria não somente um erro, mas uma impiedade e heresia propriamente ditas.

Quereis saber qual é a natureza do fogo que atormenta os condenados no inferno?

Se é um fogo corporal, se pertence à mesma espécie do fogo terrestre? É o príncipe da Teologia, S. Tomás de Aquino, que vai responder-vos, com a clareza e profunda erudição que lhe são peculiares.

Observa primeiro que os filósofos pagãos, não crendo na ressurreição da carne e admitindo entretanto um fogo vingador na vida futura, deviam ensinar, e com efeito ensinavam, que este fogo é espiritual e da mesma natureza que as almas.

O moderno racionalismo, que pretende invadir todas as inteligências, e que diminui, quanto pode, as verdades da fé, faz inclinar para este sentimento um grande número de espíritos, pouco instruídos nos ensinamentos católicos.

Mas o grande Doutor, depois de ter exposto este sentimento, declara formalmente que "o fogo do inferno é corporal." E a razão em que se funda é peremptória: "Porque depois da ressurreição os réprobos serão precipitados no inferno, e como a alma vai acompanhada do corpo, e o corpo não pode sofrer senão uma pena corporal, segue-se que o fogo do inferno deve ser corporal. Ao corpo não se pode aplicar outra pena além da corporal." S. Tomás apoia o seu ensino no de S. Gregorio Magno e de S. Agostinho, que, em termos idênticos, dizem o mesmo.

"Todavia pode dizer-se, continua o grande Doutor, que este fogo corporal tem alguma coisa de espiritual, não na sua substância, mas sim nos seus efeitos, porque, punindo os corpos, não os consome, nem os destrói, nem os reduz a cinzas. Além disto, exerce a sua ação vingadora também nas almas." Deste modo, o fogo do inferno distingue-se do fogo material, que queima e consome os corpos.

O fogo do inferno, ainda que é corporal, atormenta as almas.

— Alguém perguntará, talvez, como é que o fogo do inferno pode atormentar as almas que até ao dia da ressurreição e do Juízo final estão separadas dos corpos?

Cumpre responder, antes de tudo, que no terrível mistério das penas do inferno uma coisa é conhecer claramente a verdade do que é, e outra coisa é compreendê-la. Sabemos de uma maneira positiva e absoluta, por meio do ensino infalível da Igreja, que — imediatamente depois da sua morte, os condenados caem no inferno, no fogo do inferno. Ora isto não pode suceder senão — às suas almas, pois que, até a ressurreição, os corpos ficam confiados à terra, onde foram sepultados.

Apenas separada do corpo, a alma do réprobo acha-se na condição dos demônios, relativamente à ação misteriosa do fogo do inferno. Com efeito, embora os demônios não tenham corpos, sofrem os tormentos do fogo, no qual serão lançados um dia os corpos dos condenados, como o indica claramente a sentença do Filho de Deus contra os réprobos; "Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e seus anjos." Ora este fogo é corporal, porque de outro modo não atormentaria os corpos dos condenados. Portanto, a alma do réprobo, embora separada do corpo, é atormentada por um fogo corporal, Eis o que sabemos e o que é certo.

O que não sabemos é o como. Mas para crer não temos necessidade de sabê-lo, porque as verdades reveladas por Deus tem por fim esclarecer o nosso espírito e mantê-lo na dependência e submissão. Pela fé estamos certos da realidade do fato, e basta-nos ver que ele não é impossível.

O capitão ajudante-mór de Saint-Cyr

— A este respeito permiti-me, caro leitor, que vos conte um fato muito curioso que, nos últimos anos da Restauração, se deu na Escola militar de Saint-Cyr.

O capelão da Escola era então um eclesiástico muito espirituoso e de talento, por nome Rigolot. Dava um retiro espiritual aos jovens da Escola, que todas as noites se reuniam na capela antes de se irem deitar.

Uma noite, em que o digno capelão falou admiravelmente do inferno, depois de concluída a conferência retirou-se com um castiçal na mão para o seu quarto, que era situado num corredor reservado aos oficiais. No momento em que abria a porta foi chamado por alguém, que subia a escadaria em direção a ele. Era um velho capitão, de bigode grisalho, e na aparência pouco fino.

"Esperai, sr. capelão, disse ele, com voz um tanto irônica. Fizestes um bom sermão sobre o inferno. Somente vos esquecestes de dizer se no fogo do inferno o condenado é assado, queimado ou cozido. Sois capaz de mo dizer?" O capelão, compreendendo a intenção dele, olhou-o atentamente, e, aproximando o castiçal à cara do velho oficial, respondeu tranquilamente: "Vós o vereis, capitão!" E fechou a porta, não podendo deixar de rir-se da confusão e perturbação em que deixou o pobre capitão, corrido da sua tolice.

Não tornou a pensar nisto; mas desde então notou que o capitão se afastava dele o mais que podia.

Sobreveio a revolução de julho. Foram suprimidas as capelanias militares, e por isso a de Saint-Cyr acabou. O P. Rigolot foi nomeado pelo arcebispo de Paris para outro lugar não menos honroso.

Eram já passados vinte anos, quando o bom padre, ao achar-se uma tarde em um salão onde estava reunida muita gente, viu aproximar-se-lhe um velho de bigode branco, que lhe perguntou se ele era o rev. P. Rigolot, outrora capelão de Saint-Cyr. Recebida a resposta afirmativa, disse-lhe, comovido, o velho militar: "Sr. capelão, permiti-me que vos dê um aperto de mão para vos exprimir o meu reconhecimento: salvastes-me! — Eu?! Como? — Oh! não me conheceis? Lembrais-vos de certo capitão instrutor da Escola, que uma noite, ao acabardes de pregar um sermão sobre o inferno, vos fez uma pergunta ridícula, à qual respondestes, aproximando o castiçal à cara dele; "Vós o veis, capitão!?" Pois este capitão sou eu. Sabei que desde então tenho tido sempre a resposta que me destes, assim como o pensamento de que iria arder no inferno. Lutei dez anos contra este pensamento para mim importuno; por fim rendi-me. Confessei-me, e tornei-me cristão, cristão à militar, isto é, completo. É a vós que devo esta felicidade, e foi com grande contentamento meu que hoje vos encontrei para poder-vos dizer isto."

Caro leitor, se virdes alguém que, querendo zombar, vos faça perguntas ridículas sobre o inferno e o fogo do inferno, respondei-lhe como o P. Rigolot: "Vós o vereis, meu bom amigo; vós o vereis." Prometo-vos que não terá a tentação de ir vê-lo.

A mão queimada de Foligno

— É certo que quase todas as vezes em que, por permissão de Deus, alguma alma réproba ou (já que estamos falando do fogo da outra vida) alguma alma do Purgatório vem a este mundo e deixa algum sinal visível, este é o do fogo. Certamente ainda não vos esquecestes do que dissemos acerca da terrível aparição de Londres — do pulso da dama do bracelete e do tapete queimado.

Em abril do ano em que isto escrevi, vi e toquei em Foligno, perto de Assis (Itália), num desses espantosos sinais de fogo, que atestam a verdade do que dissemos, a saber: que o fogo da outra vida é um fogo real.

A 4 de novembro de 1359 faleceu de uma apoplexia fulminante, no convento das Terceiras Franciscanas de Foligno, uma boa religiosa chamada Tereza Margarida Gesta, que durante muitos anos fôra mestra de noviças, e ao mesmo tempo tinha a seu cargo a humilde rouparia do mosteiro. Nascera na Córsega, em Bastia, no ano de 1797, e entrara no convento em fevereiro de 1826. É escusado dizer que se tinha preparado dignamente para a morte.

Doze dias depois, a 17 de novembro, uma Irmã chamada Felícia, que a tinha ajudado no cargo, e que depois da sua morte ficou com ele, subia à rouparia e ia a entrar, quando ouviu gemidos que pareciam vir do interior do quarto. Admirada, apressou-se a abrir a porta; não estava ali ninguém.

Daí a pouco ouviu novos gemidos, tão penetrantes que, apesar da sua coragem, sentiu-se cortada de medo. "Jesus, Maria! exclamou ela; que é isto?" Ainda não tinha acabado de dizer estas palavras, quando ouviu uma voz que gemia, acompanhada deste doloroso suspiro: "Oh! meu Deus! quanto estou sofrendo! (Oh, Dio! che peno tanto!)" A Irmã, estupefata, reconheceu logo a voz da pobre Soror Tereza. Revestiu-se de coragem e perguntou-lhe: "Porque? — Por causa da pobreza, respondeu Soror Tereza. — Como! replicou a Irmã. Vós, que ereis tão pobre!... — Sofro, não porque transgredisse em mim este preceito, mas porque dei às religiosas muita liberdade nesta matéria. E tu toma cautela." No mesmo instante o quarto encheu-se duma espessa fumaça, e a sombra de Soror Tereza apareceu, dirigindo-se para a porta e passando ligeira a distância que a separava.

