A alma e sua origem

Santo Agostinho espiritualidade

Obras de Santo Agostinho - A alma e sua origem

Santo Agostinho

A Alma e sua Origem


Tradução: Souza Campos, E. L. de VALDEMAR TEODORO EDITOR

Niterói — Rio de Janeiro — Brasil 2018

Créditos
De anima et eius origine
@ 419 Aurelius Augustinus Hipponensis
@ 2018 Valdemar Teodoro Editor
Niterói - Rio de Janeiro - Brasil
Tradução de Souza Campos, E. L. de
Traduzido de De l'âme et de son origine.

Tradução do latim de M. labbé Burleraux In CEuvres Complêtes de Saint Augustin.

Bar-Le-Duc, L.
Guérins & Cie éditeurs, 1863.

Cotejado com Del alma y su origen

Tradutor: Mateo Lanseros, OSA

E com Sant'Agostino. L'amina e la sua origine

 

Santo Agostinho

A Alma e sua Origem

 

O grande Doutor, por diversas vezes em seus escritos, confessou sua impotência em resolver, simplesmente através do raciocínio lógico, o problema da alma. Um jovem africano, recentemente convertido dos donatistas à confissão católica, ficou espantado que uma pessoa como “Agostinho mantivesse dúvidas sobre uma questão cuja solução lhe parecia tão fácil.
Vicente Vítor (este era o nome do noviço filósofo) tinha encontrado na casa de um padre espanhol chamado Pedro, uma das obras em que Agostinho expunha suas incertezas sobre a questão. A este padre espanhol Vicente enviou dois livros contra o grande bispo.
Um amigo de Agostinho. o monge Renato encontrou em Cesarea os dois livros de Vicente Vitor, mandou copiá-los e os enviou ao bispo de Hipona, acompanhados por uma carta cheia de desculpas pela liberdade que tomava. Agostinho respondeu a ele através de quatro livros: o primeiro, dirigido ao monge Renato; o segundo, ao padre espanhol e os dois últimos ao próprio Vicente Vitor.

Introdução1

Um certo Vicente Vítor encontrou na Mauritânia Cesarea, na casa de um sacerdote espanhol chamado Pedro, um livrinho meu onde eu admitia, com relação à origem da alma de todas as pessoas, que ignorava se essas almas provinham da alma do primeiro ser humano e depois da de nossos pais ou se elas são criadas para cada ser humano, sem nenhuma propagação, como aconteceu com Adão. Eu declarava saber somente que a alma não é um corpo, mas um espírito.

1Das Revisões Livro 1, ap. LVI.

Esse Vicente Vítor enviou a esse mesmo Pedro dois livros contra minha opinião e o monge Renato os enviou para mim de Cesarea. Após tê-los lido eu os respondi em quatro livros; um dirigido ao monge Renato, outro ao Pe. Pedro e os dois últimos ao próprio Vítor. O que eu escrevi ao Pedro é uma carta, embora, por sua extensão, seja mais um livro. Mas eu não quis separá-la dos outros.
Em todos estes livros, que tratam de temas muito graves, eu defendi minhas dúvidas sobre a origem das almas que são concedidas a cada pessoa e mostrei os numerosos erros e falsidades da presunção de meu detrator.
No entanto, como era um jovem que não poderia crescer muito rápido, mas que precisava ainda ser instruído, eu o tratei com a maior suavidade que pude e recebi dele uma retratação.
O livro a Renato começa com estas palavras: Bem-amado irmão Renato! Tivemos a prova de sua sinceridade com relação a nós, a sua fraternal benevolência e a afeição que une você a nós.
Aquele que foi enviado a Pedro, com estas: Ao nosso bem-amado confrade e sacerdote Pedro.
Os dois últimos foram dirigidos a Vicente Vítor. O primeiro começa assim: Bem amado filho Vitor. Eu quero que, ao receber este texto, você se convença de que, se eu tivesse para com você algum desapreço, eu jamais faria isso.

Livro I
Os erros de Vicente Vítor

Agostinho observa a imprudência e os erros de Vicente Vítor sobre a natureza e a origem da alma. Ele examina os testemunhos das santas Escrituras, citadas por Vicente e prova que eles não estão a favor da tese de seu debatedor.

Capítulo 1
Agradecimento a Renato.

Bem-amado irmão Renato! Tivemos a prova de sua sinceridade com relação a nós, a sua fraternal benevolência e a afeição que une você a nós. Mas você acaba de me dar um novo testemunho de sua afeição e devotamente ao me enviar dois livros escritos por um homem que eu não conhecia de forma alguma e que, nem por isso, estimo menos.
Recebi então, no último verão, os dois livros de Vicente Vítor; pois este é o nome que vejo escrito na capa dessas obras. Mas, como eu estava ausente naquele momento, eles só puderam chegar a mim lá pelo fim do outono.
Não somos unidos por uma amizade bem estreita, para que não fosse possível a você deixar de me comunicar os escritos de qualquer autor que fosse, nos quais meu nome estivesse envolvido e minha doutrina atacada? Pois você fez então o que um amigo sincero e generoso deve fazer.

Capítulo 2
Amor ao adversário e correção de seus desvarios.

No entanto, lamento vivamente ainda não ser conhecido por você, como eu gostaria de sê-lo. De fato, você não temia me ofender, me informando sobre as injúrias que um escritor se dignou me cobrir?
Mas tais sentimentos me são tão estranhos que nem mesmo me passou pela cabeça a ideia de me lamentar pelos ultrajes que eu pudesse ter recebido da parte dessa escritor. Pois, se ele, em alguns pontos, não compartilha de minhas ideias, por que ele seria condenado ao silêncio?
Declaro então, sinceramente, que lhe sou grato porter falado, pois me deu a oportunidade de ler seus escritos.
Sem dúvida que ele deveria ter se dirigido diretamente a mim, antes de me acusar diante de terceiros. Mas, como ele não me conhecia, ele não ousou estabelecer comigo a refutação de meus escritos. Ele nem mesmo julgou necessário me consultar, por que estava bem seguro com todas as opiniões que ele emitia.
Acredito, enfim, que ele agiu para agradar um amigo que o forçou a pegar na caneta. Suponho então que, no calor do discurso, tenha escapado algumas palavras ofensivas a mim. Creio que a injúria estava longe de seu pensamento e que ele só obedeceu à empolgação das opiniões diretamente opostas às minhas.
De fato, já que um homem desconhecido se coloca como meu adversário, estou convencido de que seu pensamento vale mais do que sua linguagem e que, antes de ser um acusador, ele é um profundo convicto.
Talvez ele só tenha agido em meu interesse, pois ele sabia muito bem que seus escritos chegariam até amim. Compreendo então que ele tenha se recusado a me ver no erro, em uma matéria na qual se acreditava possuidor da verdade.
Assim, mesmo refutando suas opiniões, devo manifestar-lhe minha gratidão por sua benevolência.
Por isso o refutarei com doçura, ao invés de repreendê-lo com amargura. Creio estar obrigado a isso, na medida em que ele abraçou recentemente à fé católica e eu o felicito por isso. De fato, soube que ele acaba de deixar a seita dos donatistas. ou melhor, dos rogatistas e se ele quer que sua conversão nos propicie uma alegria verdadeira, ele deve compreender e abraçar corajosamente a verdade católica.

Capítulo 3
A eloquência perniciosa.

Palavras não lhe faltam, para desenvolver suas opiniões. Assim, tudo o que se pode desejar é que essas opiniões sejam justas, que ele não torne atraente o que é inútil e que todos os seus arroubos de eloquência só tenham por objetivo a verdade.
Portanto, eu reprovaria em seu estilo algumas incorreções e, sobretudo, uma grande redundância. Vejo em sua carta que sua maturidade ficou chocada com esses erros. Mas eles podem ser facilmente corrigidos e, aliás, sem realizar nenhum atentado à fé, tais erros podem ser amados por mentes superficiais e tolerados pelas mentes profundas.
Temos homens espumosos em seu discurso, mas que não deixam de ser puros em sua fé2. Esperemos, portanto, que esses defeitos que ainda seriam toleráveis, mesmo que perdurassem sejam corrigidos e desapareçam com o tempo. Nosso escritor ainda é um jovem. A idade e a aplicação suprirão sua inexperiência. A maturidade dos anos remediará a crueza de sua linguagem.
De fato, seria triste e perigoso, se a eloquência fosse colocada a serviço do erro. Isso seria beber veneno em um copo muito caro.

2Cf. Carta a Tito 1:13 e 2:2.

Capítulo 4
Primeiro erro: a alma nascida da substância divina.

Eu começo por assinalar os principais erros encontrados em seu texto. Ele afirma. e com razão que a alma foi criada por Deus e que ela não é nem uma parte e nem da natureza de Deus. Mas, como ele não quer que ela tenha sido tirada do nada e ele não cita nenhuma criatura de onde a alma pode ter sido criada, somos levados, necessariamente, a concluir que foi de sua própria natureza que Deus tirou a alma, já que ele não a tirou do nada e nem de nenhuma criatura.
Vicente acredita ter escapado desta conclusão e não sabe que ela decorre naturalmente de seus princípios, de sorte que a alma não seria outra coisa além da própria natureza de Deus. Seguir-se-ia daí que Deus teria se servido de sua própria natureza para fazer alguma coisa e que o criador dessa coisa teria sido ele próprio sua matéria. Por consequência, a natureza de Deus teria sido submetida a uma mudança e condenada pelo próprio Deus a decair de seu estado de imutabilidade primitiva e absoluta.
Sua inteligência é bem correta e muito fiel para não compreender logo que tal doutrina é diretamente contrária à fé e, como tal, deve ser energicamente rejeitada.
Dirão que essa alma foi feita do sopro de Deus ou que o sopro de Deus se tornou a alma e que, assim, a alma não foi criada de Deus, mas, do nada, por Deus?
Quando uma pessoa sopra, ela não tira seu sopro do nada, já que ela só faz devolver ao ar ambiente o que ela tirou dele. Suporemos então que Deus estava rodeado de ar, que aspirou uma certa quantidade dele e em seguida o expirou sobre à face do homem e, desta maneira, lhe criou uma alma. Nesta hipótese, o sopro de Deus não poderia ser uma parte dele mesmo, mas uma quantidade mais ou menos grande do ar ambiente que o rodeava.
Mas, longe de nós o pensamento de negar que Deus pôde tirar do nada o sopro de vida que fez do ser humano uma alma viva! Longe de nossas cruéis angústias no seio das quais estaríamos reduzidos a pensar que Deus precisou de outra coisa além dele mesmo para formar esse sopro ou mesmo que foi de sua própria natureza que ele formou essa alma que vemos essencialmente sujeita à mudança!
Tudo o que é feito dele deve necessariamente participar de sua natureza e ser essencialmente imutável. Ora, todos concordam que nossa alma é sujeita à mudança. Ela não é, portanto, feita da natureza de Deus, já que Deus é, essencialmente, imutável. Se então, nossa alma não foi tirada de nenhuma outra natureza, ela foi tirada necessariamente do nada e criada por Deus.

Capítulo 5
Novo erro: o ser humano composto por três elementos corpóreos.

Ele afirma em seguida que nossa alma não é um espírito, mas um corpo. Podemos duvidar desta afirmação, quando o ouvimos afirmar que somos compostos, não de uma alma e de um corpo, mas de dois e até mesmo de três corpos?
Somos formados, ele diz, de um espírito, de uma alma e de um corpo e estes três elementos são realmente três corpos. Isto não é o mesmo que dizer que somos um conjunto de três corpos? É a ele e não a você que eu gostaria de demonstrar todos os absurdos que decorrem de um princípio assim.
No entanto, este erro ainda é tolerável em uma pessoa que não sabe ainda que pode existir tal substância que, sem ser um corpo, pode apresentar exteriormente uma semelhança a ele.

Capítulo 6
A alma maculada pela carne antes de unir-se a ela.

Mas, podemos tolerar, em seu segundo livro, a solução que ele tenta dar à difícil questão do pecado original, no que diz respeito ao corpo e à alma, se supusermos que a alma não nos é transmitida por via da geração, mas é, em nós, o resultado de um novo sopro de Deus?
Eis então o caminho que ele propõe para resolver essa profunda e fatigante questão: "Não é sem uma razão bem sábia que a alma recobre pela carne o antigo hábito que ela parecia ter insensivelmente perdido para a carne e é assim que ela começa à renascer pela carne, como foi por ela que ela mereceu ser maculada”.
O que pensa você de uma pessoa que ousa desafiar as profundezas do precipício e decidir que foi pela carne que a alma mereceu ser maculada? Ele pode então nos explicar como a alma, antes de estar unida à carne, mereceu ser maculada por ela? De fato, se foi pela carne que a alma mereceu a mácula do pecado, que ele nos diga, se puder, como a alma, antes de seu pecado, mereceu ser maculada pela carne.
Essa triste condenação de ser jogada em uma carne culpada, para nela contrair uma mácula, ou bem lhe vem de sua natureza ou bem. o que é pior ainda — ela recebeu de Deus. Não se dirá, eu penso, que essa condenação ela o recebeu da carne antes de estar unida a ela e que foi por ela que ela mereceu ser jogada na carne para contrair sua mácula.

Se essa condenação ela deve a ela mesma, como ela pode tê-la adquirido, já que antes de sua união com a carne ela não cometeu nenhuma falta? Ela a teria recebido de Deus? Mas isso é uma blasfêmia que ninguém tolerará e que não se pode cometer impunemente.
Eu não pergunto aqui qual falta a alma pôde cometer depois de sua união coma carne, para merecer ser condenada; mas como, antes de ser unida à carne, ela pôde merecer ser unida à carne para contrair sua mácula. Eu espero uma resposta da parte daquele que ousou dizer que a alma mereceu ser maculada pela carne.

Capítulo 7
Fujamos de fazer de Deus cúmplice do pecado original.

Em outra passagem do mesmo livro, querendo resolver essa mesma questão na qual ele se envolveu imprudentemente, Vicente Vítor atribui aos seus adversários as seguintes palavras: "Por que Deus golpeou a alma com um castigo tão injusto a ponto de relegá-la a um corpo de pecado e condená-la a se tomar pecadora através dessa união com a carne, quando ela não podia pecar sem essa carne?”
Envolvido nesse abismo cheio de armadilhas, ele teve que procurar escapar do naufrágio e não se lançar em um impasse de onde só poderia sair recuando, ou seja, repensando sua imprudência.
Ele quis então, mas em vão, se livrar da presciência de Deus. Essa presciência conhece antecipadamente os pecadores que Deus deve curar, mas não é ela mesma que os torna pecadores. Supor que Deus livra do pecado as almas que ele mesmo jogou, inocentes e puras, no pecado, seria supor que ele próprio cura o ferimento que ele nos provocou e não que ele encontrou em nós.
Ora, que Deus afaste de nós o simples pensamento de dizer que, quando o Senhor purifica a alma das crianças, ele só faz reparar o mal que ele próprio produz, ao jogar essas almas, até então inocentes, em uma carne pecadora, que devia lhes manchar com o pecado original!
No entanto, são essas próprias almas que nosso debatedor acusa de terem merecido ser manchadas pela carne, sem poder nos explicar como, antes de estarem unidas à carne, elas puderam merecer esse cruel castigo.

Capítulo 8
Méritos ou deméritos pessoais antes de nascer?

Gloriando-se então, mas inutilmente, de poder resolver esta difícil questão da presciência de Deus, ele só se afunda mais, quando clama: “Embora a alma, que (antes de estar unida à carne) não podia ser pecadora, tenha merecido ser pecadora (através da carne), no entanto, ela não permaneceu no pecado, por que, prefigurada em Jesus Cristo, ela não podia permanecer no pecado; não como ela soube por ela mesma se jogar nele”.
Ao dizer sobre a alma que "ela não podia ser pecadora” ou que "ela não podia permanecer no pecado”, eu tenho todo direito de acreditar que ele fala da alma antes de sua união com a carne.
De fato, se a alma não passa dos pais para os filhos por via da geração, ela só pode ser culpada pelo pecado original ou permanecer no pecado original através de sua união com a carne. Por consequência, se observarmos bem como a alma se livra do pecado pela graça, não vemos como ela mereceu aderir ao pecado.
Mas então o que querem dizer estas palavras: "Embora a alma tenha merecido ser pecadora, no entanto, ela não permaneceu no pecado"? Se eu lhe perguntar por que ela não permaneceu no pecado, ele me responderá e com razão que a graça de Jesus Cristo livrou dele.
Pois bem, eu compreendo como a alma pecadora de uma criança foi justificada, mas que ele me explique, da mesma forma, como essa alma mereceu se tornar pecadora.

Capítulo 9
A única coisa sábia para Vicente Vitor é a retratação.

Ele colocou premissas. Em seguida, ele as responde? Vejamos como ele coloca para ele mesmo a questão: "Outras injúrias são ouvidas nos murmúrios queixosos dos maledicentes e então, como pessoas derrubadas por um forte turbilhão, rolamos tristemente do alto de rochedos escarpados”.
Se eu utilizasse estas palavras, talvez fosse despertado nele o fogo da cólera. No entanto, estas são suas próprias palavras. Foi nestes termos que ele propôs a questão na qual ele nos mostrou os rochedos contra os quais ele naufragaria e se espatifaria. Assim, coberto por horríveis ferimentos, ele chegou ao ponto em que a salvação só lhe seria possível fazendo a retratação de sua própria linguagem.
Como, de fato, ele poderia precisar em virtude de qual mérito precedente a alma tinha se tomado pecadora e provar que, antes de qual- quer pecado de sua parte, ela mereceu ter se tomado pecadora? Ser concebido em uma iniquidade que nos é estranha; antes de sair do seio materno já ser culpado de pecado; como então se pode merecer um tão horrível destino, se não for pelo pecado?
Por outro lado, as almas das crianças regeneradas em Jesus Cristo são libertadas desse castigo sem nenhum mérito anterior e por uma graça puramente gratuita, pois o caráter de toda graça é ser gratuita3.
Eu admiro, sem dúvida, o gênio profundo que, em uma questão tão difícil, se indigna com nossas hesitações, não sábias, mas prudentes.
Mas, no mínimo ele nos diga, se puder, qual é esse castigo que a alma contraiu sem tê-lo merecido e do qual ela se livra através da graça, sem nenhum mérito de sua parte. Que ele diga e prove. Eu não me mostraria tão exigente se ele não tivesse dito que a alma mereceu se tomar pecadora.
O mérito adquirido por ela era bom ou mau? Se era bom, como ele afirma que ela caiu no mal? Se era mau, como ela o contraiu antes de qualquer pecado de sua parte? Eu insisto: se esse mérito era bom, isso não aconteceu gratuitamente, mas em virtude de um direito verdadeiro adquirido através da graça, já que essa graça foi anteriormente meritória e, desta forma, essa graça não é uma graça.

