Aos que sofrem: Consolações

espiritualidade

Porque sofremos? Monsenhhor de Ségur nos explica.

AOS QUE SOFREM: CONSOLAÇÕES

 

POR
MONSENHOR DE SÉGUR

 

RIO DE JANEIRO LIVRARIA DE B. L. GARNIER, EDITOR

1877

I
COMO NÃO FOI DEUS QUE FEZ O SOFRIMENTO

Deus, infinitamente bom, criou o homem para a felicidade e quer que ele seja feliz na terra e na eternidade. Porque motivo, pois, sofremos tanto neste mundo? A religião cristã, e só ela, da-nos a chave desse mistério.
Enquanto era inocente, o homem não conheceu o travor do sofrimento: era plenamente feliz no paraíso terrestre. De fato, o sofrimento é apenas consequência do pecado; o homem sofre porque tornou-se pecador. Como a sombra acompanha o corpo, assim o sofrimento acompanha o pecado.
Nem sempre o acompanha imediatamente; às vezes até parece ser-lhe remitido neste mundo; porém, cedo ou tarde virá, e tanto mais terrível, quanto mais retardado.
O sofrimento entrou no mundo pela porta do pecado e aí permanecerá enquanto este reinar, a saber, até o juízo final.
Cumpre compreender isto uma vez por todas e não atribuir a Deus o que d'Ele não procede.
Deus não é o autor do sofrimento, das desgraças, das lágrimas, assim como não é o autor do pecado.

Foi o homem, o próprio pecador que se reduziu a tão triste condição.
E é porque descendemos do homem pecador, do homem decaído, que jazemos no estado de miséria e de decadência em que ele se despenhou, Somos qual prole de rei destronizado, nascida no exílio; quais filhos de nobre empobrecido, que nascem pobres como seu pai.
Em suma, somos condenados neste mundo ao sofrimento porque somos pecadores.
Assim, pois, quando sofrermos, não nos queixemos de Deus: imputemos o sofrimento só ao pecado; aos maus, que são homens de pecado; ao demônio, instigador do pecado; emfim, a nós mesmos que o cometemos.

II
DE COMO, TODAVIA, SOB CERTO ASPECTO O SOFRIMENTO VEM DE DEUS

Num hospital de Paris, estavam um dia prostrados no leito de dores pela enfermidade, um ao lado do outro, dois homens quase da mesma idade.
Era um deles um pobre insensato, durante muitos anos divorciado de Deus pelos prazeres e pela leviandade; vivera, como vulgarmente se diz, "à rédea solta", e a moléstia de peito que o consumia, provinha, segundo todas as aparências, de seus desregramentos. O outro, também doente do peito, vivera pelo contrário desde a infância uma vida admiravelmente pura: depois da sua primeira comunhão, nunca mais deixou de comungar aos Domingos; na idade de quatorze ou quinze anos, seu fervor, que aumentava a olhos vistos, o aproximara ainda mais frequentemente da mesa eucarística. Era puro como um anjo, e, durante os sofrimentos, nunca seus lábios proferiram uma queixa sequer.
O capelão e a enfermeira tratavam ambos os doentes com igual dedicação. Por tal modo se houveram que, o primeiro, em vez de blasfemar e de impacientar-se, por causa de cruciantes dores, renovou as práticas da infância, reconciliou-se com Deus, e passou as últimas semanas da vida com sentimentos de penitência, que profundamente impressionaram todos os seus companheiros de enfermaria. "Sofro bastante, dizia; mas, tanto melhor: mais penitência farei."
O segundo, santificado cada vez mais pela desgraças, inspirava admiração a quantos o viam, sempre sereno e sorrindo, até o momento de expirar agradecia a Deus a graça de o ter amado tanto.
Faleceram ambos no mesmo dia; e para ambos o sofrimento, pungente e terrível, fôra evidentemente um assinalado benefício do Senhor.
Com efeito, Deus, que não fez o sofrimento, serve-se dele para salvar-nos. Do mal tira o bem.
Para reconciliar-nos consigo, até certo ponto contra a nossa vontade, Ele utiliza-se dos nossos sofrimentos. A quantos, inteiramente descuidados do serviço de Deus, os desgostos, as enfermidades, a dor reconduziram ao caminho do bem. Quantos eleitos de Deus estariam no inferno, se não tivessem sofrido neste mundo! E quantos réprobos se teriam salvado, se tivessem tido a dita de sofrer durante a vida! Eis como o sofrimento é assinalada graça, que, como todas as graças, provem de Deus.
O sofrimento vem ainda de Deus, por isso que é justo.
A justiça é de si excelente, posto que temerosa; e ter os sofrimentos na conta de justa e mais que justa punição do pecado supõe bastante fé e elevação de ânimo. "Graças, graças, meu Deus! exclamava entre suplícios um pobre apóstata da Coréia, que tivera a felicidade de reconhecer sua culpa e de recuperar a fé; graças vos sejam dadas! Assim mesmo! É justo! É justo que o pecador sofra em expiação." Posto que de si seja um mal, o sofrimento vem de Deus, como expiação e legítima punição que é.
Finalmente, o sofrimento vem de Deus sob outro aspecto ainda, a saber: Deus por meio dele põe à prova a fidelidade de seus servos e acentua-lhes os méritos e a eterna felicidade. Não há coisa que mais desapego produza das vaidades do mundo do que o sofrimento; nem que mais diretamente atire as almas nos braços de Deus. Raríssimo é que alguém se santifique muito sem muito sofrer; e é tão alta a influição santificadora do sofrimento, que a maior parte das vezes a santidade do cristão está na razão direta de seus sofrimentos.
Do exposto ressalta, de que modo a bondade divina nos submete à provação do sofrimento, e ainda a razão por que, tão somente movido de misericórdia, Nosso Senhor consente que seus filhos mais diletos sejam os mais atribulados.
E, pois, querido leitor, importa não repetir essa queixa, em verdade desarrazoada, que o sofrimento faz acudir aos lábios dos que sofrem: "Que fiz a Deus para merecer-lhe tanto mal?" O que lhe fizestes? Esqueceis então essa longa serie de pecados, de pecados mortais, que, pode-se dizer, constituem o vosso passado inteiro? A tal ponto se ofuscou a luz da fé, que nem mais chega para mostrar-vos essa montanha de culpas?
O que fizestes a Deus? Mas o que lhe tinham feito Nosso Senhor, a Santa Virgem, os mártires e todos os santos, que tanto sofreram? Seus sofrimentos não eram castigo, como os dos pecadores, senão provação; e o preço da vitória em semelhante prova foi a corda da eterna glória no céu. Quem quer que sejais, justo ou pecador, não é de razão façais tão desanimadora pergunta. Se sois pecador, contemplai o fogo eterno do Inferno, os ardentes abismos do Purgatório; considerai as horríveis expiações da Paixão e do Calvário; e em vez de murmurar, batei no peito humilde e silenciosamente. Se inocente e justo, atentai no paraíso com a eternidade de sua inefável bem-aventurança; atentai na glória dos santos penitentes e mártires; enfim, atentai no inocentíssimo Jesus, crucificado e morrendo por vós.
Atentai em tudo isso; e cheio o coração de esperanças e de amor, em vez de queixas, bendizei antes a Deus.
No céu ficará patente a traça misteriosa pela qual o Senhor misericordiosíssimo aproveitou o sofrimento para o vosso bem verdadeiro, e de que modo a dor era uma assistência divina.

III
DE COMO É O DEMÔNIO O AUTOR RESPONSÁVEL DE NOSSOS SOFRIMENTOS

O homem pecou por instigação do demônio: era justo que fosse punido; e Deus o puniu abandonando-o, até certo ponto, ao poder do demônio.
Se não fôra alongar-nos, caberia neste ponto explicar por miúde, como todo o mal que existe no mundo, todas as desordens perturbadoras da natureza, todas e quaisquer destruições, resultam da maldita influência desse grande espírito, criado por Deus para ser como que administrador de todo o mundo material. Tais desordens e destruições não podem provir de Deus, que é a ordem infinita; tão pouco provêm dos anjos, que são ministros de paz, de ordem e de vida; não procedem dos elementos materiais, de si destituídos de poderes e movimento: logo vêm dessa força secreta e detestável chamada o demônio, que, posto não possa destruí-la, perturba a bela harmonia da natureza.
Assim é que, por mais de mil maneiras, que os sábios chamam causas secundárias, o autor do mal a espaços conturba a atmosfera e nela produz os temporais, as tempestades, o granizo, o raio e quantas assolações os acompanham.
É assim que, para fazer mal ao homem e às mais criaturas de Deus, ele empeçonha esta e aquela planta, este e aquele suco, e empresta o seu furor a alguns animais.
É também assim que, com permissão divina, ele suscita no ar e na água animálculos microscópicos, que difundem sobre a terra as horríveis epidemias, essas tão assoladoras enfermidades contagiosas; a peste, o cólera, a varíola, todas as variedades de febres, etc.
A medicina e a ciência reconhecem os efeitos dessas enfermidades; combatem e por vezes cerceiam-lhes os estragos, mediante remédios, nos quais é latente o influxo benéfico e misericordioso de Deus e dos anjos; mas só a fé descortina a causa invisível de todos esses males, e divulga o inimigo de Deus e dos homens, o pai do mal, o horrível demônio, que está escondido como malfeitor que é. É a fonte de que dimanam todos os males que sofremos.
Mais do que ninguém; aquele que deve vergar ao peso de nossa indignação, quando nos vemos a braços com a perversidade e com as ruins paixões dos homens, é ele tão somente, que os incita ao pecado.
A inveja, a ira, a impiedade que mataram Abel, foi ele que as suscitou no coração de Caim; desta modo fez, primeiro que todos, correr o sangue do homem e espremeu-lhe as primeiras lágrimas. Foi, é e será até o fim o instigador de todos os crimes, de todas os rebeldias, de todas as cruezas, de todos os erros, de todas as infâmias do gênero humano. Todo o pecado, toda a desordem o tem por fundamento. Por isso a Igreja, em sua linguagem enérgica e profunda, o cognomina doutor dos hereges, mestre dos impudicos, pai dos mentirosos, príncipe do mal.
E sua astúcia, que poucas vezes falha, consiste em se esconder sempre e em persuadir a suas desditosas vítimas, que vêm de Deus os males que sofrem. Daqui procede a blasfêmia, extraordinário e abominável mistério, pelo qual o homem, quando a si próprio faz mal ou quando lho fazem, clama e se irrita contra Deus, ameaça-o e maldiz seu santo nome. O blasfemador que maldiz a Deus assemelha-se ao indivíduo que, ameaçado por um assassino e defendido por um amigo, confundisse um com o outro, e, deixando intato o assassino, arremetesse contra o amigo e o matasse.
O demônio é, pois, o autor secreto e universal do mal, e portanto do sofrimento. Todos e quaisquer males, vem direta ou indiretamente dele; assim como todos e quaisquer bens direta ou indiretamente vêm de Deus. E assim como Deus distribui a vida a todas as criaturas pelo ministério de seus anjos fiéis, assim também Satanás, o maior dos anjos rebelados, difunde na criação a rebeldia, a desordem e o mal, coadjuvado por todos os outros anjos maus, que o acompanharam em sua rebeldia. Essa inta invisível, que em nós tão dolorosamente repercute, só com o mundo acabará, porque a fidelidade ou infidelidade  dos anjos não lhes pode torcer a vocação, que consiste em administrar ou governar os elementos da matéria. De fato, não é à míngua de poder ou de bondade que o Senhor tolera o influxo maléfico dos demônios através dos séculos; sua soberana sabedoria assim o requer, porque não pode a criatura mudar à seu talante os planos do criador.
Muitos veem as coisas por um prisma falso só porque ignoram isso. Conheci uma senhora, bastante piedosa de muitas virtudes até então, que, não tendo podido livrar uma filha de terrível enfermidade, perdeu, pode-se assim dizer, a fé, acreditou que Deus era mau e surdo a seus rogos, deixou de servi--o e passou o resto da vida em sombrio desespero, Infeliz! Se ela soubesse, ou antes, se tivesse querido saber!
O mesmo sucedeu a um excelente pai de família, bretão, cristão praticante, que, tendo perdido consecutivamente a mulher e um filho, tão cegamente pôs à conta de Deus sua desgraça, que, há já vinte anos, divorciou-se da oração e de qualquer exercício religioso; nem mais vai à Igreja.
Durante o cerco de Mans pelos prussianos, declarava uma senhora que, se estes penetrassem na cidade, nunca mais rezaria nem iria à missa. "Se, dizia a infeliz desvairada, eles entrarem, será sinal evidente de que o céu nos abandonou. E então para que invocar mais a Deus?"
Cumpre que estejamos precatados: contra as ilusões, e que nunca imputemos a Deus, extremamente bom, o que é feitura do demônio e dos instrumentos dele.

IV
DE COMO, NO MISTÉRIO DO SOFRIMENTO, SERVE-SE DEUS DO DEMÔNIO PARA NOS PROVAR E SANTIFICAR

Ainda que o demônio, primeiro autor de todos os nossos sofrimentos, conserve, como ficou dito, até o fim dos tempos, certo poder sobre as criaturas, nem por isso deixa ele de ser miserável escravo, de que Deus serve-se para realização de seus adoráveis desígnios. Uma das mais lindas páginas da Sagrada Escritura mui frisantemente comprova isto.
Contemporâneo de Moisés, vivia no Oriente um homem simples e reto, que temia a Deus e evitava o mal. Chamava-se Jó. Todas as prosperidades do mundo lhe sorriam; sua família, numerosa e unida, constava de sete filhos e de três filhas, rebanhos e servos tinha-os sem conta. A vida se lhe deslizava tão fausta e suntuosa como cheia de santidade.
Em ação de graças pelos benefícios recebidos, e como expiação dos pecados que ele e seus filhos pudessem ter cometido, Jó oferecia todos os dias um sacrifício ao Senhor.
"— Viste meu servo Jó? disse um dia o Senhor ao demônio. Não há quem com ele emparelhe; é simples e puro, honra a Deus e detesta o mal.“
“— Não admira, replicou o demônio: até hoje tudo lhe vem a contento e não vos cansais de o acogular de venturas. Tentai diminuir-lhe os haveres, e vereis se ele continua a bendizer-vos.”
“— Pois bem, disse o Senhor; dou-te poder sobre tudo quanto ele possui; somente respeita sua pessoa."
Ora, os filhos e as filhas de Jó jantavam todos reunidos em casa do primogênito; e os rebanhos do patriarca tranquilamente pastavam nas campinas circunvizinhas.
De súbito, chega um servo e diz a Jó:
"Vossos rebanhos de bois, de camelos e de jumentas acabam de ser roubados pelos sabélios e pelos caldeus, que mataram todos os vossos servos.
Eu só escapei, para vir dar-vos a notícia."
Este ainda falava, quando outro servo se apresenta:
"Senhor, exclama, o raio fulminou todas as vossas ovelhas e aqueles que as apascentavam. Fui eu o único excetuado, para vir dar-vos a noticia."
Mal este acabava de falar, terceiro acode e diz a Jó:
"Enquanto todos os vossos filhos estavam reunidos em casa de seu irmão mais velho, levantou-se do lado do deserto uma tromba de vento, que derrubou a casa e deixou vossos filhos e vossos servos esmagados sob as ruínas. Eu só consegui escapar, para vir dar-vos a notícia."
Eis aí o demônio, como atrás já ficou dito, servindo-se dos elementos da natureza, da perversidade humana, para fazer mal, para destruir e assolar. Os maus, sejam quais forem, são cooperadores culpados ou cegos instrumentos de Satanás. Para quem só vê as coisas pela rama, há aqui apenas um assalto e salteadores, uma tormenta, o fogo do céu, uma dessas trombas de vento e de areia, que ainda hoje assola os desertos da África e da Arábia. Para quem penetra o âmago, há o influxo do demônio.
Queria o demônio que Jó blasfemasse; mas esse grande servo de Deus é homem de fé e de esperança. A violência da dor não lhe rouba a calma. Prostra-se com a face por terra, adora a Deus; submete-se humildemente à vontade divina. "Nu saí do seio de minha mãe, exclama; nu nele entrarei.
O Senhor deu, o Senhor tirou. Bendito seja seu santo nome!"
Veja-se como a fé de Jó claramente destaca a mão de Deus sob o influxo maléfico do demônio e das criaturas, e com que fidelidade beija ele a mão que o fere. Sabe, vê que é mão paterna, que só envia o sofrimento a seus filhos para acrisolá-los.
Derrotado no primeiro assalto, o demônio não se dá por vencido, Insiste:
"— Estendei sobre ele vossa mão, disse ao Senhor; acalcanhai-lhe o corpo, e veremos se não chegará a amaldiçoar-vos.
"— Pois bem, eu to entrego, respondeu o Senhor; mas proíbo-te que atentes contra sua vida."
E para logo o inditoso Jó tem o corpo coberto de úlceras; da cabeça aos pés era uma chaga viva.
Baldo de socorros, chegou ao extremo de ir deitar-se sobre imundíssimo muladar. Os amigos abandonaram-no; e até a própria mulher, atirando-lhe chufas, se foi para longe, dizendo:
"— Maldiz a Deus e morre!" Mas ele, fiel sempre, respondeu com brandura: "Das mãos de Deus recebemos benefícios e prosperidades; porque motivo não aceitaremos também os males?" E sua fé profunda, sua paciência e resignação cheia de esperança conservaram-se inabaláveis.
Acrescenta a Escritura Sagrada, que a provação durou dilatados anos, e que afinal o Senhor recompensou pelo cêntuplo a fidelidade de seu servo, cumulando-o novamente, e até o fim da vida, com todas as qualidades de benefícios.
Quando sofrermos, no corpo, no coração ou na fortuna, imitemos a Jó! bendigamos o Senhor; saibamos lobrigá-lo através da provação; sejamos homens de fé e de oração; não enxerguemos apenas a causa imediata de nossos sofrimentos; prestemos a Deus o que a Deus é devido: adoração, submissão perfeita, ação de graças, confiança, amor; e ao demônio, o que ao demônio é devido; desprezo de seus embustes e horror de sua perversidade.

V
QUAL É O VERDADEIRO CONSOLADOR DE NOSSOS SOFRIMENTOS?

É aquele que disse e que só podia dizer ao mundo:
"Vinde a mim, vós todos que sofreis e que estais vergados sob pesos; e eu vos aliviarei." É o Filho de Deus humanado; é o grande Salvador, a grande vítima, Jesus Cristo.
Foi esta uma das suas primeiras palavras, quando começou a manifestar-se ao mundo. Na sinagoga de Nazaré, tendo entre mãos o livro das profecias de Isaías, abriu-o e leu em voz alta o trecho seguinte: "O Espírito do Senhor repousa sobre mim. Ele enviou-me para evangelizar os pobres, para curar os corações aflitos, para anunciar aos cativos a liberdade, para restituir aos cegos a luz. E olhando para todo o povo acrescentou:
"Estas palavras se cumprem hoje perante vós."
Jesus Cristo, de fato, acha nos tesouros de sua graça com que prover de remédio todos os nossos sofrimentos, sem excetuar um só. Deles não nos exime; porque, como pecadores que somos, os sofrimentos e a expiação nos são devidos; mas, por um segredo divino, metamorfoseia e transfigura nossas dores, convertendo em maravilhosa suavidade o travor delas.
Para realizar essa transformação foi que Ele, o Filho de Deus, o Inocente, o Santo dos Santos, que de modo algum merecera sofrer, quis desde logo assumir o terrível peso de todas as nossas dores. Coisa alguma omitiu seu amor misericordioso: sofrimentos da alma, do coração, do corpo, toda a casta de privações, pobreza, humilhação, calúnia, perseguições, traições, injúrias, atrozes afrontas, injustiças, dores pungentes, desamparo: ele tudo sofreu, quis tudo sofrer.
Depois disto, sobra-lhe direito de dizer-nos, de clamar-nos do alto de sua cruz, onde por nós sofre e morre: "Vinde a mim, vós todos que sofreis!"
E Jesus é nosso Deus, nosso criador eterno; Ele é a um tempo nosso modelo de sofrimento e nossa eterna recompensa. É a vida de nossas almas; está em nós; se nos resolvemos a pertencer-lhe e a amá-lo, ele permanece, por meio de sua graça, no íntimo dos corações.
"Se alguém me ama, diz-nos a todos, meu Pai e Eu o amaremos e viremos a ele e nele faremos nossa morada. Permanecei em mim e eu em vós."
Oh! que consolador! Outro não temos. Assim como só Deus é Deus, assim também só Jesus é Jesus, o que quer dizer Salvador, consolador, sustentáculo, médico e remédio.
Salteia-nos a doença, uma ferida, qualquer enfermidade? Olhemos para Jesus crucificado e manando sangue.
Investem-nos a perseguição e a calúnia? A injustiça, a maldade e a fereza humana nos fazem sofrer? Olhemos para a Cruz; contemplemos Jesus perseguido e condenado à morte.
Somos humilhados, traídos, votados ao abandono?
Olhemos para a cruz; para o presépio; para Jesus, sempre para Jesus, celeste Consolador, Vítima inocente.
Todas as angústias, todas as torturas do amor não retribuído, sofreu-as seu Sagrado Coração. Ele que tanto amava, Ele, Amor incomensurável, foi odiado, repelido por todos. Que sofrimento! e que coração jamais suportará a centésima milionésima parte dEle ?
Jesus Cristo teve o corpo macerado, dilacerado. Em suma, tudo sofreu; tão somente para eliminar o pecado, causa de nossos sofrimentos; para santificar, divinizar nossas dores unindo-as às suas; para consolar-nos em nossas provações; para salvar-nos.
Salvador, consolador: eis o que é Jesus Cristo no meio das dores humanas. Unamo-nos a Ele, se quisermos ser consolados.

VI
DO BELO LIVRO EM QUE DEVERIAM SABER LER TODOS AQUELES QUE SOFREM

Um grande Santo, que viveu na Itália, no século XIII, e que fundou a ordem dos Servos de Maria, S. Felipe de Beniti, chegara ao termo de sua laboriosa carreira.
Estendido sobre as tábuas que lhe serviam de leito, quase agonizante, estava rodeado por seus irmãos, que o assistiam nessa luta suprema.
"Dai-me meu livro" murmurou o moribundo. Cuidando que ele queria recitar algum salmo, um dos confrades oferece-lhe pressuroso o seu livro de Horas, mas S. Felipe dá a entender que não é isto que deseja e repete com brandura: Dai-me meu livro; dai-me meu livro." Outro confrade apresenta-lhe a Sagrada Escritura. "Não, acode ainda o bem-aventurado moribundo; não... dai-me meu livro."
Houve quem, impressionado por essa insistência, notasse que S. Felipe não despregava os olhos de um crucifixo pendente perto do leito, Desprendendo-o, apresentaram-no ao Santo. Este, como rosto radiante, estende então as mãos desfalecidas, toma a imagem sagrada de seu Deus, e osculando-a com transporte, exclama: "Eis, eis aí o meu livro!... É esse o meu caro livro; durante minha vida inteira, tomei a peito aprender a ler ele... É o único livro em que é necessário saber ler!" E sobre o crucifixo exalou, poucos momentos depois, o último suspiro.
O crucifixo: Sim, eis o grande livro dos atribulados, que lhes cumpre consultar, ler, meditar incessantemente.
Um infeliz, um enfermo sem crucifixo é como o soldado sem armas, o oficial sem ferramenta.
A infeliz Maria Stuart tinha na mão o seu crucifixo, e frequentemente o osculava, enquanto a conduziam ao patíbulo. "Senhora, observou-lhe brutalmente um oficial protestante que a acompanhava, não é nas mãos mas no coração que importa trazer o Cristo. — Milord, respondeu com gravidade a piedosa rainha, é bom trazê-lo na mão para tê-lo com mais certeza no coração." Admirável resposta! Sim tenhamos o crucifixo na mão, diante dos olhos, ao peito, para que nos recorde o amorável Salvador que vive em nossa alma, e tanto sofreu para santificar e fecundar os nossos sofrimentos.
De fato, o que nos ensina, o que lembra o crucifixo?
À primeira vista e antes de tudo o mais, que Deus amou-nos tanto, que dignou-se fazer-se homem por nossa causa e resgatar-nos à custa do seu sangue.
Lembra-nos, ensina-nos, que somos discípulos de um Mestre crucificado, cortado de açoites, banhado em sangue, humilhado, abatido, abandonado por todos, perseguido, obediente até a morte. Que ensinamento este para um mísero atribulado! que exemplo irresistível!
O que nos dizem as chagas do crucifixo? As dos pés sagrados de Jesus deixam chegar aos nossos corações, de envolta com o divino sangue, estas duas grandes palavras: Penitência e Obediência. As das mãos: Pobreza e Castidade. A chaga do lado: Amor, Sacrifício. As chagas da cabeça coroada de espinhos clamam: humildade. Emfim, as chagas que cobrem tudo o seu corpo, são outras tantas vozes que nos repetem: Mortificação, Paciência, Resignação, Mansidão, Amor ao sofrimento, Esperança.

Tal é a suma do grande livro dos cristãos; livro que eles devem aprender a ler desde a infância, que devem ler e meditar sempre, e, com especialidade, quando, imolados pelo sofrimento, veem-se chamados por Jesus Cristo a sofrer com Ele, a sofrer por Ele, a sofrer como Ele e nEle.
Para o cristão é imperdoável negligência não possuir um crucifixo. O crucifixo é a arma da vida e da morte; é a suma do Evangelho; é o livro da consolação e da salvação. É o livro de todos, livro divino que cada qual pode ler, compreender, apreciar. O último dos pobres, o último dos ignorantes, se conhecer e amar a Deus, pode ler e compreender admiravelmente este livro; e o maior dos sábios pode absolutamente não compreendê-lo, se não conhecer e não amar a Jesus Cristo.
Ó vós todos que sofreis, aprendei, encarecidamente vô-lo peço, aprendei a ler e a compreender o crucifixo!

VII
DE COMO JESUS CRISTO VEM A NÓS E NOS CONSOLA POR SUA IGREJA

Assim como para transmitir-nos a luz da fé, serve-se Jesus Cristo de sua Igreja; assim também, por intermédio dela, nos comunica admiráveis consolações.
Enviada de Jesus Christo, é a Igreja a grande consoladora dos sofrimentos humanos.
Importa que nos atiremos em seu regaço amoroso, se quisermos encontrar o bálsamo das consolações.
Para não ir mais longe, eis já uma consolação: os tesouros da verdadeira fé, que nos dão absoluta certeza das tão suaves quão consoladoras verdades da Religião.
A Igreja e a fé nos ensinam infalivelmente que, se sofrermos santamente neste mundo, teremos no céu magnífica e eterna felicidade, e que todas as nossas transitórias tribulações mui pouco valem, comparadas com o cúmulo de eterna glória, que a mesma Igreja nos prepara no Paraíso. À Igreja e a fé descerram o véu ao mistério do sofrimento, e para logo tudo muda de aspecto: o que era horrível, passa a ser tolerável e até mesmo apetecedor; o amor de Jesus Cristo transmuda os espinhos em rosas, o travo em doçura.
A Igreja nos consola, ensinando-nos a orar, a estreitar união com o nosso Salvador; e a haurir nEle, como em inesgotável fonte, a água refrigerante da consolação e da paz.
A Igreja consola-nos, fazendo-nos manusear os Santos Evangelhos, e ensinando-nos a saborear o maná escondido nas palavras e ações de Jesus Cristo.
De fato, como o crucifixo, assim também o Evangelho é o livro das consolações divinas.
A Igreja consola-nos, fazendo mais ainda: dá-nos o próprio Jesus Cristo, sim, Jesus presente e velado na Eucaristia. Consola-nos, dando-nos o Consolador em pessoa. Na verdade, a Igreja continuamente possui a Jesus, que está conosco, e, por amor de nós, desce quotidianamente ao altar nas mãos do Sacerdote; a Igreja, por intermédio de seus ministros, dá Jesus Cristo a quantos lho pedem.
Consola-nos, outrossim, a Igreja com todas as ações que em prol de nossa felicidade praticam seus sacerdotes: por intermédio deles faz-nos ela ouvir, nas horas de tribulação e de lágrimas, palavras que do céu vêm e que para lá conduzem, Por intermédio deles, ela já perdoa-nos os pecados e restitui nos a paz de coração e as alegrias da consciência, já nos cumula de benefícios, reavivando-nos a esperança, alentando-nos a coragem, aligeirando nossos infortúnios, sem excetuar um sequer.
Por último, no transe supremo da morte, a Igreja e só a Igreja, só e, tão suave como eficazmente, prestar-nos caridosa consolação. "Senhor, dizia ao caritativo sacerdote que o estava assistindo, um homem de elevada hierarquia, que até ali fôra indiferente à religião, senhor, calorosamente vos agradeço o terdes sido instrumento das divinas misericórdias para comigo. Se morro em paz, fiando da bondade divina, à vossa intervenção o devo."
Durante o cerco de Paris pelos prussianos, um voluntário, oficial subalterno, membro de família abastada e nobre, fôra mortalmente ferido nas planícies de Bougival. Aguardando o momento de comparecer perante Deus, jazia ele, deitado de costas, com as mãos juntas, nadando em sangue e crivado de feridas. Quis a Providência, que estivesse ali por perto um capelão do exército, o qual acudiu aos gemidos do mísero ferido.
"Meu Padre, disse-lhe este, depois de haver declarado seu nome e a moradia de sua família, confessei-me ontem; morro em estado de graça. Dizei a minha família que morro contente; porque sou cristão e cumpri meu dever. Não voltei o rosto ao inimigo.
No meu corpo aí estão onze balas. Consolai minha mãe. Parto a ter com o Deus das misericórdias." E adormeceu no Senhor; e a Igreja, pelas mãos do padre, fechou-lhe os olhos.
Tal é a benfazeja missão da Igreja.
Separar-nos da Igreja, incutir-nos ego, ódio, ou, ao menos, esquecimento dela, é traça costumeira do demônio. O miserável almeja despenhar-nos consigo na desesperação, assim como nos despenhou no pecado e no castigo do pecado, que vem a ser o sofrimento.
Quer deserdar-nos do amor da Igreja, porque bem sabe que Jesus Cristo está na Igreja, do mesmo modo que a vida está no vivente, e o fogo, na brasa. E ele não quer que Jesus Cristo nos salve, se una conosco, nos santifique e console. É o figadal inimigo dEle e nosso; releva que o não escutemos, e com respeito, ternura e confiança procuremos o regaço maternal da Igreja.
É a consoladora do mundo despenhado na culpa.