Apenas chegou à porta, gritou com força: "Eis um testemunho da misericórdia de Deus!" Dizendo isto, tocou no caixilho mais elevado da porta, deixando gravado no pau queimado o sinal perfeitíssimo da sua mão direita. Em seguida desapareceu.

A pobre Irmã Ana Felícia ficou aterradíssima. Agitada, começou a gritar e a pedir socorro. Acudiu uma das suas companheiras, depois outra, e em seguida toda a, comunidade. Todas lhe acudiram, e admiraram-se de sentir um cheiro de madeira queimada. Examinaram, observaram, até que viram em cima da, porta o terrível sinal.

Reconheceram logo a forma da mão de Soror Tereza, que era muito pequena. Espantadas, saíram, foram para o côro, puseram-se em oração e, esquecendo as necessidades do corpo, passaram a noite a orar, a soluçar e a fazer penitências pela pobre defunta, e no dia seguinte comungaram por alma dela.

A noticia espalhou-se fora do convento.

Os frades menores, os padres amigos do mosteiro e todas as comunidades da cidade juntaram as suas preces e súplicas às das Franciscanas. Este impulso de caridade tinha alguma coisa de sobrenatural e de insólito.

Entretanto a irmã Ana Felícia, ainda agitada por tantas comoções, recebeu ordem formal de ir descansar. Obedeceu, bem decidida a fazer desaparecer a todo o custo, no dia seguinte, o sinal carbonizado que lançara o espanto em Foligno, Mas Soror Tereza Margarida lhe apareceu de novo. "Sei o que queres fazer, disse-lhe ela em tom severo: queres tirar o sinal que deixei. Sabe que não tens poder para o fazer desaparecer, pois que este prodígio foi ordenado por Deus para ensino e correção de todos. Pelo seu justo e terrível juízo fui condenada a sofrer durante quarenta anos as horrorosas chamas do Purgatório, por causa das minhas tolerâncias com algumas religiosas. Agradeço-te, bem como as tuas companheiras, tantas obras satisfatórias, que na sua bondade o Senhor se dignou aplicar exclusivamente à minha pobre alma."

Acordou sobressaltada, e ficou na mesma postura sem poder articular uma palavra.

Ainda desta vez reconheceu perfeitamente a voz de Soror Tereza. No mesmo instante, um resplandecente globo de luz apareceu diante dela, junto da sua cama, e alumiou o quarto como o sol ao meio dia. Ouviu Soror Tereza, que, com voz alegre e triunfante, pronunciou estas palavras: "Morri numa sexta feira, dia da Paixão, e nesta sexta-feira vou entrar na glória. Sêde fortes em levar a cruz, sêde corajosas em sofrer." E ajuntando, com amor: "Adeus!... adeus!... adeus!...", desapareceu.

O Bispo de Foligno e os magistrados da cidade quiseram desde logo fazer uma averiguação canônica. No dia 23 de novembro, na presença de grande número de testemunhas, abriu-se o túmulo de Soror Tereza Margarida, e reconheceu-se que o sinal carbonizado da porta era conforme à mão da defunta. O resultado da averiguação foi um auto oficial, que estabeleceu a certeza e autenticidade perfeitas do que acabamos de referir.

A porta em que está o sinal conserva-se no convento com veneração. A Madre Abadessa, testemunha do fato, dignou-se mostrar-ma, e, repito, eu e os meus companheiros de viagem vimos e tocamos na madeira queimada, que atesta de uma maneira bem clara que as almas que, temporária ou eternamente, sofrem na outra vida a pena do fogo, são penetradas e queimadas por este fogo ardente. Quando, devido a razões que só Deus conhece, lhes é permitido aparecer neste mundo, aquilo em que elas tocam fica com o vestígio do fogo que as atormenta. O fogo e elas parece que são a mesma coisa, como o carvão quando é abrasado pelo fogo.

Portanto, ainda que não possamos penetrar este mistério, sabemos indubitavelmente que o fogo do inferno, embora seja corporal, exerce sua ação vingadora também sobre as almas.

Pela sua onipotência, Deus faz com que o fogo do inferno produza todos os efeitos que reclama a sua Justiça infinita. Deste modo ele penetra e atormenta os espíritos, bem como os corpos; não consome os corpos dos réprobos, mas conserva-os, segundo estas terríveis palavras do Soberano Juiz: "Na prisão do fogo que não se apaga, todos os réprobos serão salgados pelo fogo (igne salictur)." Assim como o sal penetra e conserva a carne dos animais, assim, por um efeito sobrenatural, o fogo corporal do inferno penetra os réprobos e os demônios sem os consumir.

O fogo do inferno é tenebroso (visão de Santa Tereza)

— Com a autoridade divina e infalível da sua palavra, Jesus Cristo revelou não só que o inferno é no fogo, mas também que ele é nas trevas.

No capítulo vigésimo segundo do livro de S. Mateus, Jesus dá ao inferno o nome de trevas exteriores. "Lançai-o, disse, falando do homem que se apresentara sem a veste nupcial, isto é, em estado de pecado, lançai-o nas trevas exteriores (in tenebras exteriores)." Em vários lugares do Evangelho e nas epístolas dos Apóstolos, os demônios são chamados "príncipes das trevas, poder das trevas". S. Paulo dizia aos fiéis: "Vós sois todos filhos da luz, porque nenhum de nós é filho das trevas".

As trevas do inferno são corporais como o fogo. Estas duas verdades não implicam contradição. O fogo, ou antes o calórico, que é como que a alma e a vida do fogo, é um elemento perfeitamente distinto da luz.

Há, pois, no inferno trevas corporais, mas com um certo clarão que permite aos condenados ver os objetos que os atormentam.

Os escandalosos verão no fogo e na sombra, ao tênue clarão das chamas do inferno, diz S. Gregório Magno, os que foram por eles arrastados para a condenação, e esta vista será o complemento do seu suplício. O horror das trevas, que conhecemos por experiência na terra, não é comparável ao que aflige os condenados. O negro é a cor da morte, do mal e da tristeza.

Santa Tereza refere que, tendo um dia um êxtase, Nosso Senhor se dignou assegurar-lhe a salvação eterna, se continuasse a servi-lo e amá-lo como então fazia; e para aumentar em sua fiel serva o temor do pecado e dos terríveis castigos que merece, quis deixar-lhe entrever o lugar que ela ocuparia no inferno, se seguisse as suas inclinações para o mundo, para a vaidade e para o prazer.

"Estava um dia em oração, diz ela, quando me achei num instante, sem saber como, transportada ao inferno em corpo e alma. Compreendi que Deus queria fazer-me ver o lugar que os demônios me tinham preparado, e que, tendo-o merecido pelos meus pecados, cairia nele, se não mudasse de vida. Isto durou pouco tempo; mas, embora vivesse muitos anos, não me esqueceria de tão horríveis suplícios.

"A entrada deste lugar de tormentos pareceu-me semelhante a um forno extremamente baixo, escuro e apertado. O chão era uma horrível imundice, que lançava um cheiro fétido, e estava cheio de vermes venenosos. No fim elevava-se um muro, no qual havia um reduto, onde me vi encerrada. Não posso dar uma ideia dos tormentos que lá sofri, porque são incompreensíveis. Senti na minha alma um fogo cuja natureza, por falta de termos, não posso descrever, e ao mesmo tempo o meu corpo revolvia-se no meio de intoleráveis dores.

Tenho sido atormentada na minha vida por sofrimentos tão cruéis, que, segundo os médicos confessam, são os maiores que se podem sofrer neste mundo. Já vi os meus nervos contraírem-se duma maneira espantosa, quando perdi o uso dos membros; porém, tudo isto é nada em comparação das dores que então senti, e o que mais ainda me afligia, era a lembrança de que elas seriam eternas e sem alívio. Os tormentos do corpo não eram nada em comparação da agonia da alma. Estava tão aflita, angustiada, com dor tão viva e tristeza tão amarga e desesperada, que não posso descrevê-la. Se disser que a alma sofre em todos os instantes as angústias da morte, é pouco. Não, não me é possível exprimir, nem sequer dar uma ideia deste fogo interior e do desespero, que são o cúmulo de tantas dores e tormentos."

"Naquela terrível morada não há nenhuma esperança de consolação; nela respira-se um cheiro pestilencial. Tal era a minha tortura no estreito reduto aberto no muro, onde fôra encerrada. Até as paredes deste calabouço, terror da vista, me oprimiam com o seu peso. Alí tudo é escuro: não há luz, mas sim trevas da mais sombria escuridão. E entretanto, ó mistério!, não brilhando nenhuma claridade, veem-se todos os tormentos que podem afligir a vista."