3Cf. Romanos 11:6

Se esse mérito era mau, então qual era ele? A alma então teria merecido vir até à carne, à qual ela não teria vindo se não tivesse sido jogada nela por Aquele que é isento de qualquer iniquidade?
A menos que ele queira se afundar cada vem mais no abismo, nosso debatedor jamais tentará provar que a alma mereceu se tomar pecadora.
Quanto às crianças que obtiveram no batismo a remissão do pecado original, não lhe ensinaram claramente que a presciência de Deus não poderia prejudicar no que quer que seja aqueles que são predestinados à vida eterna e, muito menos torná-los culpados por um pecado alheio?
Tudo isso, no entanto, ainda seria tolerável se seu linguajar não tornasse a dificuldade insuperável, ao dizer que a alma mereceu se tornar pecadora. Se então ele deseja sair desse embaraço, não há outra coisa que ele possa fazer além de se retratar de tudo o que ele disse.

Capítulo 10
Não há salvação sem batismo.

Ele achou que devia se ocupar igualmente das crianças que morrem antes de terem recebido o batismo de Jesus Cristo e ousou lhes prometer, não apenas o paraíso, mas até mesmo o reino dos céus. Isso era necessário, pois seria muito cruel afirmar que Deus condenou à morte eterna almas que ele jogou em uma carne de pecado, sem que elas o tivessem merecido por nenhum pecado precedente.
Todavia, ele logo percebeu que havia cometido um erro, ao sustentar que, sem nenhuma graça de Jesus Cristo, as almas das crianças podem ser redimidas para a vida eterna e que elas podem obter a remissão do pecado original sem o batismo de Jesus Cristo. Medindo então como olhar a profundidade do abismo onde se precipita, ele clama: “Eu penso que essas crianças devem sua felicidade às oblações assíduas e aos sacrifícios oferecidos pelos santos padres”.
Esta também é uma proposição da qual ele só escapará se retratando. Por quem o sacrifício do corpo de Jesus Cristo4 deve ser oferecido, se não é para aqueles que são membros de Jesus Cristo5? Não lemos: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus6. E, em outro lugar: Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder por minha causa, reencontrá-la-á7?
Não é então evidente que só nos tornamos membros de Jesus Cristo recebendo o batismo de Jesus Cristo ou morrendo por Jesus Cristo?

4 Cf. Lucas 2,18.
5 Cf. 1 Coríntios 6,15 e Efésios 5,30.
6 João 3,5.
7 Mateus 10,39

Capítulo 11
O batismo de sangue.

Para afirmar a absoluta necessidade do batismo, citamos o caso do bom ladrão, que confessou na cruz a divindade de Jesus Cristo, antesde ter oferecido sua vida em sacrifício, à exemplo do Salvador.
Ora, São Cipriano coloca o bom ladrão entre os mártires que são batizados em seu próprio sangue, como aconteceu várias vezes, para os quais o carrasco foi mais rápido do que os ministros do batismo. Em sua opinião, o bom ladrão, ao confessar a divindade de Jesus Cristo na cruz, praticou um ato tão meritório como se ele tivesse realmente sido crucificado por Jesus Cristo. A madeira da cruz, perante a qual a fé dos discípulos secou, fez realmente florescer a sua, sem esperar que as glórias da ressurreição viessem renovar, como fizeram para os apóstolos, o que os terrores de sua morte tinham destruído.
Os apóstolos tinham se desesperado com seu mestre morrendo; o bom ladrão esperou naquele que partilhava de seu último suplício. Os apóstolos abandonaram o autor da vida; o bom ladrão rezou por aquele cujo castigo lhe era comum. Os apóstolos choraram sua morte como se chora pela morte de uma pessoa comum; o bom ladrão acreditou que sua morte seria seguida de uma pronta ressurreição. Os apóstolos deixaram aquele que lhes tinha prometido a salvação; o bom ladrão adorou aquele que lhe estava associado no suplício da cruz.

Não tinha então todo o mérito de um mártir, aquele que acreditou em Jesus Cristo, no momento em que aqueles que deviam ser mártires sentiram sua fé fraquejar? Pelo menos foi assim que considerou o próprio Salvador, já que ele, sem exigir que esse ladrão recebesse o batismo e acreditando que ele estava inteiramente purificado por um tipo de martírio, lhe prometeu a posse da felicidade eterna8.

8 Cf. Lucas 23:43

Quem de nós, aliás, não admiraria a fé, a esperança e a caridade, com as quais ele procurou a vida em um moribundo e com as quais, com mais forte razão ainda, ele pôde aceitar a morte pelo Jesus Cristo vivo?
Dizem, enfim. e nada se opõe a isso que esse ladrão, movido por uma fé bem viva e pendurado bem perto do Salvador crucificado, foi purificado pela água misteriosa que jorrou do lado aberto de Jesus Cristo e que lhe serviu de batismo.
Não podemos saber se antes de sofrer sua condenação esse ladrão não havia sido batizado. Manterei silêncio, portanto, sobre este ponto.
Somos livres para pensar o que quisermos, contanto que não nos apoiemos no exemplo deste bom ladrão para anular a necessidade do batismo, proclamada pelo Salvador; que não se estabeleça, para as crianças mortas sem batismo, não sei qual moradia de felicidade, estabelecida entre a danação e o reino dos céus.
Com efeito, a heresia pelagiana não recuou diante desta hipótese e nisso ela era coerente com ela mesma, pois, não admitindo nenhum pecado original nas crianças, ela não temeu para elas a danação. Por outro lado, ela só lhes prometeu o reino dos céus com a condição de que recebessem o sacramento do batismo.
Quanto ao nosso debatedor, mesmo proclamando que as crianças são culpadas do pecado original, ele ousou prometer o reino dos céus àqueles mesmos que morrem sem o batismo. Os pelagianos recuaram diante de uma ousadia assim, embora não admitissem a existência do pecado original. Daí se pode julgar os laços estreitos onde se encerra sua presunção; a menos que ele se retrate do que escreveu.

Capítulo 12
O suposto caso de Dinocrates.

Dinocrates, irmão de Santa Perpétua, igualmente é citado. Mas, primeiramente, esta história não é canônica. Depois, o autor que a conta — seja a própria santa ou qualquer outro não diz, em nenhum lugar, de uma maneira clara e positiva, que a criança de sete anos estava morta sem batismo. Lemos apenas que, a ponto de sofrer o martírio, Santa Perpétua rogou por seu irmão, pediu que sua prece fosse ouvida e que a criança saiu do lugar dos tormentos e passou para o lugar do repouso.
As crianças dessa idade não são ainda capazes de mentir ou desdizer a verdade, confessar suas faltas ou negá-las? As crianças batizadas aos sete anos não são já capazes de repetir o símbolo e responder por elas mesmas?
Quem sabe então se essa criança, após ter recebido o batismo, não foi iniciada na idolatria por seu pai infiel e ímpio? Morrendo nessa idade, ela seria condenada às expiações proporcionais ao grau de suas faltas e recebeu plena e total remissão através das preces de sua irmã e através dos méritos do sangue que ela ia derramar.

Capítulo 3
Até que ponto influi a atitude dos familiares na salvação das crianças.

Mesmo quando, sem prejuízo algum à fé católica e à disciplina eclesiástica, concordou-se, sem nenhuma razão de fato, com o nosso debatedor, que o sacrifício do corpo e do sangue de Jesus Cristo possa ser oferecido para pessoas não batizadas, qualquer que seja sua idade e que esse ato religioso possa ajudá-las a chegar ao reino dos céus, há que se explicar a sorte de tantos milhares de crianças que pertencem a pais ímpios e que não obtém da parte dos justos nenhuma piedade divina e humana e saem desta vida na idade mais tenra e sem terem sido regeneradas nas águas do batismo.
Que ele nos explique então, se puder, como essas almas mereceram se tornar pecadoras, até o ponto de não serem jamais livres de seus pecados. Se eu lhe perguntar por que elas merecem ser condenadas, quando não recebem o batismo, ele me responderá sabiamente que é por causa do pecado original. Se eu lhe perguntar como elas contraíram o pecado original, ele me responderá que foi por sua união a uma carne pecadora. Se eu lhe perguntar como almas que não cometeram nenhuma falta antes de serem unidas à carne puderam ser condenadas a se unir a uma carne pecadora, ele não sabe mais o que responder. Ele não pode me explicar como elas foram reduzidas a sofrer o contágio dos pecados alheios até o ponto em que a regeneração do batismo lhe é recusada e elas não encontram nenhum sacrifício para expiar suas faltas.
Como é que crianças são geradas é nascem também absolutamente privadas de qualquer socorro espiritual? Diante de um fato como esse, toda argumentação se torna impotente.
De fato, não perguntamos como essas almas mereceram ser condenadas, desde sua união com uma carne pecadora. Nós perguntamos como elas mereceram ser condenadas a sofrer a união com uma carne pecadora, já que, antes dessa união, elas não eram culpadas de nenhum pecado.
Não se trata de responder: "A participação no pecado alheio não prejudica de nenhuma maneira àqueles para os quais, em sua presciência eterna, Deus preparou o poderoso remédio da redenção”. Nós falamos neste momento daqueles que, morrendo antes de terem recebido o batismo, não tiveram nenhuma parte na redenção.

Que não nos digam: "As almas que não foram justificadas pelo batismo o serão pelos numerosos sacrifícios que são oferecidos por elas, e, em sua previsão, Deus quis que elas participasse dos pecados alheios, sem fazê-las correr o risco da danação eterna e com a esperança de uma felicidade sem fim".
Falamos neste momento das crianças que pertencem a pais ímpios e incapazes, por isso mesmo, de lhes ser de qualquer ajuda. Depois, quando essa ajuda lhes for propiciada, ela não ajuda em nada as almas que não receberam o batismo.
No Livro dos Macabeus é feita menção a sacrifícios oferecidos para os mortos9, mas esses mortos, pecadores como deviam ser, não se beneficiaram em nada com eles, pois, antes de morrer, não tinham sido circuncidados.

9 Cf. 2Macabeus 12:43.

Capítulo 14
Duas soluções inaceitáveis.

Que nosso debatedor se apronte então para responder, quando lhe for pedido para explicar como uma alma, até então isenta de qualquer pecado original ou atual, pôde merecer ser condenada a sofrer o pecado original alheio, sem poder obter sua remissão.
Das duas, uma: ou ele afirma que as almas das crianças que morrem sem batismo — e, por isso, não lhes é oferecido nenhum sacrifício do corpo do senhor são, no entanto, libertadas do laço do pecado original, embora o Apóstolo ensine claramente que todos são condenados por um único pecado10, se a graça não vem lhes aplicar os méritos da redenção operada por um só; ou então ele sustente que as almas, sem terem nenhum pecado pessoal ou original, as almas inocentes, simples e puras, são jogadas na danação eterna por um Deus justo, quando ele as une a uma carne pecadora com a previsão de que elas serão libertadas dela.

10 Cf. Romanos 5:16.

Capítulo 15
A presciência do mal não pode ser causa de castigo.

Nem uma e nem outra destas afirmações poderiam ser defendidas.
Há uma terceira que não é melhor fundamentada. Ela consistiria em dizer que as almas, antes de serem unidas a um corpo, já possuíam pecado e mereciam, por isso, ser condenadas à união com a carne.
O Apóstolo afirma ousadamente que antes de serem unidas a um corpo, as almas não fizeram nenhum bem e nenhum mal11. Segue-se daí que, se as crianças precisaram obter a remissão de seus pecados, essa remissão só pode recair sobre o pecado original.

11 Cf. Romanos 9:11.

Uma quarta hipótese ainda se apresenta. Diante das crianças que morrem sem o batismo, pode-se dizer que, se sua alma foi condenada a habitar esta carne pecadora e encontrar aí, sem recurso, a morte eterna, foi por que Deus, prevendo que abusariam de seu livre arbítrio, elas se aproveitariam de uma idade mais avançada para se dedicar ao mal?
Apesar do extremo embaraço que o obseca, nosso debatedor não ousou levar até aí sua imprudência. Ele até mesmo protestou breve e abertamente contra esta louca afirmação, quando afirmou: "Deus seria injusto se julgasse uma pessoa antes de seu nascimento de acordo coma simples presciência da imperfeição das obras de sua vontade".
Foi isto o que ele disse, quando respondeu a esta questão: "Por que Deus criou o ser humano, já que ele sabia antecipadamente que esse ser humano se dedicaria ao mal?" De fato, seria realmente julgar uma pessoa antes de seu nascimento, se recusar a criá-la pela razão de que, uma vez criada, ela se tornaria pecadora. Eu aprovo esta resposta e digo, como ele, que o ser humano deve ser julgado unicamente pelas ações que ele praticou e não pelas que ele vai praticar, embora Deus as conheça perfeitamente.
Com efeito, se os pecados que uma pessoa cometeria durante sua vida ulterior devessem pesar sobre seu julgamento, quando ela morre antes de ter tido tempo de cometê-los, que benefício teria recebido aquele que Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma12, já que ele deveria ser julgado pela malícia que teria tido, se tivesse vivido por mais tempo e não pela inocência que possuía no momento de sua morte?

12 Sabedoria 4:11

Após terem recebido o batismo, as pessoas não são capazes, não apenas de pecar, mas também de apostasiar? Suponhamos então uma criança que morre após ter recebido o batismo e que teria apostasiado se tivesse vivido: Ela não ganhou então nada, ao ser arrebatada para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma? Em virtude da presciência infinita de Deus, ela seria julgada, não como um membro fiel de Jesus Cristo, mas como uma apóstata?
Se pecados que não existem ainda, nem na realidade e nem mesmo no pensamento humano, mas somente na presciência divina, são então punidos, não teria sido preferível que nossos dois primeiros ancestrais tivessem sido afastados do paraíso antes que tivessem pecado, ao invés de pecar em um lugar tão santo e tão afortunado?
E o que será então a presciência, se seu objeto não se realiza? O que não deve acontecer pode ser conhecido como devendo acontecer?
Como então punir pecados que não existem, ou seja, que não foram cometidos antes da alma se unir como corpo e nem depois dessa união, que a morte veio romper prematuramente?

Capítulo 16
Só o pecado original pode macular a alma dos recém-nascidos.

Trata-se aqui da alma de uma criança que morreu muito jovem para poder fazer uso de seu livre arbítrio e cuja alma foi jogada na carne até que a morte veio libertá-la dela. Por ter morrido sem batismo, ela está condenada. Mas, qual pode ser a causa dessa condenação, se não for o pecado original? Não negamos, de fato, que esse pecado seja suficiente para fazer merecer uma condenação muito justa para a alma, já que toda lei deve sempre contemplar uma sanção. Mas eu gostaria que me dissessem por que a alma foi condenada a contrair esse pecado, se essa alma não descende, por geração direta, desse primeiro pecador, que constituiu o pai do gênero humano.
Por outro lado, está bem estabelecido que Deus não condena os inocentes e que não torna culpados aqueles nos quais ele reconhece a justiça. É igualmente certo que o único meio de libertar as almas seja do pecado original, seja dos pecados pessoais é através do batismo de Jesus Cristo, tal como ele foi confiado à Igreja. É igualmente certo que, antes de ser unida à carne, as almas não puderam cometer nenhum pecado. Por fim, é fora de dúvida que uma lei justa não poderia condenar pecados antes que eles sejam cometidos e, sobretudo, que jamais o foram.
Nosso debatedor deve aceitar estas quatro proposições. Mas então, que ele nos explique, se puder, a razão pela qual essas almas, que serão condenadas por terem sido separadas de seus corpos antes de terem recebido o batismo, puderam ser jogadas em uma carne pecadora, sem terem merecido essa triste sorte, por nenhum pecado anterior e reduzidas a contrair um pecado que será para elas uma causa legítima de condenação.
Em nome da mais rigorosa justiça e correta razão, ele certamente se recusará a dizer, ou que Deus torna pecadoras almas que eram sem pecado, ou que o sacramento de Jesus Cristo não é necessário para apagar nelas o pecado original, ou então que elas pecaram em um estado anterior à sua união com a carne, ou, por fim, que elas são condenadas por pecados dos quais elas jamais foram culpadas.
Após ter rejeitado estas quatro proposições, que se chocam, de fato, com o simples bom senso, ele dirá que as crianças não são culpadas de nenhum pecado original e que, mesmo morrendo sem terem recebido o batismo, elas não trazem com elas nenhuma causa de condenação?
Um discurso assim o jogaria imediatamente na heresia pelagiana e o tomaria merecedor de todas as condenações. Para escapar dessa cruel alternativa, seria melhor se ater à minha hesitação sobre a origem da alma, do que se dedicar a afirmações que revoltam a razão humana e que a autoridade divina reprova. Ele se livraria assim da vergonha de passar por um insensato, ao se recusar a confessar sua ignorância sobre questões tão graves.

Capítulo 17
Os textos bíblicos apresentados por Vicente Vítor não provam claramente o criacionismo.

Mas então ele tenta apoiar sua opinião na autoridade das santas Escrituras e acredita encontrar aí a prova evidente que as almas não são transmitidas por via da geração, mas são imediatamente criadas através de um novo sopro de Deus.
Que ele o prove então se puder. e eu confessarei com franqueza que foi dele que eu descobri aquilo que eu procurava há muito tempo com ardor. Mas que ele invoque testemunhos diferentes daquele que ele citou, pois estes não têm nenhum valor. Não digo eles propriamente, mas no que se trata da questão relativa à origem da alma.
É certo, por exemplo, que Deus deu ao ser humano o sopro e o espírito, segundo estas palavras do Profeta: Eis o que diz o Senhor Deus que criou os céus e os desdobrou, que firmou a terra e toda a sua vegetação, que dá respiração a seus habitantes e o sopro vital àqueles que pisam o solo13. Nosso debatedor invoca esta passagem em favor de sua doutrina e considera que as palavras que dá respiração a seus habitantes e o sopro vital àqueles que pisam o solo afirmam claramente que nós recebemos imediatamente nossa alma, não por via da geração, mas através de um sopro especial de Deus.