VIII

DAS DEDICAÇÕES ADMIRÁVEIS QUE PARA CONSOLO DOS QUE SOFREM A IGREJA SUSCITOU

Tudo devemos à Igreja. Desde a infância afeitos à luz do sol e às maravilhas da criação, fruimo-las desapercebidamente, Assim sucede em relação à Igreja e aos benefícios dela: temos por comezinho o que desafia a admiração e a mais entranhada gratidão dos que se convertem cedo; gozamos com soberana indiferença das maravilhosas dedicações por toda a parte suscitadas pela caridade católica.
Dedicar-se a desconhecidos, que quase sempre com repulsas e injúrias pagam o benefício recebido, servir a pobres, as mais das vezes ingratos e mentirosos, a crianças estouvadas, escarninhas, baldas de reconhecimento, intoleráveis amontar todos os contágios; conviver, nos hospitais, nas prisões, nos hospícios de alienados, com entes tantas vezes aviltados, e sempre repugnantes; dar de mão a cômodos e prazeres, muitas vezes até à pátria e à família, ao que mais se preza, somente para desfazer-se em dedicação por todos esses desgraçados, e isso sem aguardar qualquer retribuição ou provento: tal dedicação, quem a inspirou? quem, dia por dia, continua a inspirá-la a milhões de sacerdotes, de religiosos e religiosas, de leigos de ambos os sexos? Quem? Jesus Cristo só, que vive em sua Igreja e quer por meio dela salvar e consolar o mundo.
As obras consoladoras que a fé produziu inundam as cinco partes do mundo. As Irmãs de caridade estão em todos os lugares. Tanto na China como na França desvelam-se à cabeceira dos enfermos e cuidam de órfãos desvalidos; e ninguém calcula quantos sacrifícios heroicos estão escondidos sob a touca da filha de S. Vicente de Paula e sob o humilde véu da religiosa. Muitas Pessoas virtuosas senhoras são distintas por nascimento; muitas poderiam ter contraído vantajosos enlaces; mas não; tudo isso desdenharam, furtaram-se à ternura e às lágrimas dos seus para virem, em um hospital, perto de um leito de dores, expostas ao perigo do contágio, velar à cabeceira de um ingrato talvez, quiçá de um desalmado,que delas chasque. Conheci em Paris uma Irmã de Caridade que, havia mais de trinta anos, desvelava-se dia e noite por mais de cinquenta enfermos, confiados à sua maternal solicitude; nem uma impaciência, nem um queixume se lhe podia exprobar; sempre a modéstia, a bondade e a alegria transluziam naquele rosto. Dir-se-ia que era a ínfima das criadas, a exercer modestamente os misteres de sua profissão como qualquer enfermeira; entretanto, era ela das mais nobres e opulentas, representantes de uma antiga família de Tolosa; e sua virtude admirável, que se fundava na humildade e na caridade, a impelira a alcançar das superioras a graça, que ela tinha em subida conta, de jamais passar de simples enfermeira de hospital.
Maravilhas deste quilate abundam nos hospitais, nas escolas e nos conventos católicos. Sabeis porventura quem é a modesta Irmã de Caridade que sobe os degraus das águas furtadas, ou que educa nas escolas o filho do pobre; a outra, que acotovelais na rua, e que caminha enlameada, ensopada pela chuva, franzida de frio, ou então exausta de cansaço e de suor pelos raios de um sol abrasador; essa humilde Irmã de Caridade, que trata de feridas nauseabundas, e, qual criada, desempenha os mais ínfimos e os mais repugnantes místeres; sabeis quem é? Há dois ou três anos, talvez, passava perto de vós em suntuoso trem; era rica, era cortejada, ei-la hoje ajoelhada junto a um catre de hospital, fazendo bem, distribuindo consolações e remédios. É belo, é grandioso isso, não é assim? E haverá aí quem possa regatear à Igreja Católica, que inspira tais prodígios, a gratidão dos deserdados da fortuna?
E tudo quanto fica dito adapta-se com perfeita aplicação aos religiosos católicos, que se consagram também, e por mil maneiras diversas, ao alívio de todas as misérias assim físicas como morais. Nem se acredita qual o quilate dos corações que pulsam a maior parte das vezes sob a humilde estamenha do Franciscano, do Irmão hospitaleiro de S. João de Deus, do Irmão das escolas cristãs, etc. Aí também a caridade escondeu e tornou ignorado dos homens mais de um nome ilustre.
Há ainda hoje na França um pobre religioso, que anda descalço, e cuja família possui para cima de sessenta mil libras de renda e habita esplêndido palacete; outro, ex-diplomata e de elevada hierarquia social, que é senhor de um nome conhecido pelo mundo todo; outro, que era o mais próspero advogado de sua província etc., etc. Porque razão deixaram tudo? Porque voluntariamente se apearam das alturas sociais, onde lhes acenavam todas as venturas? Sabeis, leitor, porque?
Porque Jesus Cristo e sua Igreja mostraram-lhes vossas lágrimas, vossas misérias, vosso abandono. E agora ei-los, para que assim o digamos, a vossos pés; reduziram-se à condição de irmãos, amigos, servos e consoladores vossos; e, muitas e muitas vezes também reduziram-se (custa dizê-lo!) à posição de vossas vítimas.
É toda de abnegação e de incessantes sacrifícios a vida que abracaram para fazer-vos bem; e assim como a árvore que produz o incenso, quando retalhada, destila, em forma de lágrimas, a resina perfumada; assim também, das profundas dedicações do sacerdote, do religioso, que a Igreja suscita a par da fraqueza e do sofrimento, brota o bálsamo consolador que perfuma este mundo tão cheio de misérias,
Estirado volume ainda não chegaria para a enumeração das instituições de beneficência, das obras sem conto, sugeridas pela misericórdia da Igreja. Hoje, talvez mais do que nunca antes abundam elas em todos os recantos da terra, para salvação não só dos pobres, senão também dos ricos; porque a Igreja salva os ricos por meio dos pobres, ao passo que assiste e consola os pobres por meio dos ricos.
Oh! boa e santa Igreja de Jesus Cristo! Abominável crime de lesa-humanidade praticam os que procuram arrebatar-vos os respeitos e as simpatias do pobre, da criança, do operário, do enfermo, do atribulado, em suma, de todos quantos sofrem neste mundo. Não são unicamente inimigos de Deus, senão também dos homens; mais delinquentes, mais facinorosos que os assassinos que roubam e matam, eles assassinam as almas, e roubam aos desgraçados o seu único tesouro: a consolação!

IX
DE COMO A RELIGIÃO AJUDA A SUPORTAR AS DOENÇAS E SOFRIMENTOS CORPÓREOS

Nas doenças e nas enfermidades corpóreas sobressai mais manifestamente a onipotência consoladora da Religião. Os próprios médicos muitas vezes reconhecem-lhe os efeitos quase miraculosos.
Se há indignos médicos que, por preconceitos e dominados por estúpida e grosseira impiedade, afastam o sacerdote da cabeceira do doente, a pretexto de poupar "emoções" a este, outros há, e muitos, que, a um tempo mais inteligentes e mais caritativos, eficazmente se prevalecem da benéfica influência da Religião: de fato, a serenidade da consciência, a esperança e a paz inseparáveis da oração, da confissão, e principalmente dá comunhão, constituem, não há negá-lo, ótimas condições que predispõem para a cura.
Espírito calmo, resignação, paciência, completa docilidade aos preceitos médicos: eis as coisas de que mais carece o doente. E onde irá ele buscar tudo isso, senão nos tesouros de paz e de verdadeira fortaleza, que só medram à sombra da Religião?
Ah! que grande médico é o sacerdote católico!
Os socorros religiosos, certo, não eliminam os padecimentos; a confissão, que tira os pecados, nem por isso tira a febre, e a comunhão, que une a alma a Deus, não tem por fim curar milagrosamente o corpo; mas, em virtude da união íntima do corpo e da alma, e também, força é proclamá-lo, em virtude do influxo divino, sobrenatural que a Nosso Senhor aprouve exercer muitas vezes sobre seus servos, o bem da alma repercute no corpo, e o remédio divino reage sobre a medicina. A consciência em sobressaltos até à saúde é danosa. Não há consciência adormecida que não cheguem a despertar, por pouco que seja, os padecimentos e o medo da morte. Se essa consciência estiver turva, como não ficará o coração do doente? Cheio de ansiedade, senão de remorsos. Ora, ninguém dirá que tais condições são propícias à proficuidade dos medicamentos.
Mísero doente! sofreis? Cumpre ouvir o que por parte de Deus a Igreja vos diz, pelos lábios do sacerdote, da religiosa, do amigo piedoso que, comovido e cheio de comiseração, está perto de vosso leito. Fala-vos do céu, do céu onde não se sofre mais, e para onde conduz em direitura o sofrimento cristãmente suportado. Lembra a necessidade da penitência e o máximo proveito a colher dos sofrimentos: sejam quais forem, não são mais atrozes que o fogo terrível do Purgatório. Fala-vos do Salvador; incita-vos à união com Ele por meio da comunhão, afim de fortalecer-vos no combate. Um dia visitava eu no hospital da Caridade, em Paris, um infeliz doente, que estava muito mal, prostrado por demorada enfermidade. Hesitou por algum tempo em confessar-se e comungar; todavia, a necessidade de Deus por tal modo se lhe impôs, que o mísero fez afinal aquilo por onde deveras ter começado. "Pois bem, meu amigo disse-lhe eu, como estais desde pela manhã? Deus vos fez uma graça assinalada, não é assim? — Oh! sim senhor, respondeu arquejando e com indizível expressão no rosto; oh! sim, agora estou bem; agora não o mais só, somos dois a sofrer!"
Para os doentes o primeiro amigo, o primeiro médico é o sacerdote. Cumpre chamá-lo desde logo e não ter medo dele. É o Jesus dos enfermos, isto é, seu consolador e salvador. Benfazejo embaixador de Deus, só é portador de graças e de bênçãos.
Quando a braços com a enfermidade, tem um quê de admirável os verdadeiros cristãos. Muitos deles desafiam realmente o pasmo pela serenidade e alegre resignação! Uma santa senhora, cega havia já bastantes anos, achava-se em um leito de dores, por força de enfermidade, que ela sabia ser incurável. Sofreis muito? perguntaram-lhe uma vez. — Sim, muito, respondeu serenamente a enferma. Momentos há em que acredito vou perder a paciência; então abraço o meu crucifixo; invoco a Virgem Santíssima e com a assistência dela consigo calar-me."
O famigerado Dupuytren, que apesar de bondoso era áspero e rude no modo de exprimir-se, acolhera no seu grande hospital geral (Hotel Dieu) um pobre velho, pároco de uma freguesia rural, em o qual tinha de praticar dolorosa operação. "Sois animoso? foi a pergunta que dirigiu ao mísero sacerdote. A operação será demorada e tormentosa. — Deus me dará coragem — respondeu com brandura o doente. Estou às vossas ordens." E Dupuytren deu começo ao trabalho, cortando e retalhando as carnes do operado durante mais de um quarto de hora, de modo a horripilar os próprios ajudantes; o sangue corria aos borbotões. Somente algumas convulsões, alguns gemidos involuntários e sufocados indicavam que o paciente não era feito de pau. Dupuytren ficou pasmo. — "Ora pois! lhe disse, não tendes nervos! Sois insensível como um cepo?" O infeliz sacerdote, exausto de dores, ainda teve força para sorrir; e como única resposta, mostrou-lhe o crucifixo, que convulsivamente apertava, —"É pasmoso!" disse aos assistentes o exímio cirurgião. E de improviso, mudando de tom e de modos, perguntou carinhosamente ao doente, inclinando-se para ele: "Causei-vos muitos sofrimentos, não é assim?
— 0h, não tantos como os que meu Deus por minha causa sofreu" murmurou o paciente. E Dupuytren retirou-se, repetindo a seus discípulos; Admirável! Nunca vi coragem assim."
Passadas algumas semanas, o virtuoso pároco teve alta no hospital e regressou a sua paróquia, que exultou tornando a vê-lo. Dupuytren lhe havia dispensado assíduos e delicados desvelos. Sua bondade foi recompensada. Todos os anos, no aniversário do famosa operação, via, enternecido, chegar à sua casa o velho pároco, que era portador de um cabazinho contendo as melhores frutas do seu pomar. Consagrou verdadeiro afeto ao digno sacerdote; e quando esteve para morrer, mandou-o chamar, e quis que ele lhe administrasse os últimos socorros da religião. Morreu como cristão em seus braços, e pode bem ser que o último suspiro do célebre cirurgião fosse exalado sobre aquele mesmo crucifixo que figurara na operação acima mencionada.
Seria interminável a exposição de narrações semelhantes, que mostram com que eficácia a Religião ajuda os doentes a sofrer corajosamente.

x
DE COMO NOSSO SENHOR DIGNA-SE ÁS VEZES PREMIAR COM FAVORES EXTRAORDINÁRIOS A FÉ DOS DOENTES DE SUA PREDILEÇÃO

Deus, além de dispensar as consolações referidas antecedentemente, digna-se às vezes, e mais frequentemente do que se imagina, galardoar com graças extraordinárias a piedade dos doentes. Não se trata de milagres rigorosamente falando; mas, de coisa que com isso muito se parece; o certo é que, aqueles que recebem tais graças sentem alegria e consolação tão intensas, como se lhes fora dispensado verdadeiro milagre.
Não há sacerdote ou religiosa enfermeira que, vinte, cem vezes na vida, não tenha tido de presenciar tão ternas manifestações da misericórdia divina.
Referirei algumas, de que fui testemunha, no intuito de alentar a fé dos leitores.
Em 1860, um de meus amigos, tão fervoroso cristão como distinto magistrado pediu-me que fosse ver um de seus filhos, com doze anos de idade, que havia muitas semanas se achava de cama, e ardia então em febre devoradora. "Estalo de dor, disse-me o extremoso pai: os dois melhores médicos de Paris acabam de declarar incurável a moléstia. A pobre criança tem tubérculos nos intestinos, que já se acham ulcerados; a resignação é o único remédio. Vinde ajudar meu filho a morrer. O desfecho, ao que parece, não tardará muito; eu quisera que ele fizesse a sua primeira comunhão antes de morrer."
Pressuroso, fui ter com o estremecido doentinho, cuja magreza e debilidade eram excessivas. Felizmente, o grau de sua instrução religiosa permitiu-me prepará-lo suficientemente dentro de 3 ou 4 dias: em casos tais, Deus atende principalmente ao coração. Assim, pois, pude administrar à piedosa criança a sagrada Comunhão como viático. Recebeu Nosso Senhor com simplicidade e fervor angélicos. Ao redor do leito estava de joelhos sua família inteira.
Coisa admirável e de todo inexplicável! a febre declinara: fugira diante da Eucaristia.
Chega no dia seguinte o médico; excelente homem, muito amigo da família, porém que nada tinha de cristão.
Verifica o desaparecimento da febre; não atina com a explicação do fato. Volta no dia imediato: nada de febre, também não havia mais dores. "Cumpre aproveitar este estado, observou à família, e empregar aplicações decisivas". A mãe tentou obstar. "Foi Deus que o curou, disse; entreguemos tudo a Deus." O médico insiste; o pai não ousa assumir a responsabilidade da resistência, e o doente tomou a poção receitada. Tragada que foi esta, eis que volta a febre com toda a intensidade.
—"Não tivestes fé", — cheia de consternação diz a mãe ao marido.
Este, a quem a fé não faltava, vem contar-me sua aflição. "Pois o remédio ainda aí está, atalhei eu. Tenhamos confiança em Nosso Senhor, Orai todos bastante; e amanhã de novo levarei a sagrada Comunhão ao nosso doentinho."
E no dia seguinte, depois da comunhão, a febre desertou pela segunda vez.
Desde esse momento, começou frança e ininterrompida a convalescença; foi longa, mas consolada e consolidada todas as semanas pela visita do Deus Sacramentado. A criança tornou-se hoje excelente e digno rapaz, vigorosamente sadio, fervorosamente piedoso, e dotado de admirável candura. No cerco de Paris lutou como um leão contra os prussianos.
Consolação não menos extraordinária foi concedida, em maio de 1869, a uma piedosa donzela, que tinha sido absolutamente desenganada pelos médicos.
Tão rara doença interna ela sofria, que o médico, diretor do hospital para onde a tinham transportado, convidou dois outros grandes clínicos para virem observar um caso como, dizia ele, não encontrara ainda segundo em sua já longa carreira médica. A infeliz Maria (assim chamava-se a doente) sofria dores atrozes; mas a fé e profunda piedade conseguiam dominar o mal; e, salvo durante as crises, em que ficava de todo fora de si, sua coragem e resignação perfeita a todos edificavam. Muitas operações dolorosíssimas sofreu, sem o mínimo resultado.
O médico declarou-a irremissivelmente perdida. Certos calmantes, que a não acalmavam, eram já os únicos remédios que tomava.
Um belo dia, como por uma espécie de inspiração, ocorreu-lhe consagrar-se ao Sagrado Coração de Jesus e fazer, em honra deste, se Deus se dignasse curá-la, dois votos: voto de castidade perpétua e de professar como Religiosa enfermeira, Falou-me a esse respeito; eu disse-lhe que, acolhendo a inspiração, fizesse os dois votos, e comungasse na dia seguinte.
Horas depois da comunhão, fui visitá-la. "Oh! meu padre, exclamou, que felicidade! que graça! Desde que fiz os votos, quase que não sofro mais. O doutor acaba de fazer a visita; minha fisionomia animada fê-lo cair das nuvens, e ele não pode deixar de perguntar à enfermeira: "O que foi isto?" Eu, que bem o sabia, tinha vontade de rir-me. Médico mais abalizado que ele me tinha curado.
De fato, cinco ou seis dias depois, começava a boa Maria a levantar-se; e, ao cabo de um mês, pode regressar para a casa de sua mãe e ajudá-la a preparar o seu pequeno enxoval de noviça. Tomou o véu pelo Natal, e hoje, com uma dedicação igual a sua perfeita saúde, desvela-se pelos doentes de uma das enfermarias do Hospital chamado Hotel Dieu.
Repito: estes efeitos dos sacramentos sobre os doentes, posto que extraordinários, são menos raros do que se crê; e se o vasto campo da doença é inçado de muitos sofrimentos e de muitas lágrimas, é também primorosamente esmaltado por esses meios-milagres, que semelham as mil florinhas que matizam os prados durante a primavera. Quem se desse ao trabalho de colecionar os mais salientes destes fatos, chegaria a compor um livro bastante volumoso.
É que Jesus é o Deus, o Salvador dos doentes; estremece-os; e se nem sempre lhes cura os corpos, entretece de especialíssimas graças a provação a que temporariamente os sujeita.

XI
DE COMO A FÉ VIVA CHEGA ATE A INSPIRAR O AMOR DOS SOFRIMENTOS

Se, mesmo para com as pessoas muito piedosas, são relativamente escassos os meios-milagres já referidos, dão elas com muito mais frequência, e por meio do amor dos sofrimentos, patente testemunho da eficácia consoladora da fé.
Consideradas as coisas à luz puramente natural, tem o homem entranhada e legítima aversão ao sofrimento, verdadeiro mal, desordem para a qual não fora criado, e, ainda mais, punição e resultado do poder do demônio; logo, é mais que muito conforme à natureza humana o horror das doenças e dos padecimentos.
Entretanto, encarado à luz sobrenatural, muda o sofrimento de aspecto; e quando a fé, viva e profunda, é alimentada por fervorosa oração e pela santa frequência dos sacramentos, chega ao extremo de fazer o cristão, não só suportar com paciência, como ainda amar o sofrimento.
Por isso lê-se na vida de S. Francisco de Assis, que estando o grande Santo muito atormentado por uma doença qualquer, um de seus confrades, ainda moço, que o estava assistindo, aventurou esta observação: "Ah! meu pai, sofreis por demais. Porque não rogais a Deus que vos livre desse tormento?" Então S. Francisco sentando-se no leito, e, entre indignado e compassivo, fitando o mesquinho religioso, exclamou: "Que dizeis meu irmão? Falta-vos a fé? Se este lapso não fosse filho da simplicidade e da bondade de vosso coração, não vo-lo perdoaria. Meu amado Jesus por amor de mim sofreu: não é justo que eu queira padecer e sofrer com ele? E depois, quando se é pecador, convém que se sofra. Bendigo antes a Deus, que se digna, por meio destas dores, proporcionar-me maior penitência."
Conheci em Paris um Santo homem que, depois de viver mundanamente, se tinha voltado sinceramente para Deus.
Na verdade, era extraordinário o seu fervor, constante e contagiosa sua alegria. Sofria contínuos ataques de gota; porém, quanto mais sofria, mais alegre ficava.
"Muito bem, repetia; muito bem! Isto prova evidentemente que Deus se não esquece de mim. Nada melhor que sofrer como Nosso Senhor e com Ele." Tive a ventura de visitá-lo no leito de morte, e quando já entrara na agonia; pareceu-me que padecia horrivelmente. Ajoelhado perto do leito, perguntei-lhe: "Como passa, meu amigo? — Perfeitamente, respondeu-me com tom significativo: Muito bem, tudo vai muito bem! — Então, sofre muito? —Sim, sim; às mil maravilhas; assim mesmo é que eu desejo."
Horas depois expirou, esbraseado no mesmo fervor e no mesmo ardente amor de Jesus Cristo crucificado.
Conheci também outro servo de Deus, da ordem de S. Domingos, que tinha sido missionário, bispo, e mais tarde arcebispo, força lhe foi deixar a missão e voltar à França, por causa de uma moléstia de coração, da qual veio a morrer, em Paris, no convento dos Religiosos Dominicos. Estendia a paciência até às raias do heroísmo. Sua agonia durou semanas inteiras. Deitado de costas, imóvel, com as pernas e o corpo desmedidamente inchados, com os rins gangrenados, exalava e respirava miasmas pútridos, que não contribuíam pouco para agravar-lhe os padecimentos. Nem uma queixa se lhe ouvia; ainda mais, — nem sequer consentia que dele se apiedasse alguém. Depois das crises da moléstia, murmurava: "Não foi nada; não falemos mais nisso"; e contemplava o crucifixo. Vendo a consternação dos amigos, quando já tinha perdido o uso da fala, fitava-os serenamente, e com expressão exprobatória, levando o dedo aos lábios para inculcar-lhes, por este gesto, que o não lastimassem.
Foi assim que Monsenhor Amantou, com a alma banhada de sobre-humana paz e perfeitamente resignado, voou para o seio de Deus, a 12 de Outubro de 1869.
O admirável voto que fez o Padre Luiz Dupont, célebre religioso da Companhia de Jesus, mostra também o que é a alma cristã submetida à provação do sofrimento. Muitos anos antes de morrer, foi este padre purificado no crisol da doença. Tendo uma vez se lastimado com alguma vivacidade, não lhe passou desapercebida a pouca edificação produzida sobre os confrades que o assistiam como enfermeiros: aflito, erguendo a simples fragilidade à categoria de crime, deitou-se em baixo da cama, humildemente pediu perdão a Nosso Senhor e aos confrades, e, em voz alta, fez voto de nunca mais queixar-se de coisa alguma até exalar o último suspiro. Com heroica fidelidade cumpriu o voto, tudo sofrendo em absoluto silêncio.
São deste quilate os heroísmos da fé. E, cumpre repeti-los até à saciedade, em todas as hierarquias sociais, em todas as idades, em todas as regiões, avultam aos milhares os heróis do sofrimento e da resignação cristã.
Dia por dia, a piedade e a doença engendram essa maravilha consoladora e superior a todo o encarecimento.

XII
DA DURA PROVAÇÃO DAS ENFERMIDADES

As enfermidades e as doenças se diferençam: estas são mais ou menos transitórias; tem aquelas certo cunho de permanência. A enfermidade é ordinariamente menos dolorosa que a moléstia; mas quase sempre é muito mais penosa e difícil de ser suportada, atento o seu caráter de continuidade. Na provação da doença, é mais de temer-se a impaciência; na da enfermidade o desalento, a tristeza, tal qual rotina, que consiste em carregar a cruz de modo trivial, sem oração, sem esforço de santificação, vem a ser o perigo mais de recear.
É infinita a variedade de enfermidades. Assim como é difícil a preferência entre muitas peças de veludo de diferentes cores, cada qual mais bela, assim também, entre as mil variedades de moléstias, não se sabe qual delas leva a primazia em ser desagradável. Os cegos, os surdos, os mudos, os paralíticos e tantos outros, que não importa agora mencionar, são todos infelizes enfermos que inspiram dó.
A enfermidade, seja qual for,é de si penosa, muito penosa; e muita vez ainda mais penosa se torna, já porque o enfermo a todo o momento se compara com os que não sofrem a mesma enfermidade que ele, já em virtude dos mil acidentes, um tanto ridículos e inevitáveis, sempre que não vemos, não ouvimos, tartamudeamos, ou temos um problema qualquer; em suma, sempre que somos enfermos.
Deve o enfermo ter grande mansidão a par de verdadeira humildade. De tais virtudes é S. Francisco de Sales belo modelo. Era ele quase obeso, não obstante incessantes trabalhos. Os calvinistas, que entranhadamente o detestavam, apelidavam-no: "Santo Gordo." Em uma de suas excursões pastorais, achava-se uma tarde à janela com alguns fidalgos católicos, em casa de um deles. Passando pela rua um estudante huguenote, moço de 17 para 18 anos, viu o santo bispo e insolentemente o apostrofou assim: "Santo Gordo! Santo Gordo!"
O bondoso bispo sorriu apenas; mas os fidalgos tomaram a sério o motejo, e dois deles, indo no encalço do insolente, imediatamente agarraram-no pela gola e o trouxeram a presença de S. Francisco de Sales.
Pediu este aos circunstantes que o deixassem por alguns momentos a sós com o delinquente. Depois que todos se tinham retirado, fê-lo assentar-se junto de si, desculpou-lhe a falta, e com tal bondade e tão atrativa caridade falou ao mísero estouvado, que este, enleadíssimo, não pode eximir-se de chorar e de pedir-lhe perdão de joelhos. O Santo ergueu-o e abraçou-o com ternura; e tão profunda impressão causou tal acolhimento ao moço protestante, que, pouco tempo depois, converteu-se ao catolicismo. "É evidentemente verdadeira, dizia, a religião que leva a fazer tais coisas e tais homens produz."
Não há estado que dê tanto azo ao merecimento, como o de enfermidade. É privação sem intermitências; e quando mesmo não seja dolorosa, a enfermidade, importa sempre uma situação forçada de renúncia da própria vontade, de mortificação, de penitência, bastando que o enfermo a ela se resigne de modo trivialíssimo, para que muito mereça diante de Deus.
Se tal situação for aceita com fé viva e verdadeiro amor, é evidente quanto torna-se a enfermidade santificadora e facilmente santificadora. Sim, facilmente; pois basta dizer com todas as veras — Amém e de bom grado aceitar males inevitáveis.
Isto explica porque almas muito fervorosas almejam a enfermidade e a acolhem como amiga, quando ela se apresenta.
No Seminário de S. Sulpicio conheci um santo diretor, que estava em termos de perder a vista. "É, dizia-me, grande graça e assinalado benefício que me faz Nosso Senhor. Somente espero que não ficará nisso; é que depois de me tornar cego, também me tornará surdo. Que bom seria não poder eu distrair a alma do amor de meu Deus!" E sorria com brandura o santo homem. A súplica não foi deferida: ele recuperou a vista e nunca deixou de ouvir perfeitamente. Mas nem por isso foi menos meritório aos olhos de Deus o bom desejo manifestado.
Ainda que não possam alteia:-se a tão sublimada virtude, cumpre que os enfermos, por meio da oração e da mansidão, procurem santificar seu sacrifício de cada dia e sejam solícitos em não sair do estado de graça: sem esse estado perdidos seriam para o céu os tão preciosos méritos da enfermidade, que, seja qual for, é grande graça; e graça tanto maior, quanto mais penosa for a enfermidade. Releva ter isto sempre presente, e não clamar contra Deus quando só cumpre bendizê-lo; é a enfermidade qual carruagem que, não obstante o jogo incômodo e os solavancos desagradáveis, transporta em direitura para o céu. A penitência que de si o enfermo não teria ânimo de impôr-se, ela o força a fazer, preparando-lhe destarte magnífico assento no Paraíso.
A enfermidade é uma grossa lasca da verdadeira cruz: venerai-a, enfermos, e prezai-a na proporção de sua valia. Não vos alegre por demais a sua desaparição.
Contam que S. Omer, bispo de Arras, nos últimos anos de sua vida ficara cego. Apesar da cegueira, continuou a desempenhar as funções do seu cargo. Presidindo um dia à trasladação das relíquias de não sei que mártir, cujo relicário ele carregava junto com outro bispo, eis que de improviso recupera a vista. Muitos há que em tais circunstâncias exultariam; mas ele, que via as coisas pela claridade da fé, entrou a chorar e a queixar-se a Deus e ao mártir; e tão bem acertou de o fazer, que, finda a cerimônia, obteve súbita restituição da sua prezada enfermidade.
Oh! se todos os enfermos fossem animados de um espírito assim, quantos santos não floresceriam no grande jardim da Igreja!