"Já passaram seis anos depois desta visão, acrescenta ainda Santa Tereza, e ao escrever isto estou tão aterrada, que o meu sangue gela nas veias. No meio das aflições e das dores, lembro-me do inferno e imediatamente parece-me nada tudo o que se pode sofrer neste mundo, e até julgo que nos lastimamos sem razão."

"Desde então, tudo me parece fácil de suportar, em comparação dum só instante que tenha de passar no suplício que então sofri. Não me admiro de que, tendo lido tantos livros que tratam do inferno, estava muito longe de fazer dele uma ideia justa e de temê-lo como devia. O que pensava eu então, ó meu Deus! e como podia estar descansada num gênero de vida que me arrastava a tão horrível abismo! Ó meu adorável Mestre, sêde eternamente bendito! Mostrai-me da maneira a mais clara que o vosso amor para comigo excede infinitamente aquele com que me amo. Quantas vezes me livrastes desta negra prisão, e quantas vezes quis entrar nela contra a vossa vontade!"

"Esta visão produziu em mim uma dor indizível pelas almas que se perdem. Deu-me também os mais ardentes desejos de trabalhar na sua salvação; para arrancar uma alma a tão horríveis suplícios, eu estaria pronta a sacrificar mil vezes a vida."

A fé deve suprir em cada um de nós a visão; e o pensamento das "trevas exteriores" onde os réprobos são lançados como imundices e escórias da criação, deve fortalecer-nos nas tentações e fazer-nos verdadeiros filhos da luz!

 

Doutras penas muito grandes, que acompanham o sombrio fogo do inferno

Além do fogo e das trevas, há no inferno outros castigos e outras espécies de sofrimentos. Assim o requer a justiça divina.

Tendo os réprobos cometido o mal de muitas maneiras, e tendo cada um dos sentidos tomado parte mais ou menos nos seus pecados, e por consequência na sua condenação, é justo que, por onde pecaram mais, sejam punidos mais fortemente, segundo estas palavras da Escritura: (Cada um será punido por onde tiver pecado. É principalmente o fogo, este fogo terrível e sobrenatural de que acabamos de falar, o que serve de instrumento a estes múltiplos castigos: punirá por uma ação especial aquele sentido que tiver especialmente servido para a iniquidade; o condenado lançado no fogo e nas trevas exteriores chorará amargamente e rangerá os dentes, segundo os vícios e pecados que cometeu. "Lá haverá choros e ranger de dentes (fletus et stridor dentium)." São palavras divinas.

Estes choros dos réprobos, diz S. Tomás, são mais espirituais do que corporais; mesmo depois da ressurreição, os corpos dos réprobos, sendo verdadeiros corpos humanos com todos os seus sentidos, órgãos e propriedades essenciais, não serão suscetíveis de certos atos nem de algumas funções. As lágrimas particularmente supõem um princípio físico de secreção, o qual não existirá então.

Os seus ouvidos, abertos aos discursos impudicos, às mentiras, às calúnias, às gargalhadas da impiedade! A língua, os lábios, a boca, instrumentos de tantas sensualidades, de tantas palavras ímpias e obscenas, e tantas pragas e de tantas gulodices!

As suas mãos, que procuraram, escreveram e espalharam tantas coisas detestáveis, e que praticaram ações tão más! O seu cérebro, órgão de tantos milhões de pensamentos pecaminosos de todo o gênero!

O coração, séde da sua vontade depravada e de todos esses maus afetos que desapareceram para sempre!

Todo o seu corpo e a sua carne, para a qual viveu, e de que satisfez todos os desejos, paixões e concupiscências!

Tudo no condenado tem castigo e tormento especial, além da pena geral da condenação, da maldição divina e do fogo vingador. Que horror!

Mas não basta. S. Tomás, fundando-se nos Santos Padres, diz: "Na purificação final do mundo haverá nos elementos uma separação radical. Tudo o que for puro e nobre subsistirá no céu para glória dos bem-aventurados, e tudo o que fôr ignóbil e impuro será precipitado no inferno para tormento dos condenados. Assim, ao passo que os justos sentirão alegria à vista de todas as criaturas, os condenados acharão em todas as criaturas ocasião de novos tormentos. Isto será o cumprimento do oráculo dos Livros Santos: "O universo inteiro combaterá com o Senhor contra os insensatos, isto é, contra os réprobos."

Emfim, e para completar a exposição do lúgubre estado da alma précita, observemos ainda o que Nosso Senhor declarou na fórmula da sentença que há de pronunciar no Juízo final, a saber: que os malditos, os condenados, irão arder no inferno, "no fogo que foi preparado para o demônio e seus anjos." Nos ardentes abismos do inferno os réprobos tem pois ainda o suplício da execrável companhia de Satanás e de todos os demônios. Neste mundo sente-se algumas vezes uma espécie de alívio quando no sofrimento se vê uma pessoa amiga; mas na eternidade a associação do condenado com todos os maus anjos e com os outros réprobos agravará ainda mais o desespero, o ódio, a raiva, os sofrimentos da alma e as dores do corpo.

Eis-aqui o pouco que sabemos, pela revelação divina e pelos ensinamentos da Igreja, sobre a multiplicidade dos tormentos, que são na outra vida o castigo dos ímpios, dos blasfemadores, dos devassos, dos orgulhosos, dos hipócritas, e em geral de todos os pecadores obstinados e impenitentes.

Mas o que torna ainda mais terríveis estas penas, é a eternidade.

 

Da eternidade das penas do inferno

A eternidade das penas do inferno é uma verdade de fé revelada

Deus revelou às suas criaturas a eternidade das penas que as aguardaria no inferno, se fossem tão insensatas, perversas, ingratas e tão inimigas de si mesmas, que chegassem a revoltar-se contra as leis da sua santidade e do seu amor.

Pelo Profeta Isaías repete-nos a mesma doutrina, e ainda haveis de lembrar-vos da terrível apóstrofe que dirige aos pecadores: "Qual dentre vós poderá habitar no fogo devorador, nas chamas eternas (cum ardoribus sempiternis?)" Aqui ainda o superlativo sempiternus.

No Novo Testamento a eternidade do fogo e das penas do inferno foi declarada formalmente pelos lábios do Salvador e pela pena dos Apóstolos. Recordai, caro leitor, alguns dos textos já citados. Apenas repetirei algumas palavras do Filho de Deus, porque resumem solenemente todas as outras: é a sentença que presidirá a nossa eternidade:

"Vinde, benditos de meu Pai, e entrai na posse do reino que vos foi preparado desde o princípio do mundo! Retirai-vos de mim, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e seus anjos." E o adorável Juiz acrescenta: "e estes irão para o suplício eterno, e aqueles entrarão na vida eterna (in supplicium acternum, in vitam aeternam)." Estas palavras do Filho de Deus não precisam de comentários.

Sobre a sua luminosa clareza a Igreja faz repousar há dezenove séculos o seu ensino divino, soberano e infalível, concernente à eternidade propriamente dita da beatitude dos escolhidos no céu e das penas dos condenados do inferno.

Portanto, a eternidade do inferno e das suas terríveis penas é uma verdade revelada, uma verdade de fé católica tão certa como a existência de Deus e os outros grandes mistérios da religião cristã.

 

O inferno é necessariamente eterno, atenta a natureza da eternidade

Há muito tempo quo a fraqueza natural do espírito humano tem pretendido atenuar o peso deste terrível mistério das penas dos réprobos. Já no tempo de Jó e de Moisés, dezessete ou dezoito séculos antes da era cristã, alguns espíritos levianos e certas consciências muito remordidas falavam da mitigação e até do termo das penas do inferno. "Imaginam, diz o livro de Jó, que o inferno diminui e envelhece."

Hoje, como em todos os tempos, esta tendência a mitigar e encurtar as penas do inferno acha advogados mais ou menos diretamente interessados na causa. Enganam-se. Além da sua suposição se basear na fantasia e ser diretamente contrária ao ensino divino de Jesus Cristo e da sua Igreja, parte de uma concepção absolutamente falsa acerca da natureza da eternidade. Não só não haverá termo nem mitigação nas penas dos condenados, mas é mesmo completamente impossível havê-la.

A natureza da eternidade opõe-se a isso de uma maneira absoluta.

Com efeito, a eternidade não é como o tempo, que se compõe de uma sucessão de instantes acrescentados uns aos outros, e cuja reunião forma os minutos, as horas, os dias, os anos e os séculos. No tempo pode-se mudar, pois que o tempo é mudável.