13 Isaías 42:5.

Se ele for coerente com ele mesmo, sustentará ainda que não foi Deus que nos deus diretamente nossa carne, por que ela nasce da carne de nossos pais?
Falando da semente de trigo, o Apóstolo não diz: Deus, porém, lhe dá o corpo como lhe apraz e a cada uma das sementes o corpo da planta que lhe é própria14?
Que ele negue então, se tiver a ousadia, que o trigo nasce do trigo e a erva da semente que lhe é própria. Se ele não ousar negar, como ele pode saber em que sentido foi dito: Deus dá respiração a seus habitantes e o sopro vital àqueles que pisam o solo? Foi tirando-o dos pais? Foi criando um novo para cada alma particular?

15 1Coríntios 15:38

Capítulo 18
O que significam respiração e sopro vital?

Da mesma forma, como ele sabe que as palavras Deus dá respiração a seus habitantes e o sopro vital àqueles que pisam o solo não passam da repetição do mesmo pensamento sob duas formas diferentes?
Ele está bem seguro de que se trata apenas da alma humana e, de forma alguma, do Espírito Santo? Se esse sopro não quer designar o Espírito Santo, o Senhor, após sua ressurreição, teria se dado ao trabalho de soprar sobre seus discípulos, dizendo: Recebei o Espírito Santo15? Leríamos igualmente nos Atos dos Apóstolos: De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um deles, Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem16.
E se foi este o acontecimento anunciado pelo Profeta, quando disse: Deus dá o sopro vital àqueles que pisam o solo? E se foi unicamente para melhor explicar seu pensamento, ao repeti-lo nestes termos: Deus dá respiração a seus habitantes?
No mínimo é evidente que foi isto o que aconteceu, quando todos ficaram cheios do Espírito Santo. Ele dirá que não se pode chamar de povo a cento e vinte pessoas que se encontravam reunidas em um só lugar? Ao menos quatro ou cinco mil pessoas estavam reunidas na mesma fé, foram batizadas e receberam o Espírito Santo17. Hesitaremos em dizer que o povo, essa multidão que estava sobre a terra, essas pessoas que pisavam o solo, receberam o Espírito Santo?
Quanto ao espírito, que é parte constitutiva da natureza humana, seja ele dado a nós por via da geração ou pelo efeito direto de um sopro novo e especial (pois, para me pronunciar sobre esse ponto eu espero novas luzes), é certo que não é quando eles pisam o solo que os seres humanos recebem esse espírito, mas quando eles ainda estão encerrados no seio materno.
Deus então deu o sopro ao seu povo da terra e o espírito àqueles que a pisam com seus pés, quando todos esses novos convertidos receberam ao mesmo tempo o Espírito Santo.

15 João 20:22.
16 Atos 2:2-4.
17 Atos 4:31.

Para dar esse Espírito, Deus não exige, aliás, que todo seu povo esteja reunido. Ele o dá a cada pessoa em seu tempo e agirá assim até o momento em que esse povo, após ter deixado esta vida para entrar em uma nova vida, completará no céu o número dos filhos de Deus.
Neste sentido então, não distinguimos o sopro do espírito e vemos no texto apenas uma simples repetição da mesma ideia. Da mesma forma, não distinguimos Aquele que habita o céu, do próprio Senhor; tomamos no mesmo sentido o riso e o escárnio, como encontramos no Salmo: Aquele, porém, que mora nos céus, se ri. O Senhor os reduz ao ridículo18.
Estas outras palavras do Profeta não passam igualmente de uma repetição: Dar-te-ei por herança todas as nações; tu possuirás os confins do mundo19, Nações e confins do mundo expressam a mesma ideia e não passam de repetições. Ao lermos atentamente as santas Escrituras, nelas encontramos um grande número de locuções do mesmo gênero.

18 Salmo 2:4.
19 Salmo 2:8.

Capítulo 19
Uma só palavra grega e três sentidos latinos.

Observemos também que a palavra grega pnohvn, que nos ocupa neste momento, é diversamente interpretada pelos latinos. Ela é alternativamente interpretada por sopro, espírito e respiração.
Eis aqui uma sequência de passagens nas quais o texto grego reproduz exatamente o mesmo termo, enquanto que o latino traduz de três maneiras diferentes. Deus, que dá respiração a seus habitantes20. O Senhor Deus inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente21, No mesmo sentido se lê no Salmo: Tudo o que É o respira louve o Senhor!!22 Finalmente, no Livro de Jó está escrito: É o Espírito de Deus no homem e um sopro do Todo-poderoso que torna inteligente23.
Não se poderia duvidar que se trata aqui do próprio Espírito Santo, pois era o caso de saber a fonte de onde os humanos retiram a sabedoria e esta é a resposta: Dizia comigo: "A idade vai falar; os muitos anos farão conhecer a sabedoria", mas é o Espírito de Deus no homem e um sopro do Todo-poderoso que torna inteligente24.

20 Isaías 42:5.
21 Gênesis 2:7.
22 Salmo 150:5
23 Jó 32:8.

Esta repetição não tinha por objetivo provar que não era do próprio espírito humano que ele falava, quando dizia: o Espírito de Deus no homem? Para melhor provar que não é dos seres humanos que vem a sabedoria, o autor só fez repetir seu pensamento sob outra forma, dizendo: É um sopro do Todo-poderoso que torna inteligente.
Lemos um pouco além, no mesmo livro: Minhas palavras brotam de um coração reto, meus lábios falarão francamente. O Espírito de Deus me criou e o sopro do Todo-poderoso me deu a vida25. No texto grego, uma única palavra é empregada: pnohvn.

25 Jó 33:3e4.

Seria então uma grande imprudência não aplicar à alma humana ou ao espírito humano estas palavras: Deus dá respiração a seus habitantes e o sopro vital àqueles que pisam o solo, embora o sentido imediato pareça designar o próprio Espírito Santo. Mas, como sustentar que nesta passagem o Profeta ensinou formalmente que é de Deus que recebemos a alma ou o espírito, que é o princípio de vida em nós? Não é por via da geração que essa alma nos é dada?
A única conclusão que se deveria tirar, não seria saber se Deus dá ao ser humano sua alma por via da geração, como é por via da geração que ele lhe dá um corpo. não apenas aos seres humanos e aos animais, mas também à semente do trigo e a todas as plantas. ou se ele a criou imediatamente e através de um sopro novo, como ele fez para primeiro ser humano?

Capítulo 20
A ambiguidade dos textos citados pelo debatedor.

Alguns intérpretes se recusam a ver uma repetição no texto profético e afirmam que as primeiras palavras — Deus dá respiração a seus habitantes — se referem diretamente à alma e as outras palavras e o sopro vital àqueles que pisam o solo se referem diretamente ao Espírito Santo. Estaríamos assim no mesmo caso seguido mais tarde pelo Apóstolo: Mas não é o espiritual que vem primeiro, e sim o animal; o espiritual vem depois26.

26 1Coríntios 15:46.

Segundo esta interpretação, que se presta muito melhor para os desenvolvimentos oratórios, as palavras e o sopro vital àqueles que pisam o solo designariam aqueles que teriam, para as coisas da terra, o mais profundo desprezo. De fato, aqueles que recebem Espírito Santo ficam cheios de amor pelas coisas do céu e de desprezo pelos bens da terra.
Ora, a fé não é atingida por nenhuma destas proposições. Seja atribuindo um só significado para as duas palavras — sopro espírito — para designar o que constitui a essência da natureza humana ou para designar o Espírito Santo. Seja designando a alma por sopro e o Espírito Santo pela palavra espírito.
Admitindo que se trate nesta passagem apenas da alma e do espírito humano, é fora de dúvida que é Deus que nos dá essa alma e esse espírito. Mas, resta saber se Deus no-los dá através da geração, como foi através da geração que ele nos deu o corpo e os membros, ou se ele cria a cada vez uma alma nova, através de um novo sopro que ele inspira em cada corpo que se forma.
Antes de nos pronunciar exclusivamente por uma ou outra destas proposições, gostaríamos de ter sob os olhos os textos da santa Escritura que não sejam tão ambíguos como os que foram citados, mas que sejam perfeitamente claros.

Capítulo 21
A alma humana vem hoje de Deus como o corpo ou como a primeira alma?

Apresentamos o seguinte texto de Isaías: O espírito sairá de mim e todo sopro vem de mim27. As palavras O espírito sairá de mim designam o Espírito Santo, do qual o Salvador dirá: O Espírito da Verdade, que procede do Pai28.

27 Isaías 57:16. Quia spiritus a facie mea egredietur et fiatus ego faciam.
28 João 15:26.

Por outro lado, não se poderia negar que a alma humana não seja designada pela segunda parte do texto: todo sopro vem de mim. Mas o corpo vem igualmente de Deus e, no entanto, não se poderia duvidar de que ele nos seja dado por via da geração. Não basta então saber que a alma vem de Deus. Seria preciso ainda dizer se ela nos é dada por via da geração, como o corpo, ou se ela é inspirada a cada um por um sopro novo e especial.

Capítulo 22
Um texto do profeta Zacarias.

Um terceiro testemunho nos é proposto nestas palavras de Zacarias: Oráculo do Senhor, que estendeu os céus, firmou a terra e formou o sopro (espírito) que o homem tem dentro de si29. Ninguém questiona isto, mas nos perguntamos do que ele o forma.

29 Zacarias 12:1.

Não é Deus que forma o olho físico do ser humano? Ninguém mais. E ele o forma nele mesmo. No entanto, é certo que ele o forma através da geração.
Mesmo que admitamos que é Deus quem forma o espírito do ser humano nele mesmo, nos perguntamos se é através da geração ou é através de um sopro novo.

Capítulo 23
O livro dos Macabeus afirma o fato, mas não explica como Deus dá origem à alma humana.

Sabemos igualmente que a mãe dos Macabeus — essa mulher muito mais impressionante por suas virtudes durante o martírio de seus filhos do que por sua própria fecundidade — disse aos seus filhos, para estimular sua coragem: Ignoro, dizia-lhes ela, como crescestes em meu seio, porque não fui eu quem vos deu nem a alma, nem a vida e nem fui eu mesma quem ajuntou vossos membros. Mas o criador do mundo, que formou o homem na sua origem e deu existência a todas as coisas, vos restituirá, em sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor às suas leis30.

30 2Macibeus7:22e23.

Este texto nos é perfeitamente conhecido, mas não vemos o que ele prova em favor de nosso debatedor. Um cristão negaria que Deus é o autor da alma e do espírito humano?
Vicente Vítor pode negar que seja Deus quem dá aos humanos a língua, as orelhas, as mãos, os pés, os sentidos, a forma e a natureza dos membros? Se ele negasse esta verdade capital, ele se esqueceria de que é um cristão.
Mas o corpo e todos os membros do corpo nos são dados através, da geração. Resta saber como o espírito e a alma nos são dados. Eles são tirados de nossos pais ou do nada? Nem de nós e nem do nada, responde nosso debatedor, mas da própria natureza do sopro de Deus, ou seja, do próprio Deus. Esta doutrina não se sustenta.

Capítulo 26
A segurança de Vicente Vítor não tem base bíblica.

Desta forma, quanto aos textos que ele retira das santas Escrituras, eles são inteiramente estranhos à questão particular que nos ocupa e, de forma alguma, apoiam sua doutrina.
Como então ele pode dizer: "Não deixamos de afirmar que a alma é tirada do sopro de Deus, já que ela nos é dada por Deus e não por via da geração"? Então não recebemos o corpo Daquele que tudo criou, de quem tudo procede, por quem e em quem tudo existe31, embora tudo seja estranho à sua natureza e o simples resultado de sua ação?

31 Cf. Romanos 11:36.

"A alma não vem do nada”, ele diz, "já que ela vem de Deus”.
Não examino ainda em que sentido estas palavras podem ser verdadeiras, Somente sustento que ele está errado, quando afirma que a alma não é tirada da geração e nem do nada. Eu protesto contra esta opinião.
Não há alternativa possível; se a alma não nos é dada através da geração, ela é tirada do nada. Acreditar que ela vem de Deus, no sentido de que ela é formada da mesma natureza de Deus é um erro e um sacrilégio.
Por outro lado, antes de acreditar que é impossível que a alma nos seja dada por via da geração, devemos esperar testemunhos formais e explícitos e estes não são aqueles apresentados, pois eles não esclarecem de forma alguma a questão.

Capítulo 25
Foi exemplar a humildade da mãe dos Macabeus.

Já que estamos na incerteza em um assunto tão sério, por que não imitar a mãe dos Macabeus? Ela sabia muito bem que, com seu marido, ela os tinha concebido em seu seio e que o próprio Deus os tinha criado, segundo o corpo e segundo o espírito. No entanto, ela diz: Ignoro como crescestes em meu seio.
Eu gostaria que nosso debatedor me dissesse o que essa mulher ignorava. Ela não ignorava como essas crianças vieram de seu seio, já que ela não podia duvidar que eles fossem o resultado de seu casamento. Ela até mesmo afirmou que fora Deus que lhes havia dado a alma e o espírito, como ele havia formado seu rosto e seus membros.
O que ela ignorava então? Não é o que nós mesmos ignoramos, ou seja, se essa alma que Deus lhes havia dado, ele a tinha tirado dos pais ou se a tinha criado imediatamente e através de um sopro novo, como ele havia feito para o primeiro ser humano?
Qualquer que seja, afinal, o ponto que ela ignorava, ela não escondeu sua ignorância e não afirmou imprudentemente o que lhe era desconhecido. No entanto, Vicente Vítor se envergonharia, se dirigisse a essa mulher a injúria que ele nos dirigiu: O ser humano mais bem colocado nas honras não compreendeu. Ele foi comparado aos animais sem razão e considerado semelhante a eles32.

32 Cf. Salmo 48:13.

Essa mulher declara não saber como seus filhos foram formados em seu seio. No entanto, ele não a compara aos animais sem razão.
“Eu não sei", ela diz e, supondo que lhe perguntam o que ela não sabe, ela acrescenta: "Não fui eu que lhes dei o espírito e a alma". Aquele que lhes deu sabe de onde ele formou o que lhes deu; se ele tirou da geração ou de uma nova criação e de um novo sopro. Quanto amim, eu ignoro.
"Não fui eu que formou seu rosto e seus membros”. Aquele que os formou sabe se os formou com sua alma ou se esperou que eles fossem formados para lhes dar uma alma.
Qualquer que tenha sido o modo como as crianças vieram de seu seio, ela o ignorava. O que ela sabia é que Aquele que lhes tinha dado tudo lhes restituiria tudo.
Diante de um mistério tão profundo da natureza humana, que nosso debatedor se pronuncie sobre o que essa mulher ignorava. Apenas, que ele não a acuse de mentira e, por que ela ignorava, que ele não a compare aos animais sem razão.
O que ela ignorava tocava à própria natureza humana. Essa natureza humana podia muito inocentemente ser ignorada.
Eu digo o mesmo de minha alma. Não sei como ela veio ao meu corpo e certamente não fui eu mesmo que a me dei. Aquele que a me deu sabe se ele a tirou de meus pais ou se ele a criou para mim totalmente nova, como ele fez para o primeiro ser humano. Eu mesmo saberei quando ele considerar que devo sabê-lo. No momento, eu o ignoro.
Quanto a confessar minha ignorância sobre este ponto, eu não hesito um só instante e sem me sentir obrigado a corar por causa disso, como faz meu debatedor.

Capítulo 26
Um testemunho de São Paulo que não serve bem a Vicente Vitor.

“Aprenda então”, ele diz, "pois é o Apóstolo que o ensina”. Aprenderei, certamente, se o Apóstolo me ensinar, pois é o próprio Deus que me falará através do Apóstolo. Dirigindo-se aos atenienses, ele ensina em alto é bom som e por diversas vezes, que é Deus quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas33, Mas ninguém duvida disso.

33 Atos 17:25.

"Mas", ele continua, "compreendam bem o que diz o Apóstolo: é Deus que nos dá e não foi Deus que nos deu". Ele supõe da parte de Deus uma ação permanente e contínua e não uma ação passada e encerrada. "O que ele dá sem interrupção, ele dá sempre, como existe sempre aquele que dá”. Estas são as próprias palavras do meu debatedor, como são encontradas em seu segundo livro.
Você já pode perceber o caminho que será percorrido, desde que ele tentou afirmar o que ignora. Ele ousou dizer que, não apenas hoje e no século presente, mas por um tempo indefinido e sem nenhuma interrupção, "Deus dá as almas àqueles que nascem. Deus dá sempre”, ele diz, "como existe sempre aquele que dá”.
Como eu compreendo bem a linguagem do Apóstolo, evitarei negá-lo. Quanto à linguagem que meu debatedor ousa sustentar, ele deve compreender que ela é diretamente contrária à fé cristã e concluir que deve abandoná-la para sempre.
Quando chegar o tempo da ressurreição dos mortos, não haverá mais nenhum nascimento. Deus não terá, então, que criar novas almas, mas sim julgar aquelas que ele já uniu aos corpos. Deus não dá, portanto, sempre, embora Aquele que dá exista sempre.
Por outro lado, embora o Apóstolo tenha utilizado o tempo presente e não o passado, não podemos concluir, como faz nosso debatedor, que as almas não nos sejam dadas por via da geração. Com efeito, mesmo que elas nos sejam dadas desta maneira, elas sempre o são por Deus. Não é ele que nos dá os membros do corpo, os sentidos do corpo, a forma do corpo, a substância do corpo, embora ele nos dê tudo isso através da geração?
Não lemos no Evangelho: Se Deus veste assim a erva dos campos, que hoje cresce e amanhã será lançada ao fogo, quanto mais a vós, homens de pouca fé?34 O texto não diz Deus vestiu, mas, veste, para indicar não uma ação passada, mas uma ação presente, Vamos concluir disto que os lírios não nascem todos da semente de sua espécie?