XIII
COMO ENTRE MAUS TRATOS É POSSÍVEL A SANTIFICAÇÃO

Foram os maus tratos, sofridos em auge felizmente raro, que elevaram a tão acabada santidade a humilde pastorinha de Pibrac, S. Germana Gousin, canonizada por Pio IX, a 29 de Junho de 1867. Seu pai, modesto moleiro das circunvizinhanças de Tolosa, tinha se casado em segundas núpcias com uma mulher impertinente e má, que votava grande antipatia, sem motivo aparente, à mísera enteada, que então tinha quatorze anos de idade. Tratou-a com aspereza, espancou -a, molestou-a de todos os modos durante oito anos consecutivos, Crostas duras de pão negro, que a mísera criança umedecia muita vez de lágrimas e diluia na água de um regato, eram o único alimento que lhe dava. Quis mesmo expulsá-la de casa definitivamente; porém o pai, mais fraco do que perverso, logrou obter para a desditosa filha permissão de pernoitar sobre sarmentos, numa espécie de ângulo formado pelo vão de uma escada.
A criança, a um tempo infeliz e bem-aventurada, jamais se queixou; à cólera opunha mansidão; aos espancamentos, oração e silêncio. Orava sempre e comungava com a maior frequência e tremecidamente amava a Virgem Santíssima, a qual tinha em conta de única e verdadeira mãe a quem contava todas as suas mágoas. À sua proteção recorria todas as vezes que a madrasta a fazia sofrer mais.
Ralada de desgostos e de privações, Germana morreu santamente na idade de 22 anos, tendo tragado em silêncio as angústias de sua vida. Quarenta anos depois, quis Deus patentear a glória e a santidade de sua serva; achou-se um belo dia, à flor da terra, no lugar em que ela fora sepultada, seu caixão e seu cadáver em estado de perfeita conservação; as flores, postas no caixão conforme os usos do lugar, estavam tão viçosas como se fossem colhidas de fresco.
Grandes milagres acompanharam e seguiram-se a este; e o corpo de S. Germana foi depositado honrosamente em um belo relicário, onde, até a revolução Francesa, se conservou inteiro, com os membros flexíveis e maleáveis, as carnOuvi uma vez um velho sem fé consolar um pobre coitado que acabava de perder a mãe. Eis o melhor conceito que ele pôde sacar does rosadas e como se estivessem com vida.
Neste mundo de misérias, não há coisa mais geral que os maus tratos: maus tratos dos amos para com os criados e para com os operários; dos maridos para com as mulheres, ou dos pais para com os filhos; maus tratos dos fortes para com os fracos, dos superiores para com os inferiores; dos chefes para com os subordinados, etc; tudo isso reduz-se a criminoso abuso da força e da autoridade. E, por sua vez, tal abuso é a expressão do orgulho que tão a miúdo acompanha a força em todas as posições. Se ao homem cumpre sempre ser manso e humilde de coração, sobe de ponto a obrigação de o ser, sempre que governa e pratica com os que lhe são inferiores.
O orgulho, os modos ásperos, não há quem os trague sem muito custo. Ser maltratado, e maltratado em público e seguidamente, exaspera a qualquer; e quanto mais legítima é a indignação, tanto mais custa a contê-la.
Em tais emergências, importa que o homem se revista de bastante coragem e se cale. O silêncio é magnífico auxiliar da paciência e da resignação. Certo, não é isto coisa fácil; é até dificílima; porém, tanto mais meritória e diga a de cristãos será, quanto mais difícil for. Eis o que fez Jesus: no Horto das Oliveiras insultam-no, amarram-no, dão-lhe pauladas; e ele remete-se ao silêncio.
Perante o sumo sacerdotes escarram-lhe no rosto, esbofeteiam-no: e ele sempre calado. Diante de Herodes, dizem-lhe chufas, tratam-no de doido; atiram-lhe aos ombros, por escárnio, a túnica que costumavam trazer os loucos e o obrigam a empunhar um cetro de cana: Jesus, diz o Evangelho, não responde sequer uma palavra. Diante de Pilatos cala-se do mesmo modo; o que, diz ainda o Evangelho, "deixou Pilatos estupefato."
Silêncio absoluto; silêncio acompanhado de união interior com Jesus ultrajado e atormentado: que grande e eficaz receita para se poder suportar cristãmente a rude provação dos maus tratos!
Deus a tem galardoado por mais de uma vez com milagres. Um dia que S. Martinho, bispo de Tours, caminhava recolhido em si mesmo e precedido de seus clérigos e familiares, foi encontrado por um grupo de soldados pagãos, que viajavam em sentido contrário, numa grande carruagem, pela mesma estrada.
Tendo talvez S. Martinho espantado os cavalos, enfureceram-se os soldados, e acometendo o, espancaram-no, maltrataram-no e o deixaram, quase desfalecido, estirado no chão. S. Martinho nem abrira a boca. Os familiares, dando pela demora do santo, retrocederam e o encontraram em tão lastimoso estado. Mas, ao mesmo tempo tiveram de testemunhar extraordinário espetáculo: os soldados, de novo instalados na carruagem, faziam baldados esforços para que os cavalos continuassem a viagem; gritos, chicotadas, tudo era inútil; os cavalos não podiam mover-se. Assustados por tão evidente prodígio, apearam- se, e, mudando de atitude, perguntaram aos familiares de sua vítima, que homem era aquele, que assim chumbava no solo cavalos vigorosos. Acreditaram-se perdidos quando souberam que era o bispo Martinho, tão afamado nas Gálias e de pronto pediram-lhe perdão, S. Martinho, reanimando-se, disse-lhes que os perdoava por amor de Jesus Cristo e exortou-os para que se convertessem à verdadeira fé.
Depois, fazendo sobre a parelha imóvel o sinal da cruz, permitiu-lhe que prosseguisse. Os soldados, atônitos, tornaram a entrar na carruagem e imediatamente os cavalos partiram a galope.
Mas, se nem sempre a resignação aos maus tratos é acompanhada de milagres, nunca lhe são escasseadas bençãos e graças excepcionais. Conheci uma santa moça, a quem as crueldades, a malícia realmente incrível, os ditos ofensivos de uma velha mãe enferma adiantaram mais no caminho da santidade do que a mais austera regra monástica. Nada que pudesse mortificar e desgostar sua filha omitia a velha megera, exceto pancadas, e isso mesmo porque não tinha forças para aplicá-las. A pobre moça preferia mil vezes ser espancada a ter de sofrer o que quotidianamente sofria.
Sem íntimo e profundo amor de Jesus Cristo, sem a comunhão, que cada manhã renovava-lhe as forças espirituais, teria sucumbido ao peso esmagador de sua cruz. Mas, "posso tudo naquele que me fortifica" repetia ela com S. Paulo; e quando às vezes se sentia por demais oprimida ou muito exasperada, saía devagarinho e ia ajoelhar-se diante do crucifixo; recolhia-se intimamente ao Sagrado Coração de Jesus; orava, chorava e levantava-se calma, serena, alegre. Algumas vezes mesmo, Deus tão ao vivo lhe revelava a valia da cruz suportada, que, com transportes de amor e de reconhecimento, bendizia-o por causa dos sofrimentos que lhe concedera.
Assim se passaram anos; a heroica paciência da moça logrou abrandar um pouco aquele empedernido coração da velha enferma, tanto que esta, por inspiração própria, exigiu os socorros do Religião.
Quantos fatos destes não viriam à luz se fosse lícito arregaçar o véu que recata os segredos domésticos de tantas famílias, em cujo seio uma infeliz mulher é vítima quotidiana de um marido brutal, arrebatado, sem consciência nem moralidade; de um homem cioso, avarento, imperioso, despótico, sem atenções nem delicadeza! É um verdadeiro inferno!
Mas a Religião converte esse inferno em Purgatório de santificação copiosa, e consolações divinas suavizam de modo especial as amarguras de tão acerba situação.
E as míseras crianças? Quantas são acalcanhadas sob o jugo implacável de um amo desalmado? Maltratam-nas, abusam de sua fraqueza e isolamento; exige-se-lhes trabalho superior a suas forças; igualam-nas aos cães; às vezes escasseam-lhes o alimento e o sono, cerceiam-lhes a liberdade; as fazem definhar.
Pobrezinhas! Se ao menos as deixassem aprender a Religião santa, que unicamente as pudera consolar!
Se as deixassem chegar-se ao bom Jesus, Amigo dos fracos, Pai dos pequenos e dos órfãos, Consolador dos infelizes!
Para enumerar toda a casta de maus tratos que nos são iminentes neste mundo, seria preciso percorrer a escala inteira das perversidades humanas.
Para quaisquer delas o remédio único é o amor de Jesus Cristo, a prática fervorosa de sua santa Religião.

XIV
DA POBREZA E DAS DOLOROSAS PRIVAÇÕES QUE ELA ACARRETA

A pobreza, assim como o sofrimento corpóreo, entrou no mundo pela terrível porta do pecado, Não foi Deus que fez a pobreza, assim como não fez a doença e a morte; pelo contrário, queria que nós fossemos felizes a todos os respeitos. É a pobreza um dos castigos do pecado.
"Sim, objetará o leitor; mas, porventura sou mais pecador que outros, que são ricos e vivem na abundância." Não é isto o que se diz, senão que Deus não é responsável por nossas privações; mas sim o pecado e o demônio, pai do pecado.
Em relação à pobreza dá-se o mesmo que em relação à doença: nem todos os pecadores são doentes; mas quando o são, isto sucede em consequência do pecado.
Qualquer que seja a natureza do sofrimento que nos caiba por sorte, cumpre que o suportemos sempre com a mesma resignação, com a mesma fé, com o mesmo espírito de penitência. Quando Deus permite que uns homens sejam pobres, outros doentes, outros enfermos, etc., tem sobre cada um deles desígnios de misericórdia que a nós não cabe sondar, senão adorar profundamente. Se Deus nos aflige antes de um modo que de outro, convençamo-nos, é porque assim é mais útil à nossa eterna salvação. Se nos prega na cruz nua da pobreza, devemos, a exemplo de Jó reduzido à extrema miséria, bendizer e não amaldiçoar Aquele que nos faz passar aqui no crisol das privações, tão somente para enriquecer-nos magnifica e eternamente no céu.
De bom ou mau grado, força é que todos sofram neste mundo: é essa, desde o pecado, a lei da penitência, lei que não comporta exceções. Sem sofrimento não há penitência, e por conseguinte também não poderá haver Paraíso. Assim, força é sofrer: e porque não se sofrerá como pobre?
"Mas, prossegue a objeção, seria preferível qualquer outra espécie de sofrimentos à pobreza, que é o mais acerbo de todos" — Talvez assim seja; mas, a questão é outra. Desde que sois pobre, é isso prova manifesta de que por esse e não por outro caminho quer Deus conduzir-vos para o céu. Ora, sendo assim, porque razão se pretenderá escolher outro caminho?
Tendes este na conta de mais escabroso que outro qualquer? Grande engano é. Quereis saber qual é o sofrimento que cada um de nós reputa mais intenso o insuportável? é aquele que está suportando. O pobre acredita que é a pobreza; o doente, que é a doença; o preso, que é a prisão; o caluniado, que é a calúnia, e assim por diante.
Acreditai-me, leitor: carregai e conservai vossa cruz, sem invejar a sorte de quem quer que seja, que a vós vos pareça mais favoravelmente aquinhoado. Se os ricos não tem a vossa cruz, tem outras, que, nem por serem recamadas de ouro e de luxo, deixam de ser mais atrozes. Quantos ricos vi chorar e bem amargamente!
Em pranto desfeito, dizia-me um dia uma senhora viúva e mãe de família: "Sou a mais desgraçada das mulheres! Momentos há em que desvairo e tenho vontade de matar-me." E tinha renda superior a quatrocentas mil libras!
Os reis, dizem, são muito felizes: nada lhes falta; nadam no luxo. Um deles há pouco dizia a seu primeiro ministro que, desgostoso e em extremo cansado do poder, queria obter demissão: "Meu amigo, vossa prisão é temporária; eu sou condenado a galés perpétua." Eis aí o molde da grande felicidade dos ricos e poderosos.
Pobres, não invejemos o rico.
Isto só serve para ao nosso mal juntar mais outro: a exasperação.
São faltos de razão e de fé os que se deixam possuir por semelhante fraqueza. Uma prova disso, ei-la; quem no-la vai dar é mesmo um pobre, paupérrimo, pobre a mais não poder ser:
Um dia o venerável João Tauler, célebre pregador da ordem de S. Domingos, descia as escadarias da catedral de Colonia, onde estava pregando as estações da quaresma. — "Meu Padre, esmola pelo amor de Deus", disse-lhe um mendigo, que estava agachado perto da porta. Voltando-se, Tauler viu o infeliz, que era horrível de ver-se: um cancro lhe corroera parte do rosto; tinha só uma perna e um só braço; alguns andrajos mal cobriam-lhe o resto do miserando corpo. O Religioso, apesar de toda a sua caridade, não pode reprimir instintiva repugnância. Receando que o pobre a tivesse notado e se sentisse deprimido, parou, aproximou-se dele, e pondo-lhe na mão pouco avultada esmola, disse-lhe afetuosamente: "— Bom dia, meu amigo." “— Obrigado, meu Padre, respondeu com brandura o mendigo; não me falta o que a mim desejais." Pensando que o pobre homem não tinha ouvido bem, Tauler repetiu mais articuladamente: " — Meu amigo desejo-vos bom dia." — Percebo perfeitamente, meu Padre; e, repito, tenho o que me desejais." Atônito e quase impaciente, o ilustre pregador insistiu deste modo: "— Como? não me compreendeis? Estou a desejar-vos bom dia." — Meu Padre, replicou o pobre com voz grave e cheia de brandura, tendes a caridade de me desejar bom dia; não posso responder-vos senão repetindo o que já disse: Deus deu-me o que me desejais; são bons todos os meus dias; o de hoje, como todos os outros, é um bom dia. Graças a Deus, nunca tenho tido em minha vida dias maus."
A linguagem e o tom de voz singularmente impressionaram o Religioso, que, sentindo-se a par do mendigo, observou-lhe: "Meu filho, é bastante extraordinário o que acabais de dizer. Como nesse estado em que vos vejo não tendes maus dias!"  "— Não, meu Padre, desde a infância ensinou-me um bom sacerdote, que Deus só aflige à aqueles a quem ama e só envia males para purificar e pôr à prova os seus servos. Aprendi mais, que Deus é meu pai celeste, infinitamente bom, infinitamente poderoso, infinitamente sábio; que ele ama-me com amor materno e incompreensível, e que, se eu amá-lo também, tudo quanto me sucede só pode ser para meu bem. Vivo, pois, na mais profunda paz, sem preocupar-me com o dia de amanhã, que não me pertence; habituei-me a tudo considerar como vindo de Deus e a receber, tanto o bem como o mal, de sua mão paterna. Quando as minhas enfermidades fazem-me sofrer, eu o bendigo e penso na cruz do meu Salvador; quando não sofro, bendigo-o pela paz que me dá! Quando tenho que comer, como bendizendo a Deus; quando nada tenho, jejuo em expiação de meus pecados e também e por todos aqueles que não jejuam. Procuro orar o melhor que posso e não sair da presença de Deus. Penso muitas vezes no céu, algumas, no inferno; e meu coração dilata-se de alegria, quando penso que a vida é curta e que em breve serei eternamente feliz no céu." O Padre Tauler, que ouvira tudo com religiosa admiração e inundadas as faces de lágrimas, disse: Meu amigo "pedi a Deus por mim. Obrigado pelo bem que me fizestes!" E abraçando cordialmente o mendigo amigo, tornou a entrar na Igreja, para meditar pausadamente a grande lição de santidade que acabara de ouvir. E vós também, pobres queridos, meditai diante de Deus o segredo de felicidade descoberto por um irmão de infortúnio. Não mais lastimar-vos ou maldizer-vos; achai em tudo azo para merecer esplêndido assento no Paraíso.

XV
DE UM MEIO SIMPLICÍSSIMO PARA QUE AS PRIVAÇÕES E A POBREZA NÃO NOS MORTIFIQUEM MUITO

Tal meio consiste em não olhar para os que estão acima, mas sim para os que estão abaixo de nós; consiste em bendizer a Deus pelos bens que possuímos, abstraindo daqueles que poderíamos, ou, talvez, deveríamos possuir.
Prática inversa requer a vida espiritual, onde o que cumpre é ter os olhos fitos naqueles que nos excedem.
Comparando-nos com os que nos são inferiores em virtudes, não nos resguardaremos de perigoso desvanecimento, e acreditaremos já fazer bastante, senão demais nos caminhos da perfeição. Sucumbiremos talvez à tentação de repetir a pretendida oração do fariseu no templo: "Senhor, dou-vos graças porque sou muito melhor que todos estes, muito mais virtuoso que eles; comungo frequentemente; faço mais obras de caridade etc." Releva pelo contrário, que nos ponhamos em paralelo com os bons servos de Deus, cuja presença só é bastante para nos deixar corridos de nossa frouxidão, e nos excita a prosseguir com ardor maior nos caminhos do Evangelho.
Quanto aos bens deste mundo, repetimo-lo, a regra adotável é a inversa. Feito o cotejo com aqueles que são mais favoravelmente aquinhoados, com facilidade, seja qual for a nossa posição, nos reputaremos dignos de lástima e ficaremos com o coração eivado de maus sentimentos de emuição. exasperação e tristeza.
Um proprietário riquíssimo, em bonita posição, que possuía pelo menos quarenta mil libras de renda, tinha tão grande pesar de não ser tão rico como dois próximos parentes seus, que quase perdeu o juízo. Repetia constantemente: "Pode-se porventura viver decentemente com quarenta mil libras de renda?" Este pobre rico não gozava; acreditava-se verdadeiramente pobre.
Os santos e os verdadeiros cristãos têm alma de outra têmpera: mais fiéis, são por isso mais razoáveis.
Bendizem a Deus pelo que se digna dar-lhes; pouco ou muito que seja, sempre estão contentes.
S. Francisco de Assis caminhava um dia acompanhado por um dos bem-aventurados, que foram de certo modo as primícias dos Mínimos. ele ia, como costumava, descalço, mendigando o pão, tendo como única riqueza o tesouro do Paraíso, Jesus Cristo, que trazia no peito assim como o Pai e o Espirito Santo. S. Francisco e o Irmão Masseo oravam enquanto caminhavam, e só deixavam a falar a Deus para falar de Deus.
Cansados, paravam em meio dos Apeninos, à margem de um regato límpido, no ângulo de um rochedo.
O Irmão Masseo abriu a sacola que continha as esmolas de que viviam  só restavam algumas crostas duras de pão muito seco, que foram colocadas entre ele e S. Francisco.
Depois de dar graças a Deus com angélico fervor, o Santo começou a chorar. Perguntando-lhe o companheiro a causa das lágrimas, disse: "Não posso deixar de comover-me e de bendizer a Deus pela liberalidade que prodigaliza a um pecador como eu, que não merece a magnífica refeição que aprouve a sua bondade de dar-me O Irmão Masseo, um tanto pasmo, olhava para as crostas de pão e pensava de si para si: "Magnifica refeição? Não é exigente o Irmão Francisco!" Respondendo a este pensamento, o Santo disse-lhe então: Olha, Irmão Masseo, e dize-me se não devemos bendizer a Nosso Senhor! Olha a água límpida que ele criou; para nós é que ela está aí correndo. Olha o céu formoso; foi para ti, para mim que Deus o fez. Estas belas árvores, estas flores, estes passarinhos; tudo isso pertence a nosso Pai e é para nós. Não basta para sustentar-nos este pão que ele nos dá? Sua bondade não nos trata muito melhor que a muitos outros, que não tem o que ora temos? Alegremo-nos, pois, e bendigamos a Providência, sem cobiçar os bens deste mundo."
Se cuidassem de nutrir o coração com pensamentos tais, quantos pobres, no meio de suas privações, não se achariam imediatamente remediados e aliviados?
Bem poucos há que, olhando para baixo, não encontrassem motivos de sobra para bendizer a providência. São tantas as misérias deste mundo, que difícil é não encontrar de pronto alguma que leve vantagem às nossas.
A regra expendida tem perfeito cabimento em relação àquelas pessoas que, sem lutarem propriamente com a pobreza, vivem em apuro de meios e sofrem privações relativas. Não há então proveito algum em alongar a vista por um passado melhor. Tendes o que é estritamente necessário: tantos outros não o tem, não o tiveram, não o terão! Ainda que modesto, tendes um aposento, um quarto vosso: tanta gente dormiu ao relento esta noite, ou então, tirilando de frio, teve por único abrigo miserável tugúrio, onde mal pode conciliar o sono! A vossa refeição é sóbria: sim; mas, por fim de contas, tivestes que comer e não conhecestes, assim como vossos filhos, os horrores da fome; ao passo que, ainda hoje mesmo, quantas centenas, quantos milhares de infelizes se deitaram sem ter comido coisa alguma, absolutamente nada, nem sequer um pedaço de pão!
Não obstante, pois, a realidade de vossas mais que penosas privações, não vos lastimeis. Pensai em outros mais pobres ainda. De que serve proceder de modo diferente? De que serve fomentar o que não temos, o que não podemos mais ter? Não é essa uma aflição sem proveito? Não é agravar o mal e ao mesmo tempo perder o mérito da resignação?
Sim, olhai sempre para os que estão abaixo de vós; e, com as esperanças, as forças e a paz que a fé dá aos verdadeiros filhos de Deus, misturáveis um sorriso às vossas lágrimas e bendireis o Pai celeste, que nunca vos abandonará.

XVI
QUE NOSSO SENHOR SE FEZ POBRE PARA CONSOLAR OS POBRES

A principal consolação do doente e do enfermo, é o amor de Jesus Cristo sofrendo e crucificado: a principal consolação do pobre, quase a única, é esse mesmo amor, é Jesus, contemplado na completa pobreza de seu presépio, de sua infância, de toda a sua vida e morte.
Por pobre que sejais, podeis ser mais que vosso Deus na manjadoura de Belém, tolhido de frio, privado de asilo, deitado sobre grosseira palha, que nem mesmo essa lhe pertence? Mais do que aquele que dizia: "As raposas tem uma toca e um ninho as aves do céu; mas o filho do homem não tem aonde repousar a cabeça?" Podeis ser tão pobre como Jesus, como vosso Senhor, que foi despojado das suas vestes e expirou nu sobre a cruz?
Jesus é indisputavelmente o Grande consolador de todos os pobres. O dulcíssimo Jesus chama a si os pobres do alto dos céus, do seio do Tabernáculo, onde o amor o retêm cativo "Vinde a mim, lhes diz com particular ternura; vinde a mim, vós todos, pobres queridos, diletos de minha alma! E vos confortarei.
Aprendei comigo que sou manso e humilde de coração; aprendei comigo a suportar a cruz da pobreza; e em mim encontrareis o repouso de vossas almas, Sujeitai-vos animosamente ao jugo pesado, que eu, vosso Deus quis primeiro carregar, não somente para salvar-vos, mas ainda para consolar-vos; meu amor vo-lo fará achar suave, e o peso que juntos carregarmos se tornará por isso mais leve!"
Sem Jesus Cristo é intolerável a pobreza, e concebe-se perfeitamente, sem deixar de o censurar, que um desgraçado, privado de tudo, sem pão, sem teto, sem amigos, perca a razão e no suicídio procure o aparente fim de seus males.
Conheci noutro tempo, em Paris, uma infeliz mulher, viúva de um empregado de inferior categoria, que, achando-se reduzida à miséria, tentou por três vezes suicidar-se. Era uma mulher honrada, segundo o conceito do mundo, mas que não tinha religião. Seu raciocínio era simples, e, no seu errado modo de ver as coisas, justo. A vida é, ponderava ela, um fardo esmagador. Prefiro morrer a sofrer quotidianas privações e humilhações."
Depois de convertida à fé, não sabia como agradecer a Deus a graça de a ter tirado do abismo eterno, em que loucamente se despenhava. "Duas vezes, disse-me, tiraram-me do fundo d'água já sem sentidos. Outra vez, uma vizinha entrou casualmente em minha casa, quando eu estava em termos de asfixiar-me; ela mal teve tempo de quebrar a vidraça com a mão. Onde estaria eu agora, meu Deus, se, a pesar meu, vossa bondade não me tivesse salvado?! Hoje, acrescentava a pobre velha, não tenho mais vontade de matar-me: sofro bastante, é verdade, e o futuro não se me oferece melhor que o presente; mas estou com Deus, e quando a aflição é muita, vou à Igreja, leio algum livro piedoso e penso que minhas angústias não serão eternas." Pelo fim da vida, esta boa senhora tinha-se tornado muito piedosa; comungava duas ou três vezes por semana. Nos dias em que comungo, — dizia, — esqueço minha pobreza e recupero alguma alegria."
É sempre a fé que falta-nos; temos-la; mas não fé viva, prática. Se a tivéssemos, os espinhos da pobreza converter-se-iam quase em rosas, e, imitando os santos  que foram pobres, bendiríamos a Deus, mesmo cortados de privações. Faríamos como o pobre de Tauler; ou como Jó. E, se não pudéssemos subir tão alto, nos resignaríamos ao menos pacientemente, como o pobre Lázaro do Evangelho.
Conheceis essa bela historia, não é assim? O infeliz jazia à porta de um fariseu rico, que nadava na abundância, vestia-se esplendidamente e todos os dias banqueteava-se com os amigos. O pobre Lázaro morria à fome; debalde espera que o rico fariseu se lembrasse dele. Algumas migalhas daquela mesa tão opípara bastariam para matar lhe a fome e ninguém as dava, não com o propósito de lhas recusar, mas porque não ocorria o pensamento de dá-las. E Lázaro, coberto de úlceras, saciado de angústias, as oferecia em silêncio a Deus.
Afinal morreu, e, diz-nos o Evangelho, foi levado pelos Anjos para o seio de Deus.
"Como? Para o seio de Deus? dir-se-há talvez. O que fizera de mais para ir assim direto para o céu?" — Tinha sido pobre e resignado: nada mais.
Algum dia, no céu, bendireis a pobreza que tanto sofrimento agora vos impõe. Sim, haveis de bendizê-la; mas, mediante uma condição só: tê-la suportado com fé, resignação e humilde mansidão. Ser pobre não dá por si só direito ao céu; nem tão pouco o fato de ser rico basta para precipitar a qualquer no inferno. Se está escrito a respeito do mau rico do Evangelho, que "ele morreu por sua vez e foi sepultado no inferno" não quer isto dizer que todos os ricos serão condenados. Não, graças a Deus! condenados serão os que usarem mal da riqueza, e esquecerem os pobres. O rico se salva por meio da caridade; o pobre, por meio da resignação e da paciência.
Assim, pois, para o pobre, que tesouro é a resignação! E com que profunda alegria deve ele ler, através das lágrimas que a miséria lhe arranca, as grandes palavras do Filho de Deus: "Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino de Deus!" Para salvar-vos, para fazerdes admiravelmente penitência, para adquirirdes imensos merecimentos, só basta aceitar de bom grado a adversidade, que é inevitável, basta só receber com mansa resignação o próprio destino.
Para vós, muito mais que para os ricos, é fácil a salvação: enquanto tudo os afasta de Jesus Cristo, impelindo-os ao orgulho e à voluptuosidade, tudo vos encaminha para Jesus Cristo, para o céu, arraigando-vos na humildade, na penitência e na submissão a Deus.
Quantos pobres estão no céu, que estariam no inferno se tivessem sido ricos! E quantos ricos estão no inferno, que estariam no céu, se tivessem sido pobres!

XVII
DE COMO AS HUMILHAÇÕES SÃO CAUSA DE PUNGENTES SOFRIMENTOS

Humilhação: quantas amarguras contém esta palavra! É o sofrimento íntimo do amor próprio, isto é, do que há mais vivaz e mais profundo na nossa natureza corrompida. O amor próprio é o amor de nós desordenado, que começa pelo espírito e então recebe o nome de orgulho.
A humilhação é o irritamento doloroso desse amor próprio do espírito; fustiga, mortifica diretamente o orgulho. Por isso, ela constitui um dos mais acerbos sofrimentos, de que o homem é suscetível.
"Mas então, — dir-se-há — é excelente a humilhação? — A humilhação é como a doença: de se, é mal, desordem que o homem não conheceu no estado de inocência; em seus efeitos, pode ser bem, e até grande bem, "Senhor, dizia um soneto penitente, bom foi que eu tivesse sido humilhado; por este meio aprendi a conhecer os caminhos da justiça."
Em verdade, quando cristãmente aceita, é a humilhação assinalada graça; torna-se o mais eficaz remédio para debelar o mais perigoso dos vícios, o orgulho.
Quando a aceitamos assim, ela nos torna facilmente humildes; em tal caso, nos exalta, afim de conduzir-nos para Deus.
"Aquele que se humilha, será exaltado" diz o Evangelho. E qual é aquele que se humilha? É o cristão corajoso, que se não rebela contra a humilhação; é aquele que a aceita, como Jesus Cristo aceitou todas as humilhações, todos os aviltamentos de sua vida e de sua Paixão.
Para o cristão verdadeiro, a humilhação é como o adubo que fecunda e torna produtiva a terra. O cristão humilhado, que sinceramente se humilha, absorve a seiva divina da humildade e torna-se prodigiosamente fecundo em verdadeira santidade.
A humilhação assemelha-se ainda a remédio amargo, repugnante, mas eficazíssimo: como bom médico, Nosso Senhor o aplica misericordiosamente a quem lhe apraz; aos que logram boa saúde, isto é, aos humildes, para torná-los ainda mais humildes, para fortificá-los na humildade; aos doentes, a saber, aos vaidosos, aos orgulhosos, aos presunçosos, aos hipócritas, para curá-los como que a pesar deles; De fato, dá-se com a humilhação o mesmo que com a pobreza: para fazer penitência quando somos pobres, basta que nos resignemos e digamos: Amém — a privações forçadas; assim também, quando somos humilhados, basta, para sermos humildes, que não nos rebelemos contra a humilhação e aceitemos de bom grado males inevitáveis.
Os que assim praticam aproveitam o remédio; aqueles que se rebelam, não o aproveitam e perseveram no orgulho, que mais dolorosamente lhes faz sentir a amargura da humilhação. Deste modo, o mal se lhes duplica, ao passo que para os outros se converte em bem.
Somos neste mundo expostos a humilhações de natureza muito diversa. Assim, somos às vezes humilhados internamente e diante de nós mesmos; outras vezes, externamente e diante de uma ou de muitas pessoas.
Podemos ser humilhados justamente, tendo-o merecido; ou injustamente, sem culpa alguma de nossa parte. Podemos ainda ser humilhados por homens de bem, por nossos pais, por nossos legítimos superiores; ou, pelo contrário, por miseráveis, pela mais aviltada criatura.
Por vezes a humilhação é um acidente passageiro: outras vezes dura e torna-se permanente.
Qualquer que seja o modo de que se revista a humilhação, ela importa sempre pungente sofrimento. Porém uma das mais acerbas humilhações, por isso que a reforçam todas as privações materiais e do coração, é por certo a que acompanha os transtornos de fortuna e de posição e a miséria recatada. Que torturas nesse casebre onde definha de fome e de frio uma pobre família que já foi rica, ou pelo menos remediada! Uma vez, em Paris, dei com uma infeliz senhora, apenas com quarenta anos de idade, que tinha ido esconder sua confusão e seu desespero não em um quarto nem em algumas águas furtadas, mas em uma espécie de miserável desvão de guardar lenha, onde ela tiritava de frio, vestida de linho no coração do inverno, e só tendo perto de si um pedaço de pão duro e um pouco de água! Alguns anos antes habitava belos aposentos, onde seu pai dava esplêndidos saraus. Uma transação malograda em um só dia trouxe a miséria; o desgraçado pai morrera de desespero; e a filha, abandonada pelos amigos ao mesmo tempo que pela fortuna, via-se reduzida ao triste extremo já descrito. Não ousava, digamo-lo assim, sair do seu escondrijo, e preferia morrer de fome a esmolar.
Na mesma rua, outra família reduzida à miséria foi surpreendida um dia quando estava à mesa. Ao redor desta, estavam sentadas quatro pessoas; o pai, a mãe uma moça e um rapaz, No meio da mesa havia um só prato contendo, cinco ou seis crostas de pão duro: uma garrafa com água e dois ou três copos. Nisto cifrava-se o jantar todo dos infelizes, aos quais muito penalizou terem sido surpreendidos na hora da sua refeição.
O pai trajava de preto, e, à primeira vista, com tal ou qual decência. A pobre mãe só tinha um vestido, preto, muito usado e remendado. O filho, macilento e quase lívido, sofria do peito em consequência de prolongadas privações. Quanto à moça; que dia e noite trabalhava para sustentar mais ou menos a família, tal era a sua magreza, que parecia um cadáver ambulante. Alguns dias depois, ficou louca; e os médicos verificaram, que o transtorno do cérebro proviera evidentemente das torturas morais e físicas que a miséria recatada impusera a essa infeliz.
Muito tarde se teve conhecimento da existência desta família, que outrora vivera na abastança. Desesperado com a loucura da filha, e, sem dúvida perdendo também a razão, o pai afogou-se. Não podendo resistir mais, e ralada de desgostos, a mãe começou a escarrar sangue e morreu ética. Tendo ficado só no mundo, o pobre rapaz tentou por algum tempo lutar contra a adversidade por meio do trabalho; mas faleceram-lhe as forças, e foi morrer no hospital.
Um dia que eu fôra à casa desta infeliz família, notei que ela possuía um cão. Observando eu que não haveria facilidade de sustentar este animal: É certo, respondeu-me a desgraçada mãe; trata-se de simples gratidão: durante uma semana inteira este cão, nos livrou da morte. Não tínhamos para comer absolutamente nada; não ousávamos declarar isto a pessoa alguma.
Duas outras cozinheiras da casa tomaram afeição ao animal; e ora uma, ora outra nos traziam para ele alguns restos de comida; e, acrescentou, contendo um suspiro, nós participávamos de sua ração. Compreendeis agora, senhor, que não tínhamos ânimo de nos privar dele."
E fatos destes, que cortam o coração, são muito comuns, principalmente nas grandes cidades.
Santo Deus! grande mal deve ser o orgulho para que chegue a provocar tão rigorosa punição! E quão grande é a vossa misericórdia, que converte tão pungentes sofrimentos em remédio salutar!