Mas se o homem não tivesse diante de si nem dia, nem hora, nem minuto, nem segundo, é claro que não poderia passar de um para outro estado.

Ora é exatamente o que sucede na eternidade. Na eternidade não há instantes que sucedam a outros instantes e que sejam distintos entre si. A eternidade é um modo de duração e de existência, que não tem nada de comum com o do tempo; podemos conhecê-la, mas não compreendê-la.

É o mistério da outra vida, é uma verdadeira e misteriosa participação da própria eternidade de Deus.

Lá não há séculos acumulados sobre séculos, nem milhões de séculos acrescentados a outros milhões de séculos. Estas são maneiras terrestres e perfeitamente falsas de conceber a eternidade.

Repito: a natureza da eternidade, não se assemelhando em nada às sucessões do tempo, não pode admitir nenhuma mudança quer no bem, quer no mal. Por isso nas penas do inferno é impossível qualquer mudança; e como a cessação, ou mesmo a simples mitigação destas penas constituiria necessariamente uma mudança, devemos concluir com firme certeza que as penas do inferno são absolutamente eternas, imutáveis, e que o sistema da mitigação é uma fraqueza do espírito ou um capricho da imaginação e do sentimento.

O que acabamos de compendiar acerca da eternidade, caro leitor, é talvez um pouco abstrato; mas quanto mais refletirdes, melhor reconhecereis quanto é verdade o que deixamos dito. Em todo o caso, repousemos sobre a formal e clara afirmação de Nosso Senhor Jesus Cristo, e digamos com toda a simplicidade e certeza de fé: "Creio na vida eterna (credo vitam arternum)", isto é, que a outra vida será para todos imortal e eterna: para os bons, imortal e eterna na felicidade do paraíso; para os maus, imortal e eterna nos tormentos do inferno.

Um dia S. Agostinho, Bispo de Hipona, procurava escrutar, com a sua inteligência tão poderosa, a natureza desta eternidade, em que a Bondade e a Justiça de Deus aguardam todas as criaturas. Investigava e esquadrinhava; ora entendia, ora sentia-se detido pelo mistério. De repente apareceu-lhe, cercado de uma luz radiosa, um velho de fisionomia veneranda e resplandecente de glória. Era S. Jerônimo que, na idade quase de cem anos, acabava de morrer bem longe dali, em Belém. E como S. Agostinho ficou espantado e admirado ante a celeste visão que se oferecia à sua vista, disse-lhe o santo velho: "Os olhos do homem nunca viram, nem os ouvidos ouviram, nem o espírito humano poderá jamais conhecer o que tu procuras compreender." E desapareceu.

Tal é o mistério da eternidade do céu e do inferno. Acreditemos humildemente e aproveitemo-nos da vida, a fim de que, quando para nós acabar o tempo, sejamos admitidos na feliz eternidade, evitando, pela misericórdia de Deus, a infeliz.

 

Segunda razão da eternidade das penas: à falta de graça

Ainda que o condenado tivesse tempo para poder mudar, converter-se e obter misericórdia, este tempo não lhe aproveitaria.

E porque razão? Porque a causa dos castigos que ele sofre é sempre a mesma. Esta causa é o pecado, é o mal que o réprobo escolheu na terra para sua partilha. O condenado é um pecador impenitente e inconvertível.

Com efeito, o tempo não é suficiente para operar a conversão. Ah! acaso não o experimentamos neste mundo? Vivemos no meio de muitos homens, que o bom Deus espera há dez, vinte, trinta, quarenta anos e algumas vezes mais. Portanto, para o homem converter-se é preciso também a graça.

Não é possível a conversão sem o dom essencialmente gratuito da graça de Jesus Cristo, que é o remédio fundamental do pecado e o primeiro princípio da ressurreição das pobres almas que estão separadas de Deus pelo pecado e sepultadas na morte espiritual. O Senhor disse: "Eu sou a ressurreição e a vida"; é pelo dom da graça que Ele ressuscita as almas mortas pelo pecado, e que as mantém depois na vida espiritual.

Ora na sua Sabedoria infinita este Soberano Senhor determinou que só nesta vida, que é o tempo da prova, nos fosse dada a sua graça para podermos evitar a morte do pecado e adiantar-nos no caminho dos filhos de Deus. No outro mundo já não é tempo da graça nem da prova: é o tempo da recompensa eterna para os que corresponderam à graça, vivendo cristãmente, e é o tempo do castigo eterno para os que desprezaram a graça, vivendo e morrendo no pecado. Esta é a economia da Providencia, e nada a fará mudar.

Portanto, na eternidade já não há graça para os pecadores condenados; e como sem a graça é absolutamente impossível ao homem arrepender-se eficazmente, como é mister para obter o perdão, segue-se que o perdão não é possível, e por isso subsistindo sempre a causa do castigo, deve igualmente subsistir o castigo, efeito do pecado.

Sem a graça não pode haver arrependimento, sem arrependimento não pode ter lugar a conversão, sem a conversão não pode obter-se o perdão, sem o perdão não poderá haver cessação nem mitigação nas penas. Acaso não é isto razoável?

O mau rico do Evangelho não se arrepende no fogo do inferno. Ele não diz: "Arrependo-me!", nem mesmo: "Pequei", mas diz: "Sofro horrivelmente nesta chama." É o grito da dor e da desesperação, mas não o grito do arrependimento. Ele não sabe implorar o perdão, porque só pensa em si e no seu alívio.

O egoísta em vão pede a gota d'água que podia refrescá-lo. Esta gota d'água é o toque da graça que o salvaria, mas respondeu-se-lhe que é impossível dá-la. Ele detesta o castigo, mas não a culpa. Tal é a terrível história de todos os condenados.

Na terra, a cidade de Deus e a cidade de Satanás estão unidas e misturadas. Pode-se passar e repassar de uma para a outra, podendo o homem de bom tornar-se mau e de mau tornar-se bom. Mas tudo isto acaba no momento da morte.

Então as duas cidades são irrevogavelmente separadas, segundo diz o Evangelho; não se pode mais passar duma para a outra, da cidade de Deus para a cidade de Satanás, do paraíso para o inferno, nem do inferno para o paraíso.

Nesta vida tudo é imperfeito, tanto o bem como o mal, Nada é definitivo, e não sendo recusada a ninguém a graça de Deus, pode-se sempre fugir do mal, do império do demônio e da morte do pecado, enquanto se estiver neste mundo.

Mas, como já se disse, isto é a partilha da vida presente. Apenas um pobre homem em estado de pecado mortal dá o último suspiro, tudo muda de figura: a eternidade sucede ao tempo, passaram os momentos da graça e da prova, já não é possível a ressurreição da alma, e a árvore caída para a esquerda fica eternamente na esquerda.

Portanto, a sorte dos réprobos foi fixada para sempre, e por isso não poderá haver mudança, mitigação, suspensão ou cessação nos tormentos que eles sofrem. Falta-lhes não só o tempo, mas também a graça.

 

Terceira razão da eternidade das penas: a perversidade da vontade dos condenados

Mas depois da morte já não há liberdade nem graça. Isto acabou, e acabou para sempre. Então trata-se, não de escolher, mas de ficar no lugar que se escolheu. Escolhestes o bem e a vida, possuireis para sempre o bem e a vida; escolhestes loucamente o mal e a morte, estareis eternamente na morte, nessa morte que tão livremente escolhestes.

Esta é a eternidade das penas.

No palácio de Versailles vê-se ainda o quarto onde morreu Luiz XIV, em 1 de setembro de 1715, com os mesmos móveis e particularmente com o mesmo relógio.

Por um sentimento de respeito para com o grande rei defunto, fizeram parar o relógio apenas ele deu o último suspiro, às 4 horas e 31 minutos. Desde então ninguém mais lhe tocou, e o ponteiro imóvel, marca ainda 4 horas e 31 minutos. É uma viva imagem da imobilidade em que entra e permanece a vontade do homem, quando sai deste mundo.

A vontade do pecador condenado continua, pois, a ser a mesma que era no momento da morte. Desde então fica imobilizada e — permita-se-me a expressão — eternizada. O condenado quer sempre e necessariamente o mal que fez, diz S. Bernardo.

O mal e ele são inseparáveis; é como que um pecado vivo, permanente e imutável.

Assim como os bem-aventurados, vendo a Deus no seu amor, amam-O necessariamente, assim os réprobos, não vendo a Deus senão nos castigos da sua Justiça, odeiam-O necessariamente. Pergunto-vos: não será rigorosamente justo que se oponha um castigo imutável a uma perversidade imutável, e que uma pena eterna, e sempre a mesma, puna uma vontade eternamente fixa no mal, eternamente afastada de Deus pela revolta e pelo ódio, uma vontade decidida a pecar sempre?