34 Mateus6:30.

Ao dizer de Deus que é ele que dá a alma e o espírito ao ser humano, na medida em que há seres humanos para criar, nós lhe tiramos o direito de dizer que as almas nos são dadas por via da geração? Eu não afirmo que seja assim e nem que seja de outra forma.
Mas você pode ver que, para afirmar ou para negar, não se pode invocar testemunhos incertos e duvidosos. Não se segue daí que eu possa ser comparado aos animais sem razão. Por isso mesmo, eu não duvido merecer ser incluído entre as pessoas prudentes, já que eu não tenho a imprudência de ensinar o que eu não sei.
Do meu lado, evitarei responder uma injúria com outra injúria e estabelecer a mesma comparação contra meu debatedor. Acho melhor lhe dar a advertência de um pai ao seu filho, pedir-lhe que reconheça que ignora o que não sabe e não tente ensinar o que jamais aprendeu.
Caso contrário, ele mereceria ser comparado, não aos animais, mas às pessoas mencionadas pelo Apóstolo: Pretensos doutores da lei, que não compreendem nem o que dizem nem o que afirmam35.

35 1Timóteo1:7.

Capítulo 27
Na questão da origem da alma, não se pode ignorar a origem do corpo.

Eu não consigo explicar por que os textos das Escrituras são lidos por ele com tanta imprudência que Deus aparece como o Criador, não do corpo humano, mas somente de sua alma e de seu espírito.
O Apóstolo disse de uma maneira absoluta: É nele que temos a vida, o movimento e o ser36 e Vicente Vítor sustenta que não é por nosso corpo que somos a obra de Deus, mas somente por nossa alma e por nosso espírito.
Se nosso corpo não foi criado por Deus, as seguintes palavras não passam de uma mentira: Dele, por ele e para ele são todas as coisas37.
O mesmo Apóstolo nos diz em outro lugar: Pois a mulher foi tirada do homem, porém o homem nasce da mulher e ambos vêm de Deus38. Que nosso debatedor nos explique do que se trata este texto; se é da alma, do corpo ou ambos ao mesmo tempo.

36 Atos 17:28.
37 Romanos 1:36.
38 Coríntios 11:12.

Quanto à alma, ele não quer que ela nos seja transmitida por via da geração. Se então acreditamos nisso, ele e todos aqueles que compartilham de sua opinião, deveremos concluir que as palavras do Apóstolo a mulher foi tirada do homem, porém o homem nasce da mulher se aplicam somente ao corpo masculino e feminino e que é unicamente sob esta relação que a mulher foi tirada do homem e que o homem nasce da mulher.
Mas, se o Apóstolo só quis falar do corpo particular de cada um dos sexos, por que então ele logo acrescenta: e ambos vêm de Deus, se não é para nos lembrar que nossos próprios corpos são obra de Deus?
Pois a mulher foi tirada do homem, porém o homem nasce da mulher e ambos vêm de Deus; estas são as próprias palavras de São Paulo.
Que nosso debatedor se pronuncie sobre o alcance destas palavras. Se elas se aplicam unicamente aos corpos, ele está certo que nossos corpos vem de Deus é então não é mais possível sustentar, diante deste texto das Escrituras, que somente nossa alma e não nosso corpo é obra de Deus. Mas, se elas se aplicam ao mesmo tempo aos corpos dos dois sexos e à alma, é preciso concluir que a mulher inteira foi tirada do homem.
Pois a mulher foi tirada do homem, porém o homem nasce da mulher e ambos vêm de Deus. O termo inclusivo geral "ambos" não se relaciona a tudo o que o Apóstolo falava, ou seja, ao homem e à mulher? O homem que nasceu da mulher não é aquele do qual a mulher foi tirada, mas aquele que mais tarde nasceu da união do homem e da mulher, segundo a ordem sempre subsistente. Por consequência, se nestas palavras o Apóstolo quis falar dos corpos, não há que se duvidar que os corpos do homem e da mulher sejam obra de Deus. E, se o nosso debatedor restringe a obra atual da criação divina à alma e ao espírito, fica provado que é segundo sua alma e seu espírito que a mulher foi tirada do homem e aqueles que combatem a transmissão da alma por via da geração só tem que manter um profundo silêncio. Por fim, se nosso debatedor distingue entre o corpo e a alma e sustenta que, segundo seu corpo, a mulher foi tirada do homem, enquanto que, segundo sua alma, ela foi tirada de Deus, como continuarão verdadeiras estas palavras do Apóstolo: ambos vêm de Deus, se o corpo da mulher é tão obra do homem que ele não pode ser, de forma alguma, obra de Deus?
Tendo então que escolher entre o Apóstolo e ele, eu fico, sem hesitar, do lado do Apóstolo e digo: a mulher foi tirada do homem unicamente segundo seu corpo ou então, ao mesmo tempo, segundo seu corpo e sua alma. No entanto, eu só faço enunciar estas duas proposições, sem me pronunciar de uma maneira cabal, nem por uma e nem por outra.
Quanto ao homem, ou bem ele nasce da mulher segundo seu corpo e sua alma ou bem segundo seu corpo somente. Aqui também eu deixo a questão para ser discutida. No entanto, todas as coisas vêm de Deus, ou seja, tudo ao mesmo tempo, o corpo e a alma, seja do homem, seja da mulher e sobre este ponto não há o que se discutir. Pois, ao dizer que todas as coisas vem de Deus, entendemos sustentar que elas são obra de Deus e não que elas são uma manifestação, uma efusão, uma emanação da natureza de Deus. Para que elas venham dele, para que elas tenham recebido o ser dele, basta que elas tenham sido criadas e feitas por ele.

Capítulo 28
Na interpretação das Escrituras não se negligencia a linguagem figurada.

"Mas", acrescenta nosso debatedor, "quando o Apóstolo afirma que Deus dá a todos a vida e o espírito; quando ele afirma que Deus fez de um só sangue o gênero humano39, ele não proclama que recebemos diretamente de Deus a alma e o espírito, enquanto que o corpo nos é transmitido pela geração?”
Quem não quiser se expor a negar imprudentemente a transmissão das almas, antes de estar certo de que ela existe ou que ela não existe, deve primeiro compreender que, ao dizer que Deus fez todo o gênero humano de um só sangue ou de um só homem, o Apóstolo fala evidentemente de forma figurada e toma a parte pelo todo.
De fato, se nosso debatedor se acha autorizado a tomara parte pelo todo neste texto do Gênesis: O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tomou um ser vivente40, a fim de aplicá-lo ao espírito, embora a Escritura guarde sobre este ponto o mais profundo silêncio, por que os outros não teriam o mesmo direito, com relação a estas outras palavras: de um só homem, de aplicá-las à alma, ao espírito e à carne, pois o homem mencionado neste texto é composto ao mesmo tempo de um corpo e de uma alma.

39 Cf. Atos 17:25 e 26.
40 Gênesis 2:7.

Aquele que defende a transmissão das almas por via da geração não deve se vangloriar por esmagar seu debatedor ao lhe citar estas palavras sobre o primeiro humano: A morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram41; não toda carne pecou. Todos, ou seja, todo ser humano. Ora, o ser humano não é somente um corpo; ele é também uma alma. Daí se segue que não é somente segundo a carne que se deve interpretar a palavra todos.
Da mesma forma nosso debatedor não deve se gabar de esmagar os defensores da transmissão das almas, ao lhes citar as palavras Ele fez nascer de um só sangue todo o gênero humano42, como se isso afirmasse claramente que é só a carne que transmite por via da geração. Se fosse verdade que a alma não vem da alma e que só a carne vem da carne, as palavras de um só sangue não significariam o ser humano inteiro, mas somente uma parte, ou seja, a carne; e a carne de um só homem.

41 Romanos 5:12.
42 Atos 17,26.

Quanto às palavras Em quem todos pecaram, elas designariam unicamente a carne, já que somente ela transmite por via da geração.
Desta forma, a Escritura tomou o todo pela parte.
Na hipótese em que o ser humano inteiro. ou seja, corpo, alma e espírito é transmitido por via da geração, as palavras Em quem todos pecaram conservam todo seu valor literal, enquanto que de um só sangue é uma figura na qual o todo é representado pela parte. Ou seja, todo ser humano formado de um corpo e de uma alma ou, para falar como nosso debatedor, de um corpo, de uma alma e de um espírito.
Na linguagem das Escrituras encontramos, de fato, muito frequentemente este tipo de figura, que consiste em tomar o todo pela parte ou a parte pelo todo. Toda carne acorre a vós43; aqui a parte é tomada pelo todo, pois a carne designa claramente o ser humano inteiro. Pelo contrário, toma-se o todo pela parte, quando se diz que Jesus Cristo foi sepultado, pois, somente seu corpo foi sepultado.
Se então retornarmos ao texto do Apóstolo: É ele quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas44 e interpretá-lo segundo as regras precedentes, todas as dificuldades desaparecem.
É Deus quem dá; mas nos perguntamos de que princípio ele faz sair o que ele dá. É de um sopro novo ou é por via da geração? Estamos errados, quando dizemos que é o próprio Deus que dá a substância da canre? No entanto, é certo que ele no-la dá por via da geração.

43 Salmo 64:3.
44 Atos 17:25.

Capítulo 29
Um texto do Gênesis.

Lemos no Gênesis que, quando o homem percebeu a mulher que tinha sido tirada de seu lado, ele disse: Eis agora aqui o osso de meus ossos e a carne de minha carne45. Com isso, nosso debatedor raciocina assim, diante deste texto: "Adão teria dito: Eis a alma de minha alma ou o espírito de meu espírito, se fosse verdade que a alma e o espírito foram tirados dele, assim como o corpo!

Por outro lado, aqueles que sustentam a transmissão das almas invocam em seu favor estas mesmas palavras do Gênesis, ressaltando que, após ter sido tirado um lado dos flancos do homem e formado com ele a mulher, não é dito que Deus insuflou em seu rosto o sopro de vida. Daí concluem que esse corpo já estava dotado de uma alma. Não fosse assim, por que a santa Escritura deixou de mencionar isso?
Quanto às palavras Eis o osso de meus ossos e a carne de minha carne, se o primeiro homem não disse "Eis a alma de minha alma ou o espírito de meu espírito", foi por que, eles dizem, Adão falava figuradamente e tomava a parte pelo todo, o osso e a carne pela pessoa inteira.
Tanto é assim que essa carne não foi tirada morta do primeiro homem, mas em um estado de vida perfeita.
Eu sei que uma pessoa tentaria em vão cortar de um corpo a alma com a carne junto, mas Deus não é onipotente? Depois, ouvimos Adão dizer em seguida: Ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem46. Para favorecer a opinião de nossos debatedores, ele deveria ter dito: "Por que sua carne foi tomada do homem”. Como ele disse que foi a própria mulher e não somente a carne que foi tirada do homem, é então da mulher inteira que ele falou, ou seja, seu corpo e sua alma.

45 Gênesis 2:23.
46 Gênesis 2:23.

É verdade que a alma é independente do sexo. No entanto, quando se fala das mulheres, não se faz necessariamente abstração de sua alma.
Não fosse assim, o que significariam as regras que o Apóstolo estabelece para as mulheres, sobre sua maneira de rezar: Quero que as mulheres usem traje honesto, ataviando-se com modéstia e sobriedade. Seus enfeites consistam não em primorosos penteados, ouro, pérolas, vestidos de luxo e sim em boas obras, como convém a mulheres que professam a piedade47. A piedade reside acima de tudo na alma ou no espírito e, no entanto, as pessoas às quais o Apóstolo se dirige são designadas pelo seu sexo. Ele até mesmo as ordena que se ornamentem interiormente, ou seja, onde não há nenhuma distinção de sexo.

47 1Timóteo 2:9 e 10.

Capítulo 30
As afirmações devem ser muito cautelosas.

Assim pensam os partidários declarados de cada um destes dois sistemas. Para responder-lhes, me contentarei em adverti-los para que não se joguem cegamente em um doutrina cujos fundamentos eles ignoram e que não afirmem imprudentemente o que eles não conhecem.
De fato, mesmo que estivesse escrito que Deus insuflou o sopro de vida no rosto da mulher e que ela foi feita alma viva, não se seguiria daí também que a alma não passa dos pais para os filhos por via da geração; a menos que o mesmo sopro tenha se repetido em cada um dos filhos. Pois é possível que o corpo da mulher tenha sido tirado sem vida do corpo do homem e que, por isso mesmo, ele precisou receber o sopro de vida, enquanto que os filhos recebem de seus pais a vida no mesmo momento da geração.
Mas as Escrituras mantém silêncio sobre este ponto. Este silêncio não é uma negação e nem uma afirmação. Tudo o que podemos concluir disso é que não sabemos.
Se então se pretende que esse mistério nos seja revelado em outras passagens, que ele seja provado com documentos claros e formais.
Esperando essas provas, eu sustento que os partidários absolutos da transmissão das almas não podem concluir nada da observação feita por eles de que Deus não soprou no rosto da mulher.
Quanto àqueles que negam a transmissão das almas, eles não devem também-se acreditar na verdade unicamente por que Adão não disse Eis a alma de minha alma.
Como a questão não está, de forma alguma, resolvida nem por um e nem por outros, as santas Escrituras puderam nos deixar ignorar se a mulher recebeu uma alma por um novo sopro de Deus ouse Adão disse Eis a alma de minha alma.
Então, admitindo que a primeira mulher tenha recebido do homem sua alma, a parte seria tomada pelo todo, nestas palavras: Eis o osso de meus ossos e a carne de minha carne, já que a mulher teria saído inteira do homem, com seu corpo e sua alma. Se sua alma lhe veio, não do homem, mas de um novo sopro de Deus, o todo é tomado pela parte, nestas outras palavras: A mulher foi tomada do homem, já que só o corpo teria sido tirado dele.

Capítulo 31
Os textos incertos das Escrituras precisam de outros mais seguros.

Tudo isso nos autoriza a concluir que os textos citados estão longe de ter a clareza necessária para resolver a questão que nos ocupa. Aqueles que sustentam que a alma da mulher não foi tirada da alma do homem, já que, invés de dizer Eis a alma de minha alma, Adão se contentou em dizer Eis a carne de minha carne, me parecem pensar como os apolinaristas e outros heréticos semelhantes, que negam a existência de uma alma em Jesus Cristo, fundamentando-se nestas palavras: E o Verbo se fez carne48.
Com efeito, eles dizem, se Jesus Cristo tivesse uma alma, o escritor teria dito: E o Verbo se fez homem. Podemos lhes responder que, muito frequentemente, sob a palavra carne, as Escrituras designam frequentemente o ser humano inteiro. Como, por exemplo, nesta passagem: Toda carne verá a salvação de Deus49. De fato, a carne sem a alma pode ver alguma coisa?
Aliás, muitas passagens das Escrituras provam claramente que a humanidade do Salvador era composta, não apenas de um corpo, mas também de uma alma humana ou racional.

48 João 1:14
49 Lucas 3:6 Videbi omnis caro salutare Dei.

Segue-se daí que os defensores da transmissão das almas através da geração podem muito bem admitir que a parte é tomada pelo todo nestas outras palavras: Eis o osso de meus ossos e a carne de minha carne e concluir que a alma aí está muito claramente designada quanto está no Verbo, quando se diz que ele se fez carne.
No entanto, esta conclusão não seria tão rigorosa quanto outros testemunhos claros e explícitos que provassem a transmissão das almas, como um grande número de testemunhos provam a existência de alma em Jesus Cristo.
Pela mesma razão, convidamos os inimigos declarados da transmissão das almas a provarem, com documentos autênticos, que Deus continua a criar novas almas através de um sopro novo. Somente então eles terão o direito de afirmar que as palavras Eis o osso de meus ossos e a carne de minha carne não devem ser tomadas em um sentido figurado, designando o todo pela parte, mas no sentido puramente literal e se aplicando unicamente à carne.

Capítulo 32
A alma humana não pode vir de Deus sem ser criada do nada.

Depois de ter estabelecido estas conclusões com toda evidência, só me resta terminar este livro. Com efeito, eu reuni aqui todas as reflexões que me pareceram necessárias. Agora eu desejo que aqueles que as lerem fiquem convencidos de que seria de sua parte um grosseiro erro acreditar como o autor dos dois livros que você me enviou que as almas são tiradas imediatamente do sopro de Deus e não do nada.
De fato, no momento em que um princípio assim fosse admitido, nenhum protesto poderia impedir de concluir rigorosamente que as almas são da mesma substância de Deus e participam essencialmente de sua natureza. Um ser não é, necessariamente, da natureza daquele do qual tomou sua origem? Como então nosso debatedor pode se colocar em contradição com ele mesmo até o ponto de sustentar que não é pela natureza, mas pela graça, que nossas almas são da mesma raça de Deus?50 Ele não afirma que é dele que elas tiram sua origem e não do nada? Por consequência, apesar de todas as negativas, ele deve fazer decorrer sua natureza da própria natureza de Deus.

50 Cf. Atos 17:28.

Capítulo 33
Os muitos absurdos de Vicente Vítor.

Não proibimos ninguém de sustentar que as almas novas são criadas por um novo sopro de Deus e não são, de forma alguma, transmitidas por via da geração. Mas pedimos que aqueles que sustentam esta doutrina nos apresentem provas formais e autênticas capazes de resolver esta importante questão; seja retirando essas provas dos livros canônicos, seja com seus próprios argumentos e sempre conformes com a verdade católica.
Mas não queremos provas como aquelas apresentadas por nosso debatedor. Não queremos acreditar em um homem que, não sabendo o que dizer, se obstina em sua opinião, iludido com a medida de suas forças e, se recusando a se calar, ousa sustentar que "a alma mereceu ser maculada pela carne e se tornar uma alma pecadora”.
Pergunte-lhe como a alma pôde merecer, tanto o bem quanto o mal, antes de se unir à carne e ele é incapaz de responder.
Ele acrescenta que "para as crianças que morrem sem batismo, o pecado original pode ser apagado e que se pode oferecerem seu favor o sacrifício do corpo de Jesus Cristo”, embora elas não estejam incorporadas a Jesus Cristo através de seus sacramentos e em sua Igreja.
Por fim, ele não teme dizer que "as crianças que morrem sem o batismo podem, não apenas gozar do repouso eterno, mas também conseguir o reino dos céus”.
Juntem-se a isso os inúmeros absurdos que eu não pude assinalar neste livro para não parecer excessivamente prolixo.
Não são tais debatedores que refutarão os partidários da transmissão das almas e se a insuflação das almas novas só tivesse defensores assim, sua causa estaria fortemente comprometida.