XVIII
O QUE NOS CUMPRE FAZER QUANDO SOMOS HUMILHADOS

Importa evitar dois extremos, duas ilusões sob as quais refugia-se o amor próprio ofendido: a irritação o a insensibilidade. Nenhuma das duas coisas é própria de cristãos.
Justa ou injusta, venha de quem vier, a humilhação produz, como efeito natural, irritação ou indignação; o rubor sobe em ondas ao rosto; o sangue borbulha no cérebro; a cólera abala o coração e o corpo todo. Força é conter energicamente esse primeiro assomo do orgulho, ou mesmo do que há de legítimo no amor próprio; porque, em caso algum, diz a Escritura, a cólera do homem move a justiça de Deus.
O outro excesso é tal ou qual prostração interior, uma espécie de abatimento, de desânimo que, não sendo combatido, para logo redundaria em apoucamento moral, degradante de todo, indigno não só de cristãos, mas também de homens de bem.
Quando formos humilhados, não devemos ser nem altanados nem disfarçados: sejamos firmes e humildes.
Nisto consiste a verdade, a verdadeira regra cristã.
O servo de Deus deve viver habitualmente nessa paz, forte e suave, que é filha da habitual presença de Deus, da pureza de consciência e da preocupação da eternidade. A paz em que sua alma está consolidada vem a ser então fácil escudo, com que se cobre contra as humilhações que sobrevêm.
Quando falta de antemão essa fidelidade, mais difícil é resistir aos embates; mas, com a graça de Deus, ainda se logra vitória. Em casos tais, a estratégia consiste em curtir silêncio, que é arma defensiva de primeira força; ele permite que a alma, de pronto e facilmente, se eleve até Deus, se una a Nosso Senhor e lhe implore socorro: "Senhor! vinde em meu auxílio! Livrai-me da cólera! Dai-me vossa paz, vossa brandura, vossa paciência."
Cumpre também que, em tais ocasiões, profundamente nos humilhemos diante de Deus. "Senhor, sou apenas um pecador e mereço ser humilhado. Já que o permitis, meu Deus, é que eu mereço sofrer assim, Nada de orgulho e de amor próprio! Jesus, manso e humilde do coração, tende piedade de mim!"
E depois, relancemos os olhos sobre nosso Deus, abatido, saciado de opróbrios durante sua Paixão.
Como Ele, com Ele, tudo suportemos em silêncio, e perdoemos, por seu amor, àqueles que nos ultrajam.
Quando tivermos oportunidade, quando estivermos a sós com Deus, de novo meditemos na Paixão, esse grande calmante de todas as dores humanas; transportemo-nos em espírito ao Pretório, ao Calvário; contemplemos o nosso cabeça, aquele de quem somos membros vivos, a quem devemos seguir e imitar! Chamam-no de mentiroso, de impostor, de louco, de blasfemador; chasqueam dele; imputam-lhe atos que não praticou; emprestam-lhe palavras que não proferiu; a Ele, que era a inocência infinita, prendem como um facinoroso; arrastam-no à presença dos juízes; ferem-no; escarram-lhe no rosto; condenam-no a morrer infamemente entre dois ladrões. E Ele não descerra os lábios! Tendo voluntariamente tomado a si os vossos, os meus pecados, que merecem toda a humilhação, ele reconhece, com amor e apesar de sua inocência divina, prostrado diante do Pai Celeste, que todos esses humilhantes ultrajes lhe são devidos. Por isso não se queixa. Por isso se humilha até a morte e até a morte da cruz, afim de obter para nós a graça de o imitarmos.
Nas humilhações, principalmente se forem grandes e prolongadas, busquemos a Jesus por meio da comunhão. Unamo-nos, o maior número de vezes e o mais intimamente que for possível, ao divino Humilhado, ao humilde por excelência, e bebamos em seu sagrado coração a paz sobre-humana, a humildade e mansidão, que irradia, digamo-lo assim, de sua Paixão.
Tendo-se Jesus Cristo no coração, não é difícil ser humilde. Com Ele, alegremente suportam-se ultrajes e desprezos, calúnias e insultos, as injustiças dos homens; em suma, a dolorosa provação das humilhações.

XIX
AOS QUE SÃO PERSEGUIDOS POR CAUSA DO SERVIÇO DE DEUS

Há duas espécies de perseguições: grandes e pequenas; as pequenas são frequentes e delas quase ninguém se exime; as grandes põem em risco a vida, ou, pelo menos, a liberdade, e, graças a Deus, raramente se exercem com encarniçamento. De ordinário, a piedade motiva as primeiras; na infância ou na adolescência tem-se de viver entre companheiros irreligiosos; começam estes a fazer zombarias e serrazina; distribuem alcunhas ridículas ou injuriosas. Se a tudo isto resiste a nossa piedade, ei-los que se atiram às vias de fato e às vezes excedem todas as marcas.
Conheci um menino que, posto pelo pai num colégio em que só havia religião nos estatutos, foi assim perseguido um ano inteiro, de modo inacreditável.
Pretendiam os condiscípulos impedi-lo de rezar todas as noites antes de se deitar. Só lhe davam os nomes do Tartufo ou Judas; como ele tinha só dez anos e os outros todos eram mais velhos, e portanto mais robustos, o espancavam a cada passo. O corajoso menino não cedia do seu propósito. "Não me impedireis — dizia — que eu cumpra o meu dever." Ficou isolado como um geriá; não brincavam com ele os outros meninos, e quando lhes falava não lhe respondiam. Chegaram as coisas a tal ponto, que o bispo teve conhecimento dos fatos, e quis ver e animar a infeliz vítima, conseguindo que os pais desse corajoso menino cristão o colocassem em um estabelecimento de educação, que fosse menos indigno dele.
Não menores contrariedades teve de sofrer, num liceu, um rapazinho de quinze anos, que conheci.
Traziam-no numa dobadoura, somente porque se confessava e zelava sua moralidade. Condenaram-no ao isolamento por dois ou três meses. Quando os condiscípulos souberam, que a família, de tudo informada, estava no propósito do retirá-lo do liceu, foram espontaneamente, e enleados, pedir desculpas ao moço cristão e rogar-lhe que se não retirasse, fazendo protestos de respeitá-lo daí em diante. Mas ele, tão corajoso então, como fora antes, respondeu-lhes: “Perdoar-vos sim, mas ficar em vossas infames companhias não há quem o possa conseguir de mim." Distinto magistrado hoje, a vítima da serrazina colegial de outrora conserva o fervor de um anjo.
Muitas vezes, nem no seio da família se deixa de encontrar essas perseguicõezinhas de todos os instantes. E como nesse caso são penosas! Colocam-nos na contingência de resistir a quem só obediência devemos; de resistir a pais que não são bastante cristãos para poderem compreender a piedade: no conceito destes, é exaltaçam o fervor; não admitem que os filhos frequentem os sacramentos, tenham devoção, ou adotem qualquer prática piedosa. Proíbem que se faça aquilo que o confessor aconselha; ordenam que se faça aquilo que ele proíbe. Quantas almas de moços sofrem essa perseguição doméstica!
Qual o alvitre que lhes cumpre então adotar? Só é possível em tais casos estabelecer indicações muito gerais; porque tudo depende de circunstâncias particulares, e cabe ao tino e à prudencia de cada um achar o meio termo entre a condescendência que é devida à autoridade paterna e a fidelidade que cumpre guardar à voz da consciência. À consciência não se pode sacrificar a pessoa alguma, nem mesmo aos pais; mas, para que se discrimine da consciência o que não passa de escrúpulos ou de ilusões, convêm seguir os ditames de algum confessor esclarecido, ou, em falta dele, de alguma pessoa de sólida piedade, que esteja ou se tenha mostrado no caso de dar bons conselhos.
Desdo que o homem sabe claramente o que pode e o que deve fazer, cumpre ter firme resolução e nada temer: então a verdadeira prudência consiste na energia, e a paz será consequência da fortaleza que a fé produz. Façamos a vontade de Deus por nós conhecida, e demos de mão a tudo o mais. Cumpre obedecer antes a Deus que aos homens.
A maior parte dos santos foram perseguidos pelos seus; lágrimas tão abundantes como amargas banharam as primeiras manifestações de sua vocação. Santo Tomás de Aquino, quando apenas tinha dezoito anos, teve de suportar, por parte de sua família, não somente maus tratos, mas também uma espécie de prisão. Sem chegar até esse extremo, S. Francisco de Sales teve de lutar muito tempo contra o descontentamento e o desespero de seu pai. S. Francisco de Assis foi vítima das injúrias e desabrimentos não só de seu pai, que o tratava de louco, como de seu irmão, que não perdia ensejo de o ridicularizar e humilhar. E S. Estanislau Kotska, que foi obrigado a fugir e a atravessar a pé quase toda a Europa, para poder chegar a Roma, e entrar no noviciado da companhia de Jesus! E tantos outros, para não dizer todos! Imitemo-los, não em suas obras maravilhosas e verdadeiramente inimitáveis, mas no espírito de fé, na perseverança, corajosa fidelidade e desprezo dos respeitos humanos.
Quando sofrermos perseguição por amor de Jesus Cristo, cumpre então que redupliquemos as orações, que nos firmemos na humildade, na paz e na mansidão e comunguemos com maior frequência. Sofrer com fidelidade esta pequena e mui séria provação, redundará em grande proveito espiritual, sem falar na bela recompensa que foi prometida a todos aqueles que sofrem perseguição por amor da justiça.
Ah! nem todos resistem até o fim. Terminava a educação num excelente colégio, em Paris, um moço filho de família abastada. Tinha na virtude a mesma primazia que lhe cabia nas aulas: era estimado e querido por mestres e colegiais.
Modelo de louvável e verdadeira piedade, comungava três ou quatro vezes por semana e era o incitador e a alma de todas as boas obras, assim como de todos os divertimentos. Concebera havia muito tempo o firme propósito de consagrar-se a Deus na santa Companhia de Jesus.
Ao pai, que estava na América, escreveu pedindo-lhe que abençoasse seu projeto e sua vocação. O pai embarca sem perder tempo; de improviso chega ao colégio, onde seu filho tão brilhantemente estava a terminar os estudos, manda chamar a este, o leva consigo na presença de todo o corpo colegial, declarando que jamais consentiria no projeto do filho. Entretanto, este pai não era irreligioso: pelo contrário; e não sendo dirigido por Jesuítas o colégio, onde ele próprio tinha colocado o filho, coisa alguma autorizava tão extraordinário procedimento. Hábil, infernal perseguição foi assestada contra o moço. O pai obrigava-o a ir a todos os espetáculos públicos e bailes, e a todo o transe queria torná-lo mundano.
Era bastante rico: exigiu que o filho trajasse com todo o apuro e afetasse os modos dos moços mais perdidamente extravagantes. Chegou até a fazê-lo travar relações perigosas, preferindo que ele perdesse a moralidade a que perseverasse na vocação manifestada.
Era um assédio em termos.
Entretanto, passados seis meses, ainda a cidadela não oferecia brechas. De feito, dizia o mísero perseguido a um amigo íntimo: "Vês este quarto: é o confidente de muitas lágrimas. Esta noite voltamos do baile mascarado às quatro horas da madrugada; e até amanhecer levei a chorar e a orar aqui, de joelhos, diante deste crucifixo." E o assoalho, no lugar indicado estava ainda úmido de lágrimas. "Esta luta incessante, — acrescentou, — acabará por matar-me. Não sei se poderei resistir por muito tempo."
Assim foi. O miserável pai cantou vitória. Perdido o filho, impossível foi contê-lo mais, pois consagrou ao mal todo o ardor e toda a fortaleza que outrora tivera para o bem. Aos vinte e seis anos, gasto pelas depravações, morreu sem sacramentos, em sombrio desespero, amaldiçoando o pai e amarrotando nas mãos a carta de uma infeliz a quem atirara na perdição.
A todo o custo e desde logo este desgraçado deveria ter se subtraído ao indigno abuso de poder de que foi vítima. A ninguém assiste o direito de interpor-se entre Deus e sua criatura; e cabia neste caso, ou então jamais caberá, proclamar o oraculo do Salvador: "Não é digno de mim aquele que ama o pai ou a mãe, os irmãos ou as irmãs, a mulher ou os filhos, a fortuna ou a vida mais do que a mim."

XX
COMO DEVEMOS SUPORTAR A ACERBA PROVAÇÃO DA PERSEGUIÇÃO PROPRIAMENTE

A perseguição verdadeira, a grande perseguição é a tempestade que de vez em vez os furores da impiedade ou da heresia sublevam contra a Igreja. É sempre mais ou menos violenta; exerce seus rigores principalmente contra os cristãos proeminentes, e ainda mais contra os sacerdotes e os religiosos. Quando não pode encarcerar, corta todos os meios de defesa, ultraja, vexa de mil modos.
Para levar a cabo sua empresa, o perseguidor, isto é, o demônio, serve-se dos perseguidores; as mais das vezes serve-se daqueles que governam, desvairando-os, levando-os a promulgar supostas leis, enchendo-lhes a boca de belas palavras: razão d'estado — soberania nacional — salvação pública — reforma dos abusos — repressão do fanatismo e da reação — e outras mentiras quejandas. Não são estes os palavrões com que todos os dias são atroados céus e terra?
Nada de ilusões: a perseguição está sempre e sempre iminente. Desde Lutero e Calvino, desde Voltaire e Robespierre não adormeceu, digamo-lo assim, um instante sequer. Como um vulcão, reboa surdamente, e a espaços faz erupções. Estejamos sempre prontos: porque ninguém sabe o dia, nem a hora.
Comecemos por não estranhar, se a virmos empenhada em caluniar-nos e em pôr-nos fora da lei, "Não vos admireis — diz-nos Jesus Cristo — se o mundo vos odiar. Não me odiou em primeiro lugar? Odeiam-vos porque sois meus discípulos. O discípulo não é superior ao Mestre: perseguiram-me; perseguir-vos-hão também. Mas, não os temais; não temei aqueles que só matam o corpo e que depois nada mais podem. Não temei, rebanho diletíssimo; porque a vosso Pai celeste aprouve dar-vos o seu reino, Tende confiança; eu venci o mundo."
A perseguição é o pão quotidiano da Igreja na terra.
O ódio e a perseguição dos maus, sob certo aspecto, é favorável indício. A S. Agostinho escrevia outrora S. Jerônimo: "Sempre vos consagrei acatamento e amo Nosso Senhor que em vós habita. O mundo inteiro exalta vossa coragem: os católicos vos admiram e reverenciam como defensor da verdadeira fé; e, o que é mais glorioso ainda, todos os hereges vos detestam."
Se nos parecêssemos com os maus, estaríamos acobertados de sua sanha. A quem o demônio e seus instrumentos perseguem na nossa pessoa é a Jesus Cristo, que em nós vive, e do qual somos membros terrestres. Não é bastante glorioso sofrer por amor da verdade e da justiça?
Quando a perseguição, como mar sanhudo, cobrir-nos com suas vagas e salpicar-nos de espuma, tenhamos bem presente no espírito essa verdade. Por meio de uma vida bem santa, bem pura, por meio de fervorosíssima oração conservemo-nos, mais estreitamente que nunca, unidos a Jesus Cristo. "Velai e orai — diz-nos Ele — para que não sucumbais na provação." Os Apóstolos, no momento da Paixão, desampararam seu Mestre, porque não tinham orado bastante. Portanto, quando estiver iminente a perseguição, ou quando desenvolver já seus rigores, oremos, mais e melhor que de costume, e frequentemos mais amiudadas vezes e mais santamente os sacramentos da Igreja, fonte de toda a fortaleza.
Não nos aflijamos se os perseguidores nos despojarem dos bens da fortuna: nosso verdadeiro tesouro, que é Jesus Cristo, não no-lo podem arrebatar.
Se chegarem ao extremo da violência material, não esqueçamos que seus predecessores fizeram outro tanto, a nosso Deus. Calemo-nos e soframos com este. Quantas forem as violências, tantos serão os nossos florões de glória eterna.
Se nos arremessarem nos cárceres, entremos neles, e aí permaneçamos pacificamente com Jesus, companheiro dulcíssimo, que também foi atirado nas prisões do Templo, onde, durante toda a noite que precedeu a Sexta-feira Santa, só, desamparado dos homens, esteve à mercê dos soldados judeus. Ele desce às prisões e cárceres para acompanhar seus servos fieis.
Se nos exilarem, se nos deportarem, vamos com Deus!
Para o cristão a verdadeira pátria é em todos os lugares; porque, como Ouvi uma vez um velho sem fé consolar um pobre coitado que acabava de perder a mãe. Eis o melhor conceito que ele pôde sacar dodizia S. Agostinho, "Jesus Cristo é a pátria e a habitação de nossa alma."
Finalmente, se nos acusarem de crimes fantásticos; se nos condenarem à morte, porque somos de Jesus Cristo, porque queremos ficar fiéis a seu Vigário e à sua Igreja, porque detestamos a impiedade dos maus e suas leis sacrílegas, ah! tenhamos bastante fé para graças a Deus, que nos julga dignos de sofrer e de morrer por Ele! Soframos e morramos com o nosso Salvador, com Ele, por amor dEle. Isso tudo dura um momento só, e a recompensa será eterna!
Por isso, um dos recentes mártires de Ton King, o jovem missionário Teófano Venard, caminhava jubiloso para o lugar do suplício; o generoso mártir, ao algoz que se oferecia para degolá-lo de um só golpe, respondeu com fervor: "Quanto mais durar, tanto maior valor terá o tormento!"
E esse o espírito que deve animar-nos.
De fato, a fé transforma em heróis o mais pusilânime dos homens. A fé, fé viva, fé ardente é que produz os mártires. Peçamo-la humildemente a Jesus Cristo, "Autor e Consumador de nossa fé," como lha pediam os santos mártires: ele no-la concederá.
Uma fé assim professavam e confessavam de antemão todos aqueles que, desde o começo, viveram e morreram pelo verdadeiro Deus. "Pela fé — diz o Apóstolo S. Paulo — eles venceram os reis, inutilizaram a goela dos leões; extinguiram os ardores do fogo, embotaram o fio das espadas. Fracos, triunfaram; tornaram-se heróis no luta. Uns tiveram os membros desconjuntados, não querendo resgatar a vida deste mundo, afim de se tornarem dignos de uma ressurreição melhor; outros, afrontaram insultos, violências, grilhões e cárceres; foram apedrejados, serrados, postos à prova nos suplícios; foram mortos a fio de espada. Eles, de quem o mundo não era digno, foram obrigados a fugir, despojados de tudo, reduzidos à miséria, às angústias, às mais acerbas aflições! Vagavam nos desertos, escondiam-se nas montanhas, nos antros e nas cavernas da terra."
"E nós, — continua S. Paulo, — nós, que temos diante dos olhos tão grande, tão esplêndida plêiade de mártires, calquemos aos pés o pecado que nos rodeia e voemos, por meio da paciência, ao combate que nos é oferecido." Jesus Cristo, que combateu ao lado deles, também combaterá a nosso lado, com a condição única de lhe sermos fiéis, fiéis na vida e na morte.
Em tudo quanto diz respeito à pureza da fé, conservemo-nos humildemente unidos ao Papa, doutor infalível da Igreja; creiamos o que ele ensina; rejeitemos o que ele condena; não escutemos a qualquer que queira abandoar-se a parte, ainda que seja sacerdote e até mesmo bispo. Nos tempos de perturbação, de crise, de perseguição, releva, mais que em outro qualquer tempo, a união com o Vigário de Jesus Cristo por meio de obediência perfeita.
Roguemos a Deus e imitemos a coragem desse generoso católico, que, inda há pouco tempo, quando corriam os mais tristes dias da revolução de 1870, escrevia em face dos blasfemadores triunfantes: "Prometo, juro, tomo diante de Deus e dos homens o compromisso de reconhecer sempre a autoridade do Papa, obedecer-lhe sempre, crer o que ele ensinar, rejeitar o que ele condenar, de dirigir-me, nos domínios da crença, da doutrina e do pensamento, absolutamente conforme seus ensinamentos infalíveis, os quais foram, são e serão para mim, até meu último suspiro, o ensino do próprio Deus."
E depois, cumpre pedir quotidianamente a Jesus e a Maria o dom de fortaleza, um dos mais preciosos dons do Espírito Santo, que é particularmente necessário em tempos de perseguição. Foi ele que sustentou os mártires entre terríveis provações, nos cárceres, nas torturas. Foi ele que os fez triunfar de Satanás e dos algozes. Peçamo-lo, com instância, para nós e para nossos irmãos.
Emfim, tenhamos bem presentes as regras práticas, que a tal respeito dá-nos Nosso Senhor, em seu evangelho: "Eu vos envio como cordeiros no meio de lobos. Sede, pois, prudentes como serpentes e simples como pombas. Tomai tento nos homens; porque eles vos entregarão nas suas assembleias e vos flagelarão em suas reuniões.
E por minha causa sereis arrastados perante seus governadores e tribunais. Quando vos entregarem assim, não cogitai sobre o que tereis de responder; porque na ocasião vos será dado o que cumprirá dizer; porquanto não falareis vós, mas será o Espírito do Pai Celeste que em vós falará. E todos vos terão ódio por causa do meu nome; e aquele que perseverar até o fim, esse será salvo.
Quando vos perseguirem em um lugar, fugi para outro. Não os temais. Não temei aqueles que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes Aquele que alma e corpo pode lançar no inferno.
Estão contados todos os cabelos de vossa cabeça, e nem um só cairá sem o querer vosso Pai celeste.
Aquele que der testemunho de mim diante dos homens, darei testemunho dele diante de meu Pai que está nos céus; pelo contrário, aquele que me renegar diante dos homens, renegá-lo-ei também diante de meu Pai que está nos céus.
Aquele que não aceita sua cruz e que não quer seguir-me, esse não é digno de mim. Aquele que procura conservar a vida, perdê-la-á; e aquele que perder a vida por minha causa, tornará a achá-la."
Tais foram as palavras do Mestre. Profundamente gravemo-las na memória e no coração. Foram elas que produziram os mártires.
E Jesus Cristo acrescentava:
"Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos céus! Sim, sois bem-aventurados, quando os homens vos amaldiçoam e perseguem, e quando por minha causa eles dizem, mentindo, toda a qualidade de males contra vós."
"Bem-aventurados vós que agora chorais, porque um dia sereis, consolados! Bem-aventurados sereis quando, por causa do Filho do homem, os homens vos tiverem ódio, vos repelirem e saciarem de ultrajes, rejeitando vosso mome como maldito. Alegrai-vos então e estremecei de alegria: porquanto magnifica recompensa vos está reservada no céu."
Sofrer e morrer por Jesus Cristo! Não há para o cristão possibilidade de mais grandioso destino. Se o ensejo de colher esta palma se nos deparar algum dia, não o percamos.

XXI
AOS ENCARCERADOS E A TODOS AQUELES QUE SUPORTAM OS SOFRIMENTOS DO CATIVEIRO

Merecida ou imerecida a prisão, é sempre sofrimento cruel. Tão cara é a liberdade, quão pesada é a privação dela. Brutais tratamentos, que se lhes inflige, em extremo agravam a situação dos encarcerados; eis o que se poderia denominar circunstâncias agravantes da prisão: frio úmido e cortante durante o inverno, atmosfera abafadiça e infeccionada durante o verão, imundícia, fervedouro de animalejos, alimentação má e insuficiente, carência das coisas mais necessárias à vida, isolamento prolongado, ou, pelo contrário, perpétuo contato com ignóbeis e grosseiros companheiros, etc., etc. A cauda dos cometas sós ser mais extensa que eles; assim também essas consequências ordinárias da prisão constituem sofrimentos mais atrozes mil vezes que a privação da liberdade.
Grande consolo é para os que possuem os olhos da fé, que o encarceramento seja coisa salutar para a maior parte dos encarcerados; chama-os à reflexão, obriga-os a pensar — em Deus, — que então lhes abre os braços e o coração. De fato, quem dá mostras de compaixão e de afeto a esses infelizes, a não ser o capelão das prisões? Ora, o sacerdote é o próprio Jesus Cristo, que, pelo ministério de um homem, vem ter com o preso, afim de consolá-lo e ensinar-lhe a santificar a pena.
A reclusão torna-se assinaladíssima graça para o cristão, quando este aproveita essa espécie de retiro obrigado, para reconciliar-se com Deus e fazer penitência. Quantos míseros soldados conheci outrora na prisão militar de Paris, os quais a vida de tarimba tinha de todo corrompido; a embriaguez e a devassidão tinham-lhes servido de escada para chegarem ao crime, e a justiça militar, ao condená-los, fôra eco apenas da justiça de Deus. Mas, a justiça de Deus é tesouro de paternal misericórdia, o que se não dá com a justiça dos homens; muitas, as mais das vezes, bastava uma palavra só, um livrinho, uma simples demonstração de afeto para converter essas pobres almas. Muitos conheci eu que, dentro de um mês apenas, de perversos que eram, se tinham tornado cristãos verdadeiramente admiráveis. Acolhiam com prazer as privações e o ensejo que elas lhes forneciam à penitência. "Tudo isso pouco é comparado com os meus pecados —dizia um deles. Deus, que não era culpado como eu, sofreu muito mais por minha causa."
"Meu Padre, dizia-me outro, a quem eu dera um pequeno manual, e que o lia constantemente; meu Padre, se eu soubesse o que agora sei, e tivesse praticado durante toda a minha vida tudo quanto este livrinho recomenda, por certo não teria feito o que fiz, e não estaria aonde estou!"
Dizia-me outro, depois de uma excelente comunhão: "Ter sido preso e ter tido tempo de pensar alguma coisa em minha alma, foi ainda assim mesmo avantajado favor que Deus me fez. Sem esta prisão, eu ficava perdido. Para o futuro não tornarei mais a fazer o que fiz."
Restituídos à liberdade, certo, nem todos os encarcerados perseveram em tão boas disposições; mas, além de que a perseverança cristã é para todos geralmente ponto mais capital, muitos deles perseveram mais ou menos, e alguns há que até permanecem muito bons. Entre outros, tive ocasião de conhecer um, que fora condenado a dois anos de prisão, por deserção revestida de circunstâncias agravantes. Tinha fé, fôra educado cristãmente: a solidão e a desgraça para logo o converteram. Frequentava os sacramentos todas as semanas; orava quase continuamente; a já mortificante penitência da reclusão juntava mortificações voluntárias. Só lia bons livros, e por tal modo se houve, que logrou converter trinta ou quarenta companheiros de infortúnio.
Cumprida a pena, entrou no noviciado da Trapa, onde foi modelo de regularidade e de fervor. Não podendo ser trapista por motivos de saúde, entrou na ordem menos austera dos Irmãos de S. João de Deus. Alegre, humilde como uma criança, obediente, dedicado, desvela-se há muitos anos no serviço dos pobres incuráveis e alienados. "É inexprimível a felicidade de que gozo,— escrevia-me ele há pouco tempo; parece que estou já no céu."
Na verdade, a prisão, a cruel e sombria prisão, restituiu a muitas almas a verdadeira liberdade, e por conseguinte a verdadeira alegria, a verdadeira felicidade. Contava-me um santo religioso que, estando numa prisão de galés, a pregar missão, um desses infelizes, que saíra do meio de centenas de outros galés, veio ter com ele e referiu-lhe a paz sobrenatural que inundava-lhe a alma, durante mais de dez anos em que estava na calceta. "Foi, dizia—a divina misericórdia que me trouxe para as galés. Posto que não seja o autor do crime que se me imputou, contudo, eu era réu de grandes culpas em minha vida; e, a meu pesar, duvidava até do perdão. Depois que a humilhação e o sofrimento como que me envolveram, senti-me inteiramente mudado. Gozo profunda paz: sinto que Deus está comigo." Acrescentava o Padre que, em seu conceito, talvez fosse essa alma a mais admirável que vira até então.
Assim, pois, infeliz encarcerado, se este livrinho puder chegar até vosso ergastulo, acolhei-o com atenção; é um amigo. Não vos irriteis contra a pena que vos foi imposta, justa ou injustamente. Como esse bem-aventurado galé, indubitavelmente pecastes, e muito? Pois bem, aceitai a prisão como justíssima penitência. Acreditai-me, o ardente cárcere do Purgatório, e, ainda mais, a prisão eterna do inferno, são mais atrozes mil vezes que todos os cárceres da terra; ora, Deus, misericordioso, vos propõe a prisão que ora sofreis, no intuito de subtrair-vos àquela última. O negócio é vantajoso; aceitai-o de boa mente.
Mas, Nosso Senhor esteja sempre convosco em vossa prisão! Ela seria intolerável sem esta compania.
Transformai o cárcere em uma espécie de mosteiro em ponto pequeno (de fato, mosteiro, significa solidão, separação do mundo): estais obrigadamente só e separado do mundo; aceitai de coração prazenteiro uma desgraça de todo inevitável. O triste cárcere convertei-o em tranquila cela, onde Nosso Senhor entre convosco e onde possais gozar, sem estorvos, de sua dulcíssima e amável companhia. Se vosso coração for puro, nele habitará o Salvador. E, pois, tende particular empenho em conservá-lo sempre puríssimo, afim de que não estejais só. "Ai do que está só!" diz a Escritura Sagrada.
E sabeis o que atrai e conserva no coração o tesouro da pureza: é o sincero arrependimento do pecado; é a confissão, aparentemente tão custosa, excelente na realidade; é absoluta confiança no ministro de Deus, que vos é enviado como Anjo consolador; é a comunhão, comunhão frequente, que retempera a coragem, vivifica a alma, nutre a fé, dilata a esperança e alegra o coração. É a guarda da castidade; é a leitura do Evangelho, da Vida dos santos, e em geral de todos os livros bons. Se fizerdes isso, prometo-vos que vosso cárcere perderá quase toda a sua amargura, ou pelo menos a mansidão e a paz hão de confortar-vos. Fazei a experiencia e vereis.