Do que acabamos de dizer, resulta de uma maneira evidente que no inferno os condenados, não tendo tempo, nem graça, nem vontade de se arrependerem, não podem ser perdoados, e por isso devem necessariamente sofrer um castigo imutável e eterno; finalmente e como consequência rigorosa, que as penas do inferno não terão fim, nem são suscetíveis de diminuições ou mitigações, como alguns julgam.

 

Se é verdade que Deus é injusto punindo com penas eternas faltas de um momento

É esta uma velha objeção, arrancada pelo medo às consciências torturadas pelo remorso. Já no quarto século o ilustre Arcebispo de Constantinopla, S. João Crisóstomo, a dissolvia nestes termos: Alguns há que dizem: 'Empreguei poucos instantes em matar um homem, em cometer um adultério, e por este pecado de um momento hei de sofrer penas eternas?' Sim, com certeza, porque Deus julga o vosso pecado, não pelo tempo que empregastes em cometê-lo, mas pela vontade com que o cometestes."

O que já dissemos é suficiente para resolver esta dificuldade. A conversão e a mudança, sendo absolutamente impossíveis no inferno por falta de tempo, por falta de graça e por falta de liberdade, segue-se que a causa do castigo deve subsistir eterna e integralmente, e produzir sempre o seu efeito.

Não há que dizer, pois disto é rigorosamente justo.

Observai o que se passa todos os dias na sociedade humana. São punidos com a morte os assassinos, os parricidas, os incendiários, etc., os quais praticaram o seu crime num instante, Acaso é injusta a sociedade? Quem se atreveria a dizê-lo? Ora, o que é a pena de morte na sociedade humana? Não é uma pena perpétua, sem retrocesso nem mitigacão possivel? A pena de morte priva para sempre o criminoso da sociedade dos homens, assim como o inferno o priva eternamente da sociedade de Deus. Porque razão se deve castigar de outro modo os crimes de lesa magestade divina, isto é, os pecados mortais?

O tempo não tem nada com o peso moral do pecado. Como dizia S. João Crisóstomo, no inferno é punida com pena eterna, não a duração do ato culpável, mas sim a malícia da vontade do pecador, a qual a morte veio imobilizar, durando sempre a sua perversidade, o castigo, que eternamente lhe está aplicado, longe do ser injusto, é justíssimo, e necessário.

A santidade infinita de Deus não deve porventura repelir eternamente um ser que jaz no estado eterno de pecado? Ora, tal é o réprobo no inferno.

Refletindo seriamente, ver-se-há em todo o pecado mortal um duplo caráter: o primeiro, essencialmente finito, é o ato livre da vontade que transgride a lei de Deus e peca; o segundo, infinito, é o ultraje feito à santidade e à majestade infinita de Deus.

Assim, o pecado encerra de algum modo uma malícia infinita (quamdam in finitatem), diz S. Tomás.

Ora, a pena eterna corresponde numa medida exata ao caráter finito e infinito do pecado.

Ela é ao mesmo tempo finita e infinita: finita na intensidade, infinita e eterna na duração.

Finito quanto à duração do ato e à malícia da vontade do que peca, o pecado é punido por uma pena mais ou menos considerável, mas sempre finita na intensidade; infinito em relação à santidade d'Aquele que ofende é punido por uma pena infinita na duração, isto é, eterna.

Portanto, é sumamente lógico e justo que sejam eternas as penas que no inferno punem o pecado e o pecador; porém, não seria justo que os réprobos sofressem todos a mesma pena.

Com efeito, é claro que a culpabilidade de uns é menor que a de outros.

Todos estão em pecado mortal, e por isso merecem todos igualmente uma pena eterna.

Mus como o grau da culpa não é igual em todos. segue-se que a intensidade desta pena eterna deve ser exatamente proporcionada ao número e gravidade das faltas de cada um. Assim o exige a Justiça perfeita e infinita de Deus.

Enfim, notemos que, se as penas do pecador impenitente, condenado ao inferno, tivessem fim, seria ele, e não o Senhor, que poria termo ao castigo que merecera pela sua revolta contra Deus. Poderia dizer a Deus: "Eu governo em mim, e por isso deveis só importar-vos convosco. Pouco me inquieta se o tempo, que ordenastes para o meu suplício, é longo ou breve, porque eu o desprezarei e ficarei senhor da situação.

Um dia, ou queirais ou não, irei participar da vossa glória e da eterna felicidade nos céus."

Pergunto-vos: será isto possível? Portanto, sob este ponto de vista, e independentemente das razões peremptórias que já expusemos, a Justiça e a santidade divinas requerem que os castigos dos condenados sejam necessariamente eternos.

A Bondade de Deus não tem nada com isto; no inferno reina a sua Justiça, tão infinita como a Bondade.

A Bondade de Deus exerce-se na terra, onde perdoa tudo, sempre e imediatamente apenas o homem se arrepende. Mas na eternidade não tem lugar a Bondade de Deus; lá manifesta-se unicamente coroando com os gozos do céu a sua obra concluída na terra pelo perdão.

Quereríeis, porventura, que na eternidade Deus exercesse a sua Bondade em favor dos que no mundo abusaram dela indignamente, que chegaram a desprezá-la no momento da morte, e que agora não a querem nem podem querê-la? Seria simplesmente absurdo.

Deus não pode exercer a sua Bondade com detrimento da Justiça.

Portanto, punindo com penas eternas faltas passageiras, Deus, longe de ser injusto, é justo e justíssimo.

 

Se sucede o mesmo com os pecados de fragilidade

Sem pretender desculpar além dos justos limites os pecados de fragilidade, de que mesmo os bons cristãos se tornam às vezes culpados, cumpre reconhecer que medeia um abismo entre aqueles que os cometem e aqueles que a Sagrada Escritura chama geralmente "pecadores". Estes são as almas perversas, os corações impenitentes, que praticam o mal por costume, sem remorsos e como coisa muito simples, que vivem sem Deus e em revolta permanente contra Jesus Cristo. São os pecadores propriamente ditos, pecadores os de profissão, "Pecam enquanto vivem, dizia a respeito deles S. Gregório; pecariam sempre, se pudessem viver sempre, e quereriam sempre viver para poderem sempre pecar. Apenas morrem, é claro que a Justiça do Soberano Juiz exige que não fiquem sem castigo, porque não quiseram viver sem pecar."

Não são estas as disposições dos outros. Muitas almas há que caem no pecado mortal e não são más nem corrompidas, e muito menos ímpias. Praticam o mal ocasionalmente; é a fraqueza que as faz cair, e não o amor do mal em que caem. Assemelham-se a uma criança que, arrancada dos braços de sua mãe por violência ou sedução, se deixa separar e afastar dela, mas com pesar, dirigindo-lhe um olhar e estendendo para ela os braços, e que, apenas o sedutor a deixa, volta e corre a lançar-se arrependida e alegre nos braços de sua mãe.

Tais são esses pobres pecadores que caem ocasionalmente e por fragilidade, que não amam o mal que cometem, e cuja vontade não é gangrenada, pelo menos intimamente. Caem no pecado, mas não o procuram, e arrependem-se dele apenas o cometem. Acaso estes pecados não serão mais desculpáveis? A misericórdia adorável do Senhor não concederá facilmente, sobretudo no momento decisivo da morte, grandes graças de contrição e de perdão a estes filhos pródigos, que tendo-o ofendido, não lhe voltaram as costas, e que deixando arrastar-se para longe dele, continuaram a amá-lo e desejá-lo?

Pode-se afirmar que o que Deus disse: "Não abandonarei o que vier a mim", achará sempre no seu divino Coração segredos de graças e de misericórdias suficientes para arrancar estas pobres almas à condenação eterna.

Mas, digamo-lo bem alto: isto é um segredo do Coração de Jesus, um segredo impenetrável às criaturas, e com o qual não devemos contar, porque deixa subsistir integralmente esta terrível doutrina, que é de fé, a saber: que todo aquele que morre em estado de pecado mortal, é condenado eternamente e lançado no inferno para sofrer o castigo que merecem as suas culpas.

Todos os que forem para o inferno terão merecido ir para ele eternamente. Por mais terríveis que possam ser as suas penas, serão absolutamente proporcionadas às faltas que cometeram.

Ali não sucede o mesmo que nos tribunais, leis e juízes da terra, que podem enganar-se, errar e punir de mais ou de menos: o Juiz eterno e soberano, Nosso Senhor Jesus Cristo, sabe tudo, vê tudo e pode tudo. É mais do que justo; é a mesma Justiça, e na eternidade, como Ele mesmo no-lo declarou, "dará a cada um segundo as suas obras", nem de mais, nem de menos.