Capítulo 34
Exortação para evitar o erro e a heresia.

Seja como for, aqueles que sustentam esse sistema de insuflação das almas devem se colocar em guarda contra um ou outro dos quatro erros que eu enumerei anteriormente.
Que eles não digam que Deus constitui essas almas pecadoras através do crime original de outro. Que eles não digam que as crianças que morrem sem o batismo podem conseguir a vida eterna e o reino dos céus, pois, tanto para um como para o outro, seu pecado original seria apagado. Que eles não digam que, antes de estarem unidas à carne, as almas pecaram em um lugar qualquer e que foi em consequência dessa falta que elas foram acorrentadas a uma carne pecadora. Por fim, que eles não digam que os pecados que essas almas não cometeram realmente, mas cuja perpetração foi prevista na presciência infinita, foram punidos, já que foi em consequência desses pecados previstos que essas almas não conseguiram chegar à vida na qual esses pecados teriam sido realmente cometidos por elas.
Que essas pessoas se mantenham a igual distância de cada um desses erros, cuja audácia e impiedade nos revoltam. Feito isso, que elas encontrem nas Escrituras testemunhos formais e explícitos em favor da tese que elas sustentam. Não apenas não me oporei a isso, como contarão com meu apoio e minhas bênçãos.
Mas, se elas não encontrarem nenhum desses testemunhos claros, e autênticos se, levados pela falta de provas, elas vierem a afirmar um ou outro desses erros, que elas tomem cuidado para não caírem no abismo que os ameaça.
Sustentar que as almas das crianças não são culpadas do pecado original seria, de sua parte, se precipitar na heresia pelagiana; heresia condenável e bem recentemente condenada.
Não é mais sábio confessar que se ignora o que não se sabe, do que cair em uma heresia já condenada ou fomentar uma nova, querendo sustentar imprudentemente o que se ignora?
Além desses erros fundamentais, nosso debatedor expressou algumas outras opiniões - menos perigosas, é verdade - e que se afastam mais ou menos do caminho da verdade. Como essas opiniões são muito numerosas, eu me proponho, com a graça de Deus, a assinalá-las a ele mesmo e lhe escrever sobre este assunto.

Capítulo 35
Agradecimentos a Renato e felicidades a Vicente Vitor.

Começando por escrever a você mesmo, eu quis dar a você um testemunho da viva gratidão que me inspiram sua fé viva e a solicitude com que você cerca minha fidelidade e minha amizade por você.
Quanto ao livro, você o mande ser lido ou copiado como e quando você achar melhor.
Eu achei que devia reprimir e corrigir a presunção desse rapaz, mas manifestando-lhe um amor verdadeiro. Eu quis corrigi-lo e não condená-lo. Meu único desejo é que ele progrida mais e mais nesse grande lar que é a Igreja católica, ao seio da qual ele foi conduzido pela divina misericórdia. Que ele se torne um vaso de honra útil ao Senhor, sempre pronto para toda boa obra, a uma vida santa e a uma doutrina irrepreensível.
Mas, se eu o amo como devo amá-lo, qual não é a afeição que deve me unir a você, meu bem-amado irmão, cuja benevolência com relação a mim eu conheço, bem como a fé católica tão prudente quanto segura! Nada menos do que essas preciosas qualidades para fazer você mandar transcrever e me enviar esses livros que revoltam sua fé e nos quais você lamenta encontrar meu nome coberto por acusações e ultrajes que revoltam sua afeição fraternal e sincera.
Bem longe de me aborrecer com essa prova impressionante de sua caridade, eu me sentiria no direito de me aborrecer, em nome da amizade, se você tivesse agido de outra forma.
Receba então o testemunho de meu vivo reconhecimento.
Para provar a você o prazer que me causou sua conduta com relação a mim, não pude resistir à necessidade de enviar a você este livro, logo que eu tomei conhecimento daqueles que você me enviou.

Livro II
Os erros de Vicente Vítor

Agostinho convida Pedro a se desfazer dos dois livros de Vicente Vítor sobre a origem da alma e lhe mostra que eles estão longe de formular, sobre este tema, a doutrina católica. Ele lhe mostra alguns dos principais erros que estão contidos ali e os refuta em algumas palavras.
Por fim, ele o conjura a levar seu autor a uma retratação.

Ao nosso bem-amado confrade e sacerdote Pedro51, Agostinho, bispo, o saúda em Nosso Senhor.

Capítulo 1
O motivo deste livro: a acolhida de Pedro ao livro de Vicente Vitor.

 

Os dois livros que Vicente Vítor enviou a você, me foram envia- dos pelo nosso irmão Renato; um simples leigo, é verdade, mas em quem a fé mais viva inspira, para com seus amigos, a solicitude mais.prudente e mais religiosa.
Eu só conheci o autor ao ler suas obras, cujo estilo revela uma grande autoconfiança que vai, algumas vezes, até à redundância e à prolixidade.

51 Esse Pedro é a sacerdote a quem Vicente Vitor dedicou sua obra.

Quanto aos assuntos que ele trata, é muito fácil ver que lhe falta a ciência necessária e competente. No entanto, se Deus lhe permitir, ele poderá se tornar mais tarde um escritor de algum mérito e realmente útil.

De fato, ele demonstra uma grande facilidade de locução que lhe permitiria explicar perfeitamente e até mesmo ornamentar seu pensamento, se ele se devotasse primeiro a tornar esse pensamento conforme com a verdade e a fé.
O que mais me preocupa são esses belos propagadores de mentiras e erros que encontram, em uma certa habilidade de linguagem, um meio muito poderoso de impô-los às pessoas simples e ignorantes.
O que você pensou desses livros eu ignoro. No entanto, a se acreditar nos rumores que chegaram até a mim, parece que, na medida em que esse rapaz lia para você seus escritos, você se abandonou a todos os arrebatamentos da alegria. Em seu entusiasmo você chegou até a dar nesse rapaz laico o beijo de um idoso e de um sacerdote, agradecendo-o com efusão, por ter lhe revelado o que você ignorava até então.
Estou longe de desaprovar a humildade que você demonstrou e os louvores com que você cobriu esse jovem doutor. Nada de tudo isso se dirigia, sem dúvida, ao homem, mas unicamente à verdade que havia se recusado a lhe falar com sua boca.
No entanto, eu gostaria de saber quais foram as verdades que ele vos revelou. Queira então, ao me responder, informar-me você mesmo o que aprendeu.
Você não se envergonhou em se fazer discípulo de um leigo; eu me envergonharia ao me fazer discípulo de um sacerdote?
Se você aprendeu nessa escola alguma verdade, eu só posso louvá-lo e imitar sua humildade.

Capítulo 2
Alma é diferente de espírito?

Eu desejo então, irmão bem-amado, saber o que foi que você aprendeu, para felicitá-lo generosamente por isso, se essas verdades já me forem conhecidas e para aprender, afinal, se eu ainda as ignoro.
Você ignora então a existência da alma e do espírito, que nos são revelados por estas palavras: "Separou a alma do meu espírito”? Não sabe que estas duas coisas constituem a natureza humana, de sorte que o ser humano é tudo ao mesmo tempo: corpo, alma e espírito?
No entanto, estas duas coisas alma e espírito. são tomadas geralmente uma pela outra e designadas uma pela outra. Assim, quando lemos: O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou uma alma vivente52, estas palavras se aplicam igualmente ao espírito.
Da mesma forma, estas outras palavras: Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: Tudo está consumado. Inclinou a cabeça e rendeu o espírito53, não designam claramente a própria alma? Estas duas coisas não são da mesma substância?

52 Gênesis 2:7. Formavit igtur Dominus Deus hominem de limo terrae et inspiravi in faciem ejus spiraculum vitae et factus est homo in animam viventem
53 João 19:30.

Eu penso que você não ignora estas verdades elementares. Se você as ignorava, saiba que você aprendeu o que não podia ignorar sem comprometer sua salvação.
Mas, se for o caso, com relação ao espírito e a alma, de entrar em discussões mais sutis, eu prefiro conversar com o próprio autor, cujo talento eu conheço.
A palavra alma é uma expressão genérica que se aplica tanto à alma quanto ao espírito, de sorte que o espírito seja uma porção da alma e que assim o todo seja tomado pela parte?
Ou seria o espírito o termo genérico, de sorte que a alma não passa de uma parte do espírito e que, ao falar de espírito, fala-se implicitamente da própria alma?
Isto. eu já disse. são puras sutilezas, que podemos muito bem ignorar, sem correr nenhum risco para nossa salvação.

Capítulo 3
Os sentidos corporais e os sentidos da alma.

Eu igualmente ficaria espantado se você tivesse aprendido que os sentidos do corpo são diferentes dos sentidos da alma. Na sua idade e sendo sacerdote, antes de ter ouvido seu doutor, você podia acreditar que só há em nós um único e mesmo órgão, um só e mesmo princípio para distinguir o branco do negro, como fazem os pássaros e o justo do injusto, como fez Tobias, após ter perdido os olhos de seu corpo54?
Admitindo que você estivesse lá, quando ouvisse ou lesse estas palavras: Iluminai meus olhos com vossa luz, para eu não adormecer na morte55, você não pensaria então nos olhos do seu corpo?
Admitamos então que este texto não seja suficientemente explícito. Quando se apresentasse a você estas palavras do Apóstolo: Que ilumine os olhos do vosso coração56, você acreditaria então que nosso coração está colocado entre nossa boca e nossa testa?
Eu me guardo de ter, sobre você, tais ideias e concluir que foi com seu doutor que você aprendeu isso.

54Tobias 2:11.
55 Salmo 12:5.
56 Efésios 1:18.

Capítulo 4
É um grave erro acreditar que a alma foi emanada da substância divina.

Talvez, antes de ter o prazer de ouvi-lo, você pensasse que nossa alma é uma porção da natureza. Oh! Então você corria um grande risco para sua salvação, se não sabia que isto é um profundo erro.
Se então você aprendeu que nossa alma não é uma parte de Deus, agradeça vivamente ao Senhor por não tê-lo arrancado desta vida antes de ter aprendido esta verdade, pois então você teria morrido como um herético e blasfemador.
Mas eu nunca suporia uma ignorância tal de sua parte, Um católico, um sacerdote estimável poderia pensar que nossa alma é uma parte de Deus?
Permita-me então dizer-lhe que eu temo mais que ele lhe tenha dado um ensinamento contrário à fé e às suas antigas convicções.

Capítulo 5
O erro sobre a criação da alma.

Não posso acreditar que, membro da Igreja católica, você acreditava que a alma fosse parte de Deus ou da mesma natureza de Deus.
Mas hoje eu creio que, dócil à voz desse homem, você não acredita seja do nada que Deus tirou a alma, mas dele mesmo, de sorte que ela seria apenas uma emanação de Deus.
Este é, de fato, um dos numerosos erros que ele cometeu em, uma questão que faz sua salvação correr os maiores perigos. Se então foi isso o que você aprendeu, eu não quero que ensine isto a mim e quero mesmo que você esqueça o que aprendeu.
Apesar de tudo, seria bem pouco também não acreditar e não dizer que a alma seja uma parte de Deus. Não dizemos mesmo, do Filho de Deus e do Espírito Santo, que eles são uma parte de Deus? E, no entanto, confessamos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma única e mesma natureza.
Digamos então que a alma não é uma parte de Deus e é preciso que acrescentemos que a alma não é de uma única e mesma natureza de Deus.
Também aprovo estas palavras de Vicente Vítor: "As almas são da raça de Deus, não por natureza, mas pela graça". Isto só pode ser dito, evidentemente, para as almas fieis e não para todas as almas em geral.
Por que então tenho que vê-lo chafurdar no erro que ele parecia querer evitar e ouvi-lo proclamar que Deus e a alma são da mesma natureza? Ele não disse isso em seus próprios termos, mas é a conclusão rigorosa que se deve tirar de seus princípios. Ele não disse que a alma vem de Deus, que ele não a criou de outra natureza e nem do nada, mas dele mesmo? Isto não é ensinar claramente que a alma é da mesma natureza de Deus, embora em termos que parecem rejeitar esta conclusão?
De fato, toda natureza, ou bem é Deus, que existe por ele mesmo, ou bem vem de Deus, no sentido de que ela tem Deus como seu autor.
Ora, na medida em que ela tem Deus como seu autor, toda natureza se apresenta a nós, ou bem como não tendo sido feita, ou bem como tendo sido feita. Quanto à natureza que não foi feita, ou bem ela foi gerada por ele, ou bem ela procede dele. A natureza que foi gerada chama-se Filho Único de Deus e a natureza que procede de Deus se chama Espírito Santo. Esta é a Trindade cristã, de uma única e mesma substância.
De fato, estas três pessoas têm uma única natureza. Cada uma delas é Deus e juntas elas fazem um só Deus, imutável, eterno, que não teve começo e não terá fim.
Quanto à natureza que foi feita, ela se chama criatura, que tem por criador o próprio Deus ou a Trindade. Quando então dizemos que a criatura vem de Deus, não queremos dizer que ela foi feita da própria natureza de Deus, mas por Deus. Ela vem de Deus por que ela tem Deus como o autor de sua existência e não por que ela nasceu ou por que ela procede de Deus. Ela foi criada por ele, formada e feita por ele. Seja por que ele a tenha tirado diretamente do nada, como ele fez com o céu e a terra, ou melhor, com a massa da matéria universal; seja por que ele a tirou de outra natureza já criada e existente, como ele fez como ser humano, como ele tirou o limão da terra, a mulher do homem, os filhos de seus pais.
No entanto, seja de que maneira foi que ele fez, toda criatura vem de Deus, que lhe deu a existência, seja tirando-a do nada, seja tirando-a de outra natureza, mas jamais gerando-a ou tirando-a dele mesmo.

Capítulo 6
Deus não fez a alma de sua própria essência.

Ao falar deste assunto com um católico, eu só faço reavivar sua memória e não lhe ensino nada de novo. Eu não creio, de fato, que isto seja para você coisas novas ou verdades que você ouviu sem acreditar.
Pelo contrário, estou intimamente convencido de que, ao ler minha carta, você reconhecerá nela sua própria crença, ou melhor, a crença que nos é comum a todos na Igreja católica, pelo efeito misterioso da graça de Deus.
Portanto, já que trato deste assunto com um católico, queira me dizer, eu lhe peço, do que a alma foi tirada. Eu não falo da alma de cada um de nós, mas a alma do primeiro ser humano.
Se você acredita que ela foi tirada do nada, que ela foi feita e inspirada pelo sopro de Deus, você acredita na mesma coisa que eu. Mas, se você admite que ela foi formada de alguma criatura ou matéria pré- existente que foi transformada em seguida em uma alma pela onipotência de Deus, como a poeira entre as mãos se tornou o primeiro homem, como o lado do primeiro homem se tomou Eva, como as águas formam os peixes ou os pássaros, como a terra forma os animais terrestres; se é nisso que você acredita, você não é mais um católico, você não está mais na verdade.
Por fim, se você pensa que a alma não foi tirada por Deus do nada e nem de nenhum criatura, mas de sua própria natureza; se é isso o que seu jovem doutor lhe ensinou, eu não posso louvá-lo e nem felicitá-lo, pois se afastou para bem longe das verdades católicas.
Destes dois erros, o menos nefasto. mesmo continuando a ser um erro - seria aquele que lhe ensinasse que Deus formou nossas almas de outra natureza criada por Deus e já pré-existente, pois então eu compreenderia que uma natureza que é cambiante, que peca, que se torna ímpia e que obstina até o fim na impiedade, poderia ser submetida a uma eterna reprovação.
Mas aplicar estas características à própria natureza de Deus, seria, não somente um erro, mas uma horrível blasfêmia.
Afaste-se, meu irmão, afaste-se, eu te peço, desse erro de uma impiedade terrível! Não sofra, por causa da sedução de um jovem leigo, um sacerdote idoso, que toma uma mentira como exposição da fé católica e se vê cortado do corpo dos fieis! Que Deus afaste de você essa infelicidade!
Eu não devo proceder com você como com esse rapaz, pois o seu erro, tão tremendo quanto o dele, lhe foi inspirado por ele e não merece a mesma indulgência que se pode ter para com esse rapaz. Se uma ovelha doente deixa o erro para entrar no rebanho do Senhor, não queremos que sua cura seja obtida ao preço da perda de um pastor que teria sofrido os ataques envenenados do contágio.

Capítulo 7
Pedro deve escrever para esclarecer sua posição.

Diga-me que não foi isso o que ele lhe ensinou. Diga-me que você não deu ouvidos a nenhum desses erros, apesar do encanto e da sedução de seu linguajar e eu renderei a Deus abundantes ações de graça.
Mas então, eu lhe pergunto, o porquê desse beijo que, dizem, você depositou em sua testa. Por que, em seu entusiasmo, você o agradeceu por tê-lo ensinado o que você ignorava até então? E, se esses rumores são mentirosos, se você não fez e nem disse nada assim, queira confirmá-lo e, em sua carta, refute esses rumores caluniosos. Ou, o contrário, se foi isso o que você disse e fez, eu ainda me alegrarei se ele não ensinou a você os erros detestáveis que eu acabo de assinalar.
Eu não o reprovo por ter lhe demonstrado sua gratidão com todos, as motivações de uma humildade bem profunda, contanto que você tenha retirado dessa discussão algum ensinamento verdadeiro e útil.

Mas, o que você aprendeu? Seria, por exemplo, que a alma não é um espírito, mas um corpo? Eu não vejo que haja um mal tão grande para a doutrina católica, ignorar um absurdo assim. E se, sobre este assunto, dedica-se a sutilezas de discussão sobre os diferentes tipos de corpos, isso é se envolverem intrincadas dificuldades sem que se possa colher nenhuma utilidade disso.
Se for do agrado do Senhor que eu escreva para este rapaz, como eu tenho o vivo desejo de fazê-lo, sua caridade talvez lhe ensine o quanto ele esteve longe de lhe ensinar; se for verdade, no entanto, que você o felicitou por ter aprendido com ele.
Mas, por fim, talvez você tenha se instruído sobre alguma matéria, realmente útil e necessária à fé. Seja então suficientemente generoso para me informar.