XXII
DOS SOFRIMENTOS DO CORAÇÃO E PARTICULARMENTE DAS ANSIEDADES E ANGÚSTIAS A RESPEITO DOS ENTES QUE AMAMOS

É tão dolorosa essa espécie de sofrimentos que, ao suportá-los, parece-nos impossível que outros existam mais parentes: Na verdade, não há duvidá-lo, o coração é mais sensível que o corpo. De todos os nossos órgãos, é o coração talvez o mais delicado e o mais profundo; tocá-lo produza morte; assim também é o sofrimento do coração o mais pungente e o mais profundo de todos.
É também o mais nobre; porque busca-se tão somente na dedicação do amor. E atinge todos os amores: amor materno, amor conjugal, amor filial, amor fraterno, amizade, e, noutra ordem de ideias, amor da Igreja e amor da pátria. Ferido em qualquer desses santos e veneráveis afetos, o coração sofre tanto mais, quanto  mais ama.
As pobres mães conhecem por demais essas torturas.
Que coração materno não se premou de angústias diante do leito do filho gravemente enfermo, sobre o qual parecia estender-se a mão gelada da morte? Quanta lágrima vertida, de joelhos, diante do crucifixo! Que noites de insônia!
E, durante a guerra, quando o futuro parece mais incerto que o presente, como não é rasgado o coração de uma pobre mãe, que pensa na sorte possível, na sorte provável de seus filhos! "Onde está meu filho?... Que é feito dele? Já lá vão quinze dias, um mês e não tenho notícias: talvez tenha morrido? tenha sido ferido? esteja doente? — O que será de minha filha se tiver a desgraça de perder-me? Quem cuidará de sua saúde delicada, de sua educação? Quem tomaria a peito sua felicidade? A imaginação avulta e multiplica essas inquietações, e as transforma em verdadeiras angústias.
Quando se trata da salvação eterna, tudo sobe de ponto. A mãe cristã ver o filho, o filho querido, afastar-se de Deus, deixar os sacramentos, não cumprir o preceito pascal, proceder mal, algumas vezes até tornar-se criticador da religião e ímpio: que dor inexprimível! Quase me atrevo a dizer — que desespero! Oh! quantos Santas Mônicas existem ainda no mundo! refiro-me às santas mulheres, às verdadeiras mães cristãs, que choram noite e dia lágrimas de sangue! Os Agostinhos, os pobres e culpados filhos, nem cogitam no suplício que infligem: se lhes fora dado erguer a ponta do véu e enfiar a vista pelos abismos de dor que cavam rindo, teriam horror de si próprios; só isto bastaria para reduzi-los ao bom caminho.
A essas consternadas mães lembrarei as palavras que outrora, em Cartago, confortaram o coração de S. Mônica: "Tende confiança; é impossível que pereça o filho de tantas lágrimas." Cumpre que elas, como a mãe de S. Agostinho, se santifiquem e salvem seus filhos pródigos, por meio de oração incessante e de uma esperança, que não conhece desalentos; cumpre que, pela salvação dos filhos, elas façam esmolas e mais esmolas, penitências e mais penitências, comunhões e mais comunhões.
Conheço uma senhora de piedade que todas as sextas-feiras comungava pela intenção de seu filho primogênito, e todos os sábados, pela do filho mais moço; só tinha dois, e ambos, cedendo aos arrebatamentos e ao fogo da mocidade, se tinham divorciado de Deus. Conheci também outra, que mandava celebrar, quotidianamente, numa capela da Virgem Santíssima, uma missa de expiação e de misericórdia pelo filho igualmente transviado "Ah! meu Padre, — dizia-me um dia com os olhos rasos de lágrimas — as dores do parto duram sempre."
Dirijam-se essas pobres mães todos os dias, vinte vezes no dia, à Mãe das dores; peçam ao menos uma boa morte para esses rebeldes e insensatos, que tão obstinadamente recusam a graça de uma boa vida, muitas vezes, por acréscimo de graça, alcançarão também uma boa vida; e em casos tais, que larga recompensa para suas lágrimas!
Depois do amor paterno e materno, o mais entranhado e o mais íntimo de todos é o amor conjugal, também ele muita vez esconde uma espada que traspassa o coração. Quem poderá descrever o profundo sofrimento de um pobre marido, que vê baldados todos os esforços para impedir a jovem mulher de ficar doente do peito, por exemplo, ou de morrer tísica. E, quanto à esposa, quem poderá referir as ansiedades, as pungentes dores da ausência? particularmente em certas circunstâncias graves, em que o homem a quem ela deu o coração, o companheiro querido, cujo braço lhe tem servido de arrimo, sofre temerosos perigos? em tempo de guerra, por exemplo, principalmente como horrível sistema de destruição que hoje tem prevalecido? ou ainda, no caso de distante viagem, durante longa e perigosa pregação?
E esse mesmo amor, quando não correspondido ou traído, com que amarguras não envenena a existência inteira? Não É mais dor que punge, é a onda do desespero a assoberbar-nos; a vida despedaça-se; a felicidade fica para sempre perdida.
Não terminaria mais quem se propusesse a analisar todos os sofrimentos do coração, a contar, uma por uma, as cruzes que podem, como agudas flechas, se cravar no coração do filho, da filha, do irmão, da irmã, do amigo. E as tristezas da Igreja nos tempos calamitosos!
E as tristezas da pátria! Rasgam os seios da alma; laceram, torturam o coração.
Dores assim matam.
Santa Catarina de Sena declarava, no leito da morte, que não era a doença, mas sim a dor moral que lhe roubava a vida: "Só vejo, — dizia — motivos de aflição e de angústias: o Papa perseguido; a santa Igreja Romana desprezada pelos príncipes e pelos grandes da terra; mosteiros violados; os homens da oração esquecem o Senhor; superabunda o pecado; a abominação da desolação invadiu o lugar santo. É tempo de ir ter com Deus; entre tantos escândalos não poderia mais viver."
Neste, como em todos os outros sofrimentos, o refúgio e consolação que temos é Nosso Senhor Jesus Cristo. Entreabrindo o peito sagrado, mostra-nos Ele o Coração que tanto amou o mundo, e a quem o amor tanto fez sofrer! Jesus Cristo o que é, com efeito, senão o Amor encarnado e ao mesmo tempo o Amor não correspondido e desprezado? Seu Coração adorável conheceu todos os sofrimentos; e por maiores que sejam os que dilacerem o nosso, nunca passarão de uma gota, em confronto com o oceano de amarguras que afogou o Sagrado Coração de Jesus Crucificado.
Vamos ter com Ele pelos dois caminhos que em direitura conduzem a seu coração, a saber: meditação de sua Paixão adorável; e a Sagrada Eucaristia, em que tão pouco aquele coração dista do nosso.
Jesus acolhe nosso pobre coração cortado de dores, esconde-o dentro do seu, e tão estreitamente os une que a santidade e perfeição no amor, que enchem seu sagrado Coração, passam para o nosso e lhe servem de alma, vida, força, luz, pacífico e inabalável sustentáculo. Faz-nos então sofrer como Ele sofreu, com profunda paciência, com suave e dulcíssima humildade, com esperança mais que segura, com a própria fortaleza de Deus.
Demais, não esqueçamos o que já foi dito: pois que é inelutável o sofrimento, aproveitemo-lo ao menos; se choramos, oremos ao mesmo tempo, e não consintamos que a natureza domine a graça, o sentimento sufoque a razão; sem isso, perderíamos o mérito da cruz e o sofrimento seria dez vezes maior.
Nos transes do coração, como sempre, o grande empenho deve ser a nossa própria santificação, por meio de calma, enérgica e perseverante resignação, emanada do amor de Jesus Cristo.

XXIII
MODO DE SUPORTAR CRISTÃMENTE A PERDA DOS ENTES QUE NOS SÃO CAROS

Ainda no intuito de consolar-nos, quis Nosso Senhor provar dessa angústia do coração humano. Lázaro era apenas seu amigo; Ele ia ressuscitá-lo; sabia que a vida lhe seria restituída; entretanto, no intuito de os santificar, quis sofrer os dolorosos transes da perda de um ente estremecidamente amado; quis chorar; e "JESUS CHOROU" Diz expressamente o Evangelho.
Não há coisa mais santificadora que as lágrimas, quando são vivificadas pelo divino amor.
A morte dos entes que entranhadamente nos são claros, é, não hesitamos em dizê-los, a dor das dores: "Vedes este caixão, — disse-me um dia um desgraçado operário que, soluçando, acompanhava o enterro de seu filho único; dentro dele vai minha vida."
Outro pai dizia-me: "Só a perda de um filho tenho tido que chorar, e minha filhinha que morreu tinha três anos apenas. Pois bem, não hesito em dizer; preferiria seis vezes sofrer as angústias, aliás horríveis, da agonia, a ter de recomeçar semelhante tortura. Quem não curtiu estes transes não pode ter ideia deles."
Uma pobre camponesa tinha uma filha, dócil e amável criança de onze anos: Perdeu-a nessa idade, após longa e dolorosa doença. Vinte anos depois, a desgraçada mãe, vestida de luto pesado, chorava ainda. Ao pronunciar, ou quando ouvia pronunciar o nome da filha, contraía-se-lhe o rosto lívido, tremiam lhe os lábios e copiosas lágrimas rebentavam-lhe dos olhos.
A semelhante respeito não há diferença entre ricos e pobres. Uma senhora riquíssima e de elevada hierarquia perdeu, em consequência de desastre, um lindo filho, que tinha cerca de nove anos de idade. Verdade é que ela rebelou-se contra a horrível provação; mas, seu retalhado coração nem por isso deixou de sofrer, e mais profundamente. Seis ou sete anos mais tarde, nas elevadas sociedades onde lhe dava ingresso sua posição, nos salões, à mesa, em meio de qualquer conversação, a cada momento, silenciosas lágrimas rolavam-lhe pelas faces, o que a todos condoía, e tanto mais, que a vítima fazia desesperados esforços para contê-las.
Outra, que perdera um filho de dezesseis anos, enlouquecera durante mais de mês; o pai, mais animoso, tais esforços empregou para mostrar-se calmo, que um ataque de paralisia entortou-lhe o rosto. — Outra mãe ainda, esta também rica e até então feliz, esta, depois que há dez anos perdeu a filha, numa espécie de desvairamento, que a tudo tem resistido; não quer ver pessoa alguma; quase não fala. Ao que parece, para dores dessas é que foi inventada a expressão "dor louca".
Em verdade, é dor sem nome, dor louca para o coração materno a perda de um filho. A morte dos pais ainda que mais conforme com as leis da natureza, é quase tão dolorosa. Assim também, nos casais bem unidos, a morte do marido ou da mulher. Quando um dos dois parte, não há mais felicidade para o outro.
A viúva fica sem arrimo; o viúvo, sem consolação. Para qualquer deles o lar doméstico parece extinto; a casa vazia; e à ternura dos filhos de modo algum impede a perpétua e pungentíssima sensação do vácuo deixado pela morte.  "Perdendo minha pobre mulher, tudo perdi, dizia-me, há pouco tempo, um dos meus amigos, ótimo cristão e viúvo há três ou quatro anos; ela era a alegria do meu lar. Confiava-lhe todas as minhas mágoas; vivíamos na mais perfeita intimidade; e agora sinto-me só, absolutamente só, sempre só! Que serões tristes! Passo o tempo chorando e orando."
A morte espedaça duas existências, a de suas vítimas e a dos sobreviventes; ou, falando com mais exatidão, corta de um só golpe a vida de uns e o coração de outros.
Só a Religião e as suas esperanças infalíveis é dado confortar a alma em tão terrível transe. A fé é como que a raiz da alma cristã: a mão dulcíssima da esperança faz descer até essa raiz a água refrigerante que, a pouco e pouco, insinua-se na planta toda, a reanima, de pendida que estava a levanta, e não deixa que murchem as flores; por sua vez, a caridade, o amor de Jesus Cristo, vem qual tépido raio do sol e remata a ressurreição começada pela esperança. Então, o pobre coração recupera a paz, até mesmo a felicidade; não a da terra, mas a do céu: a felicidade da terra está para sempre perdida.
Uma piedosa e excelente senhora tinha uma filha que, desde a idade de doze anos, fora acometida de uma enfermidade singular, para debelara qual, a medicina, como tantas vezes acontece, tinha sido ineficaz. Tinha esta moça vinte e um anos; desde o começo da sua enfermidade, nunca mais se levantara da cama. Sofria muito e nunca se queixava; dócil, amável, resignada, afável para com todos, agradecida aos menores cuidados que lhe dispensavam, era objeto de edificação e de admiração geral. Havia longos anos que ela comungava todas as semanas, sempre que isto era possível. Fácil é compreender com que ternura a mãe amava semelhante filha.
Quis a bondade divina que eu lhe desse a Sagrada comunhão no dia do seu falecimento. Coisa alguma faria presagiar que a morte estivesse iminente. "Minha Irmã, — disse a jovem enferma à Religiosa que a estava tratando — podeis dar-me alguma coisa para beber?" Tendo recebido a xícara das mãos da enfermeira, a moça lha restituiu com um sorriso, dizendo: "Como sois boa!" E, inclinando a cabeça, exalou o último suspiro.
A mísera mãe estava presente. Mandou prevenir-me; vim imediatamente e na sua companhia orei perto do anjo que ela acabava de perder: Levantando-me, disse- lhe; "Grande deve ser a vossa infelicidade" — "Infelicidade? respondeu-me com brandura. oh! não! sofro bastante, sim, mas fico contente por saber que minha filha está com Deus."
Resposta igual também me foi dada por um infeliz pai, que acabava de ver partir para sempre um guapo e excelente moço de vinte e dois anos, o qual era o único arrimo de sua velhice. "O coração estala de dor — dizia-me, reprimindo os soluços; mas, ainda assim, no íntimo de minha alma há uma grande alegria: meu filho salvou-se! Sabeis o que para mim ele era; sabeis como eu o amava, como ele me amava: pois bem, se Deus mo quisesse restituir, não aceitaria. Meu filho está salvo, salvo por toda a eternidade! Tudo o mais nada vale." E acrescentava este digno pai: "Ao menos tenho na dor uma grande consolação: não me recordo de ter em tempo algum dado um só mau exemplo a meu filho."
Ide, vós todos que perdestes entes estremecidamente amados, ide chorar aos pés de Jesus! Ide ter com o Rei do céu, em cujo seio um dia encontrareis aqueles que
amastes no mundo. Eles não morreram, ainda que não estejam mais aqui, estão vivos, mais vivos que os que lhes sobreviveram; vivera a vida eterna, e essa vida ninguém já agora lha poderá tirar. É a verdadeira vida, da qual a da terra é apenas gérmen e preparação.
Um dia, talvez bem cedo, a vossa vez chegará, ireis ter com eles; os tornareis a encontrar com Jesus Cristo no seio de Deus. Que recíproca felicidade! Que abraços devem ser esses abraços da eternidade! De fato, no céu nos reconheceremos. Amar-nos-emos com o amor especial, que, na terra, tiver unido, puramente e conforme a vontade de Deus, os nossos corações: o filho amará o pai e a mãe com amor verdadeiramente filial; o amor conjugal e fraterno, a amizade até, não desaparecendo na vida eterna, pelo contrário divinamente se aperfeiçoarão; de si imperfeitos, esses sentimentos se divinizarão, se eternizarão. Tudo quanto de Deus procede é imperecedouro. Quão formoso e ótimo será amar assim com perfeição no amor infinito de Deus!
Tende em lembrança o que ensinam os infalíveis oráculos da revelação. "Quanto àqueles que adormecem no Senhor — diz S. Paulo — não vos entristeçais por sua causa, como os outros que não têm esperança. Não acreditamos, por ventura que Jesus morreu e ressuscitou? Assim Deus fará entrar no céu com Jesus aqueles que com Jesus morreram..... E eternamente estaremos com o Senhor. Consolai-vos, pois, mutuamente com estes pensamentos."
Quando S. João, arrebatado em espírito, escreveu o livro divino do Apocalipse, ordenou-lhe um Anjo que assinalasse estas palavras: "Bem-aventurados os mortos que adormeceram no Senhor! Agora descansem de seus trabalhos; porque as suas boas obras os seguem.
Finalmente, à irmã consternada de seu querido Lázaro disse o próprio Filho eterno de Deus: "Eu sou a ressurreição e a vida: aquele que em mim crer, viverá, até depois da morte. Todo aquele que vive em mim e em mim crê, não morrerá por toda a eternidade. Crês isto?" acrescentou Jesus. E a fiel Marta, prostrando-se-lhe aos pés e debulhada em lágrimas, respondeu-lhe: "Sim, Senhor; creio que sois o Cristo, Filho do Deus vivo, que viestes a este mundo."
E vós, que também chorais diante de um túmulo, acreditais o que Marta acreditava? E se acreditais, de que vos serve a fé? Crer é saber. Pois que sabeis com certeza infalível, que o ente tão querido e tão lamentado por vós, apenas passou da miserável vida terrena para a eterna vida que Deus reserva a seus eleitos; pois que nenhum receio bem fundado pode escurecer essa esperança; pois que sabeis, que esse ente querido se salvou, porque motivo desesperar? Porque razão haveis de ouvir só o brado da natureza? Por mais legítimo que ele seja CUMPRE, pois que sois cristão, que a voz onipotente de Deus de certo modo envolva e abafe esse grito dilacerante.
Aos pés de Jesus vão Marta e Maria chorar: é aos pés de Jesus que devem ser vertidas as lágrimas de todos os atribulados. E assim como o chumbo se torna líquido e brilhante em contato com o fogo; assim também, em presença do divino Jesus, se transformará e santificará vossa dor; trocará o travor em doçura, a violência em tranquilidade e paz; rebelde antes, ficará depois cristã, resignada, santa, edificante, meritória.
Deste modo o Santíssimo Sacramento é para nós neste vale de lágrimas foco vivo de consolações divinas.
Quando trajarmos luto por algum parente ou amigo, vamos para a mesa da Comunhão, para junto dos altares. Aí, e não em outra qualquer parte recuperaremos serenidade e calma.
Jesus Cristo, velado na Eucaristia, é o Rei do céu habitando a terra; é como o centro do céu que desce, vem unir-se conosco e nos atrai a si. Nele nos unimos, mesmo neste mundo, aos entes queridos que não estão mais conosco, mas sim com Ele e nEle no céu.
Quanto mais unidos estivermos com Jesus Cristo, mais nos uniremos com eles. Jesus Eucarístico é como um sol que projeta raios para o céu e para a terra: em direção ao céu, os raios são os Anjos e os Santos; em direção à terra são os fiéis. Com ele ficamos todos unidos, aunados, como todos os raios de uma circunferência que se reúnem no centro.
Aqueles que não tem esta consolação são dignos da maior lástima, O que mais lhes resta, a não ser sombrio desespero, que lhes embota o coração e entorpece todas as potencias da alma?
Sem que tentemos consolá-la, tenhamos também a maior comiseração da inconsolável dor daqueles que, tendo fé, veem morrer sem sacramentos, sem indícios de arrependimento, um parente, um amigo, um filho talvez, que vivia divorciado de Deus. Não há consolação possível para tais dores!
E, todavia, bom é esperar ainda contra a esperança; é bom orar, suplicar, gemer, mandar dizer missas, aplicar o merecimento das esmolas: de fato, quem pode  saber o que se passa entre Deus e a alma no momento supremo?

XXIV
AS INGRATIDÕES E DESENGANOS

São os homens naturalmente egoístas: as mais das vezes, ou antes, quase sempre, só nos amam e procuram com a mira no próprio interesse. O amor verdadeiro dá e dá-se a si; o egoísmo, que de boamente usurpa as aparências e até o nome do amor, limita-se a receber e a ensacar proveitos.
Por mais que não esqueçamos esta triste verdade, sempre o coração sangra dolorosamente diante da ingratidão. A intensidade do sofrimento está na razão  direta da força do amor consagrado ao ingrato e do maior direito que tínhamos à retribuição.
A um tempo a ingratidão contrista e indigna: contrista o coração que ama; indigna a consciência que se rebela.
A uma infeliz mãe, viúva havia pouco tempo, ficara um filho único, a quem desde a meninice consagrara todas as dedicações e ternuras, o que, na idade de 17 ou 18 anos, fazia toda a sua felicidade, era o seu único tesouro. O moço era cristão, inteligente, morigerado, recebera esmerada educação; tudo parecia augurar esplêndido futuro, quando parentes intrigantes e invejosos começaram a exercer influência sobre sem espírito. Devia ser algum dia muito rico, e por certo pretendia-se explorar essa mina. Conseguiram; indispô-lo contra a excelente mãe; exploraram o amor que tinha ao dinheiro e à independência; insinuaram-lhe no espírito meias dúvidas, receios a respeito da gestão de sua fortuna; de tal modo se houveram, que o infeliz chegou ao extremo de assacar as mais pungentes ofensas à sua mãe. — "Temos leis, — escrevia-lhe; já consultei advogados; não ignoro os direitos que me assistem, etc.”
Chegou até a falar em meirinho e em processo. E nem ao menos tinha ainda concluído os estudos!
Era extremo o desespero da infeliz senhora. "Choro dia e noite — dizia-me —Roubam-me o coração de meu filho! Ameaça-me com processos, ele que eu tinha na conta de tão bom, de tão dedicado! Meu filho, por quem vivo somente, única pessoa que tenho por mim no mundo, suspeita que eu quero roubar-lhe!
Esta senhora, felizmente, era fervorosa cristã; mui longa experiência lhe ensinara o que Nosso Senhor é para os que sofrem.
Sua nova desdita apenas serviu-lhe para redobrar-lhe o fervor. Todas as manhãs, no campo, onde residia, palmilhava quase uma légua, exposta a todas as intempéries, para ter a felicidade de ouvir missa e comungar.
Como a abelha carregada do precioso despojo, entrava ela em casa refeita de forças para passar o dia. "Eu creio — dizia — que se não fosse a comunhão, morreria de pesar."
Quantos filhos, ao crescerem, posto não cheguem a praticar tais demasias, se tornam pouco extremosos e ingratos para com os pais! Muitos, nas classes menos elevadas, não tratam muita vez os pais já velhos com a maior desconsideração, dando-lhes a entender a cada passo que são de mais em casa? Se não chegam ao brutal extremo de espancá-los, o coração, esse, todos os dias magoam.
Quão amargas lágrimas vi eu derramar uma descasada senhora, cujos três filhos, quando homens, retribuíam-lhe a dedicação de vinte e cinco ou trinta anos com a mais profunda indiferença, senão de modo ainda pior! Apesar de ser ela virtuosa e digna de todos os respeitos, tratavam-na com desdem mais penoso que a própria injúria; não faziam o menor caso de seus mais legítimos desejos, até mesmo de suas ordens. Muitas vezes a desconsideravam à mesa, em presença dos criados.
Ela não tinha um instante sequer de alegria; e quando não podia conter as lágrimas, os ingratos levantavam os ombros e falavam da sua "beatice". — "Era isto, meu Deus, o que eu devia esperar de meus filhos depois de tê-los amado tanto! exclamou a mísera um dia escondendo o rosto nas mãos. Quanto sofro! como sou desgraçada!"
A ingratidão é fato comum nos reviramentos de fortuna ou de posição. Já não me refiro aos homens sublimados em dignidade que, ontem no fastígio social, hoje já nada são; para eles a ingratidão é como pão quotidiano; é trivialíssima, é quase lei invariável. Refiro-me tão somente àqueles que não podem prestar mais serviços, que se veem reduzidos à condição de ser amados pelo que são e não a troco de qualquer interesse pessoal. Tem estes, e por demais, ensejos de reconhecer o travor destas duas palavras: ingratidão, desenganos. Ainda ontem, era tudo fagueiro, todos se desfaziam em estimas e afagos: hoje mais nada; mais nada, salvo dissabores e pungentes surpresas. "Quando um homem é rico — dizia-me há pouco uma dessas vítimas da fortuna, — tem amigos em toda a parte; mas esses apenas farejam apuro de meios, esgueiram-se como por encanto.
Gente que há três anos jantava em minha casa volta hoje a cabeça para não se ver obrigada a cumprimentar-me. Só a um a adversidade não mudou.
É doloroso isso!"
E no casamento quantos desenganos também. Antes, tudo era azul celeste: depois, tudo é sombrio, são contínuas tempestades a desabarem. A rosa da felicidade murcha a olhos vistos; cada dia cai uma folha e ao cabo de um ou dois anos só ficam os espinhos.
"Só tive três ou quatro dias de felicidade — dizia ao pai uma dessas vítimas da ilusão. Bem depressa descobri que me tinha atrelado ao carro do infortúnio. Meu marido mau e ríspido nunca soube o que era uma condescendência. A pretexto de exercer sua autoridade, é tirânico; a pretexto de exigir deveres, é importuno. Sou a mais desgraçada das mulheres. Se não fora a religião, nem sei o que faria. Momentos há em que foge-me a razão e tenho ímpetos de atirar-me pela janela abaixo."
Por sua parte o marido também se queixa amargamente.
"No casamento — repete a quem quer ouvi-lo — eu procurava a felicidade; só encontrei desenganos. Minha mulher é louca; não tem senso comum. Se eu não fosse cristão já teria feito algum desacerto.
Conheci uma infeliz moça, verdadeiramente encantadora, querida por todos, cuja vida quando tinha menos de vinte e dois anos foi amargurada pelo homem desalmado e sem honra a quem confiara seu destino. Muito pouco tempo depois de casada, percebeu que se tinha entregado a um miserável. Ele expulsou-a de casa juntamente com um filhinho, tratando-a como se não trata uma criada; e quando a pobre senhora, para proteger o futuro do filho, foi obrigada a tratar do divórcio, o desgraçado fugiu, carregando toda a fortuna e deixando a mulher e o filho quase na miséria.
Na flor da idade, com o coração alquebrado, sem esperança como sem ilusão, a probrezinha só de joelhos se consola.
O coração adorável do Salvador foi também saciado desse fel e vinagre. No jardim da Agonia, foi esmagado ao peso da ingratidão universal: não somente teve de suportar o desamparo de todos os discípulos, de todos os Apóstolos, daqueles, que mais ternamente deviam amá-lo; não somente viu-se traído e entregue pelo homem que admitira em sua divina intimidade; mas, além disso, ele nos via a todos; com os nossos pecados e ingratidões; via a cada um de nós esquecendo-o, abandonando-o por futilidades, preferindo-o ao primeiro prazer, ao menor interesse, envergonhando-nos dele, retribuindo seu amor com contristadora indiferença, inutilizando as espantosas dores de seu sacrifício!
Ah! diante de Jesus Cristo agonizante, quem ousará ainda rebelar-se contra a ingratidão dos homens! Qual será o coração ulcerado que, depois de haver dito e repetido: "Meu Deus, se é possível, apartai de mim este cálice!" não acrescente logo com Jesus: "Entretanto, faça-se a vossa e não a minha vontade?"
Neste caso ainda o sofrimento é como a semente lançada na terra e que contém o gérmen de uma grande árvore. O sofrimento do coração produz profundo desapego das criaturas e atira a alma inteiramente nos braços de Deus. Arranca a venda das ilusões: de bom ou mau grado, mostra a vida sob verdadeiro aspecto; dá precoce, utilíssima, posto que penosa experiência.
Em suma, o sofrimento torna o cristão mais cristão e o põe em condições de praticar excelentes virtudes.
O perigo desta provação consiste na irritação, em inúteis pesares, em pensamentos de rancor e de ódio contra os que nos fazem sofrer. Cumpre perdoar-lhes, e em vez de nos lastimarmos a nós, lastimá-los antes, Afinal de contas, não é preferível ser roubado antes do que roubador?
Bebamos até as fezes o cálice de pungentes desenganos, pois que Deus assim o quer; a Providência os permite afim de provar nossa fidelidade e obrigar-nos a fazer penitência.

XXV
COMO DEVEMOS PROCEDER NAS AFLIÇÕES ESPIRITUAIS E DE IMAGINAÇÃO

O espírito é tão suscetível de sofrer como o coração e o corpo; e nem por serem do domínio puramente intelectual, deixam as aflições espirituais de ser menos dolorosas. Verdade é que a imaginação as aumenta sim, mas elas são tão reais como o espírito que as sofre.
Abrangem todas as angústias da dúvida. Há até coisa mais dolorosa, por exemplo, que a situação do pai de família, do negociante que, empenhado em difíceis negócios, procura debalde algum alvitre honroso para fazer rosto a seus compromissos, honrar sua firma, resguardar o futuro da família? Ou então, que horrível ansiedade a de um superior qualquer, que tem a seu cargo interesses, honra, quiçá mesmo a vida de seus subordinados! a do médico que já não sabe o que há de fazer para salvar o doente e vê falharem todos os medicamentos! a do pai ou mãe que veem a posição dos filhos e a sua própria ameaçadas pelos azares de uma revolução, ou por qualquer outra calamidade pública.
São tão reais estes sofrimentos que muita vez degeneram em loucura e acabam do modo o mais trágico.
O coração tem neles abundante parte; mas é apenas por via de repercussão; estas penas residem no espírito: são verdadeiramente penas espirituais.
Porém, de todas estas angústias é talvez a dúvida religiosa a mais pungente, pois penetra até os seios mais íntimos da alma. De fato, a fé é a base de toda a vida cristã. Conforme a fé for ou deixar de ser verdadeira, assim também a vida toda mudará de direção! se a fé é verdadeira, se cumpre crer em Deus, em Jesus Cristo e na Igreja força é pensar, proceder, etc., de modo não só diverso senão diametralmente oposto aos pensamentos dos outros homens, ao seu modo de praticar e de proceder. Se a fé é verdadeira, cumpre que façamos penitência na terra, que nela só procuremos uma felicidade muito relativa, que tudo sacrifiquemos a Jesus Cristo, ao Evangelho, à obediência católica; cumpre que combatamos e mortifiquemos a natureza. Se, pelo contrário, não é verdadeira a fé, é razoável que só nos preocupemos com o tempo presente, que unicamente busquemos nosso interesse, satisfaçamos nossos sentidos e nossas paixões.
É tão completa a oposição como a que existe entre o dia e a noite.
O infeliz que duvida, tateia incerto quanto à direção que lhe cumpre imprimir à vida, à vida inteira.
Pode-se conceber suplício como este? É forçoso caminhar, e não sabe o infeliz para que lado se há de dirigir.
Se alguma vez saltear-nos o tormento da dúvida, cumpre conservemos toda a calma; é apenas traça de guerra já de muito tempo conhecida e rastreada. A velha Serpente arremete contra nós por todos os lados; algumas vezes contra o coração; outras, contra os sentidos; outras (e é essa a nossa hipótese) diretamente faz da cabeça o alvo da peçonhenta farpa.
Assim, pois, se porventura vos ocorrer qualquer tentação contra a fé, cumpre não esquecê-lo, a questão cifra-se em tudo ou nada. Ou há um Deus Criador do mundo e Jesus Cristo é Deus humanado e a Igreja é Emissária de Jesus Cristo, por Ele incumbida de ensinar-nos infalivelmente e de salvar-nos: ou então, não há certeza de coisa alguma, note-se bem: de coisa alguma. Não temos mais certeza de que dois e dois são quatro; de que existimos; do que temos o direito de raciocinar, de afirmar qualquer coisa. Por outra, somos todos uns loucos, com pleno direito ao hospício: não seria verdadeiramente louco o homem que seriamente pensasse e dissesse ignorar que existe, que dois e dois são quatro etc.?
São, de fato, a razão, a lógica e o bom senso que nos obrigam a reconhecer que há um Deus Criador e Senhor do mundo, que Jesus Cristo é Deus humanado, e que o Papa, chefe da Igreja, é seu Vigário e representante na Terra. É o raciocínio e não a fé que aduz estas consequências, é a lógica, a inflexível lógica.
Ou havemos de renunciar à razão, à lógica e ao bom senso, equiparando-nos aos loucos; ou então, cumpre que, ajoelhados diante do Chefe da Igreja, com todas as veras acreditemos todas as verdades que ele nos ensina em nome de Jesus Cristo, em nome de Deus.
Louco ou Católico: não há meio termo possível. Abdicam a lógica e por conseguinte a razão aqueles que param em meio caminho.
Foi a misericordiosa Providência que nos colocou nesta inevitável alternativa: ou crermos humilde e cegamente tudo quanto a Igreja infalível ensina ao mundo em nome de Jesus Cristo, da parte de Deus; ou então, recusarmos crer e nesse caso sermos forçados pelo inexorável poder da lógica a descer de negação em negação até essas teorias ridículas, chamadas panteísmo e materialismo, e em última análise, até o absurdo final da dúvida absoluta supra referida.
Deste modo acha-se a fé protegida e resguardada por todo o poder da lógica e do bom senso. Assim, pois, são duas as pontas do dilema: é forçosa a escolha: Ou havemos de crer ou nos despenharemos no absurdo, no impossível lógico. Cumpre opor isto sempre às veleidades de dúvida.
Releva também recordar que a fé é filha da luz e da pureza; ao passo que as dúvidas provêm sempre de fontes mais ou menos indecorosas. Provêm da ignorância: duvidamos porque não conhecemos bastante o ensino da Igreja e as provas luminosas da fé. Provém do orgulho; não queremos sujeitar o espirito à autoridade da Igreja, ainda que infalível e divina, e lhe antepomos nossas ideias, ou antes, nossos preconceitos.
Provêm da leviandade que não raciocina: quantas cabeças ocas duvidam sem que saibam porque duvidam! Provêm ainda das paixões; enquanto tínhamos puro o coração, criamos sem custo; mal começa ele a pender para o mal, a praticá-lo sem remorsos, nos valemos da dúvida; e sem que a consciência se advirta disso, certo é que só começamos a duvidar quando estamos eivados de mau fermento.
E, pois, há dúvidas filhas da ignorância, dúvidas filhas do orgulho, dúvidas filhas de paixões indecorosas.
Há ainda dúvidas que se vão filiar às algibeiras: duvidamos da fé por que ela nos proíbe furtar e preceitua a restituição dos furtos, — ora temos furtado, queremos continuar a furtar e não nos prestamos a restituir o alheio. Esta dúvida é tenacíssima. As raízes dela aferram-se mesmo ao fundo do cofre.