Portanto, por mais horríveis e incompreensíveis que elas sejam ao espírito humano, as penas eternas do inferno são e serão soberana e eternamente justas.

 

Quais são os que trilham o caminho do inferno?

Em primeiro lugar, sãQuais são os que trilham o caminho do inferno?o os que abusam da sua autoridade em uma posição qualquer para arrastar os seus subordinados para o mal, já por violência, já por sedução.

Aguarda os "um juízo muito rigoroso". Verdadeiros demônios da terra, é a eles que se dirigem, na pessoa de seu pai — Satanás, — estas formidáveis palavras da Escritura: "Ó Lúcifer! como caíste das alturas do céu?"

São os que abusam dos dotes do espírito para afastarem do serviço de Deus o povo ignorante e para arrancar-lhe a fé. Estes corruptores públicos são os herdeiros dos fariseus do Evangelho, e caem sob o anátema do Filho de Deus: "Desgraçados de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque fechais aos homens o reino dos céus! Como não entrareis nele, impedis os outros de lá entrarem. Desgraçados de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque percorreis a terra o o mar para fazeres um prosélito, e quando o ganhais, fazeis dele um filho do inferno, duas vezes pior do que vós!"

A esta categoria pertencem os publicistas ímpios, os professores ateus e hereges, e essa multidão de escritores sem fé nem consciência, que todos os dias mentem, caluniam, blasfemam cientemente, e de que se serve o demônio, pai da mentira, para perder muitas almas e insultar Jesus Cristo.

São os orgulhosos, que, inchados de si, desprezam os outros e os insultam desapiedadamente. Homens duros e sem coração, acharão um Juiz severo, se se não converterem no momento da morte.

São os egoístas e os maus ricos, que, engolfados no luxo e na sensualidade, não pensam senão em si e esquecem os pobres.

Acontecer-lhes-há o mesmo que ao mau rico do Evangelho, do qual Jesus disse: "Foi sepultado no inferno."

São os avarentos. que não pensam senão em amontoar dinheiro, e que se esquecem de Jesus Cristo e da eternidade. São esses ricos que, por meio de contratos usurários, de muitas injustiças, de negócios fraudulentos e com a compra dos bens da Igreja, fazem ou tem feto a sua fortuna, grande ou pequena, sobre bases que a lei de Deus reprova.

Está escrito deles: "que não possuirão o reino dos céus."

São os luxuriosos, que vivem tranquilamente e sem remorsos com os seus hábitos impudicos, que se abandonam a todas as paixões, não tem outro deus senão a sua barriga, e chegam a não conhecer outra felicidade além dos gozos animais e dos grosseiros prazeres dos sentidos.

São as almas mundanas e frívolas, que não pensam senão em divertir-se e em passar o tempo extravagantemente, e esses, aos quais o mundo chama honestos, e que se esquecem da oração, do serviço de Deus e dos sacramentos, que conduzem à salvação. Não cuidam de viver cristãmente, não pensam na sua alma: vivem em estado de pecado mortal, e tem apagada a lâmpada da sua consciência sem fazerem caso dela.

Se o Senhor vier de repente, como predisse, ouvirão a terrível resposta, que Ele no Evangelho dá às virgens loucas: "Não vos conheço." Desgraçado o homem que não estiver vestido com a roupa nupcial! O Soberano Juiz ordenará aos seus Anjos que prendam, no momento da morte, o 'servo inútil', para o lançarem, com os pés e as mãos atadas, no abismo das trevas exteriores, isto é, no inferno.

Vão para o inferno os que são de consciência falsa e obstinada, que calcam aos pés, por meio de confissões nulas e comunhões sacrílegas, o Corpo e o Sangue do Senhor, "comendo e bebendo a sua condenação", segundo as tremendas palavras de S. Paulo, Vão os que, abusando das graças de Deus, não querem deixar o mau caminho, animados com algumas devoções que tem, e pelas quais esperam ser salvos; e vão os de coração odiento, que recusam perdoar.

Vão, enfim, para o inferno os sectários da maçonaria e as vítimas insensatas das sociedades secretas, que se oferecem, por assim dizer, ao demônio, jurando viver e morrer fora da Igreja, sem sacramentos, sem Jesus Cristo, e por consequência contra Ele.

Não digo que todas estas pobres almas irão para o inferno. Afirmo só que trilham o caminho do inferno.

Felizmente, ainda lá não chegaram, e espero que, antes de terminarem a viagem, quererão converter-se com humildade, para não arderem eternamente.

Ah! quanto é largo e cômodo o caminho que conduz ao inferno! Vai sempre descendo, e basta ao homem pôr-se nele.

O Salvador mesmo disse: "O caminho que conduz à perdição é largo, e são muitos os que o percorrem."

Examinai a vossa consciência, caro leitor, e se por desgraça andes no mau caminho, nada de hesitação: saí depressa da estrada do inferno, enquanto é tempo.

 

Se podemos estar certos de que se condenou alguém que vimos morrer mal

Não. É um segredo de Deus.

Muitos há que julgam que todos vão para o inferno, assim como há muitos que creem que todos vão para o céu. Os primeiros querem mostrar-se justos, os segundos misericordiosos. Uns e outros enganam-se, é o seu primeiro erro é quererem julgar de coisas que o homem neste mundo não pode conhecer.

Vendo-se morrer mal alguém, deve-se sem dúvida tremer, mas não dissimular a espantosa probabilidade duma reprovação eterna.

Em Paris, há anos, uma infeliz mãe, ao saber da morte repentina do filho em horríveis circunstâncias, esteve durante dois dias de joelhos, arrastando se duma para outra parte, soltando gritos desesperadores e repetindo sempre: "Meu filho! meu pobre filho!... no fogo!... a arder, a arder eternamente!" Todos se horrorizavam ao vê-la e ouvi-la.

Ainda que possa ser provável e até certa a perda eterna de alguém, deve, contudo, haver alguma esperança, sendo impenetrável o mistério do que se passou no momento supremo entre a alma e Deus.

Quem poderá dizer o que se passa no íntimo das almas, mesmo das mais culpadas, naquele momento decisivo em que o Deus de bondade, que criou todas as almas para o amor, que as remiu com o seu sangue e que deseja a salvação de todas, emprega todos os recursos de graça e de misericórdia para salvar cada uma delas?

Basta pouco tempo para que a vontade se possa voltar para o seu Deus!

A Igreja não tolera que se pronuncie como certa a condenação de alguém. Com efeito, é usurpar o lugar de Deus.

Exceto Judas e mais alguns outros, cuja condenação foi mais ou menos explicitamente revelada por Deus na Sagrada Escritura, não é absolutamente certa a condenação de pessoa alguma.

A Santa Sé deu disto uma prova curiosa, ainda não há muito tempo, por ocasião do processo de beatificação de um grande servo de Deus, o P. Palotta, que viveu e morreu em Roma com os sentimentos duma admirável santidade, durante o Pontificado de Gregorio XVI.

Um dia o padre acompanhou ao cadafalso um assassino muito mau, que recusava obstinadamente arrepender se, zombava de Deus, blasfemava e ria-se ainda no lugar da execução. O P. Palotta esgotou todos os meios de conversão. Estava sobre o cadafalso, junto deste miserável; lançou-se a seus pés, com o rosto banhado de lágrimas, e suplicou-lhe que aceitasse o perdão de seus crimes, mostrando-lhe o abismo ardente do inferno, em que ia cair. A tudo isto o monstro respondeu com um insulto e com a última blasfêmia, e imediatamente a sua cabeça caiu sob o fatal cutelo. Na exaltação da sua fé, por um excesso de dor e de indignação, e para que este horrível escândalo se mudasse para os que estavam presentes em uma lição salutar, o bom padre levantou-se, agarrou pelos cabelos a cabeça ensanguentada do supliciado, e, mostrando-a à multidão, exclamou em voz alta: "Silêncio! vede! eis a cabeça de um réprobo!"

Todos compreenderam este movimento de fé, e de certo modo ele é assás admirável. Mas por causa disto, dizem, foi preciso parar com o processo de beatificação do venerável P. Palotta; no que bem se vê que a Igreja é Mãe de misericórdia e que espera, mesmo não havendo nenhuma esperança, quando se trata da salvação eterna de uma alma!