Capítulo 8
O ensinamento da parábola do rico e do pobre.

Ele ensina com muita razão e verdade que as almas são julgadas logo assim que elas saem do corpo e antes de se apresentar ao outro julgamento que elas deverão sofrer assim que seus corpos lhes sejam devolvidos, quando então serão atormentadas ou glorificadas na carne com a qual estavam unidas na terra.
Era isto o que você ignorava? É possível então que se obstine contra o Evangelho a ponto de não ouvir essa verdade e se a ouve, não acreditar na parábola daquele pobre que, após sua morte, foi transportado ao seio de Abraão e aquela do rico que foi cruelmente atormentado nos infernos? Foi ele que lhe ensinou como a alma do rico, separada de seu corpo, pôde pedir que o dedo do pobre deixasse cair sobre ela uma gota de água57.

57 Cf. Lucas 16:19-31

No entanto, não foi ele mesmo quem afirmou que a alma só procura os alimentos físicos para reparar os danos e as partes de um corpo corruptível? Eis suas palavras: "Por que vemos a alma procurar o alimento ou a bebida, concluiremos disso que esse alimento e essa bebida chegam até ela?"
Um pouco depois, ele acrescenta: "Está então bem provado que os alimentos são preparados não para a alma, mas para o corpo. É para o corpo igualmente que as roupas são empregadas, pois o corpo precisa dela, como precisa do alimento”.
Ele confirma através de um exemplo esta doutrina, já tão clara propriamente. "Por que", ele pergunta, "os cuidados que o locatário dedica à casa em que mora? Se ele percebe que o telhado vacila, as paredes balançam, as fundações se afundam, ele emprega amarrações e suportes para impedir essa ruína iminente, da qual ele teria que sofrer as tristes sequelas e cruéis consequências. Saiba então que é por um motivo semelhante que a alma procura para seu corpo o alimento necessário e, algumas vezes, o deseja com muito ardor".
É impossível expressar um pensamento mais claramente como fez esse jovem rapaz, para provar que não é à alma, mas ao corpo que o alimento é necessário.
A alma demonstra então a verdadeira dedicação de um locatário e deve providenciar todos os cuidados necessários para reparar as perdas e os danos da casa em que mora.
Dito isto, que ele mesmo explique por que a alma do rico mau desejava o modesto refrigério de uma gota dágua. Ela tinha então saído da casa que era seu corpo e, no entanto, ela tinha sede e pedia que o dedo do pobre Lázaro deixasse cair sobre ela uma gota d'água.
Esse jovem mestre de anciões tem que exercer, sobre este ponto, sua sagacidade. Que ele procure então e prove, se puder, o motivo pelo qual essa alma jogada no inferno e espoliada de seu habitáculo arruinado desejava tão vivamente o refrigério de uma gota d'água.

Capítulo 9
A estranheza do ensinamento de Vicente Vítor.

Vicente Vítor proclama eloquentemente a espiritualidade de Deus e eu felicito por não compartilhar dos erros de Tertuliano, que afirma que Deus e a alma são seres corpóreos.
Mas como não se espantar quando, mesmo admitindo a espiritualidade de Deus, esse rapaz sustenta que Deus tira de sua própria natureza e não do nada um sopro corpóreo?
Uma doutrina assim deixaria de orelhas em pé todas as idades.
Como então imaginar anciões como seus discípulos e, ainda por cima, sacerdotes?
Que ele leia em uma assembleia pública o que ele escreveu. Que ele convide para essa leitura seus amigos e estranhos, os sábios e os ignorantes. Idosos, reúnam-se com os jovens, aprendam o que ignoram, entendam o que nunca entenderam. Eis o que esse jovem doutor ensina: que Deus criou um sopro, não tirando-o de outra natureza já existente, não até mesmo do nada, mas dele mesmo, de sua própria natureza. E, embora sua natureza seja essencialmente espiritual, o sopro que ele tira dela é realmente um corpo. Ele transforma então sua própria natureza em corpo, antes que ela seja transformada em um corpo de pecado.
O autor diz que Deus não muda em nada sua natureza, quando ele a transforma em um sopro? Mas então não é dele mesmo que Deus forma esse sopro, já que ele não poderia ser diferente de sua própria natureza. É possível um absurdo maior?
Se ele responde que Deus tira seu sopro de sua natureza, permanecendo integralmente o que é; se for esta a questão, trata-se de saber se Deus tira esse sopro não de outra natureza, não do nada, mas dele mesmo, de sorte que, no entanto, esse sopro não seja da mesma natureza que Deus.
Ao gerar seu Filho, o Pai permanece integralmente o que é. Mas, por que ele o gera dele mesmo, ele o gera de sua própria natureza. Sem falar de sua Encarnação, sem lembrar que o Verbo se fez carne, o Filho de Deus é uma pessoa diferente de seu Pai, mas não é de natureza diferente da dele. Isso por que o Filho de Deus não foi gerado de outra criatura e nem do nada, mas do Pai. Sendo assim, gerado do Pai, ele não deve ser mais perfeito e nem de outra natureza, mas igual, coeterno, absolutamente semelhante, igualmente imutável, igualmente invisível, igualmente incorpóreo, igualmente Deus. Em resumo, ele deve ser absolutamente o que o Pai é, exceto que ele é o Filho e não o Pai.
Mas se, mesmo afirmando que Deus permanece integralmente o mesmo, você afirma que ele criou, não do nada, não de uma criatura, mas dele mesmo alguma coisa que é essencialmente diferente dele mesmo; se você afirma que um Deus absolutamente incorpóreo pode emanar um corpo, todo coração católico se revoltará contra uma afirmação dessas. Ele verá aí, não um oráculo divino, mas o sonho de um espírito em delírio.

Capítulo 10
Uma coisa é aprender e outra coisa é acreditar que aprendeu.

Quanto aos esforços sobre-humanos com os quais ele tenta provar inutilmente que a alma, embora sendo corpórea, é estranha às paixões do corpo; quanto a discutir sobre a infância da alma, sobre a paralisia e a opressão dos sentidos da alma, sobre a possível amputação dos membros do corpo sem provocar nenhum dano à alma; não é com você, mas com o próprio autor que eu quero estabelecer este debate. Eu o verei de bom-grado suar água e sangue, para dar razão às suas palavras, mas eu me reprovaria por cansar um idoso, refutando os escritos de um rapaz.
Falando da semelhança de costumes encontrada entre as crianças, e seus pais, ele sustenta que ela não é o resultado da geração da alma.
Nisto ele é coerente com ele mesmo, já que nega a transmissão das almas por via da geração. Quanto aos defensores dessa transmissão, não é na semelhança que eles buscam seu principal argumento. Não vemos crianças cujos costumes são totalmente diferentes de seus pais? Eles explicam esse fenômeno dizendo que ele é proveniente do fato de que o ser humano geralmente muda ele mesmo sua conduta, tornando-á melhor ou pior, conservando sempre seus ancestrais. Eles concluem daí que é muito possível que uma alma não tenha os mesmos costumes daqueles de onde saiu, já que essa alma pode ter no dia seguinte costumes totalmente diferentes daqueles que tinha na véspera.
Se então o seu doutor lhe ensinou que a alma não é transmitida por via da geração, talvez você tenha recebido, sobre este tema, provas irrefutáveis e me faria muito feliz se as me comunicasse.
Mas, uma coisa é aprender e outra coisa é parecer que aprendeu.
Se você acredita ter aprendido o que ainda ignorava, sua ciência não ficou completa; você só fez acreditar imprudentemente no que ouviu com prazer e a mentira se insinuou em você sob as belas aparências de palavras sedutoras.
Eu não quero dizer com isso que condeno os partidários da insuflação nova das almas, mais do que os partidários da transmissão das almas. Ainda hoje espero, tanto de uns quanto dos outros, provas evidentes de seu sistema.
Minha reflexão se aplica unicamente a esse rapaz que, longe de resolver a questão em litígio, divulga ideias cuja falsidade não deixa dúvidas. Querendo provar uma tese duvidosa, ele caiu em erros certeiros.

Capítulo 11
A alma não existia antes de se unir ao corpo.

Você hesita em reprovar um linguajar como este: "Você não quer que uma alma receba a santidade de uma carne de pecado. Mas você não vê que é pela carne que essa mesma alma recebe, por sua vez, a santificação, de tal sorte que se encontra reintegrada pelo próprio instrumento de sua queda? É o corpo que é lavado pelo batismo e, no entanto, a graça conferida pelo batismo não penetra até à alma ou o espírito? É então bem natural que seja pela carne que a alma recupere seu primeiro estado, sua primeira atitude, como foi pela carne que ela pareceu decair e merecer ser maculada", ele diz.
Tais palavras mostram a você em que erro grosseiro o seu doutor caiu. Ele ousa dizer que "é pela carne que a alma é reintegrada ao seu estado primitivo, como foi pela carne que ela caiu”. Antes de estar unida à carne, a alma gozava de um estado perfeito e tinha adquirido um mérito precioso. Estado e mérito que lhe são restituídos pela carne, quando esta é purificada pelo banho da regeneração58.

58 Cf. Tito 3:5.

Antes de estar unida à carne, a alma tinha também vivido em algum lugar em um estado de perfeição e de mérito, do qual ela caiu com a sua união com a carne.
Vicente Vítor diz expressamente: "É pela carne que a alma recupera sua antiga situação, que ela pareceu perder insensivelmente pela carne". Antes de estar unida à carne, a alma já possuía uma antiga situação? E como poderia ser essa situação, senão feliz e louvável? Ele assegura que ela a recupera através do batismo. No entanto, ele não admite que essa alma tira sua origem daquela que existia no paraíso, onde gozava de felicidade.
Como então, em outra passagem, ele ousa dizer que sempre afirmou que a alma não existe por via de transmissão original; que ela não foi tirada do nada; que ela não existe por ela mesma e que ela não existiu antes do corpo?
Aqui, pelo contrário, ele sustenta que as almas viveram em algum lugar antes do corpo, que elas eram felizes e que essa felicidade lhes é restituída pelo batismo.
Depois, se esquecendo do que acaba de dizer, ele acrescenta que é pela carne que a alma renasce, como "foi pela carne que ela mereceu ser maculada”.
Antes, ele dava a entender que a alma havia perdido seu mérito por causa da carne; agora ele supõe que ela perdeu o mérito e que, em punição por sua falta, ela foi condenada a habitar a carne e aí contrair uma mácula. Merecer ser maculada é, seguramente, perder o mérito.
Que ele nos diga então qual pecado a alma cometeu antes de ser maculada pela carne e pelo qual ela mereceu ser maculada pela carne.
Que ele responda, se puder. Mas ele é incapaz de fazer isso, já que ele tem contra ele a verdade.

Capítulo 12
Contradição claríssima.

Um pouco além ele acrescenta: “Embora a alma, que não podia ser pecadora (sem a carne) tenha merecido se tornar pecadora, (por causa da carne), no entanto, ela não permaneceu no pecado, por que, prefigurada em Jesus Cristo, ela não tinha que permanecer no pecado, da mesma forma como ela não tinha que ter se jogado nele”.
Queira me dizer, eu lhe peço, se depois de ter lido e meditado nestas palavras e se você se perguntou o que era possível ser louvado aí, o que o fez arrancar tão vívidas ações de graça após a leitura.
O que significam, diga-me, palavras como estas: "Embora a alma, que não podia ser pecadora, mereceu ser pecadora"? "Ela mereceu sê- lo, ela não podia sê-lo”. Como ela podia merecer se tornar pecadora, se não é por que ela já tinha cometido o pecado ou por que ela já era pecadora? E se ela já o era, é então por que ela podia sê-lo. Por consequência, antes de se tomar desmerecedora, ela já tinha pecado e, ao pecar, ela mereceu ser abandonada por Deus e se precipitarem outros pecados.
As palavras "A alma não podia ser pecadora", significam, em seu pensamento, que, se a alma não estava unida à carne, ela não poderia se tornar pecadora? Mas então, como foi que a alma pôde merecer ser enviada à carne onde deveria encontrar o triste poder de se tomar pecadora; poder que, sem ela, ela jamais teria possuído?
O que então ela mereceu? Se ela mereceu se tornar pecadora, como ela o mereceu, se não foi por causa do pecado?
Todas estas proposições podem parecer obscuras ou serem apresentadas assim. No entanto, elas são, propriamente, da mais última evidência. Com efeito, se a alma, antes de estar unida à carne, não podia adquirir mérito e nem demérito, como é possível que "ela tenha merecido se tornar pecadora através da carne”?

Capítulo 13
Um texto bíblico mal aplicado por Vicente Vítor.

Mas, abordemos temas mais claros e mais fáceis. Nosso jovem doutor estava tomado por cruéis angústias com relação ao pecado original. Com efeito, como explicar que as almas sejam culpadas deste pecado, se elas não se originam da primeira alma que se tomou pecadora?
Por outro lado, afirmar que, quando o Criador as insuflou em uma carne pecadora, elas eram isentas de qualquer contágio e propagação do pecado, não é fazer crer que foi o próprio Deus que as tornou culpadas por causa da insuflação?
O primeiro argumento de defesa que ele invoca é a presciência de Deus e ele diz que "Deus lhes preparou a redenção". Em virtude dessa redenção as crianças são batizadas, para que o pecado original que elas contraíram através da carne seja apagado. Na verdade, não se pode dizer que Deus se apressa em corrigir seu erro e purificar aqueles que ele manchou?
Mas a questão deveria, naturalmente, recair sobre as crianças privadas desse socorro e que morrem antes de terem recebido o batismo.
Ele diz: "Sobre este ponto, eu não assumo a responsabilidade de autor e me contento em invocar um exemplo. Eu o retiro das crianças que, predestinadas ao batismo, são arrancadas da vida presente antes de terem sido regeneradas em Jesus Cristo. Com relação a essas crianças, eis o que lemos: Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma59. Tendo chegado rapidamente ao termo, percorreu uma longa carreira60. Sua alma era agradável ao Senhor e é por isso que ele o retirou depressa do meio da perversidade61”.

59 Sabedoria 4:11.
60 Sabedoria 4:13.
61 Sabedoria 4:14.

Quem ousaria desprezar um doutor assim?
Eis crianças que vão se apresentar ao batismo. Corre-se, mas elas morrem antes de o terem recebido. Se suas vidas tivessem se prolongado por alguns instantes, se elas só tivessem morrido imediatamente após o batismo, a malícia teria mudado sua inteligência, a mentira teria enganado sua alma? Foi para ajudar contra esse perigo que elas foram arrebatadas da vida antes de terem recebido o batismo?
Teria sido então no batismo que suas inteligências teriam decaído, que a mentira as teria enganado, se a morte tivesse vindo atingi-las logo após o batismo?
Ó admirável e sedutora doutrina! Você não passa de uma execrável e abominável doutrina!
Mas ele não presumiu a prudência de todos aqueles que procediam à sua leitura. Da sua sobretudo, pois foi para você que ele compôs esses livros e só os divulgou após tê-los lido para você. Ele estava certo de sua aprovação e não se enganou.
Ele confiou que você acreditaria que foi para as crianças mortas sem o batismo que se aplicava estas passagens, especialmente escrita para os santos que Deus recolhe antes da idade madura e para levantar as blasfêmias de todos os insensatos que reprovam no Onipotente o fato dele arrancar da vida muito rapidamente seus eleitos e de não lhes permitir que cheguem à idade avançada, que tantas pessoas consideram como o maior benefício do céu.
Como ousar dizer: "As crianças predestinadas ao batismo são arrebatadas da vida presente antes de terem sido regeneradas em Jesus Cristo"? Não se poderia dizer que algum golpe da sorte ou do azar ou de qualquer outra coisa não permitiu que Deus realizasse o que ele havia previsto? Isso aconteceu por que elas lhe pediram que as recolhessem prematuramente? Poderíamos dizer que ele as predestina ao batismo e que ele mesmo não permite que essa predestinação se realize?

Capítulo 14
Um suposto paraíso temporal para as crianças mortas sem o batismo.

Ele não gostou da minha hesitação — mais prudente do que sábia — em uma questão tão profunda.
Veja, pelo contrário, até que ponto ele leva a imprudência: "Não hesito em dizer que estas crianças podem obter a remissão do pecado original, embora, no entanto, não sejam ainda introduzidas no reino dos céus, mas unicamente no paraíso, como é o paraíso que foi prometido pelo Salvador ao bom ladrão62, por ele ter confessado sua divindade, antes de ter recebido o batismo. Não foi o reino dos céus que lhe foi prometido, pois o Salvador já havia proclamado esta sentença: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus63. Depois, o Salvador não disse que há várias moradas na casa de seu Pai, querendo dizer que elas são apropriadas ao número e à diversidade dos que morrem antes de terem recebido o batismo? Assim, aquele que não é batizado pode conseguir o perdão de seus pecados, enquanto que aquele que é batizado pode conseguir a palma que lhe é preparada pela graça".
Eis então um novo doutor que separa do reino dos céus o paraíso e as diferentes moradas da casa do Pai e isso, sem dúvida, para poder fornecer abundantes estações de felicidade mesmo àqueles que morrem sem o batismo.
Ele não vê então que, admitindo as crianças batizadas no reino dos céus, ele não teme separá-las da casa do Pai ou as diferentes moradas que a compõem.
De fato, quando o Salvador nos fala dessas numerosas moradas, ele as coloca, não no universo em geral ou em uma parte do universo, mas na casa de meu Pai64. Como então colocar na casa do Pai uma criança não batizada, já que ela só pode ter Deus como Pai na medida em que foi regenerada na água e no Espírito Santo? Como se mostraria ingrato a Deus aquele que Deus condescendeu retirar da divisão dos donatistas ou dos rogatistas? Como ele ousa dividir a própria casa de Deus Pai e colocar nela uma certa porção fora do reino dos céus, para transformar em morada daqueles que morrem sem o batismo? Com que direito ele presume entrar um dia no reino dos céus, se ele exclui dessa parte do reino o próprio rei?