Emfim, dúvidas há filhas do egoísmo, da inércia, da frouxidão: não nos queremos incomodar; ora, para servirmos a Jesus Cristo, cumpre que façamos contínua renúncia da própria vontade, que oremos, que nos confessemos, que frequentemos a Igreja e os sacramentos, que sejamos mansos, caritativos, dedicados, pacientes etc. Eis porque duvidamos.
Algumas vezes somos os próprios causadores das dúvidas de que nos queixamos; lemos sem escrúpulo diários nocivos, livros protestantes ou ímpios; vemos as novelas perversoras, ou, o que dá na mesma, livros que alteram os atos e as doutrinas da Igreja; frequentamos preleções públicas de improvisados sábios inimigos da fé; contraímos amizade com incrédulos; e outras imprudências deste naipe. E depois de tudo isto nos admiramos de ter dúvidas! Mais cabia que se admirasse de estar molhado aquele que tivesse apanhado chuva a cântaros.
Para as dúvidas assim como para quaisquer outros males o remédio é sempre o mesmo: evitar as ocasiões.
Quem quiser conservar robusta e pura, a fé, há de resguardá-la por séria vigilância e outro sim alimentá-la; fortificá-la por uma vida inteiramente cristã. Sem orações, sem a sagrada comunhão, sem leituras piedosas, sem a frequência da Igreja e dos sacerdotes, a fé como outra qualquer graça, não poderá durar por muito tempo.
Se, em assuntos práticos, vos ocorrerem dúvidas sérias; procurai sem mais rodeios um bom sacerdote de cujas luzes e caridade não possais duvidar; expõe-lhe vossos embaraços com a maior franqueza e sinceridade; e vereis com que facilidade todos esses nevoeiros se dissiparão.
E depois, ninguém creia facilmente que dúvida deveras: na generalidade dos casos, não passam nossas dúvidas de vagas incertezas, geradas pela imaginação e pelos acanhados conhecimentos que possuímos sobre a doutrina católica. Isto não é dúvida: dúvida propriamente falando, é o juízo refletido da inteligência, que depois de haver maduramente ponderado as razões a favor e contrárias, decide que elas perfeitamente se equilibram.
Em geral, importa nas penas espirituais ou de imaginação, que envidemos esforços supremos para conservarmo-nos em paz, por meio da oração e da pureza de consciência. Nem às luzes, nem ao acerto das decisões é propícia a perturbação de espírito. Abramo-nos, se possível for, com algum amigo de confiança; aconselhemo-nos; e com a graça de Deus, pertenceremos ao número daqueles que Nosso Senhor abençoou dizendo: "Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!"
Porém: sei, apesar de tudo, não lograrmos remover a causa material das ansiedades concernentes aos interesses, supra mencionados, de família, de posição, os de procedimento, lembremo-nos que, em última análise, não estamos neste mundo para que em todas as coisas tenhamos bom êxito: por nossa parte Deus só exige boa vontade: a vê, a abençoa e eternamente a galardoará. A paz que Ele nos promete e dá não é a que o mundo dá; não é a paz do feliz sucesso, nem a da prosperidade; é a paz da consciência, a paz da fé, da esperança e do amor de Jesus Cristo "Procurai de preferência a tudo — diz o Evangelho — o reino de Deus e sua justiça (isto é, o que para lá conduz) e o mais virá de acréscimo;" o mais, a saber, as propriedades e venturas da terra ser-vos-ão dadas na proporção em que a sapientíssima, justa, paternal, e insondável Providência de Deus julgar oportuno.

XXVI
DA ÚLTIMA ESPÉCIE DE SOFRIMENTOS, A SABER, ESCRÚPULOS E PERTURBAÇÕES DE CONSCIÊNCIA

Sendo a consciência a regra prática de nossa alma no que concerne ao bem e ao mal, qualquer nuvem que a empane dá para afligir. Quanto mais deseja o homem proceder bem, mais doloroso é ignorar onde está o bem e onde o mal, o que é lícito e o que o não é. Tal incerteza, sempre mais ou menos inquietadora, chama-se escrúpulo. São os escrupulosos quase sempre excelentes almas que sinceramente detestam o mal e receiam practicá-lo; fantasiam males que não existem e sua consciência sobressaltada vive em luta aberta com as inspirações do próprio juízo.
Atingindo certas proporções o escrúpulo como que frisa com a monomania, e como esta tem um objetivo só. Com efeito, conheci um excelente moço, dotado de boa e cultivada inteligência, que tinha o vezo de repetir sempre e sempre a penitência sacramental, Uma vez estava eu rezando ao lado dele numa capela; ali se achava ele com o rosto escondido nas mãos, estirado como um arcoTal situação moral é aviltante; porque o homem, de preferência a tudo, é uma vontade viva. Contaram-me, não há muito tempo, que um, repetindo do melhor modo que podia os atos de fé, esperança e caridade, que naturalmente lhe tinham sido dados por penitência. Ao terminar recomeçava acentuando cada vez mais as palavras, e disse pelo nenos seis ou sete vezes a fio: "Ato de fé!... Ato de fé!... Ato de fé!..." Os escrúpulos tinham-no deixado magro como um palito. Quase sempre, são magros os escrupulosos; a agitação interior os vãi minando e consumindo.
Outro: era um excelente Religioso que, uma tarde, depois de se ter confessado, entrou numa capelinha pouco iluminada, onde eu estava adorando o Santíssimo Sacramento; o homem entrou sem dar por mim e começou também a rezar sua penitência que, ao que parece, constava de três Ave-Marias.
O mísero suava o topete para levar ao cabo as três Ave-Marias. Aspirava todas as vogais, repetindo do fundo do coração e com toda a força dos pulmões todas as palavras, membros de frases e frases inteiras: !Have Ma-ri-ha... have-ve... have... Ma-ri-ha-gra-ti- ha etc. Antes que ele começasse a desfiar o "benedictus" tive de retirar-me, forçado por um ataque de riso.
Quando eu estava em S. Sulpicio um jovem subdiácono ordenado pela manhã desse dia, e portanto já obrigado a rezar todos os dias o breviário, foi ter com o seu diretor e lhe disse; "Meu padre, estou perturbado; acabo de rezar vésperas e completas com um condiscípulo; mas tive muitas distrações e julgo acertado recomeçar". O diretor, que Já, sabia com quem lidava, quis da primeira feita curar os escrúpulos do penitente. Encarando-o fixamente, disse-lhe: "Pois sim, recomeçai." O penitente retirou-se e voltou pouco tempo depois. "Meu padre, estou inquieto ainda. Não rezei bem as vésperas. Devo recomeçá-las, não?" Indubitavelmente — responde com a maior tranquilidade o velho e experimentado diretor; cumpre recomeçá-las." Houve segunda retirada e segunda volta. "O que temos ainda, meu amigo." pergunta o diretor ao mísero escrupuloso, que estava rubro como lacre e tinha os olhos cintilantes e a cabeça a escaldar. — Ah! meu padre, ainda as vésperas! receio sempre faltar ao meu dever. Entretanto, já não as posso mais rezar: chegou a ocasião de rezar matinas e laudes. — O que fazer! Estou desanimado" "— Ora, pois, meu filho, não vedes — disse-lhe então o bom do padre — não vedes que são disparatados todos os vossos receios. Sede simples; rezai o ofício como puderdes, mais com o coração do que com a cabeça, e com toda a confiança; porque tendes de haver-vos com Deus misericordioso. Perdoai-me a lição um tanto pezada que hoje vos dei, cumpre que nunca a esqueçais; e nunca, seja qual for o motivo, recomeçai o ofício. Tende boa vontade; o mais Nosso Senhor suprirá."
A mania de recomeçar sempre as orações vocais, principalmente as de preceito, é tropeço em que facilmente esbarram os escrupulosos.
Outra mortificação que também lhes é habitual são contínuas inquietações a respeito das confissões que fazem. A todo o custo querem revolver o passado.
Viram-no e reviram-no de dentro para fora; e quanto mais o fazem, mais se lhes baralham as ideias; menos tranquilos ficam. Assemelham-se ao bicho de seda que tanto se revolve e enovela o fio que acaba por ficar emaranhado nele.
Estão sempre de propósito deliberado de fazer e tornar a fazer confissões gerais; quando absolutamente não podem ater-se a algum esquecimento, ei-los às voltas com a contrição. "Não tive suficiente contrição, nem perfeito arrependimento de todos os meus pecados. Talvez não fosse válida a confissão." A mínima ciscunstanciazinha omitida sobre algum antigo pecado, cometido antes da primeira comunhão e quando mal se pode cometer pecados graves, é quanto basta para desnortear esses pobres cérebros, perturbar-lhes a piedade, aliás muito sincera e fervorosa, para privá-los de toda a alegria no serviço de Deus, para desinquietá-los irremissivelmente.
Alguém contou-me que uma pobre senhora, movida por essa aflitiva pressão, teve a coragem, ou antes, a fraqueza de voltar cinco vezes no mesmo dia ao confessionário. Infeliz penitente! Malfadado confessor! O escrúpulo levado a tais proporções constitui verdadeiro perigo não só para a alma senão também para o corpo. Muitas almas piedosas foram demovidas por este meio do serviço de Nosso Senhor e das práticas de piedade. Desta forma a sagrada comunhão com especialidade converte-se em suplício. Tive conhecimento de que um moço dotado de excelentes sentimentos de fé e dedicação assentara abandonar o santo hábito de comungar com frequência, porque não tinha sabido vencer um escrúpulo, aliás evidentemente absurdo; acreditava e ainda acredita, ao que parece, cometer sacrilégios todas as vezes que comunga, por causa de pretensos fragmentos da Sagrada Eucaristia, que, talvez, por certo, com toda a probabilidade, evidentemente lhe ficam, diz ele, pregados nos lábios, no céu da boca ou nos dentes. Chegou ao extremo de ver por toda a parte os tais fragmentos.
Sob o capcioso pretexto de seguir em tudo os ditames da consciência, outro moço, que estava estudando em Paris, chegou ao ponto de não poder mais trabalhar tranquilamente dez minutos a fio. Tomava todas as quimeras que lhe passavam pelo espírito como inspirações da graça, que lhe cumpria seguir; então baralhava tudo, tomava, como vulgarmente se diz, "a nuvem por Juno" até que a final aborrecido, farto de aturar tão impossível situação, resolveu dar de mão a tudo; e depois de ter sido fiel como um anjo desde a mocidade, viveu muitos meses seguidos inteiramente apartado de Deus. Acalmada a febre, envergonhado do que fizera, amaldiçoando os escrúpulos causadores de todo o desastre, voltou aos bons hábitos anteriores e ficou, é de esperar, curado para sempre.
Mais longe do que isto às vezes o escrúpulo leva. Em Roma conheci um artista dotado de muito talento, de excelente vida, que, unicamente por causa dos malfadados escrúpulos, abandonou a oração e os sacramentos.
Exortando-o eu a arrepiar carreira, respondeu-me em tom que trazia uma especie de terror:
"Isso nunca! fui muito infeliz; e ainda que saiba que a culpa era minha e não da religião, não tenho ânimo de expor-me de novo a essas angustias". E, de fato, permaneceu no deplorável estado em que se achava.
É o escrúpulo uma espécie de pavor sem fundamento. Difícil é que o escrupuloso raciocine: compreende, admite as verdades que lhe são ditas; e depois, quando a gente acaba de falar, está ele na mesma, como se nada tivesse ouvido.
Na verdade, demonstra a experiência que, para os escrupulosos há um só meio de cura e de salvação, um só: cega obediência ao confessor. Cega, note-se, sem apelação nem agravo, sem qualquer outro raciocínio a não ser este. "Meu pai espiritual em nome de Deus proibiu-me que fizesse isto, que pensasse naquilo, que me inquietasse com esta ou aquela outra coisa; em nome de Deus ordenou-me que fizesse isto ou aquilo: obedecer é só o que me cabe fazer; tudo mais não me diz respeito." O escrupuloso que deste modo proceder, necessária, impreterivelmente, tarde ou cedo há de ficar curado. A obediência é sempre mãe da vitória.
Importa que nos precatemos principalmente desta ilusão quase geral nos espíritos escrupulosos: "Meu confessor não me conhece bastante; julga-me melhor do que na realidade sou. Tivesse eu certeza de ser perfeitamente conhecido por ele e não teria custo em obedecer-lhe." Cumpre por esta dificuldade no rol das outras. O confessor nos conhece quanto basta para guiar-nos e nos conhece melhor do que nós nos conhecemos. Se não nos conhecesse suficientemente, não tomaria a se dar-nos as direções que dá! E, pois, cumpre lhe obedeçamos com a consciência tranquila; perante Deus só essa responsabilidade contraímos.
A paz está para a obediência como a polpa da noz está para o seu envólucro.

XXVII
DO SOFRIMENTO SUPREMO QUE É A MORTE

É a morte sofrimento supremo, porque é a suprema expiação do pecado. Foi dito ao primeiro pecador: —"Morrerás e te converterás em pó."
De fato, segundo o plano primitivo de Deus, o homem era imortal: depois de ter vivido na terra inocentemente, depois de se ler santificado pela prática constante da fé, da esperança, do amor de Deus, da caridade fraterna, da oração, da humildade, tinha de passar triunfante da terra para o céu, provavelmente como passou Nosso Senhor ressuscitado, no dia da Ascensão. Não tinha o homem de morrer, porque era filho adotivo de Deus vivo.
São, pois, um castigo a morte e a agonia que a precede: cumpre delas façamos expiação, penitência meritória e meio de salvação. Deste modo a fé viva e o amor converterão este mal em puro bem. Aceitar de coração resignado um mal inevitável é de suma importância neste como em todos os mais sofrimentos nossos.
Enquanto logramos saúde, cumpre pensemos muitas vezes na morte, afim de que livremente ofereçamos a Deus o sacrifício de nossa vida e assim tornemos meritórios esses derradeiros combates em que a alma, oprimida pela doença, louca de dor, quase não sabe mais o que fazer e, as mais das vezes, não está na posse de si mesma. Muitas pessoas que estiveram, como vulgarmente se diz, a dois dedos de distância da morte, referiam depois, que, em tais momentos, a imaginação se fixara em tal ou tal objeto e que quase nenhuma fora a santificação desse instante supremo.
Entre outras, uma senhora que tinha caído nágua, de onde foi tirada quase sem sentidos, contou-me o proveito que havia colhido dessa experiência, Dizia ela: "No fundo dágua, enquanto a pouco e pouco eu perdia os sentidos, só pensava nisto —"Vou morrer afogada; que morte esta! Como é penoso ir a gente aos poucos, perdendo o fôlego!" E depois baralharam-se minhas ideias e não me lembro de mais nada." E entretanto era bastante piedosa essa senhora. "A lição foi proveitosa —" acrescentava ela — "pois desde então todas as noites me preparo para a morte, afim de não ser colhida de improviso."
E, pois, cumpre nos preparemos santamente para morrer.
Nada há maior, nem mais solene: da morte depende a eternidade inteira; "assim como só uma vez vive o homem, só uma vez morre também; e a eternidade é uma só: feliz para os que morrem em estado de graça; infeliz e de réprobos para os que não morrem como cristãos. Da morte depende tudo. Com que cuidado importa que para ela nos preparemos!
Ora, é a santa vida que prepara a morte, que, produz a boa morte; e, se esta regra tem algumas exceções, constituem elas como que milagres de misericórdia e seria insensatez contar com eles. São mais raras do que se pensa as pessoas que verdadeira e sinceramente se convertem no momento derradeiro: de fato, o medo não constitui arrependimento; e os últimos sacramentos recebidos por um doente mais morto do que vivo não surtem as mais das vezes efeito algum. Falando da penitência do bom ladrão, dizia S. Agostinho aos procrastinadores: "Sempre houve um, para que de todo não perdêsseis a esperança; mas não houve senão um, afim de que não viésseis a ter confiança demasiada."
Vivamos, pois, cristãmente; e particularmente evitemos a prática de qualquer pecado mortal: o pecado mortal é o inferno em gérmen, assim como o estado de graça é em gérmen o Paraíso. Na eternidade o pecado chama-se inferno, e a graça chama-se a glória do céu.
Para nos conservarmos em graça, oremos assiduamente; e nunca deixemos passar considerável lapso de tempo sem que nos confessemos e comunguemos. Recomendemos todos os dias nossa morte à Santa Virgem, e ao rezarmos a Ave Maria pensemos seriamente nas palavras que lhe servem de final: "Roga por nós pecadores agora e na hora de nossa morte."
Apenas nos sentirmos gravemente enfermos, ou apenas alguém tenha a caridade de nos fazer compreender a gravidade de nosso estado, chamemos imediatamente o padre, sem perda de um instante sequer. Em casos tais o padre importa mais que o médico. Um digno pai de família, na convalescença de um ataque de apoplexia, falava assim: "Vós, senhor vigário, sois o meu verdadeiro médico, o meu primeiro médico; são os vossos cuidados que eu costumo reclamar antes de todos os outros."
O padre é o anjo da guarda do moribundo. O anjo rebelde, inimigo das almas, faz quanto pode para afastar esse anjo bom do leito dos doentes,
Sugere aos parentes, aos amigos, aos criados estes absurdos pensamentos, que já perderam tantos milhares de almas e que estão cada vez mais em voga entre os indiferentes: "Não se mande ainda chamar o padre, para não assustar o doente. Só isso poderia apressar-lhe a morte. O médico recomendou muito que se lhe não causasse emoções. Quando de todo não houver mais esperanças; quando o doente começar a perder os sentidos, então será tempo." E coisas destas são pensadas e ditas em voz alta, até no seio de famílias cristãs!
Entretanto, aí está a experiência a mostrar que, quarenta e nove vezes em cinquenta casos, a presença do sacerdote junto aos pobres moribundos equivale à presença do próprio Deus. Raríssimas vezes deixam de o acolher agradecidos, alegres, radiantes de felicidade.
Um dia terrível desastre na estrada de ferro esmagara e queimara muitos passageiros; a um dos sacerdotes que estava dispensando cuidados às vítimas, alguém veio prevenir que um jovem aluno da Escola Politécnica era transportado para uma casa da vizinhança. O padre correu para essa casa, onde grosseiramente lho recusaram ingresso. Insistiu: persistiram na recusa. "Já não é pouco o que ele sofre — dizia a compassiva dona da casa. Para que perturbá-lo ainda mais e fatigá-lo?" O padre, felizmente, tinha sido em outros tempos lente da Escola Politécnica. Graças a esse título, conseguiu que a néscia da mulher dissesse ao menos ao moribundo que ele se achava ali. Tendo acompanhado a mulher, entrou, e logo, mesmo antes de ter sido anunciado, viu enternecido que o pobre moço lhe estendera os braços, e por meio de gestos manifestava (pois já não podia falar) quanto o alegrava a presença de um padre. Confessou-se por meio de gestos, recebeu as últimas consolações da fé, e meia hora mais tarde expirou serenamente, osculando o crucifixo.
Isto mesmo se dá com quase todos os doentes.
Erro e loucura é supor que eles têm medo do sacerdote; e repelir o sacerdote que a eles se chega é sacrílego atentado, é crime que sobre ser inqualificável é ainda irreparável.
Também da Extrema-unção ninguém deve ter medo.
Se ela é sacramento de moribundos, não é sacramento de mortos; em lugar de fazer morrer, faz viver: às vezes quando há nisso utilidade espiritual, restitui a saúde ao corpo; sempre enche a alma das últimas graças que, no caso do morte, auxilima-na a passar santamente da vida mortal à imortal. Nos lugares em que há fé viva, a Extrema-Unção e o Sagrado Viático são recebidos e pedidos apenas se manifesta qualquer moléstia grave; e muitas e muitas vezes grandes bênçãos são a recompensa dessa fidelidade.
Santifiquemos de antemão nossa agonia e nosso último suspiro, unindo-os com a maior espontaneidade à agonia e ao último suspiro de nosso divino Salvador.
Ele, que era a felicidade infinita e a própria onipotência, quis sofrer em sua humanidade não só a agonia como também a morte, afim de que no supremo lance, que tanto influíra sobre a nossa salvação, nos servisse de alento. Que cristão não aceitará magnanimamente as angústias da própria agonia, pensando nas agonias do seu Deus na gruta do Getsêmani, e depois durante as horas mortais do Calvário? Como não aceitar o cristão as lacerantes dores e a humilhação da morte, pensando no Filho de Deus que expirou nas indizíveis torturas da cruz?
E deste modo, é Jesus até o fim, até o limiar da eternidade, o Consolador daqueles que lhe são fiéis, é força, esperança, alegria, vida e fidelíssimo Salvador deles.
"Não imaginava que fosse tão bom morrer!" murmurava, agonizante e com o sorriso nos lábios, o célebre Pe. Suarez, da Companhia de Jesus. Tive a felicidade de ouvir quase palavras idênticas, proferidas cinco ou seis horas antes do último suspiro, por uma Religiosa da Visitação. Depois de longa e terrível moléstia, que a acabara de purificar-lhe a alma, ela tinha, quase nas vascas da morte, tal calma e serenidade que chegavam a excitar a sua própria admiração. "Não sei o que isto é — disse-me ela com extrema candura; não sofro mais nada; há muito tempo não me sinto tão bem. É assim, pois, que se morre?" E pondo as mãos emagrecidas, acrescentou com brandura: "Oh! como é bom morrer!"; e vendo uma das irmãs a chorar perto do leito, disse-lhe; "Não vale apena chorar, minha irmã; sinto-me feliz morrendo. E vós também, minha querida irmã, nunca haveis ter medo de morrer; lembrai-vos sempre disto: é muito bom morrer!" A última palavra bem articulada que esses lábios inocentes proferiram como que foi o resumo de sua vida inteira; cerca de um quarto de hora antes de expirar, disse ela em voz distinta e clara: Jesus, meu amor!" Prouvera a Deus que morrêssemos assim!

XXVIII
PORQUE HÁ TANTOS MODOS DE SOFRIMENTO

Quem conhecer um pouco o mistério do sofrimento, facilmente compreenderá porque o homem sofre neste mundo de tantos modos. Porque sofremos nós? Porque somos pecadores. Ora, somos pecadores tanto no corpo, como na alma: tudo em nós mais ou menos participa do pecado; o espírito, a imaginação, o coração, a vontade, os sentidos, o corpo, os órgãos, tudo está mais ou menos infeccionado pelo veneno sutil do pecado. E como o sofrimento é a um tempo castigo e expiação do pecado, é necessário que possa abranger tudo isso, penetrar por toda a parte.
De outro modo falharia a justiça divina e a obra de nossa purificação e santificação não poderia ser terminada na terra.
Eis aí porque sofremos neste mundo; eis porque devemos mesmo poder sofrer de tantos modos, e tanto na alma, como no corpo. Há aí uma mescla de justiça e de misericórdia a um tempo.
Em geral, pode-se comparar o sofrimento e o pecado ao raio de luz e ao prisma sobre o qual ele recai; atravessando-o o raio se divide em muitas cores; é sempre o mesmo e único raio, mas aparece do outro lado do prisma matizado com as seguintes cores; — azul, verde, amarela, cor de laranja, vermelha, roxa e cor de anil. O raio emanado do sol de santidade divina é o sofrimento, penitência geral do pecado; o prisma é o pecador; e cada matiz do raio da justiça que atravessa e penetra o pecador são as diversas variedades de sofrimentos: é o sofrimento que castiga e depura cada faculdade e corresponde às diversas gradações do pecado, por exemplo, ao orgulho, à indiferença, ao egoísmo, à cobiça, à frouxidão do ânimo, à preguiça, à luxúria, à gula.
Ora eis aí porque há sofrimentos de todos os gêneros: pela mesma razão porque há no código penal punições para todos os crimes e delitos, e nas farmácias existem diversos medicamentos para todas as moléstias.
Cada um desses sofrimentos especiais, quando devidamente suportado, se transforma em fonte especial de bem-aventurança eterna: cada um deles em particular torna-se assinaladíssima graça e será como formosa flor que há de ornar nossa coroa de glória no Paraíso. A fragrância dessas flores múltiplas e a magnifica recompensa dos sofrimentos dos eleitos na terra hão de inebriar de perfumes o céu.
Soframos, pois, corajosamente, soframos alegremente, pensando na eternidade.

XXIX
DE COMO A ORAÇÃO É O CONSOLO DOS QUE SOFREM

Orar é pensar em Deus, para adorá-lo, para render-lhe graças, para implorar Dele perdão ou assistência; é unir-se o homem interiormente com Jesus Cristo. Ora, sendo Nosso Senhor, como ficou dito, o Supremo Consolador do homem neste mundo, segue-se que é a oração o meio mais direto e ao mesmo tempo mais simples de por-nos em contato com o Consolador; ou, por outra, é o meio mais simples e direto de sermos consolados. Oração e consolação: são duas palavras essas quase sinônimas.
Se, quando sofremos, não achamos na oração o tesouro de consolação que ela contêm, é porque fiamos em pedir uma coisa só, a saber, isenção da cruz. A oração neste caso é apenas o brado do egoísmo; de todo acha-se impregnada do amor de nós; e mesmo as mais das vezes esse amor egoísta é absolutamente cego. O princípio é este: "Sofro; ora não quero sofrer, logo, Senhor, se me amais, se sois bom, justo, poderoso, se vos ocupais com a minha pessoa livrai-me já e já, etc." E a isto chama-se orar!
Nem à mente nos acode a ideia de que o sofrimento é inevitável consequência do pecado em geral e das culpas inúmeras por nós pessoalmente cometidas; E a cruz enviada por Deus para chamar-nos à reflexão, à penitência, ao pensamento da eternidade, como que para compelir-nos a restaurar as práticas cristãs que não deveríamos ter abandonado; é a cruz, por conseguinte, grande e muito grande graça e remédio de misericórdia; mas pouco importa isso, o que queremos, o que obstinadamente pedimos a Deus é que nos livre quanto antes da tribulação.
"Mas, filho,— diz-nos Nosso Senhor falando pelos lábios de um sacerdote ou por intermédio de um bom livro — se a tua súplica fosse deferida, havias de reincidir imediatamente no teu antigo teor de vida, em tuas vaidades, indiferença e criminosos hábitos." A nada atendemos, e continuamos a insistir no pedido para que Deus nos livre da cruz que sofremos.
Mas, — prossegue Nosso Senhor, — é exatamente para te livrar do mal, do mal verdadeiro que te submeto a esta provação. Tens porventura em maior conta o corpo do que a alma? o mal transitório, do que o grande mal que eternamente dura?" E nós repetimos o invariável estribilho: —"Livrai-me, Senhor, desta cruz. "Mas, meu filho, este sofrimento é o teu Paraíso; é abundante fonte de merecimentos para alcançares o céu. O que tens feito até hoje? não é tempo já de cuidares eficazmente da eternidade que te espera?" E nós permanecemos com afinco curvados para a terra; só atendemos ao momento presente, e só sabemos orar para pedir aquilo mesmo que a própria bondade e misericórdia de Nosso Senhor não devem conceder-nos.
Achava-me um dia num hospital de incuráveis andando de catre em catre aproximei-me de uma velha que depois de ter vivido, ao que parece, mais que levianamente, viu-se no extremo, não só por causa de paralisia, como em consequência da cegueira, de recolher-se a este hospital. A todas as palavras de animação que eu lhe dirigia, sua resposta, em tom choramingas e atoleimado, era invariavelmente esta: "Eu quisera ver isso! Quisera ver claramente como isso é!" Daqui não passava. Por isso também a infeliz era balda de consolações em sua penosa enfermidade. — Assim praticam, muitas pessoas que sofrem: oram extravagantemente; esquecem que são cristãos, que Jesus Cristo foi crucificado, que há uma vida eterna que devem merecer, um inferno eterno também e um terrível Purgatório, que lhes cumpre evitar.
E a oração fonte inesgotável de paz, de fortaleza, de felicidade, quando o homem ora como deve orar, quando, entregando-se à Providência de Deus, o adora com amor e fervorosamente. A verdadeira oração consola sempre: ela redunda para a alma em aumento de luzes divinas que a deixam compreender as vantagens da cruz, e quanta felicidade vai na expiação das culpas feitas neste mundo. A oração une interiormente o fiel com Jesus Cristo, que é o princípio da alegria infinita.
Orai deste modo e vereis. Vossa fé crescerá com a oração, e também com a fé se fortificará a paciência; e se pedirdes a Deus alívio nas provações, fá-lo-heis com essa inteira conformidade com a vontade divina, virtude da qual Nosso Senhor quis nos dar exemplo no jardim das Oliveiras, "Meu Deus, se não pode este cálice passar sem que eu o beba, faça-se a vossa e não a minha vontade! Quantos sofrimentos têm sido santificados, divinizados por esta inefável oração!
Nas dores agudas cumpre dar de mão às muitas orações vocais. Basta que o paciente conserve seu coração bem unido ao Sagrado Coração de Jesus, e assim sofra com o seu Salvador o mais santa e pacientemente que lhe for possível. Jesus quase nada disse durante as longas horas da Paixão, Convém repetir com frequência jaculatórias como estas: "Meu Deus, ofereço-vos os meus sofrimentos — Jesus, eu Vos amo. — Jesus, tende compaixão de mim. Virgem Santa, abençoai-me: Ou então basta simplesmente repetir os santos nomes de Jesus e de Maria.
Tive um dia a felicidade de aproximar-me do leito de dores de um santo sacerdote, que, moço ainda, estava para morrer de uma terrível moléstia da espinha dorsal. Horríveis e continuados deviam ser seus padecimentos, segundo diziam os médicos. Mas ele pouco falava e só pensava em seu divino Mestre. Muitas vezes por minuto ouviam-no dizer somente, ou antes, murmurar, com a voz repassada de amor e de sofrimentos; "Jesus!.... Jesus!" Que magnifica oração essa! Invocado assim, o sagrado nome de Jesus é excelente ato de fé, de esperança, de caridade, de contrição.
Uma santa não pôde um dia rezar seu rosário, por estar com muita dor de cabeça. Estirada quase imóvel na cama, e não tendo forças para mais, ela tinha o consolo de dizer: "Maria eu vos saúdo" à proporção que passava as contas do rosário. Ao acabar, apareceu-lhe radiante a Santa Virgem e dignou-se dizer-lhe "Minha filha, o amor supre tudo; e tanta aceitação me mereceram as tuas curtas e singelas saudações, como se tivesses rezado o rosário todo, como costumas.
De fato, Deus atende mais ao coração do que aos lábios. Oremos com fé viva e humilde confiança; elevemos nossa alma cheia de dores para o quão formoso que o sofrimento está preparando para ela; e Nosso Senhor, fiel em suas promessas, nos deparará sempre na oração fortaleza, luz, conforto e por conseguinte consolação.