Deste modo, os verdadeiros cristãos não devem desesperar ou afligir-se á vista de certas mortes horríveis, repentinas e imprevistas, ou mesmo positivamente más. Julgando pela aparência, é quase certo que estas pobres almas se perderam. Há tantos anos que este velho vivia longe dos sacramentos, zombava da religião e se vangloriava de ser incrédulo! Este infeliz mancebo, que morreu sem poder confessar-se, vivia tão mal e os seus costumes eram tão deploráveis! Este homem, esta mulher, que foram surpreendidos pela morte numa ocasião tão desgraçada, parece certo que não tiveram tempo para pensar em si! Não importa: não devemos nem podemos dizer de uma maneira absoluta que eles se condenaram. Sem menoscabar os direitos da Santidade e da Justiça de Deus, não percamos jamais de vista os da sua misericórdia.

A este respeito, recordo-me de um fato extraordinário e ao mesmo tempo muito consolador. A fonte de onde o soube é para mim garantia segura da sua perfeita autenticidade.

Sua mãe era uma verdadeira judia, seguia a sua religião de boa fé, e praticava também todas as virtudes de uma boa mãe de família. Amava sua filha com grande carinho.

Quando soube que sua filha se convertera, entrou em um furor indescritível, e desde então não deixou de empregar ameaças e astúcias de todo o gênero para conduzir a "apóstata", como ela a chamava, à religião do seus pais. Ao mesmo tempo a jovem cristã, cheia de fé e de fervor, orava sem cessar e fazia tudo para obter a conversão de sua mãe.

Vendo a esterilidade absoluta de seus esforços, e julgando que um grande sacrifício obteria, mais do que todas as orações, a graça que solicitava, resolveu entregar-se inteiramente a Jesus fazendo-se religiosa, o que executou corajosamente. Tinha então pouco mais ou menos vinte e cinco anos.

A infeliz mãe ficou com isto ainda mais irritada contra sua filha e contra a religião cristã, o que fazia aumentar o ardor da nova religiosa, a fim de conquistar para Deus uma alma tão querida.

Continuou assim durante vinte anos. Sua mãe ia vê-la de tempos a tempos; o afeto materno tinha aumentado, mas a sua alma, pelo menos aparentemente, não melhorava.

Certo dia a pobre religiosa recebeu uma carta participando lhe que sua mãe morrera de repente: acharam-a morta na cama.

É impossível descrever o desespero da religiosa. No auge da dor, e não sabendo o que fazia nem o que dizia, foi com a carta na mão prostrar-se ante o Santíssimo Sacramento, e, quando os soluços a deixaram pensar e falar, disse, ou antes exclamou, a Nosso Senhor: "Meu Deus! foi assim que atendestes as minhas súplicas, as minhas lágrimas e tudo o que pratiquei durante vinte anos?" E enumerando-lhe, por assim dizer, os seus muitos sacrifícios, acrescentou, com uma aflição inexprimível: "Pensar que, não obstante tudo isto, minha mãe, a minha pobre mãe se condenou!"

Ainda não tinha acabado, quando uma voz, saída do Tabernáculo, lhe disse em tom severo: "Como sabes isso?" Espantada, a pobre Irmã não pôde responder. "Pois sabe, continuou o Salvador, sabe, para te confundir e ao mesmo tempo para te consolar, que por tua causa dei a tua mãe no momento da morte, uma graça tão poderosa de luz e de arrependimento, que as suas últimas palavras foram: "Eu me arrependo e morro na religião de minha filha." Tua mãe salvou-se, e está no Purgatório. Não deixes de orar por ela."

Ouvi contar outro fato análogo, cuja autenticidade é tão certa como a do primeiro. Ambos testemunham esta grande e consoladora verdade, a saber: que neste mundo a misericórdia de Deus é superabundante; que no momento final faz um esforço supremo para arrancar os pecadores ao inferno; e, finalmente, que só caem nas mãos da eterna Justiça aqueles que resistem até ao fim aos impulsos da divina Misericórdia.

 

Conclusões práticas

Sair imediatamente e a todo o custo, do estado de pecado mortal

Certamente é bom, e muito bom, ter uma confiança ilimitada na Misericórdia de Deus; mas, à luz da verdadeira fé, a esperança não deve estar separada do temor, e se a esperança deve sempre dominar o temor, é com a condição de que o temor subsista, assim como os alicerces de uma casa, que dão a todo o edifício a sua força e solidez. Assim o temor da Justiça de Deus, o temor do pecado e do inferno, deve afastar do edifício espiritual da nossa salvação qualquer vã presunção. Deus disse: "Não abandonarei o que vier a mim."

Mas também disse: "Trabalhai na vossa salvação com temor e tremor." É preciso santamente temer, para ter o direito de esperar santamente.

À vista dos abismos ardentes e eternos do inferno, examinai a vossa consciência, caro leitor, mas examinai-a bem e seriamente.

Como estais? Viveis em estado de graça? Ou a vossa consciência acusa-vos de algum pecado grave, que, se morrêsseis de repente, vos sepultaria na eternidade infeliz?

Neste caso peço-vos que, atendendo à vossa alma, não hesiteis em arrepender-vos de todo o coração, e em confessar-vos hoje mesmo, ou ao menos na primeira ocasião que tiverdes. Acaso é necessário dizer-vos que, para evitardes o inferno, deveis desprezar qualquer interesse, e antes de tudo, atendei bem, antes de tudo assegurar a vossa salvação? "Que aproveitará ao homem possuir o mundo inteiro, se depois vier a perder a sua alma? diz-nos a todos o Soberano Juiz; e que poderá dar em troca da sua alma?"

Não deixeis para amanhã o que hoje podeis fazer. Estais certo de que chegareis ao dia de amanhã?

Conheci numa pequena aldeia da Normandia um pobre homem, que desde o seu casamento, isto é, havia mais de trinta anos, se tinha deixado arrastar por ocupações, e pelo seu pequeno comércio, e ainda mais, cumpre dizê-lo, pelo atrativo da taberna e do copázio de cidra, que chegou a esquecer-se totalmente do serviço de Deus. Não era de má índole, e estava bem longe de o ser. Dois ou três meios assaltos tinham-o amedrontado, mas infelizmente não bastaram para o conduzir ao cumprimento dos seus deveres.

Aproximava-se a festa da Páscoa.

Uma tarde encontrou-se com o abade, o qual o exortou a cumprir o preceito quaresmal. "Senhor abade, respondeu o pobre homem, agradeço a vossa bondade.

Prometo-vos, palavra de honra, que pensarei no que acabais de dizer-me, Se isto não vos causa nenhum desarranjo, eu virei falar convosco daqui a alguns dias."

No dia seguinte foi achado o corpo deste homem em um ribeiro vizinho. Ao atravessá-lo a cavalo, foi atacado de uma apoplexia e caiu na água.

Há dois anos, no bairro Latino, um estudante de vinte e três anos, que desde a sua chegada a Paris, havia quatro anos, se tinha entregado á luxúria com todo o vigor da juventude, recebeu um dia a visita de um de seus companheiros, tão bom e tão puro, quanto ele o era pelo contrário. Era um compatriota, que ia dar-lhe novas da pátria. Depois de alguns minutos de conversação retirou-se; mas, ao ver que tinha deixado um livro em casa do seu companheiro, voltou para traz e bateu à porta.

Havia um quarto de hora que o companheiro o tinha deixado. Segundo depois se viu, uma aneurisma rompeu-lhe o coração.

Encontrou-se a sua papeleira cheia de cartas abomináveis, e os poucos livros que compunham a sua pequena biblioteca, eram o que havia de mais obsceno,

Poder-se-ia multiplicar os exemplos deste gênero, sem contar os milhares de acidentes que quotidianamente, por assim dizer, fazem passar repentinamente da vida à morte; por exemplo: os acidentes de caminho de ferro e de carruagem, as quedas de cavalo, os acidentes da caça e do mar, os naufrágios, etc.

Eles mostram, com mais eloquência do que todos os raciocínios, que o homem deve sempre estar preparado para comparecer diante de Deus, e por isso não deve pôr em risco a sua eternidade; e que aquele, que vive em estado de pecado mortal e não pensa em reconciliar-se com Deus por meio da confissão e pelo arrependimento, é um louco que dança à beira do abismo, é três vezes louco.

"Não compreendo, dizia S. Tomás, como um homem em estado de pecado mortal é capaz de rir e de folgar." Expõe-se, com a alegria no coração, a experimentar, mau grado seu, a altura destas tremendas palavras do Apostolo S. Paulo: "É horrível cair vivo nas mãos de Deus!"

 

Evitar cuidadosamente as ocasiões perigosas e as ilusões

O homem deve, não só retirar-se do estado de pecado mortal, quando tiver a desgraça de cair nele, mas também deve encher-se de zêlo pela sua salvação eterna e tomar precauções mais sérias. Além de sair a toda a pressa do caminho do inferno, é preciso que se esforce por não tornar a trilhá-lo. Deve, a todo o custo, evitar as ocasiões do pecado, sobretudo aquelas cujo perigo lhe é manifesto.