62 Cf. Lucas 23:41.
63 João 3:5.
64 João 14:2.

Quanto ao bom ladrão que, pendurado na cruz bem perto do Salvador, confiou na misericórdia do Salvador crucificado; quanto a Dinocrates, irmão de Santa Perpétua, ele conclui que, aqueles que não são batizados podem obter a remissão de seus pecados e um lugar com os bem-aventurados. Isso me parece um pouco imprudente. Será que alguém, cuja palavra deve ser crível sob pena de blasfêmia, lhe revelou que o bom ladrão e Dinocrates não foram batizados? Com relação a estes dois personagens, eu formulei meu pensamento no livro que dirigi ao nosso irmão Renato65. Se você não despreza a leitura, você poderá conhecer esta obra, pois basta pedi-lo que ele não lhe negará.

65 Livro I cap. 11 e 12.

Capítulo 15
O sacrifício eucarístico não pode ser oferecido para as crianças não batizadas.

Mas ei-lo inflamado, oprimido sob o peso de horríveis angústias.
De fato, mais do que você, ele compreendeu o crime que era para ele afirmar que o pecado original pode ser apagado nas crianças sem o batismo de Jesus Cristo.
Como que para se acalmar, ele recorre — embora um pouco tarde — aos sacramentos da Igreja e diz: "Eu julgo que os santos padres devem oferecer sem cessar, para as crianças, oblações e sacrifícios”. Se você achava que não era suficiente honrá-lo com o título de doutor, não lhe recuse o título de censor e você estará autorizado a oferecer o sacrifício do corpo de Jesus Cristo, mesmo para aqueles que não estão incorporados a Jesus Cristo.
Ele emite em seus livros uma opinião nova e totalmente contrária à disciplina eclesiástica e à regra da verdade. Você acredita que ele vá utilizar expressões que revelem uma certa hesitação, como eu penso, eu creio, me parece, eu sugiro, eu digo? Não. Afetando um tipo de infalibilidade, ele clama: "Eu julgo”.
A novidade ou a perversidade de sua opinião poderia nos revoltar; mas é em vão, pois não temos que tremer diante de sua autoridade de julgador.
Veja meu irmão, como você pode autorizá-lo a sustentar tais doutrinas. Quanto aos sacerdotes católicos que permanecem fiéis ao ensinamento tradicional — ao qual você mesmo deveria se ater — longe de aprovarem esse discurso, eles imploram para ele a graça da conversão e do arrependimento e uma retratação franca e sincera das ideias que ele concebeu e das obras que escreveu.
Ele continua: “A proposição que defendo é confirmada por uma passagem do Livro dos Macabeus, na qual lemos que os sacerdotes conceberam o projeto de oferecer sacrifícios para aqueles que haviam caído no campo de batalha e que poderiam ser culpados de alguns crimes"66, Mas essa ação não poderia ser de nenhum valor, na medida em que esses sacrifícios eram oferecidos para incircuncisos, como ele pretende que devemos oferecer para as crianças mortas sem o batismo.
Entre os judeus, a circuncisão era um tipo de sacramento que prefigurava o batismo dos cristãos.

66 Cf. 2Macabeus 12:39-46.

Capítulo 16
Vicente Vítor se pronuncia abertamente contra a revelação.

No entanto, os erros precedentes não são nada, comparados como que se segue. De fato, após ter sustentado que as crianças obtêm sem batismo a remissão do pecado original e de todos os outros pecados, de tal sorte que elas merecem entrar no paraíso, para lá gozar de uma imensa felicidade e possuir as numerosas moradas que existem na casa do Pai celeste, ele se coloca subitamente a lamentar por ter lhes concedido apenas uma felicidade muito pequena fora do reino dos céus.
Para reparar seu erro, ele diz: "Podem me reprovar talvez por ter colocado temporariamente no paraíso a alma do bom ladrão e a de Dinocrates. Mas eu afirmo, ao mesmo tempo, que o reino dos céus lhes será aberto por ocasião da ressurreição, apesar da aparente contradição desta máxima fundamental: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus. Seja o que for esta frase, que não se tema abraçar minha opinião, contanto que não se tenha outro desejo além de dar mais extensão e mais encanto aos efeitos da misericórdia e da presciência divinas”. Estas palavras estão textualmente no segundo livro.
Sobre este tema, é possível levar mais longe a audácia do erro, a imprudência e a presunção? Ele apresenta a máxima do Salvador e até mesmo diz em sua obra: ”Apesar da aparente contradição desta máxima fundamental: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus". No entanto, ele não hesita em opor, a esta máxima principal, o orgulho de sua própria censura. "Que não se tema abraçar minha opinião”, ele diz; uma opinião que defende que as almas das crianças mortas sem o batismo merecem temporariamente o paraíso, como o mereceram o bom ladrão e Dinocrates, que ele invoca para estabelecer sua tese e que essas almas, após a ressurreição, serão transferidas para uma região ainda melhor e possuirão o reino dos céus, "apesar da contradição” da máxima fundamental proferida pelo Salvador.

Queira, meu irmão, eu lhe peço, sé perguntar se é possível acreditar na palavra de um homem que se coloca em contradição manifesta com uma máxima fundamental do Salvador.

Capítulo 17
Pior do que os pelagianos.

Os concílios e a Sé Apostólica justamente condenaram os pelagianos, por que eles sustentavam que, fora do reino dos céus, as crianças mortas sem batismo gozavam do repouso e da salvação. Esses novos heréticos não professariam este erro se eles não negassem a existência do pecado original, cuja remissão só pode acontecer através do sacramento do batismo.
Ora, eis aqui um autor que sustenta, como católico, a existência do pecado original nas crianças e que, no entanto, sustenta que essas crianças podem ser justificadas sem o batismo, as envia misericordiosamente para o paraíso após sua morte e, após a ressurreição, as introduz mais misericordiosamente ainda no reino dos céus.
Essa misericórdia lhe é inspirada, sem dúvida, pelo exemplo de Saul, que poupa um rei que o Senhor havia lhe ordenado que imolasse.
Ele se esqueceu de que essa desobediência misericordiosa ou essa misericórdia desobediente foi reprovada e condenada67? Que lição dada ao homem, para não esperar obter misericórdia resistindo Aquele que o fez o que ele é!
Que a verdade repita então na pessoa do Verbo encarnado: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus!68
Querendo em seguida nos fazer entender que esta regra não valia para os mártires que tinham derramado seu sangue pelo nome de Jesus Cristo antes de terem sido purificados pelo batismo de Jesus Cristo, o Salvador nos diz em outra passagem:
Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontrá-la-á69.
Para nos mostrar que aquele que não renasceu no banho da fé cristã não pode esperar a remissão do pecado original, o Apóstolo diz: Pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim, por um único ato de justiça, recebem todos os homens a justificação que dá a vida70.
Contra esta condenação, o Salvador proclama que só há um único remédio para a salvação: Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado71.

67 1Samuel 15.
68 João 3:5.
69 Mateus 10:39.
70 Romanos 5:18.
71 Marcos 16:16.

O mistério dessa fé se cumpre nas crianças através da resposta que dão por eles aqueles que as seguram sob as águas do batismo, pois, sem a realização desse mistério, todas sofreriam a condenação atraída sobre toda a humanidade por um só homem.
No entanto, apesar desses oráculos bem manifestos, eis que, se inspirando em uma vaidade sem limites, muito mais do que misericordiosa, seu doutor clama:
"Não somente as crianças não são condenadas, embora não tenham sido mergulhadas em nenhum banho da fé cristã, para ali encontrar a remissão de seu pecado original, como também, após sua morte, elas gozarão temporariamente da felicidade do paraíso e, após a ressurreição, elas gozarão de todas as delícias do reino dos céus".
Pode existir uma doutrina mais manifestamente oposta aos princípios mais fundamentais da fé católica? Mas, eu não temo dizer que ele jamais ousaria emiti-la, se não tivesse tido a imprudência de empreender a solução de uma questão muito superior às suas forças: a questão
da origem da alma.

Capítulo 18
Excesso de presunção.

Suas angústias redobram quando lhe arguem: "Por que, da parte de Deus, essa animosidade tão injusta com que ele persegue uma alma, até o ponto de acorrentá-la a uma carne de pecado, até a torná-la pecadora com essa união com a carne, sem a qual essa alma não poderia se tornar pecadora?"
Igualmente ele ouve: "A alma não poderia se tornar pecadora, se Deus não a tivesse unido a uma carne pecadora”.
Como conciliar essa conduta com a justiça de Deus? Isto é o que ele não consegue fazer, sobretudo quando lhe colocam sob os olhos a danação eterna das crianças que morrem sem o batismo e, por isso mesmo, sem ter obtido a remissão do pecado original.
Por que então, um Deus justo e bom, que em sua presciência infinita sabia que as almas dessas crianças ficariam privadas do sacramento da graça cristã, as acorrentou, inocentes e puras, em uma carne culpada originária do primeiro homem? Por que maculá-las assim com o pecado original e precipitá-las na danação eterna?
Não sabendo o que responder e, por outro lado, teimando em negar que essas almas fossem originárias da primeira alma pecadora, ele achou melhor correr todos os riscos de um infeliz naufrágio do que baixar suas velas, suspender sua corrida, depositar os remos pérfidos da discussão e lançar a âncora, para se dedicar a um estudo sério.
A hesitação de um idoso provocou o desprezo desse rapaz, como se em uma questão tão espinhosa e tão difícil, as vagas tumultuosas da eloquência devessem ser mais úteis do que as meditações da prudência.
Ele próprio pressentiu os perigos de sua tarefa, mas foi em vão.
Com efeito, ele próprio coloca as objeções que devem lhe submeter seus debatedores. Ele diz: "Outros opróbrios esperam os murmúrios queixosos dos maledicentes e então, como pessoas caídas em um roda- moinho espesso, rolamos tristemente rumo a rochedos escarpados”.
É após ter colocado assim suas premissas, que ele se dedica à essa perigosa questão na qual a fé católica naufragou e permanecerá submergida até que ele se retrate de todos os erros que ele cometeu.
Tomado de horror por esse rodamoinho e por esse rochedo, eu me recusei a lhe confiar o navio e, se eu me envolvi na discussão, foi menos para revelar a temeridade de sua presunção do que para justificar minhas dúvidas e minhas hesitações.
Encontrando em sua casa uma das minhas obras, ele se tomou de risos e desprezo e se lançou contra os rochedos com mais impetuosidade do que prudência. A que excessos ele levou sua presunção, eu penso que hoje você percebe. Se você já havia percebido há mais tempo, dou mais abundantes graças a Deus por isso.
Com efeito, não querendo interromper seu curso, para não ter que desmentir sua primeira audácia, ele se chocou contra temíveis escolhos e veio a naufragar diante desta proposição: "Às crianças mortas sem a regeneração cristã, Deus concede imediatamente o paraíso e, mais tarde, o reino dos céus".

Capítulo 19
A origem da alma é uma questão que as Escrituras não ajudam.

Quanto às passagens das santas Escrituras, que ele invocou para provar que não é por via da geração que Deus nos dá nossa alma, mas é por via da insuflação nova e particular a cada pessoa, eu demonstrei que essas passagens, sobre a questão que nos ocupa, são incertas e ambíguas e poderiam muito facilmente ser interpretadas em um sentido diferente daquele que ele lhes deu.
Eu me dediquei detalhadamente a esta questão no livro que dirigi a Renato e creio que minha demonstração está completa72. Esses testemunhos provam que é Deus quem nos dá, cria e forma nossa alma, mas eles não dizem do que e nem como ele a forma; é por via da geração ou é por via de uma insuflação especial?
Por que o seu doutor leu que é Deus quem nos dá, cria e forma nossa alma73, ele concluiu disso que a propagação das almas é formalmente negada. Mas as Escrituras não dizem claramente que é Deus quem nos dá, cria e forma nosso corpo? No entanto, ninguém duvida da propagação original dos corpos.

72 Livro I, cap. 17.
73 CF. Isaías 42:5 e 57:16; Zacarias 12:1.

Capítulo 20

São necessárias mais pesquisas.

Lemos igualmente: Ele fez nascer de uma só carne todo o gênero humano74 e Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne75.
Como não é dito que foi de uma só alma que Deus criou o gênero humano e como Adão não disse "Eis a alma de minha alma”, ele vê nestas passagens a negação da transmissão das almas por vida da geração.
Mas, suponhamos que, invés das palavras de uma só carne, lêssemos de uma só alma; concluiríamos que não se trata do ser humano inteiro ou que a propagação do corpo aí é formalmente negada?
Da mesma forma, se Adão tivesse dito Eis a alma de minha alma, ele deixaria de ver nestas palavras uma exclusão formal da carne, cujo modo de transmissão é evidente?
De fato, as Escrituras, em sua linguagem, tomam muito frequentemente o todo pela parte e a parte pelo todo. Se invés das palavras de um só sangue, O texto trouxesse de um só homem, esta passagem não estaria em oposição com os adversários da transmissão das almas, embora o homem seja composto não apenas de uma alma, ou apenas de um corpo, mas ao mesmo tempo de um corpo e de uma alma.

74 Atos 17:26.
75 Gênesis 2:23.

Eles responderia então que o todo é tomado pela parte, ou seja, que o termo homem designa somente a carne. Da mesma forma, os partidários da propagação das almas encontrariam nas palavras de um só sangue, a designação do ser humano inteiro ou como estando tomando a parte pelo todo.
Os primeiros se acreditam fortalecidos por que é dito de um só sangue e não de um só homem. Os segundos aplicam ao seu sistema as palavras Por um só homem entrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram76, pois não é dito "em quem a carne de todos pecou”.

76 Romanos 5:12.

Os primeiros fazem barulho comas palavras Eis os ossos de meus ossos e a carne de minha carne, pois é mencionada a carne e não o homem inteiro.
Os segundos replicam com as palavras que se seguem imediatamente: Ela será chamada mulher, por que foi tirada do homem. Como não foi dito Por que sua carne foi tirada do homem, se só a carne é tirada do homem e não a mulher inteira?
Escutando estes dois lados, sem nenhuma opinião formada, vemos claramente que não se poderia opor aos partidários da transmissão das almas as passagens que só tomam do homem uma das duas partes que o constituem. Não foi tomando a parte pelo todo que as Escrituras puderam dizer O Verbo se fez carne77, com esta carne designando, evidentemente, o ser humano inteiro?
Quanto aos adversários da transmissão das almas, não se poderia também lhes opor as passagens em que são feitas menções por uma ou outra das duas partes constitutivas do ser humano, mas do ser humano inteiro, pois então as Escrituras puderam tomar o todo pela parte, como quando confessamos que Jesus Cristo foi sepultado, o que só pode ser aplicado ao seu corpo.
Daí concluo que a transmissão das almas não deve ser imprudentemente afirmada e nem imprudentemente condenada. Antes de se pronunciar absolutamente por uma ou outra dessas duas opiniões, é necessário apresentar testemunhos explícitos e formais.

Capítulo 21
Nada está claro sobre a origem da alma.

Então, eu ainda ignoro o que você aprendeu e o que provocou em você as manifestações de um tão vivo reconhecimento. De fato, a questão da origem das almas permanece o que sempre foi. Pode-se sempre questionar se Deus no-las dá por via da transmissão original ou se é através de uma insuflação nova e especial a cada pessoa. Tudo o que nos ensina a fé é que Deus é o autor dessas almas.

77 João 1:14

Antes de avaliar suas forças, seu doutor tentou solucionar essa grande questão. Ele negou então a propagação das almas e afirmou que Deus as tira puras e sem mácula, não do nada, mas dele mesmo, através de um sopro criador. Seria então necessário rebaixar a natureza de Deus até o ponto de fazê-lo sofrer as vergonhas da mutabilidade?
Querendo provar que Deus não é injusto, ao jogar os laços do pecado original sobre almas até então livres de qualquer pecado e que não são destinadas a encontrar na regeneração a purificação de sua mácula original, ele formulou diante de você proposições que eu não quero que tenham convencido você.
Com relação às crianças mortas sem batismo, ele professou conceder-lhes uma salvação mais completa e uma felicidade maior que jamais ousou fazer a heresia pelagiana. No entanto, dentre essas crianças, quantos milhares são fruto de pais ímpios e mortos neste estado, não apenas sem que se tivesse podido pensar em lhes oferecer o batismo, mas também sem que se tenha oferecido a elas - ou sem que se devesse jamais oferecer a elas - o sacrifício de Jesus Cristo, embora ele sustente que esse sacrifício deva ser oferecido para elas, mesmo que não tenham sido batizadas!
Interrogue-o sobre a destinação das almas dessas crianças e ele fica sem resposta. Pergunte-lhe como essas almas puderam merecer não serem purificadas pelo batismo ou pelo sacrifício expiatório do corpo e do sangue de Jesus Cristo e serem jogadas em uma carne pecadora, para ali contrair o direito a uma eterna condenação; ou bem ele se cala, ou bem ele compartilha - bem tarde, é verdade de nossa hesitação - ou bem ele sustentará que se deve oferecer o sacrifício do corpo de Jesus Cristo para todas essas crianças que, em toda extensão do universo, morrem sem o batismo cristão e sem terem sido incorporadas a Jesus Cristo. Ele permite, no entanto, que seus nomes sejam omitidos, já que esses nomes são desconhecidos na Igreja de Jesus Cristo.

Capítulo 22
A culpa de Vicente fica diminuída.

Deus o livre, meu irmão, de aprovar uma doutrina assim, de se regozijar por tê-la aprendido ou por ensiná-la você mesmo. Se você sucumbisse a este perigo, você seria muito inferior a esse rapaz.
Começando seu primeiro livro e cedendo a um belo movimento de modéstia e humildade, não é que ele escreveu "Procurando obedecer a você, corro o risco de ser presunçoso"? Ele acrescenta um pouco depois que me proponho. Estou então disposto a não sustentar minha opinião particular, se descobrir que ela é improvável e, condenando meu próprio julgamento, abraçarei de grande coração o sentimento que me parecer o melhor e mais verdadeiro. De fato, como é dar prova de sabedoria e prudência seguir sem dificuldade a opinião da verdade, seria se mostrar além da loucura e da teimosia, não se colocar imediatamente do lado da razão". Se este discurso foi sincero de sua parte, se ele sentiu realmente o que disse, ele deu provas de grandeza e de nobreza em suas esperanças.