XXX
PORQUE A CONFISSÃO É TAMBÉM CONSOLO

A razão, ei-la: porque os corações puros possuem a Deus, e Deus é tesouro de tal quilate que, quando possuído, todas as tribulações, por maiores que sejam, perdem grande parte de sua amargura. Ora, a confissão, que é um segundo batismo, é o sacramento legado aos homens pela divina misericórdia para que possam reconquistar a pureza do coração.
Por maiores e por mais abomináveis que sejam as culpas, das quais é justo castigo o sofrimento, tem a santa confissão o dom de apagá-las, assim como o oceano pode receber, absorver e submergir em seu seio as águas de todos os rios da terra. A confissão é o oceano sem praia e sem findo da misericórdia de Deus, que, mediante o arrependimento, perdoa tudo e sempre.
Como isto é grandioso e digno de Deus!
A confissão a um tempo investe contra o pecado e suaviza o travor do sofrimento, fruto do pecado. Curando a consciência, restitui-lhe a paz, a qual, posto não seja isenta de sofrimentos, é contudo a paz, é o que o mundo não pode dar. O pecador confessado e absolvido é como o escravo restituído à liberdade e que vê partidos os seus grilhões: que estremecimentos de alegria ao recuperar a liberdade! É um morto ressuscitado: que gozo íntimo, mais divino que humano,  nessa nova vida em que a alma inebria-se depois de a ter perdido por muito tempo! A confissão é o perdão de Jesus Cristo, e, de envolta com o perdão, é o céu que se abre outra vez, é a esperança e o prelibar de uma felicidade que não terá fim.
Como é lastimável a situação do infeliz que sofre e não tem o consolo de encontrar Deus em seu coração!
Na verdade, há um que de prodigioso na singular obstinação com que infelizes, pobres, doentes, enfermos, encarcerados, atribulados, vítimas esmagadas ao peso da dor, recusam o benefício da confissão. Certo, mesmo entre os sofrimentos campeia o orgulho, como um demônio íntimo, como rebelde que recusa curvar a cabeça e dizer: "Pequei"; mas parece impossível que esse brado do amor próprio não irá perder-se no vazio da alma culpada, horrível vácuo que só Jesus Cristo pode encher.
Compreende-se que os felizes do mundo, no inebriamento do prazer e da riqueza, esqueçam-se de Deus e da sua consciência; mas, quanto aos infelizes, é inconcebível que eles possam prescindir de Deus. Ao que parece, todos os pobres, todos os que sofrem, sem exceção alguma e durante todas as horas do dia, deveriam rodear os confessionários, considerar os padres salvação e refúgio, e procurá-los com empenho dez vezes superior àquele que os mais zelosos desses padres empregam em ir após os pecadores. Mas, custa a dizê-lo, é exatamente o contrário que se dá, E porque?
É essa uma das mais detestáveis astúcias do demônio, que por igual rouba aos desgraçados a felicidade do tempo e da eternidade.
Há porventura coisa mais deleitosa que a paz? Ide, pois, procurá-la onde ela se acha, vós que andais curvados ao peso de tantas dores. Ide purificar vossa alma, para que Deus possa nela entrar. São tão profundas as alegrias da paz de consciência! "Nunca fui tão feliz na minha vida — dizia-me um dia entre soluços um pobre pecador que acabava de receber a absolvição. O remorso me perseguia. Eis-me emfim desafogado e livre dele!"
"Oh! como é boa a confissão! exclamava outro pecador, que era um moço estudante dotado de inteligência e coração; como é boa a confissão! Que seria de mim sem ela?"
E vós também, quem quer que sejais, ide, ide afogar vossas dores no sangue redentor, de Jesus Cristo, que lava as almas no sacramento da Penitência! Ide sem receios e sem tardança. Depois de purificados profunda modificação se operará em vós, e nas puras alegrias da consciência bebereis uma força sobrenatural, cuja existência nem suspeitais.
Quem é puro sabe sofrer; ora, em saber sofrer consiste toda a ciência da vida.

XXXI
PORQUE É TÃO ÚTIL QUE COMUNGUE FREQUENTEMENTE AQUELE QUE SOFRE

Quanto mais o homem trabalha, tanto mais necessidade tem de refazer-se de forças; ora para refazer as forças cumpre comer. Em rigor de linguagem: "adquirir forças" é expressão equivalente a esta outra "comer." As leis da vida corpórea são o símbolo das leis da vida da alma: para a alma, respirar quer dizer — orar; lavar-se equivale a confessar-se; alimentar-se é o mesmo que comungar. Foi exatamente porque a comunhão é o pábulo da alma, o Pão celeste do cristão, que Nosso Senhor a instituiu sob a forma de alimento: posto que realmente, na Sagrada Comunhão, recebamos o próprio Jesus Cristo, eternamente vivo; como reina nos céus, recebemo-lo entretanto sob a forma de alimento, sob a aparência de pão. Não é pão: é Jesus Cristo; mas é Jesus Cristo, Pão de vida, alimento sobrenatural dos filhos de Deus neste mundo.
No Evangelho, Ele mesmo tomou esse nome, anunciando a seus discípulos o mistério da Eucaristia, que mais tarde devia instituir, na Quinta-feira Santa, no Cenáculo. "Eu sou — disse — o pão vivo descido do céu. Eu sou o pão da vida; e minha carne é o pão que eu darei pela vida do mundo. Sim, minha carne, é verdadeira comida e meu sangue verdadeira bebida.
Aquele que come minha carne e bebe meu sangue, permanece em mim, e eu nele!" A Eucaristia é, pois, o Pão vivo do cristão, o Pão que nutre as almas e as conserva para a vida eterna.
Aquilo que o alimento é para o corpo a comunhão é para a alma; a alma que não comunga assemelha-se a um corpo que deixasse de alimentar-se, Se deixássemos de comer, o que seria de nós? Seriamos vítimas de rápida inanição: adeus forças, vigor e saúde; não só não poderíamos mais trabalhar nem andar, como dentro em pouco nem ficar de pé poderíamos; ao cabo de poucos dias a morte seria inevitável.
Tal é o cristão sem o pábulo eucarístico: quando não comunga bastante, perde a pouco e pouco as forças espirituais; a fé declina e vai se embotando; mão pensa mais nas coisas do céu; perde o gosto da oração; verdadeiramente não ama mais a Nosso Senhor; os bons costumes bem depressa degeneram, e ele acaba despenhando-se no pecado mortal, no hábito do pecado mortal. Em outras palavras, a alma declina e morre.
Se isso é assim em relação a todos, o que não será em relação aos míseros doentes, aos atribulados, às vítimas do infortúnio? Tem estes necessidades de duplicado grau de fortaleza, pois, além do fardo comum da vida, têm ainda de mais uma cruz a carregar e às vezes uma cruz bem pesada. Momentos há na vida em que o homem precisa possuir virtude quase heroica para cumprir a vontade de Deus e não sucumbir ao peso das dores que ela lhe impõe.
Sem a assistência de uma graça especialíssima, o homem não pode suportar certas torturas que rasgam o coração e despedaçam a alma, algumas privações extremas, algumas dores físicas; ora, esta graça, não para ser dada, mas para ser recebida, supõe a existência de uma mui sólida preparação cristã: faltando a qual, a graça divina perde necessariamente sua eficácia e nos deixa em apertados transes, e assoberbados por uma provação superior às nossas forças, Então sucumbimos, mas por culpa nossa; resistiríamos e venceríamos, si fossemos o que deveríamos ter sido.
Qual o segredo dessa fidelidade anterior, que prepara a alma para os grandes combates? É a frequência habitual, séria, fervorosa da sagrada comunhão.
Nunca será demasiada a insistência sobre esta verdade, tão obscurecida na França pelo jansenismo, e entretanto tão proclamada em todos os tons pela Igreja, pelo Papa e pelos Santos.
Na verdade, o que constitui os verdadeiros cristãos é a comunhão, a comunhão frequente. Ela desenvolve e fortifica o temperamento espiritual, em maior escala do que o hábito da boa alimentação fortifica o temperamento e a saúde do corpo. É crível que os mártires tivessem suportado, como suportam, horríveis suplícios, se até então eles tivessem vivido como vivem tantos cristãos indiferentes, como viveis talvez, leitor? se desde muito não se tivessem aplicado à oração, à mortificação, à adoração e ao recebimento frequentíssimo do divino sacramento da Eucaristia? Grande ilusão alimentaria quem em tal acreditasse; foram eles heroicos nas grandes provações por isso que tinham sido corajosos nas pequenas. Permaneceram firmes, inabaláveis em Jesus Cristo, no dia da grande luta, porque, no decurso da vida, isto é, nas lutas quotidianas, tinham-se conservado fidelíssimos a esse mesmo Jesus e tinham conscienciosamente praticado essa regra de seu Evangelho: "Permanecei em mim e eu permanecerei em vós."
A paciência nas grandes como nas pequenas adversidades depende da prática fervorosa e frequente da comunhão. A comunhão é como rico mealheiro que a um tempo contêm valiosas moedas de ouro para às despesas avultadas, e grande porção de moedas de prata de todos os valores para o custeio diário. Opulência é possuí-lo e paupérrimo é quem o não tem. E a Igreja dá gratuitamente esse rico mealheiro àqueles de seus filhos que lho pedem. Ou antes, não, ela não o dá gratuitamente; pois em troca exige de nós valor mais precioso, a saber, nossa boa vontade, o firme, e mais que firme propósito de sermos cada vez mais fiéis a Deus. Dessa fidelidade dependem a eficácia da sagrada comunhão e os grandes frutos de paciência que dela podemos auferir, isto é, humildade e brandura durante o sofrimento.
E, pois, doentes, enfermos, comungas muitas vezes Jesus em seu sacramento é o melhor médico e o mais suave medicamento. "Eu não vim — disse ele — para os que logram saúde, mas para os que estão doentes." Ele vos procura, vem à vossa casa, como outrora se aproximava dos doentes, paralíticos, cegos e leprosos; uma virtude emana sempre dEle, como se exprime o Evangelho; e que virtude é essa, senão a paz e a graça de que é portador, afim de que por amor dEle possais santamente sofrer? São tão grandes as consolações produzidas pela comunhão nos míseros enfermos, que eles muitas vezes esquecem momentaneamente as dores. "Nos dias em que comungo—dizia-me há pouco tempo uma infeliz vítima de bem rude provação — nesses dias parece-me que não sofro mais." Quando mesmo não cesse o sofrimento, o cristão que comunga acha-se apercebido de ponto em branco contra o desânimo e a impaciência.
E os pobres! Porventura não deparam na Eucaristia com o tesouro dos tesouros e a riqueza dos Anjos? Como é possível que um pobre, que tem fé, não se disponha a comungar pelo menos todos os domingos e dias santos? Como a doença, a pobreza é já de si excelente preparação para a comunhão: Jesus ama tanto os pobres! É tão grande a ternura e compaixão que seu Sagrado Coração nutre por todos aqueles que choram!
E nem diga o pobre: "Eu sou tão ignorante; apenas sei ler; o trabalho rouba-me todo o tempo. E depois, ando tão mal trajado! Não ouso apresentar-me assim na Sagrada Mesa." Tudo isso teria perfeito cabimento se nosso Senhor fosse como os reis da terra; porém, felizmente, Ele julga de modo muito diverso: diante dEle, ignorante é aquele que o não conhece; indigno, aquele que o não ama; desprezível e farroupilha é aquele cuja alma acha-se enlaivada de culpas, aquele que ousa apresentar-se-lhe sem estar revestido com o manto nupcial da graça. E demais a quase sempre é facílimo comungar cedo, ou então em alguma capelinha pouco frequentada, onde nós e o nosso traje, por pior que seja, passaremos perfeitamente desapercebidos. Por motivos deste jaz ninguém se prive do inefável conforto da comunhão. Se o interior estiver em bom estado, nada de demasiadas preocupações com o exterior. Haja asseio: é quanto basta.
Que direi aos corações amargurados que tudo parecem ter perdido diante de um túmulo mal cerrado ainda? Que vão também à fonte de toda a consolação, de toda a paz, de toda a fortaleza. Que comunguem sem receios: diante da bondade de Deus as lágrimas constituem valiosa recomendação. Jesus não podia ver chorar sem se enternecer; vê chorar a infeliz viúva de Naim, que acompanhava o enterro de seu filho único, e imediatamente lhe diz: "Não choreis." Vê as duas irmãs de Lázaro soluçando a seus pés, vê as lágrimas dos parentes e amigos deste; e não pode reter estas palavras de consolo e de esperança: "Vosso irmão ressuscitará." Assim também do seio de seu Tabernáculo Ele diz às almas angustiadas: Não choreis assim; vinde a mim e olhai para o céu! O ente estremecido, cuja perda vos lacera o coração, está comigo.
Também chegará a hora do vosso chamamento. Enquanto ela não chega, vivei em mim, alimentai-vos com a minha carne e com o meu sangue, e vinde beber em mim a esperança da vida eterna."
Quando perdermos algum ente querido, comunguemos por sua intenção, não uma, mas muitas vezes, com a maior frequência que for possível. Para consolar Santa Maria Madalena de Pazzi, que acabava de saber a morte de um seu jovem irmão, dignou-se Nosso Senhor-declarar-lhe, que o meio mais eficaz de aliviar à princípio e de livrar afinal essa alma tão ternamente amada era oferecer por intenção dela muitas comunhões consecutivas. E perguntando a serva de Deus quantas comunhões deveria fazer por esta intenção, ordenou-lhe Nosso Senhor que comungasse cento e treze vezes; e que depois disso a alma de seu irmão entraria no repouso eterno, Fervorosamente começou e levou ao cabo a apreciada e suave tarefa, e, efetivamente, no dia em que a terminou, apareceu-lhe seu irmão, radioso e resplandecente, agradecendo-lhe a caridade que tivera e anunciando-lhe que, graças a ela, tinha sido admitido na mansão dos escolhidos.
Uma pobre mãe perdera um filho de 17 anos estremecidamente amado. Ainda que resignada no íntimo da alma por tal sorte se deixara escravizar pela dor que, de puro desânimo, quase abandonara seus hábitos piedosos; morrera-lhe o filho havia três meses e ela não tinha depois disto comungado uma vez sequer. O que fazia era chorar, chorar noite e dia, e ir ao cemitério.
Uma noite permitiu Deus que o filho lhe aparecesse em sonho: ela o viu muito triste; o corpo, as vestes e os cabelos pareciam molhados como se ele tivesse saído dágua. "És tu, meu filho? — exclama a pobre mulher, extendendo-lhe os braços. — De onde vens? Porque estás molhado assim? E o moço depois de agradecer-lhe sua ternura, lhe disse: "Foram vossas lágrimas, minha mãe, que me deixaram assim; mas elas correm inutilmente sobre mim, pois não tendes cuidado de fecundá-las. Elas só me darão lenitivo, só me levarão para o céu depois que as santificardes pela oração, pelo fervor e pela frequência dos sacramentos da Igreja."
A mísera mãe aproveitou-se da lição e bebeu, em proveito próprio e no de seu filho, os tesouros de salvação contidos na divina Eucaristia. De fato, nessas circunstâncias dolorosas, a comunhão reúne a dupla vantagem de derramar o bálsamo da paz não só sobre o atribulado que comunga, senão também sobre o defunto por cuja intenção comunga.
Em todas as nossas tribulações vamos ter com Jesus, refugiemo-nos incansavelmente no Santíssimo Sacramento.

XXXII
QUÃO FÚTEIS E VÃS SÃO AS CONSOLAÇÕES DO MUNDO

O sofrimento é a pedra de toque que permite discernir o ouro verdadeiro dos ouropéis: o ouropel é o mundo; o ouro é a religião, a Igreja.
Nos antecedentes capítulos evidenciou-se a onipotência da Religião para consolar todos os sofrimentos. O mundo pretende consolar também; façamos o paralelo e cada qual decida depois.
Acho-me gravemente doente; são horríveis meus sofrimentos; os médicos, coitados, já experimentaram baldadamente a eficácia de três, quatro, cinco medicamentos. "Animo! diz-me o mundo; isto há de passar." Animo? É fácil dar o conselho; mas, onde hei de ir buscar ânimo? Desanimado estou eu; não posso mais...
"Isto há de passar." — Pois bem, e se antes suceder o meu passamento... E depois, se isto não passar?...
Por fim de contas, quem vos autorizou a dizer que a minha doença há de passar? São parvoices sádicas e triviais.
— "Consolai-vos, pobre amigo; eu também tive esta moléstia." E a isto dá-se o nome de consolação? Onde está aqui a minoração do sofrimento?
— "Mandai chamar outro médico: talvez vos cure."
Médicos? Coitados! fazem o que podem, mas pouco podem. Sancho não é mais capaz de curar do que Martinho. A tal propósito cabe repetir o que Francisco já dizia da volubilidade feminina: "Bem tolo é quem se fia!" Se da medicina é que me há de vir a consolação, terei tempo de esperar e de desesperar.
—"Ora vamos! é preciso ser homem!" Pois sim; homem sou eu, e homem que sofre horrivelmente e vos pede o que lhe não dais por isso que lhe não podereis dar, o que é nada mais nada menos do que isto: resignação, esperança, paz, paciência.
Um dia, em Roma, estava eu em companhia de um excelente prelado, que não podia levantar-se da cama em consequência da dolorosíssima e mui perigosa doença, quando entrou um dos nossos amigos comuns, capelão do exército e um pouco habituado de mais a tratar com soldados. "Pois bem, meu rico senhor- disse ao mísero doente, que não podia mais consigo — como vai-se passando hoje? Melhor, não? Isto não há de ser nada; há de passar." O doente, que era bastante excêntrico e assomado, contemplando-o, entre compassivo e colérico, disse-lhe: "Não tendes outras consolações a dar-me? Essas são de cabo de esquadra. Ide-vos embora, que me incomodais. Lastimo a quem só sabe consolar com trivialidades. Ouvindo semelhante impaciência disparamos todos uma boa gargalhada, e o pobre Prelado também não pôde deixar de rir-se.
Entretanto, nada é mais verdadeiro: o mundo só sabe dar consolações sádicas e triviais aos atribulados.
Tanta consciência tem ele disso, que muitas vezes nem mesmo se anima a aventurar qualquer tentativa a semelhante respeito. Estas palavras de costumada condolência — "Sinto muito da minha parte." proferidas em tom convencional e acompanhadas de um aperto de mão deixam o homem só e só com toda a sua tristeza.
Ouvi uma vez um velho sem fé consolar um pobre coitado que acabava de perder a mãe. Eis o melhor conceito que ele pôde sacar do seu coração de incrédulo: "Que queres, meu caro,— dizia entremeando dois ou três suspiros — que queres!... Há de se morrer algum dia. É lei da natureza..." E após curto silêncio, continuou assim: "Pobre mulher! pobre mulher! Ainda a oito dias estava tão boa:" Que grande consolação essa!
Diante do cadáver de um jovem oficial militar que acabava de morrer e em presença da família do morto, um amigo, oficial também, foi ainda menos sentimental: "Ora pois, minha senhora — dizia à infeliz viúva que rezava e chorava — ora pois; se continuardes assim ficareis com certeza doente. Pobre diabo! assim mesmo era um excelente homem."
Eis de que molde são as consolações que recebemos. Não é que a afeição, a amizade puramente humanas não consolem alguma coisa o coração nos trabalhos da vida; mas quando o homem pode contar com isto só não conta com grande coisa. Enquanto trata-se de dançar, rir e cantar o mundo satisfaz às mil maravilhas; sua miragem, porém, se esvaece como bolha de sabão apenas o homem se inicia no âmago das realidades da vida. Quem só isso tem, nada mais tem, está só; ora, já o dissemos nós e pelo próprio Deus foi dito nas Sagradas Escrituras: "Vai só! Ai do que está só!" O mundano acha-se só apenas se vê a braços com a cruz o cristão porém nunca está só; Jesus Cristo está com ele, está nele; e não há quem o possa privar desse eterno, celeste e adorado consolador.
Isto que é verdade em relação aos sofrimentos físicos, às enfermidades e às mágoas do coração, sobe talvez de ponto quando se trata da pobreza: o mundo essencialmente egoísta e frívolo foge quanto pode do indigente; e quando de todo não pode evitá-lo, descarta-se dele o mais depressa que pode, não dando-lhe esmola, mas atirando-lhe um pouco de dinheiro. A caridade é divina, é filha de Jesus Cristo e alheia ao mundo, o qual conhece apenas a insípida filantropia e tem para se que uma caixa de beneficência mais ou menos regularmente administrada é bastante para consolo dos infelizes. Ignora que na pobreza o coração sofre muito nais ainda que o corpo, e que, se é indispensável dar pão, lenha e roupa ao indigente, é essa apenas a parte mínima da fraterna assistência que ele de nós espera.
Afetos, dedicação, o respeito quase, eis o que é necessário para consolá-lo, para restituir-lhe a coragem. Só o coração sabe falar ao coração; a alma só sabe falar à alma. Eis porque só a Religião consola e reanima o pobre.
Vazio de Jesus Cristo, o mundo é em face de todos os sofrimentos o mesmo que uma fonte seca em face do viandante abrasado de sede. Quem oferece aos atribulados as consolações do mundo assemelha-se àquele que com areia pretendesse matar a sede.

XXXIII
DO DESATINO DAQUELES QUE SOFREM E PRESCINDEM DE DEUS E DA IGREJA

Sem Deus, sem Jesus Cristo, é lícito perguntar, a que ficam reduzidas as vítimas de verdadeiros sofrimentos? Ao que parece, são cinco os alvitres que podem abraçar, todos igualmente disparatados e criminosos: ou procuraram atordoar-se numa espécie de vida artificial, toda de imaginação, fora da realidade; ou se entregarão à pusilânime, frouxa e aviltante melancolia; ou se obstinarão orgulhosa e friamente nessa aparente indiferença, que tem o nome de estoicismo; ou serão levados de vencidos pelo furor e pela desesperação; ou finalmente, cometerão um crime irremissível, o horrível, o infame suicídio. Quem não é cristão e sofre seriamente, acha-se como que prostrados em um beco com estas cinco tristes saídas, que mais ou menos diretamente vão dar no inferno.
De todas a mais vulgar é a primeira, aonde penetram às tontas e com maior temeridade os homens frívolos.
Segundo a frase consagrada, procuram "distrair-se". Alguns há que procuram distrações até nos mais ignóbeis vícios, na embriaguez, por exemplo. Conheci em Paris um negociante moço, que até aos vinte e cinco anos de idade vivera exemplarmente. Um casamento infeliz, uma desastrosa quebra por tal modo o desnortearam, que ele quis a todo o custo atordoar-se e atirou-se às bebidas. Um homem que pouco anos antes era tão laborioso, comedido e modesto cambaleava pelas ruas em completa embriaguez, blasfemava e manchava os lábios com as maiores obscenidades. Tinha sofrido e não soubera invocar o socorro da Religião.
Um dos mais celebres poetas deste século teve a infelicidade, no começo de sua carreira, de encontrar amigos perversos, que o iniciaram nas mais ímpias ideias e leituras. Tendo por única instrução religiosa alguns trechos destacados do catecismo, apagadas recordações do tempo de sua Primeira Comunhão, ele perdeu pouco e pouco a fé; e quando se viu sem Deus e sem esperança, foram tais as angústias de seu espírito, que tratou também de afogá-las. Contava-me um de seus amigos, que muitas vezes o encontrou em tal estado, que parecia como que embrutecido e estúpido. Morreu em grande declínio intelectual, e deixou em versos célebres a expressão das angústias que o tinham perdido.
Outras vezes, sendo isto possível, e quando tem a desgraça de ser rico e de não pertencer a Jesus Cristo, é simplesmente em frivolidades, em dar à taramela e nos prazeres criminosos, que o homem procura espairecer suas tristezas. Isto é dourar e cobrir de flores a cruz, mas ela existe sempre, dura e esmagadora. Sofrimento e riso é loucura que ordinariamente acumula pecados sobre pecados e perde as almas.
A segunda saída aberta diante do homem que sofre e que não é cristão, é o abatimento de ânimo, escolha em que sossobram facilmente os caracteres pouco enérgicos. Não tendo um Cirineu que lhes auxilie a carregar a cruz do infortúnio, falecem-lhes as forças, deixam se cair por terra, desanimam e ei-los abatidos, sem energia, como a rês que ajoelha e cai ao golpe do magarefe.
Tal situação moral é aviltante; porque o homem, de preferência a tudo, é uma vontade viva. Contaram-me, não há muito tempo, que um moço, honesto e estimável conforme a bitola do mundo, mas destituído de sentimentos religiosos, se reputava extremamente feliz porque acabava de realizar o sonho dourado de sua vida inteira: um casamento de afeição. Quase exatamente um ano depois, morreu-lhe a mulher nos braços. "Já lá vão vinte anos, acrescentou a pessoa que me referiu o fato; e o infeliz está tão desesperado e abatido como no primeiro dia. Nada faz, não tem ocupação alguma; a dor como que o embruteceu. É sombrio, taciturno, misântropo." Se este desgraçado fosse cristão, como sua vida teria mudado de aspecto! Por certo, a dor que sentiu, tão justificável, teria sido imensa e até certo ponto inconsolável; mas teria sido a princípio suavizada e depois santificada pela fé e pela oração; Não aniquilado assim todas as suas faculdades; e principalmente, teria sido fecunda em méritos para a eternidade. De que lhe serve essa prolongada agonia?
Sofreu, sofre dez vezes mais; e improfícuo é tudo isso. Que desgraça! Que desatino!
Outros, caracteres enérgicos mas orgulhosos se revestem de aparente insensibilidade e simulam arrastar o sofrimento. A isto caberia o nome de paciência do orgulho.
Um célebre convencional maçon e voltaireano estava para morrer. A mulher e a filha, piedosas ambas como dois anjos, o estavam tratando e desfazendo-se em desvelos e em inúteis esforços para convertê-lo nesse momento supremo. Elas lhe diziam, debulhadas em lágrimas: "A Religião havia de vos inspirar tanta fortaleza! — Deixai-me — respondeu-lhes secamente o moribundo. Há duas religiões que dão fortaleza no sofrimento: a Religião do Cristo, a vossa, e a minha, a religião do orgulho." E expirou.
Na verdade, esse estoicismo, esta fortaleza de afetação, é a religião do orgulho, isto é, de Satanás. Dispenha muito mais almas que o atordoamento e a pusilanimidade. Ela dá, é inegável, uma certa coragem de ostentação, mais artificial que real; porém, muitas paixões ruins acham guarida sob essa crosta de insensibilidade, e guarida tanto mais segura quanto mais dura for a crosta. Vai nisso rematado desatino também; é uma mentira, pois para que há de o homem dizer que não sofre, quando sofre? Para que negar o sofrimento?
Negá-lo, importa suprimi-lo, ou mesmo suavizar-lhe a amargura? Sobrepôr-lhe uma dose de orgulho, é torná-lo mais que muito pecaminoso e nada mais.
Um operário de Paris que na atmosfera da grade capital respirara essa insolência que nada respeita e de tudo moteja, quebrou um dia a perna e teve de sofrer a amputação da coxa.
Menos por ter ânimo que por bravata, recusou o clorofórmio que o operador lhe aconselhara; e durante à operação, que foi longa e complicada, fingiu fumar.
Quando o ajudante pôs da parte o membro amputado, o orgulhoso paciente fitando impassível a perna cortada, disse, fazendo alusão à frase adotada nas casas de pasto, esta graçola pouco delicada: "Rapaz, leva a carne de vaca." — Havias de ter sofrido muito durante essa horrível operação? "perguntou-lhe a pobre mãe, que viera vê-lo algumas horas depois — Não, absolutamente nada — respondeu-lhe com dureza. Porventura um Parisiense sofre?"
Não passa de brutalidade uma coragem destas. A espécie de energia que ela supõe tem baixa procedência; é puro impulso da animalidade. Aqueles que outra coisa não possuem, são bem dignos de lástima.
O furor e a desesperação é o quarto caráter que assume o sofrimento separado da fé. Uma vez assistia eu a uma infeliz menina de dez anos, que estava para morrer de um pleurisma. A mãe, que tinha a desgraça de não ser cristã, não podendo lutar e vencer a doença que lhe roubava a filha, entrou a gritar e a bramir de desespero; corria a casa toda, como louca, dava punhadas de encontro às portas e paredes, arrancava os cabelos com ambas as mãos e por fim rolava pelo chão.
Era um espetáculo medonho. "Deus é mau — exclamava. Porque me toma minha filha? Minha filha é minha e dele." Querendo a filha impedi-la de blasfemar por este modo, ela mordeu-lhe a mão.
Ainda que sintam também com vivacidade, os que são cristãos não permitem que os desvarios da paixão venham envenenar-lhe a dor. Mortal sempre para a alma, este veneno é muitas vezes também mortal para o corpo.
Mata; impele ao suicídio.
O suicídio é o inculcado remédio decisivo que o demônio apresenta aos que, não compreendendo o mistério do sofrimento, querem a todo o custo livrar-se dele. "Põe termo à existência" segreda-lhes baixinho.
Porque o pérfido não acrescenta também: E verás depois o que te acontece? "Ah!" é que ele o sabe, sabe por demais.
De fato, é fácil pôr termo à existência; é obra de poucos instantes; sim, mas como terminar a eternidade? O homem que se mata para deixar de sofrer, não é somente um criminoso, que viola a lei divina, que dispõe de um bem que lhe não pertence, senão a Deus só, é ainda horrivelmente tolo, três vezes louco, que para evitar um sofrimento essencialmente transitório, sempre de mil modos suavizado, facilmente remediável, se precipita temerariamente nos sofrimentos horríveis e eternos do inferno. O que se diria do homem que aborrecido de ser molhado pela chuva, se preparasse sem Tal situação moral é aviltante; porque o homem, de preferência a tudo, é uma vontade viva. Contaram-me, não há muito tempo, queo menor abalo a procurar abrigo contra os aguaceiros no fundo de um rio? É o caso do suicídio; ainda mais, o crime insensato que ele comete é o resultado da falta de fé, de esperança e de amor de Deus.
O que somente em certos casos o pode excusar é a loucura, como tal reconhecida; porque o louco não é responsável por seus atos. Mas, salvo neste caso, o suicídio, filho do desespero, leva em direitura para o inferno.
Posto que para perpetrá-lo seja mister uma tabu qual feroz energia, o suicídio é na realidade insigne covardia. Por que motivo quer o suicida enforcar-se, asfixiar-se, beber veneno, fazer voar os miolos? porque pretende desertar do combate da vida, que Deus lhe apresenta; ou, em outros termos, porque é covarde; tão destituído de fé, como de sentimentos.
E entretanto, eis o abismo em que se despenha o homem que não é cristão!
Cumpre que não nos coloquemos na triste contingência de escolher uma das cinco saídas indicadas. Outra tem o cristão muito mais dela, muito mais segura, muito mais suave; ela resplende com a luz do céu e é perfumada pelas fragrâncias do amor divino. Tomá-la só de nós depende: Jesus Cristo e a Igreja a conservam aberta e franca diante de mim, de vós, de todos- Penetrai nela sem receios; é a estrada única da sabedoria e do senso, apenas o homem se vê a braços com o sofrimento. É porto para a tempestade: todo aquele que aí recusa abrigar-se tem certeza de sossobrar mais ou menos miseravelmente.