Um cristão, um homem que tem senso comum sacrifica tudo, afronta tudo e suporta tudo para escapar ao fogo do inferno. Deus disse: "Se a vossa mão direita, se o vosso pé, se o vosso olho, se o que tendes de mais caro no mundo é para vós uma ocasião de pecado, arrancai-o e atirai-o para longe de vós sem hesitar; vale mais entrar, sob qualquer condição, no reino de Deus e na vida eterna, do que ser lançado no abismo de fogo, no fogo eterno, onde os remorsos não acabam nem o fogo se extingue."

Não nos iludamos a este respeito. As ilusões são o "movimento de rodeio" pelo qual o inimigo da nossa pobre alma procura surpreendê-la, quando um ataque de frente não lhe oferece garantias suficientes. Quanto estas ilusões são pérfidas, sutis, múltiplas e frequentes!

Formam-se de tudo, mas particularmente do egoismo, com os seus frios cálculos e requintes; de toda a sorte de rebeliões do espírito contra a fé, contra a completa submissão devida à autoridade da Santa Sé e da Igreja; das pretendidas necessidades de saúde ou de costume, que fazem escorregar insensivelmente na lama da impureza; dos usos e conveniências do mundo no meio do qual se vive, e que arrastam tão facilmente para o turbilhão do prazer, da vaidade, do esquecimento de Deus e da negligência da vida cristã; enfim, da cegueira da cobiça, que impele tanta gente a roubar sob o pretexto de necessidades de comércio, de costume geral nos negócios, de sábia previdência para o futuro dos seus, etc.

A vida religiosa não basta para preservar-nos das ilusões. Sabe-se que no inferno há religiosos, espero qne sejam poucos, mas há-os. E como chegaram lá? Pelo caminho fatal das ilusões. Ilusões na obediência, ilusões na piedade, ilusões na pobreza, na castidade, na mortificação, ilusões no uso da ciência; que digo? É tão largo o caminho das ilusões!

— Citarei, a este respeito, apenas um exemplo, tirado da vida de S. Francisco de Assis.

Entre os Provinciais da Ordem nascente dos Frades Menores havia um de nome Fr. João de Strachia, cuja paixão para a ciência ameaçava afastar os seus religiosos da simplicidade e da santidade de sua vocação. S. Francisco advertiu-o várias vezes, mas sempre em vão. Temendo justamente a funesta influência que exercia este Provincial, S. Francisco depô-lo em pleno Capitólio, declarando que Nosso Senhor lhe havia revelado que era preciso tratá-lo com rigor, porque o orgulho deste homem atraíra sobre ele a maldição divina.

Bem depressa o futuro o mostrou. O desgraçado morreu no meio do mais horrível desespero e gritando: "Estou condenado e maldito para sempre!" Terríveis circunstâncias, que acompanharam a sua morte confirmaram esta sentença.

 

Assegurar a sua salvação eterna com uma vida seriamente cristã

Quereis estar ainda mais seguro de evitardes o inferno, meu caro leitor? Não vos contenteis com evitar o pecado mortal, combater os vícios e as faltas que vos conduzem a ele: deveis também ter uma boa e santa vida, verdadeiramente cristã e ocupada em Jesus Cristo.

Deveis fazer como as pessoas prudentes que tem de passar por caminhos difíceis ou de costear precipícios: com medo de caírem, acautelam-se de andar pela beira, onde um passo em falso seria fatal; caminham pelo outro lado da estrada, e afastam-se o mais possível do precipício.

Fazei o mesmo. Abraçai generosamente esta vida bela e nobre, que se chama vida cristã, vida de piedade.

Guiado pelos conselhos de algum padre zeloso, sujeitai-vos a uma regra de vida, na qual entrareis à medida das necessidades da vossa alma e das circunstâncias exteriores em que vos achardes, e determinai fazer sempre alguns bons e sólidos exercícios de piedade, entre os quais vos recomendo os seguintes, que estão ao alcance de toda a gente:

Começai e terminai sempre o dia com alguma oração bem feita e cordial. Além disto, lêde de manhã e à noite, com atenção, uma ou duas páginas de algum bom livro, e depois desta pequena leitura deveis ter alguns minutos de recolhimento e fazer algum bom propósito, de manhã para o dia, ao fim do dia para a noite, tendo sempre diante de vós o pensamento da morte e da eternidade.

Se os deveres do vosso estado vos permitirem, ide à missa todas as manhãs, para receberdes a benção por excelência e renderdes a Nosso Senhor a homenagem que cada um de nós lhe deve pelo seu grande Sacramento. Se não puderdes, fazei ao menos todos os dias uma adoração ao Santíssimo Sacramento, ou entrando na igreja, ou estando em vossa casa, mas que parta do intimo do coração.

Rendei igualmente todos os dias à Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus e dos cristãos, alguma homenagem de piedade, de amor e de veneração, com afeto verdadeiramente filial. O amor à Santissima Virgem, junto ao amor do Santíssimo Sacramento, é um penhor quase infalível da salvação; e a experiência tem mostrado em todos os séculos que Nosso Senhor Jesus Cristo concede graças extraordinárias, durante a vida e no momento da morte, aos que invocam e amam sua Mãe. Trazei sempre convosco um escapulário, alguma medalha ou um rosário.

Tomai e não abandoneis o excelente costume de vos confessardes e comungardes muitas vezes. A confissão e a comunhão são os dois grandes meios oferecidos pela Misericórdia de Jesus Cristo aos que querem salvar e santificar as suas almas, evitar as faltas graves e crescer no amor do bem e na prática das virtudes cristãs, A este respeito não se pode dar uma regra geral, mas o que se pode afirmar é que os bons de boa vontade, isto é, os que querem sinceramente evitar o mal, servir o Bom Deus e amá-LO de todo o coração, são tanto melhores, quanto comungam mais frequentemente. Quando a esta disposição, prefere-se sempre o mais, e, embora se comungasse várias vezes por semana, e até todos os dias, não se estaria ainda satisfeito.

Seria muito bom que os cristãos virtuosos pudessem santificar com uma boa comunhão todos os domingos e dias santos, sem faltarem a ela por culpa sua. O célebre Catecismo do Concílio de Trento parece dizer que o cristão, que tem algum cuidado da sua alma, deve avizinhar-se dos Sacramentos ao menos todos os meses.

Enfim, proponde na vossa regra de vida combater incessantemente dois ou três defeitos que notardes em vós, ou que os outros vos notaram.

É o lado fraco da praça, e é por ele que o inimigo, em um ou em outro momento, tentará surpresas e vos atacará. Evitai, como o fogo, as más companhias e as leituras pecaminosas.

Portanto, não deixeis de tomar destes conselhos os que poderdes seguir, vivei o melhor possível, e por amor da vossa alma e do Salvador, que derramou todo o seu Sangue por ela, não recueis diante do dever, e sêde cristão fervoroso.

Pensai muitas vezes e seriamente no inferno, nas suas penas eternas, no fogo devorador, e prometo-vos que ireis para o céu. O grande missionário do céu é o inferno.

Certo padre virtuoso, que há mais de quarenta anos prega em toda a França com zelo apostólico, fazendo numerosas missões, esteve em Roma e foi um dia prostrar-se aos pés do imortal Pontífice Pio IX, que conversou familiarmente com ele acerca do seu belo ministério. "Pregai muitas vezes as grandes verdades da salvação, disse-lhe o Papa; pregai sobretudo o inferno. Nada de moderação; dizei claramente e bem alto toda a verdade acerca do inferno. Não há coisa melhor para fazer refletir e conduzir a Deus os pobres pecadores."

Foi lembrando-me destas palavras tão verdadeiras do Vigário de Jesus Cristo, que empreendi este pequeno trabalho sobre o inferno. Depois, meditando as penas eternas e a desgraça dos condenados, lembrei-me destas palavras de S. Jerônimo, ao excitar uma virgem cristã ao temor dos juízos de Deus: "Territus terreo (aterrado aterro)." Esforcei-me por desempenhar bem este trabalho, e Nosso Senhor é testemunha de que não ocultei nada do que sei sobre este terrível mistério.

À vós, caro leitor, qualquer que sejais, pertence aproveitar-vos. Quantas almas estão no céu, que para lá se encaminharam com o temor do inferno!

Ofereço-vos pois, este modesto livro, pedindo ao Bom Deus que faça penetrar no íntimo da vossa alma as grandes verdades que ele encerra, afim de que o temor vos excite ao amor, e o amor vos conduza direito ao paraíso.

Peço-vos que oreis por mim, para que o Bom Deus use comigo de misericórdia e se digne admitir-mo no número dos seus escolhidos.

FIM