XXXIV
DE COMO O SOFRIMENTO É GRANDE E SALUTAR GRAÇA DA MISERICÓRDIA DE DEUS.

Ponto é este em que já tocamos por mais de uma vez; mas importa tanto que nos acostumemos a encarar à misericórdia e bondade de Deus nos sofrimentos que nos envia, que força é insistamos aqui mais diretamente sobre o assunto.
O leitor necessariamente ouviu falar da Bem-aventurada Margarida Maria, Religiosa da visitação, a quem Nosso Senhor, há cerca de dois séculos, dignou-se revelar os adoráveis mistérios do seu Sagrado Coração?
Tinha esta grande serva de Deus uma cunhada, a quem amava muito, mas cujo espírito mundano em extremo a afligia. Rogava continuamente a Deus pela salvação desta alma querida. Um dia, vindo esta visitá-la no locutório do convento de Paray-le-Monial, fez a Bem-aventurada tal insistência para que a cunhada se convertesse, que a mesma, comovida, debulhou-se em lágrimas e prometeu que de então em diante serviria a Deus como verdadeira cristã. "Mas, minha querida irmã, acrescentou a Bem-aventurada Margarida Maria, talvez Deus exija de vós muitos sacrifícios? — Pouco importa. replicou a moça; farei tudo que for preciso.
Quero salvar a minha alma a todo o custo. — A todo o custo? Minha irmã, estais falando seriamente? — Sim, querida irmã, sim: a todo o custo! — Ora bem, bendito seja Deus! exclamou a santa Religiosa, com o rosto radiante e iluminado. Porém preparai-vos para sofrer e para sofrer muito. Só com esta condição Deus vos salvará. Agora mais que nunca sereis lembrada nas minhas orações."
Voltando para sua casa começou a excelente senhora a sentir, a princípio no rosto, depois na cabeça e em todos os membros, dores extraordinárias; ao cabo de alguns dias, elas tinham-se tornado tão atrozes, que a infeliz implorava o auxilio de todos os santos da corte celeste e consultava médicos e mais médicos na esperança de alcançar algum alívio. Tudo foi baldado.
O marido dirigiu-se à Bem-aventurada Soror, que, lhe respondeu : “São inúteis todos os esforços e cuidados empregados. O mal não é daqueles para os quais a medicina tem eficácia. Os remédios cuja aplicação convém, são apenas dois: paciência e resignação."
Apesar disto, continuaram marido e mulher em suas tentativas de cura pelos meios ordinários. Durante um ano inteiro a mísera doente andou de cidade em cidade e experimentou diversos médicos, até que desanimou: acabava de fazer em Lião uma conferência de cinquenta médicos, os quais, a uma, declararam a ineficácia de seus recursos diante da uma doença que não podiam entender.
O irmão de Margarida Maria, tendo voltado a Paray-le-Monial, tomou a sério as recomendações de sua santa irmã. Aceitou, de acordo com sua mulher, a terrível provação, e a doente com bastante fervor declarou que de então em diante se entregava com toda a franqueza à vontade de Deus. "Sofrerei — disse— se for mister, até o fim da vida como expiação de meus pecados e em união com o meu Salvador crucificado." Maravilha! a doença cessou desde então.
Pasmo e doido de alegria, o marido dirigiu-se imediatamente ao convento de sua irmã, "Eu não vô-lo tinha predito — disse-lhe esta tranquilamente. Deus concedeu a vossa mulher o que ela tinha pedido: ser salva a todo o custo. Agora o trabalho está completado; mas, conservai-vos ambos nas mãos do Senhor". No dia seguinte, a doente, que tinha sido inopinada e miraculosamente livre de suas dores, morreu dentro de algumas horas com a alma enlevada em transportes de fé e de gratidão.
Logo o sofrimento é um benefício de Deus; graça penosa e amarga à natureza, porém imensamente salutar quanto ao que diz respeito à santificação. O ano tão doloroso que passou essa pobre senhora, não foi realmente explêndida manifestação da misericórdia divina? Se, em vez de sofrer, tivesse ela sido condenada a lograr boa saúde, teria também inquestionavelmente prosseguido em sua vida frívola e distraída e achar-se-ia de súbito no limiar da eternidade despida de merecimentos e sem preparação alguma. O menos que lhe poderia suceder seria penar por tempo indefinido nas ardentes e horríveis expiações do Purgatório. A misericórdia divina veio-lhe no encalço: a cruz, cruz benfazeja e salutar, foi-lhe concedida por intercessão da Bem-aventurada serva do Sagrado Coração. De bom ou de mau grado foi-lhe imposto o desapego de todas as suas vaidades; e posto que a princípio não tivesse suportado o sofrimento com a perfeição dos santos, todavia, soube aproveitar-se dele para fazer penitência e para entrar em si; era esse o escopo da graça divina; e fato de admirável conformidade com a vontade de Deus, que coroou sua longa provação, pôs remate à obra de sua purificação e salvação.
Entretanto, que medo se costuma ter dessa manifestação da bondade divina! apenas se apresenta o crucificado trazendo e oferecendo sua cruz, todos lhe fecham a porta, como se fora a peste ou a cólera morbus.
São repugnâncias filhas de nossa frágil natureza; o que aliás é explicável: ela, como já ficou dito, não foi criada para o sofrimento. Entretanto, cumpre que a fé contenha e reprima esse primeiro e irrefletido impulso; ele não é cristão; é oposto aos misericordiosos desígnios de Jesus Cristo e ao nosso verdadeiro bem.
Na verdade, cumpre façamos sincero acolhimento ao divino hóspede e recebamos de joelhos e com fé profunda, com brandura, humildade e gratidão o rude presente que ele nos oferece. Se o recusarmos, Jesus desertará de nossa habitação inóspita, e irá levar outros, mais generosos, mais dignos, a um tempo mais prudentes e judiciosos, a cruz que contém a salvação. Quantos o costumam repelir! Eis o que ele disse um dia á Bem-aventurada Margarida Maria: "Minha filha, dai-me guarida em teu coração, a mim e a minha cruz também. Se eu quisesse entrar sem a minha cruz muitos acolher- me-iam de boamente; mas eu não me separo dela. Quereis amar-me e sofrer por mim?"
Deve a nossa resposta modelar-se pela que deu a Bem-aventada nos seguintes termos: "Diletíssimo Senhor, sou toda vossa. Ofereço-me para sofrer durante toda a minha vida tudo quanto vosso amor mandar: contanto que vos ame no tempo e na eternidade, ficarei satisfeita."
É assim que os verdadeiros cristãos compreendem e acolhem o sofrimento; e é por isso que em vez de o repelir, o desejam. Não o acham, por certo, muito agradável; para eles, como para os outros homens, o sofrimento é sempre sofrimento, isto é, mui pungente e doloroso. Mas têm fé viva e eficaz; sabem de que mão provém a cruz; mas pousam todas as esperanças na vida eterna, que se aproxima a passos largos e que só merece o nome de vida: sabem. mesmo neste mundo, viver a verdadeira vida, Sabem, mais que os outros homens, o que é verdadeiramente bom e verdadeiramente mau; e; o que é mau, tem o bom gosto de preferir o que é bom, preferem o que deve salvá-los ao que pode perdê-los.
São Jerônimo Emiliano costumava chamar suas enfermidades e outros seus sofrimentos de "misericórdias do Senhor"; e com este sentido gostava de repetir 0 salmo que começa por estas palavras: "Cantarei eternamente as misericórdias do senhor."
"Na verdade — dizia — meus sofrimentos são irrecusáveis testemunhos do amor de meu Deus, que só me dá provações para purificar-me, só me castiga porque me ama. O chumbo e os outros metais a que se costuma ligar pouco apreço não passam pelo cadinho, mas sim o ouro e a prata para serem depurados de toda a liga e transformados em vasos preciosos. Assim Deus faz passar seus escolhidos pelo crisol do sofrimento, afim de purificá-los e transformá-los em santos do seu formoso Paraíso. Cantarei, pois. eternamente as misericórdias do Senhor; eternamente o bendirei porque dignou-se fazer-me sofrer na terra!"
Aquele que se sentir tentado a queixar-se, avive no espírito estes belos sentimentos: e habitue-se a não olhar para a cruz e sim para aquele que a impõe, não dominado pela ira, senão por bondade e misericórdia.

XXXV
É PREFERÍVEL SOFRER A GOZAR NESTE MUNDO.

É forçoso que o homem sofra; é lei essa de justiça e de expiação. Não se trata de tirar a limpo se sofrer melhor que não sofrer, nem se somos ou não somos pecadores: versa a questão sobre o seguinte — é preferível que o homem sofra neste mundo e goze ele a eternidade toda, ou que goze neste mundo e sofra eternamente. Ao mau rico, que das profundezas do inferno pedia alívio a Lázaro, respondeu o Senhor: "Durante a vida desfrutaste todos os bens, ao passo que só males couberam por sorte ao pobre Lázaro; agora está ele na bem-aventurança, e tu neste abismo de dores."
Estabelecida assim à luz da verdade, esta questão de tanta magnitude de si está resolvida, É claro como a luz meridiana, que sofrermos durante alguns e rápidos anos desta vida, é cem mil vezes preferível ao sofrimento eterno, a ardermos eternamente no inferno esmagados ao peso da reprovação e maldição divina. Neste mundo sofrer durante um ano já é muito; sofrer durante dez anos é enorme; sofrer durante cinquenta anos, seria insuportável, desesperador, acima das forças humanas; e entretanto, o que é ingrato em paralelo com a imutável e infinita eternidade? O que vem a ser um ano comparado com mil anos? O que são mil anos, mil séculos, e ainda mil milhões de séculos comparados com a eternidade? A eternidade é a duração que não tem fim; pondere-se maduramente estas palavras: "que não tem fim".
Sofrer eternamente! Sofrer sem nunca deixar de sofrer! sem uma luz de esperança, sem o menor alívio possível! E que sofrimento esse! A alma privada, eternamente privada de toda a luz; a imaginação, de toda a beleza; o coração, de todo o amor; a consciência de toda a alegria, de toda a paz! O corpo privado de todo o gozo; o homem todo eternamente réprobo repelido por Deus do céu, privado da felicidade. E se ainda só em privações consistisse o sofrimento eterno! Mas não; há ainda mais a maldição positiva, que envolve o pecado; há ainda o sofrimento do réprobo imerso nas "trevas exteriores", que sente-se perdido no abismo insondável do desespero; que, em todas as potências e capacidades do espírito do corpo, padece suplícios, os quais nem mesmo podemos conceber; e principalmente "esse fogo inextinguível" de que fala o Evangelho, "esta geena de fogo onde o remorso não morre e as chamas devoram sempre". Arder eternamente, arder sem remissão nem tréguas: que horror! Qual dentre vós — dizia o profeta — qual dentre vós poderá habitar messe fogo devorador, nesses braseiros eternos?" Míseros doentes, que, há tanto tempo já, estais gemendo em leito de dores! infeliz enfermo, cego, paralítico, o que são os vossos sofrimentos cotejados com os do inferno? Desgraçado, que morreis de fome, e de frio, o que é vossa miséria comparada com esta miséria eterna!? Infeliz atribulado, triste e inocente vítima das calúnias e perversidades humanas, o que são, dize-me, o que são vossas mágoas a par das mágoas e das lágrimas dos réprobos?
Ora pois! suportados com fé e amor, vossos sofrimentos da terra far-vos-hão evitar a condenação e suas indizíveis e intermináveis dores. Deus, que por tal preço vos facilita a salvação, não é sumamente bom? Afinal de contas, não há subterfúgio possível, o próprio Deus o declarou: "Se não fizerdes penitência morrereis todos." Não há meio dano ou penitência neste mundo, ou inferno na eternidade.
Mas, talvez haja nos recessos da vossa alma a seguinte fagueira esperança: "irei apenas para o Purgatório".— Apenas para o purgatório? E é pouco isso? O purgatório, com exceção da eternidade é do desespero, equivale ao inferno; o fogo é o mesmo.
Por isso dizia S. Agostinho: "O fogo do Purgatório é mais terrível do que tudo quanto o homem pode sofrer nesta vida." E S. Tomás de Aquino disse: Antes padecer todos os tormentos dos mártires do que sofrer as penas do Purgatório."
O que diríeis, se alguém pretendesse expor ao fogo uma de vossas mãos tão somente durante uma hora?
"Santo Deus! exclamaríeis — quero todos os tormentos menos esse." Pois bem, Nosso Senhor, por meio da cruz e do sofrimento, far-vos-há evitar o fogo vingador do Purgatório, fogo sobrenatural, incompreensível, cuja intensidade, comparada com as desmaiadas labaredas do fogo deste mundo, é como os explendores do sol comparados com a luz baça de uma vela.
Crede-me, aceitai a troca, que é vantajosa. A doença, as privações, a dor são o vosso Purgatório na terra; Purgatório mil vezes mitigado pelo compassivo Coração de Jesus, que, por inúmeros meios assim naturais como sobrenaturais refrigera, mitiga e consola os vossos sofrimentos. De fato, sofrer com esperança e amor não equivale a não sofrer?
E depois, a eterna felicidade que vos aguarda se com fidelidade carregardes a cruz! A troco disto não vale a pena chorar e padecer alguma coisa na terra?
Esta felicidade é tão incompreensível como a desgraça e o tormento dos réprobos. O inferno é o contraste do paraíso: num impera soberano o amor de Deus, e no outro reina a sua justiça. A felicidade do céu e a própria felicidade divina comunicada aos eleitos de Deus: felicidade eterna, infinita, pura e sem mescla, a respeito da qual S. Paulo disse, depois do profeta Isaías: "Os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o espírito não pôde compreender o galardão que Deus destina àqueles que o amam."
E o menor ato de virtude cristã praticado em estado de graça, o menor ato de paciência, todo pensamento de resignação, de amor, de penitência importam aumento de bem-aventurança eterna e grangeam mais subido grau de glória nesse inefável Paraíso.
Sim, é irrefragavelmente certo: melhor é sofrer do que gozar neste mundo. A sorte dos mundanos que não sofrem na terra não deve desafiar inveja: sofrerão na eternidade. Tão imprescritível é a justiça como a bondade de Deus: não é inevitável que o pecador seja punido, e que obtenha recompensa o homem que tiver fielmente servido a Deus? Se o pecador não é punido neste mundo, é por que no outro infalível punição o aguarda; se o justo - não é recompensado, é porque no céu será eternamente, Assim, pois, deve ser avivada no espirito e gravada no coração, para dilatá-lo de júbilo, esta grande verdade: melhor é sofrer que gozar neste mundo.

XXXVI
PORQUE HÁ DE O HOMEM IMPLORAR A DEUS ALÍVIO OU CESSAÇÃO DO SOFRIMENTO, SENDO ESTE TÃO ÚTIL

É porque o alívio e cessação de um mal qualquer constitui ato de bondade e de misericórdia, e Deus é infinitamente bom e misericordioso. Pratica ato louvável e digno de Deus aquele que lhe implora lenitivo em suas dores e a cessação delas.
Fique desde já assentado que isto não é proibido.
Em parte alguma do Evangelho se vê Nosso Senhor repreender os infelizes, cegos, paralíticos, enfermos e atribulados que a Ele se achegavam. Pelo contrário, acolhia-os com incansável bondade e ocupava-se em consolá-los e curá-los.
Semelhante rogativa não somente não é vedada, como até vem a ser coisa de si excelente; pois que o Salvador deu a tais curas e isenções de males temporais a feição de recompensas. — "Retira-te em paz—disse ao paralítico a quem curou, à infeliz hemorroíssa e a muitos outros — retira-te em paz, tua fé salvou-te." O pedido de coisa em si má, porventura mereceria recompensa? E depois, não é certo que sempre e em toda a parte uma cura milagrosa foi tida em conta de favor divino e de extraordinária graça?
Mas então porque o fato de sermos curados, ou pelo menos aliviados e consolados constitui um bem?
Oh! Deus meu! porque o sofrimento, posto possa ser utilizado pela fé, não deixa de conservar sua essência de mal, que é. É ponto já anteriormente por nós firmado, que todo o sofrimento é um mal, uma desordem, consequência do pecado, mal e desordem fundamentais. Em sua infinita misericórdia e em vista dos méritos adoráveis de Jesus Cristo, digna-se Deus livrar-nos do pecado por meio do perdão: não é simplicíssimo a mesma misericórdia se alie á mesma justiça relativamente aos sofrimentos, às consequências do pecado? e que, posto nos deixe o sofrimento a título de expiação e de prova, Deus queira suavizar-lhe o  travor, mesmo algumas vezes eliminá-lo de todo, afim de excitar nossa fé e confiança?
Note-se que, pondo em relevo a utilidade e o valor dos sofrimentos, não se pretende inculcar que eles de si são bons; não, mil vezes não; a verdade profundamente santa que se trata de proclamar, é que a graça de Jesus Cristo do próprio mal faz surgir o bem, e torna sobrenaturalmente bom e vantajoso aquilo que é naturalmente mau, horrível, repelente.
Há nada mais repelente e desagradável do que essa enfiada de males de toda a casta resenhados neste opúsculo? Há coisa de si mais horrível que a morte? Entretanto, não é verdade que todos esses males, posto que reais, se transformam em bens ainda mais reais, quando, pela vivacidade de nossa fé, firmeza de nossa paciência, pela humildade e brandura, pelo amor de Jesus Cristo, pela fiel frequência da oração e dos sacramentos, os transmudamos em bens espirituais e em méritos eternos?
É uma transformação semelhante à de certas frutas, que são amargosíssimas quando cruas e se tornam deliciosas depois de passadas pelo fogo e de confeitadas. O marmelo crú,, por exemplo, é intragável, e reduzido a xarope torna-se muito saboroso.
Assim também, é a graça de Nosso Senhor qual misterioso açúcar que metamorfoseia todos os travores do sofrimento.
Logo estas duas ideias: "É utilíssimo o sofrimento" e "É lícito pedir a Deus alívio e cessação do sofrimento" absolutamente não se excluem uma a outra; antes conciliam magnificamente os direitos da justiça de Deus com os da sua bondade, os direitos da natureza com os direitos superiores da graça.
Se fôssemos perfeitos, teríamos talvez o heroísmo de imitar a alguns grandes santos, que nunca pediam a Deus alívio, e muito menos cessação de seus sofrimentos: à luz da fé claramente viam que, comparado com a eternidade, o tempo nada é; que a coisa unicamente necessária neste mundo é a santificação; portanto o sofrimento e a morte eram puros lucros para eles, que alçavam à categoria de verdadeiros tesouros e de assinalados favores tudo quanto podia humilhar e submeter a natureza rebelde, como as doenças, as enfermidades, as privações, os ultrajes, as calúnias, as perseguições, os suplícios. Eles exclamavam com S. Paulo: "Entre minhas tribulações superabundo de alegria;" ou então, quando eram humilhados ou quando recrudescia o sofrimento, diziam a Nosso Senhor, como a Bem-aventurada Margarida Maria: "Salvador meu, não sou digna de tão aprimoradas graças. Humildemente vos agradeço o apuro de vosso amor, que, apesar de meus pecados, digna-se tornar-me alguma coisa semelhante a vós."
Porém tão heroicos sentimentos, por serem verdadeiros e lógicos,não estão na altura e alcance de muitos.
Nós crivados de imperfeições, cristãos de segunda e terceira plana, trilhemos modestamente na estrada batida.
Não podendo ser bons anjos, procuremos ao menos ser homens bons, e como jocosamente diz Francisco de Sales: suportemos o mais santamente que nos for possível todas as privações de nossa miserável vida e, ainda que ligando às cruzes que Deus nos envia muito alto e justo apreço, nem por isso deixemos de suplicar-lhe, animados de filial confiança, que nos conceda alguma consolação, e até mesmo, se assim julgar útil à sua glória, que ponha termo aos nossos males.

XXXVII
DE COMO O SOFRIMENTO MAIS SALUTAR É AQUELE MESMO QUE DEUS ENVIA.

Quando não logra o intento de vencer-nos frente a frente, o inimigo de nossa alma acomete-nos de esguelha, por meio de ilusões. Aquele que se deixar embair por elas será vencido.
Para aqueles que sofrem, a ilusão mais comum consiste em suporem que aceitariam de bom grado as cruzes que ainda não tem, mas que são incapazes de sofrer com paciência a cruz que os está oprimindo.
É fácil conceber quão perigoso se torna esse erro, que é o inverso do que Deus espera de nós. Quando Ele nos envia esta ou aquela doença, é evidentemente para que nos santifiquemos por meio daquela que nos foi enviada, e não por meio de qualquer outra. A ilusão de que se trata transtorna os desígnios de Deus, e nos fascina com uma santificação quimérica. Reproduz-se absolutamente a fábula do cão, que pela sombra deixou a preza empolgada: corre o pobre doente após uma sombra de santificação, perdendo entretanto o ensejo assaz e real de santificar-se.
Assim, pois, quem tiver dor de cabeça, não diga "Se eu tivesse dor na perna ou no estômago, ainda vá: mas na cabeça: é de todo intolerável."
Quem for cego não diga: "Ainda se eu fosse surdo: mas cego! Nada pior do que isso!"
Quem for paralítico, aleijado ou disforme, não diga: tudo daria para não ter o que tenho. Aos outros é fácil terem resignação. Ah! se soubessem o que eu tenho..!"
Ninguém inveje a cruz alheia, qualquer que seja a sua.
A que aparentemente é de mais leve madeiro, foi por tal modo lavrada, que mais fundos vergões deixa nos ombros de quem a carrega. Outra, que só mostra o lado polido e vistoso, pode parecer mais suave; mas, quem contemplasse as asperezas e puas do lado oposto recuaria de terror.
Cruzes há de madeira, de ferro, de prata, de ouro; algumas há de papel e de algodão; outras são todas adornadas de flores e parecem somente formadas de rosas; finalmente, outras são marchetadas de diamantes e pedrarias. Ah! cruzes são todas elas; e nem sempre são menos dolorosas as que são havidas como tais.
Avergado sob sua cruz de madeira tosca, alonga o pobre olhos cobiçosos sobre a cruz de ouro do rico. "Oh! — exclama de si para si — se eu não tivesse para carregar senão uma cruz daquelas!" E o mísero ignora que o ouro é mais pesado que a madeira, e que a cruz de ouro é esmagadora.
Os magnates, pregados em sua cruz esplêndida de diamantes ou de rosas, muitas vezes entram a lamentar-se sua própria sorte, e dizem de si para si: Oh! se eu era de humilde condição social!" Os que choram acreditam o que ter fome é preferível a chorar; e os que têm fome são propensos a amesquinhar o sofrimento que faz sangrar o coração e recai sobre o espírito e sobre a reputação. Daqui procedem mil pesares vãos, mil vãos desejos Tudo isso não passa de ilusões, de puras ilusões!
São traças de guerra da velha Serpente, que procura alongar o homem da senda das realidades, e portanto dos merecimentos, para: desgarrá-lo na ínvia região das quimeras. Cumpre que permaneçamos na verdade, somente aí encontraremos Deus, e, com ela, todas as graças especiais com que nos ajuda a sofrermos santamente. Além disso, não esqueçamos nunca que Nosso Senhor sabe haver-se muito melhor do que nós; se nos crucifica de um modo e não de outro não alimentemos o ridículo propósito de emendar-lhe a mão, e a pouco modesta crença na superioridade de nossa ponderação e conselho. Um homem cheio de santidade, contando-me um infortúnio que lhe sobreviera com grande mágoa sua e contra toda a expectativa, dizia-me certo dia:
"Notai que só o Crucificado sabe bem crucificar. Quando pretendemos crucificar-nos, ajeitamos as costas de modo que a cruz não ofenda, e depois, quando ela chega a magoar-nos, temos sempre a íntima satisfação de haver feito afinal de contas a nossa própria vontade. Quanto a Jesus Cristo, quando Ele nos crucifica, o faz deveras; a cruz é de madeira de lei e bem dura; os pregos são bem aguçados e penetram realmente; e eis-nos estendidos nela, não porque assim é nossa vontade, mas por efeito da vontade dEle Jesus Cristo. O crucificamento da vontade, eis o verdadeiro crucificamento.
E depois, a questão não é de escolha, é de aceitar.
A escolha cabe a Deus. Nada de receios, meus queridos crucificados: Ele é versado na matéria; sabe o que mais nos convêm, porque conhece a ciência íntima de nossas misérias e doenças espirituais.
A cruz, Ele a aplica exatamente na parte sensível, à maneira de hábil cirurgião, que, em vez de afundar a esmo o bisturi, vai direto ao mal e traspassa à úlcera escondida; se não houvesse este corte de bisturi: a úlcera produziria absorção purulenta e por conseguinte a morte. Para salvar-nos, tem Deus mil e uma cruzes à sua disposição; Ele nos impõe mesmo aquela que sua ciência soberana, ou antes, sua paternal caridade lhe indica; e a acompanha sempre, note-se bem isto — sempre — das graças que são necessárias para que Bem aproveitemos o remédio. A mão que fere para curar é também aquela que destila o bálsamo sobre à ferida.
Assim, pois, tenhamos submissão e amor! Amemos a nossa cruz, porque a ela, e não à de outrem, cabe a incumbência de alçar-nos da terra até o céu.

XXXVIII
DE COMO TODAS AS CONSOLAÇÕES DE DEUS NOS SÃO DADAS PELAS MÃOS MISERICORDIOSAS DA SANTA VIRGEM

Todas as consolações de Deus se resumem na pessoa adorável e adorada de Nosso Senhor Jesus Cristo, de quem elas emanam com profusão sobre a terra. Jesus Cristo, Rei do céu, é qual sol radiante, cujos raios inundam as almas de paz, de alegria, fortaleza, amor e felicidade.
Ora, foi por intermédio da Santa Virgem Maria que Deus Pai deu ao mundo Jesus Cristo; Maria é a Mãe do Consolador universal. Não é simplicíssimo que por sua vez Jesus tenha querido, que todas as consolações por ele distribuídas aos homens venham por intermédio de sua Mãe Santíssima? O Pai celeste escolhera a Virgem Maria para dar-nos o Consolador; este, por sua vez, a escolheu para nos distribuir suas divinas consolações. Tal é a ordem estabelecida pela providência. Isto mesmo proclama à Igreja quando todos os dias invoca a Santa Virgem sob os nomes benditos de "Mãe da divina graça — Consoladora dos aflitos, Salvação dos enfermos, — Refúgio dos pecadores,— Socorro dos cristãos."
Assim, toda a consolação, seja qual for, procede da bondade divina por Jesus Cristo, nosso Senhor; e Jesus Cristo no-la transmite pelas mãos daquela que Ele escolheu para sua e nossa Mãe.
O que a Santa Virgem faz invisivelmente no céu em prol de cada um de nós, a Igreja o faz ao mesmo tempo na terra e de modo visível; porque a Igreja é também nossa Mãe e consoladora. Este fato não importa para nós a existência de duas Mães: não; A Santa Virgem no céu e a Igreja na terra constituem uma só e mesma maternidade; do mesmo modo que, na ordem natural, nosso Pai celeste e nosso pai terrestre constituem uma só e mesma paternidade.
Nada há tão consolador, nas provações e amarguras da vida, como o amor da Santíssima Virgem. É o próprio amor de Jesus e de Deus; mas, passando pelo Coração Imaculado e materno da Virgem de misericórdia, este santo amor assume um quê de terno, paternal e consolador. Assim como na família o coração da mãe se desentranha em extremos particulares de amor e confiança que povoam de encantos o lar doméstico; assim também o amor da Santa Virgem como que envolve o Sagrado Coração de Jesus Cristo, suaviza-lhe os divinos ardores e impede que os fracos e pecadores esmoreçam desanimados diante da santidade infinita do Salvador. O amor consolador de Maria é, pois, o próprio amor de Jesus Cristo, mas sob forma mais adaptada à nossa miséria.
Todos os santos sofreram muito e todos ternamente, amaram a Santa Virgem. Forças e alegrias prodigiosas hauriram no amor de Maria.
S. Bernardo, um dos maiores santos que produziu a Igreja e também um dos maiores gênios que a França produziu, depositava tal confiança na Santíssima Virgem, que a ela se dirigia em todos os trabalhos e dificuldades; e Deus sabe quantas curtiu em sua vida. Com tão maternal bondade o consolava e assistia a Mãe de Deus, que ele "superabundava de júbilo entre as tribulações." Compôs, nos transportes de seu reconhecimento, essa famosa oração que toda a cristandade sabe e repete quase tão familiarmente como a Ave Maria: "Lembrai-vos, ó misericordiosíssima Virgem Maria, que jamais se ouviu dizer que aquele que recorreu a vossa proteção, «implorou o vosso socorro, e pediu o vosso auxílio tenha sido abandonado. Animado por tal confiança, a vós me chego, a vós recorro Ó Virgem das virgens e minha mãe! Gemendo ao peso de meus pecados, prostro-me em vossa presença. Dignai-vos, Mãe de Deus, não rejeitar minha súplica; mas escutai-a favoravelmente e atendei-a."
Não quer isto dizer que a Santa Virgem nos conceda todas quantas graças lhe peçamos, e principalmente tais quais as pedimos: dispensadora das graças de Deus, procede à maneira de Deus: ama nos melhor do que nós poderíamos amar-nos e nos concede muitas vezes o inverso do que lhe pedimos, porque isso é o que mais nos convém. Mas, tenha o pecador plena certeza disso, sempre a Santa Virgem escuta-o, atende-e, obtém-lie as graças e bençãos de Deus. No céu ficarão patentes os extremos de amor materno com que ela amparava seus servos e os perigos de que os livrou.
Quando estivermos atribulados e cortados de sofrimentos, recorramos, pois, à Santíssima Virgem de misericórdia; peçamos-lhe com mais empenho paciência, do que alívio; santidade com mais empenho, que saúde; a salvação eterna, com maior empenho, que prosperidades temporais.
Se ela nos conceder as estimáveis alegrias deste mundo, rendamos-lhe graças; se ela nos trouxer a cruz de seu filho com a graça de a carregarmos santamente, seja o nosso reconhecimento ainda maior.
Cumpre que jamais lhe peçamos uma graça temporal senão com a condição de aproveitarmos a bem de nossa santificação.
Em nossas dores consolemo-nos aos pés de nossa Mãe. Não recorrem as crianças a suas mães para depositar no seio delas seus desgostosinhos, para lhes mostrar os arranhões e violências de que são vítimas? Como elas procedamos. "Se não fordes como as criancinhas — diz-nos o Senhor — não entrareis no reino dos céus".
Quanto mais simples e cheias de confiança forem nossas relações com a Santa Virgem, tanto mais serão de valia. Imploremo-la de todo o coração; amemo-la ternamente; dulcíssima e misericordiosa, ela virá ter conosco, e suavemente nos consolará durante a vida e no momento de nossa morte.
Bendito para sempre seja seu santíssimo nome!

FIM.

Laus Deo, Virginique matri.