No fim do segundo livro, ele diz igualmente: "Não creia que eu possa levar a bajulação até o ponto de acreditar que minha linguagem não precisa ser sancionada pelo seu julgamento. Com medo de que, aos olhos de algum leitor curioso, não seja encontrada em meus escritos passagens capazes de feri-lo ou ofendê-lo, proceda na correção com toda a severidade possível, subtraindo impiedosamente tudo o que lhe parecer falso ou inconveniente. Eu não gostaria que, por causa deste livro e por uma benevolência muito grande de sua parte, inépcias até então desconhecidas viessem me cobrir do ridículo universal”.

Capítulo 23
Exortação a Pedro.

Restrições tão formais no início e no fim de sua obra impõem a você o religioso fardo do exame e da correção. Que suas esperanças não fiquem decepcionadas. Seja justo e mesmo misericordioso, mas repreenda-o e corrija-o. Que o óleo com que o pecador perfuma a cabeça78?
esteja bem distante de sua mãos e de seus olhos. Ou seja, evite a concordância indecorosa do adulador e a doçura sedutora do lisonjeador.

78 Cf Salmo 140:5.

Se você se omitir na correção do que lhe parecer defeituoso, você estará violando as leis da caridade e se você não enxergar nada para corrigir, por acreditar em tudo o que ele propõe, você vai diretamente contra as leis da verdade.
Seguir-se-á daí que esse autor — que está todo disposto a corrigir seu trabalho, se encontrar alguém que o corrija — seria muito superiora você se, conhecendo seus erros, você se contentasse em rir ou se, não os conhecendo, você os abraçasse cegamente.
Estude então com o máximo cuidado esses livros escritos para você e colocados em suas mãos. Esse estudo atento revelará a você mais detalhes que eu não pude encontrar em uma simples leitura. Se nele você encontrar realmente proposições belas e louváveis que você ignorava até então e que você só soube através dele, exponha sem disfarce.
Então você não será mais suspeito de ter aplaudido o que é realmente condenável nessa obra e essa suspeita, acredite-me, era compartilhada por aqueles que ouviram sua leitura com você e por aqueles que o leram em seguida.
Se você deixar os leitores ignorarem o que você bebeu dessa obra e o que você não bebeu, os louvores com que você a cobriu exporão esses leitores a aceitarem tudo e a beberem também, confiando em seu exemplo, o veneno na taça preciosa de seu estilo encantador. Escutar, ler, fixar na memória o que se leu, não é beber a doutrina?
Ora, falando dos fiéis, o Senhor previu que se beberem algum veneno mortal, não lhes fará mal79. Assim, aqueles que lerem com discernimento e se apoiarem na regra da fé, para aprovar o que é para ser a- provado e para condenar o que é para ser condenado, mesmo que sua memória conservasse a lembrança do que é condenável, não experimentarão nenhum dano provocado pelo veneno que possui essas doutrinas errôneas e perversas.
Eu não me arrependerei por ter obedecido a uma caridade mútua ou previdente, ao me permitir dar conselhos à sua reverência e à sua religião, pois, contando com a misericórdia de Deus, eu sabia como você os aceitaria.
Mas, renderei fervorosas ações de graça a Deus cuja misericórdia infinita jamais deve ser desprezada se sua carta me informar e me provar que sua fé não foi, de forma alguma, comprometida pelas mentiras e erros que eu acreditei ter que assinalar para você, na obra desse jovem escritor.

79 Marcos 16:18

Livro III
Os onze erros de Vicente Vítor

Agostinho assinala a Vicente Vítor o que ele deve corrigir em seus livros, se ele quer ser católico e reduz a onze os erros principais já refutados nos livros precedentes dirigidos a Renato e a Pedro.
A Vicente Vítor

Capítulo 1
A estima de Agostinho por Vicente Vitor.

Bem amado filho Vítor. Eu quero que, ao receber este texto, você se convença de que, se eu tivesse para com você algum desapreço, eu Jamais faria isso. No entanto, se demonstro humildade, não conclua que você está aprovado por que não foi desprezado.
Eu o amo não para segui-lo, mas para corrigi-lo e, como não tenho pressa para corrigi-lo, não se espante que eu possa desabonar aquele que eu amo.
Antes que você estivesse em comunhão conosco, eutive queamá- lo para apressar seu retorno ao catolicismo. Agora que você é um de nós, quanto mais eu devo amá-lo para impedi-lo de se tornar um novo herético e para fazê-lo um católico tão generoso que nenhum herético possa resistir!
A julgar pelas belas qualidades que Deus lhe concedeu, você será realmente sábio, se acreditar sinceramente não sê-lo. Se você pedir com insistência e piedade a sabedoria Aquele que faz os sábios. E se, enfim, você preferir mais não ser enganado pelo erro do que coberto de elogios por aqueles que perderam a verdade.

Capítulo 2
A conversão ao catolicismo não deve ser pela metade.

Primeiramente, seu nome estampado em seus livros despertou minha preocupação com relação a você.
Aqueles que podiam conhecê-lo, quando eu fiquei muito feliz por encontrá-lo, eu perguntei quem era Vicente Vítor. Fiquei sabendo que você era donatista ou melhor rogatista e que foi há pouco que você entrou para a Igreja católica.
Além da alegria que experimentamos sempre que uma vítima do erro abre os olhos para a verdade, minha felicidade cresceu ainda mais, ao ver que seus talentos, cujas provas eu saboreei em seus escritos, não permaneceram a serviço dos defensores do erro.
No entanto, dentre as informações que recolhi, minha alegria ficou um pouco entristecida ao saber que você tomou o nome Vicente, por que você tem em grande estima o sucessor de Rogato, que possui este nome.
Disseram-me também que você se vangloria de ter desfrutado de sua aparição, não sei em que visão, que ele foi para você uma poderosa ajuda para a composição dos livros sobre os quais pretendo discutir com você e que ele próprio lhe ditou as ideias e as provas que você formulou.
Se isso for verdade, eu não me espanto que você tenha essa orientação em seus escritos. Mas, se você dedicar alguma atenção à minha resposta e estudar meus livros sob o ponto de vista católico, não duvido que você lamentará prontamente estas palavras imprudentes.
De fato, aquele que se transfigura em anjo de luz80, como fala o Apóstolo, não foi ele. ou seja, o demônio que se transfigurou diante de você naquilo que você considera como tendo sido, ou ainda sendo, um anjo de luz? Não é sabido que, para melhor enganar os católicos, não é sob a forma de heréticos que ele deve se transfigurar, mas na de anjo de luz?
No entanto, mesmo então eu não gostaria que ele tivesse enganado você, um católico. Que ele sofra ao ver você de posse da verdade.
Que ele sofra em proporção à alegria que ele teria sentido ao vê-lo convencido do erro.
Para escapar da tentação de amar um homem morto, cuja afeição só pode arruiná-lo, sem lhe ser de nenhuma ajuda, queira observar que, ao sacudir as correntes dos heréticos donatistas ou rogatistas, você afirmou que ele não é nem santo e nem justo. Se você acreditasse em sua justiça santidade, você só teria assegurado sua perdição, ao entrar para a comunhão católica.

80 Coríntios 1:14

De fato, seu catolicismo não passaria de uma farsa, se você partilhasse hoje das opiniões daquele que você ama. Ora, você conhece bem estas terríveis palavras: O Espírito Santo fugirá da perfídia, afastar-se-á dos pensamentos insensatos e a iniquidade que sobrevém o repelirá81.

81 Sabedoria 1:5

Mas, se sua união ao catolicismo não é uma farsa, por que amar então um herético após sua morte, até o ponto de se orgulhar por portar o nome daquele com o qual você não compartilha os erros?
Não queremos que você porte o nome que faria de você como que um tipo de monumento em honra a um herético morto. Não queremos que seu livro traga estampado um nome cuja falsidade proclamaríamos se o lêssemos sobre um túmulo.
Não sabemos que esse Vicente não foi um vencedor, mas um vencido? E agradou a Deus que sua derrota lhe tenha sido tão vantajosa quanto a sua foi para você, graças ao poder da verdade.
Ao assinar o nome de Vicente Vítor os livros que você só acredita ter escrito sob sua inspiração, você usa de astúcia e sagacidade, já que o Vicente que você coroa com o título de Vítor - ou vencedor - é para você aquele que teria vencido o erro, ao lhe revelar o que você deveria escrever.
Oh, meu filho, por que essa iniquidade? Seja sinceramente católico e renuncie a toda dissimulação, para evitar que o Espírito Santo o abandone, quando, aliás, você não tem nenhuma ajuda a esperar desse Vicente, cuja forma o espírito maligno assumiu, para melhor enganá-lo e seduzi-lo.
De fato, ele não é o autor das doutrinas que você só proclama se aceitar cegamente sua palavra? E então, justamente dócil às advertências que lhes são pródigas, se você se retratar dessas opiniões, com uma humildade piedosa e um inteiro devotamento à paz católica, nós só veremos aí os erros de um rapaz tão ardente quanto estudioso e que prefere corrigir suas ilusões e não mantê-las imprudentemente.
Se, Deus o livre, ele tivesse insuflado em seu espírito a teimosia da discórdia, só restaria à vigilância pastoral e medicinal condenar esses dogmas heréticos e seu autor, antes de permitir que a devastação e a desolação chegue à alma e ao espírito do povo. E é isso o que aconteceria, se o salutar rigor da disciplina cedesse a uma funesta complacência que só teria da amizade o nome.

Capítulo 3
O primeiro erro de Vicente Vitor: a alma não é criada do nada, mas da mesma essência de Deus.

Se você quiser saber quais são esses erros, eu os assinalei em meus escritos aos nossos irmãos, o monge Renato e o padre Pedro, para quem você compôs a obra que nos ocupa neste momento e que ele pediu a você, segundo você, coma mais viva insistência. Se você desejar, meus amigos o enviarão meus livros e até mesmo os oferecerão sem que você os peça.
No entanto, não posso me calar aqui sobre o que me parece repreensível em seus escritos e em sua fé. Primeiramente, eu reprovo que você sustente que "Deus criou a alma, não do nada, mas dele mesmo"82.
A consequência disso é que a alma seria da mesma natureza de Deus.
Mas você mesmo rejeita isso, por que lhe parece de uma impieda- de bem manifesta. Para escapar disso, você só tem uma saída, que é dizer que a alma foicriada, não de Deus, mas por Deus. De fato, o queé de Deus é da mesma natureza que ele, como o Filho único do Pai. Para que a alma não seja da mesma natureza de Deus, é preciso então que ela tenha sido criada por ele e não dele.
Agora, diga do que ela foitirada ou reconheça que foi do nada. O que entende você quando lhe dizem que a alma é uma partícula do so- pro da natureza de Deus? Esse sopro da natureza de Deus, do qual a alma é uma pequena parcela, você negará que ele seja da mesma natu- reza de Deus? Se você o nega, você se coloca na necessidade deconclu- ir que é do próprio nada que Deus tirou esse sopro do qual a alma é formada.
Se não é do nada, diga-nos do que Deus atirou. Se ele atirou dele mesmo, ele é então a matéria de sua própria obra, o que é um absurdo.

82 Liv 1, cap de Livro 2, ap.5.

"Mas, tirando dele mesmo esse sopro, Deus continua em sua total integridade”, você diz. Então o fogo de uma lamparina perde alguma coisa de sua integridade, quando ele serve para acender outra lamparina, de uma natureza absolutamente semelhante a ela?

Capítulo 4
Não se pode aplicar a Deus o nosso modo de respirar.

"Quando sopramos em um odre, fazemos entrar nele um vento que não é, de forma alguma, uma porção da nossa natureza ou de nossa substância e que exalamos sem que soframos com isso nenhuma diminuição”, você diz.
É com a ajuda dessa comparação. na qual você insiste complacentemente que você pretende nos mostrar como, sem nenhum detrimento de sua natureza, Deus pode tirar nossa alma dele mesmo e como essa alma é distinta de Deus, embora vindo dele.

Você logo lança este grito de triunfo: "O vento que enche o odre é uma porção de nossa alma? Criamos homens quando enchemos odres?
Sofremos uma perda de nós mesmos, quando jogamos para todos os lados nosso alento? Não, não perdemos nada de nós mesmos quando exalamos esse sopro. Após termos soprado suficientemente para encher um odre, sentimos perfeitamente que ele continua em nós com todas as suas qualidades e em toda sua integridade”.
Esta comparação parece que faz você sorrir, com sua elegância e sua aplicação. Mas, vejamos como ela é falsa. Você afirma que Deus, essencialmente incorpóreo, sopra uma alma corpórea; que ele a tira, não do nada, mas dele mesmo. Você afirma que o sopro que exalamos, em- bora corpóreo, é muito mais sutil do que nosso corpo e que nós o tiramos, não de nossa alma, mas do ar exterior, através dos pulmões. Ora, esses pulmões. como afinal todos os membros de nosso corpo. por quem eles são postos em movimento, se não é por nossa alma, que se serve como que de um sopro para aspirar e expirar o ar ambiente?
De fato, com os alimentos e os líquidos que constituem a comida, e a bebida, Deus nos deu um terceiro princípio de alimentação, o ar ambiente, que pode suprir por algum tempo a comida e a bebida, mas sem o qual não poderíamos viver um só instante, pois a vida cessa em nós, assim que cessa a inspiração do ar e a respiração.
Ora, da mesma forma que os alimentos sólidos e líquidos encontram no corpo humano aberturas especiais para entrar e para sair, sem o que eles poderiam igualmente fazer mal; da mesma forma como o ar que respiramos não poderia permanecer em nós indefinidamente, sob pena de se corromper, Deus providenciou, para ele entrar e sair logo, vias sempre abertas, que servem ao mesmo tempo para a respiração e a expiração. Essas vias são a boca e as narinas, ou ambas ao mesmo tempo.

Capítulo 5
O erro da comparação.

Faça você mesmo o experimento do que diz. Expire o ar, soprando e veja quanto tempo você pode viver, se o ar que você perder não for substituído. Ou então, aspire o ar coma respiração e veja os sofrimentos que terá, se não puder expeli-lo através da expiração.
Ora, quando enchemos um odre, só fazemos obedecer às leis da vida em nós. Exceto, talvez, que aspiramos o ar em uma quantidade maior, para que possamos expirá-lo e abreviar a duração dos esforços mais ou menos penosos que somos obrigados a fazer para preencher toda a capacidade do odre.
Como então você pode dizer que "Não sofremos nenhuma diminuição, quando exalamos nosso sopro. Após tê-lo emitido suficientemente para encher o odre, sentimos perfeitamente que esse sopro permanece em nós com todas as suas qualidades e em toda sua integridade?
Vê-se, meu filho, que você não se deu conta do que você precisou fazer para encher um odre. Você então não sente que logo você recebe o que você perde pela insuflação? É muito fácil para você fazer esse experimento e eu o convido a tentar inflar um odre, muito mais do que inflar sua linguagem e seduzir, com palavras tão vãs quanto sonoras, ouvintes aos quais você deve oferecer um ensinamento substancial e verdadeiro.
Nesta matéria, eu não o indico a nenhum outro mestre, além de você mesmo. Lance em outro odre seu sopro tão abundante quanto possível e imediatamente feche sua boca e comprima suas narinas. Então, você constatará a verdade de minhas palavras. Logo você experimentará angústias intoleráveis. Mas, por que a necessidade de abrir a boca e as narinas, se ao soprar você não perde nada? Veja que tortura você sofrerá, se não substituir imediatamente pela aspiração o ar que você expirou. Veja que dano você causaria, se a respiração não viesse trazer o remédio. Se o que você gastou para inflar o odre não lhe fosse restituído, seria possível para você, não somente continuar à insuflação, mas até mesmo continuar a viver?

Capítulo 6
A diferença entra nós e Deus.

Estas são as reflexões que você deveria ter feito ao escrever e então você jamais teria pensado em utilizar essa comparação para nos provar que Deus tira as almas de outra substância já existente, como tiramos nosso alento do ar que nos rodeia.
Você teria compreendido então que essa comparação não prova nada e que é de uma impiedade evidente afirmar que Deus, embora sem sofrer nenhuma perda em sua natureza, tira de sua própria natureza alguma coisa mutável ou, o que é ainda pior, que ele é a matéria de sua própria obra.
Se então queremos buscar algum traço de semelhança entre nosso alento e o de Deus, eis como poderíamos raciocinar: não é de nossa natureza que tiramos nosso alento, mas, não sendo onipotentes, com o ar ambiente que aspiramos e respiramos formamos um sopro que não é nem vivo e nem sensível, mesmo que sejamos sensíveis e vivos.
Da mesma forma, não é de sua natureza que Deus tira o sopro que constitui nossa alma, mas, como ele é onipotente e pode criar o que ele quiser, ele pode assim tirar do nada ou fazer do nada um sopro vivo e animado, que será essencialmente mutável, embora Deus seja propriamente imutável.

Capítulo 7
O caso de Eliseu.

Como você pode então apoiar sua comparação no exemplo de Eliseu, que ressuscitou um morto soprando sobre seu rosto83?
Você supõe que o sopro de Eliseu tenha se tornado a própria alma da criança? Eu não ouso supor tal aberração de sua parte. Essa criança foi atingida pela morte quando sua alma lhe foi arrebatada. Ela ressuscitou em seguida por que essa mesma alma lhe foi devolvida. E você nos diz que Eliseu não sofreu nenhuma diminuição em sua natureza, como se pudéssemos supor que, para fazer reviver essa criança, o profeta lhe tenha insuflado uma parte de sua substância?

83 Cf. 2Reis4:34 e 35.

Se você não tinha outro objetivo que não fosse nos dizer que Eliseu soprou sem provocar nenhum dano à sua integridade, por que, nesse ato do profeta ressuscitando um morto, nos fazer observar o que se faz sempre, mesmo quando não se trata de ressuscitar um morto?
Já que você não admite que o sopro de Eliseu tenha podido se tornar a alma da criança. e nisso você tem razão. eu me espanto que você tenha levado sua imprudência até o ponto de sustentar que, entre o ato primitivo de Deus e o de Eliseu, há a diferença de que Deus só soprou uma vez, enquanto que o profeta soprou três vezes.
Estas são suas próprias palavras: “Eliseu soprou sobre o rosto do filho da sunamita, como Deus havia primitivamente soprado sobre o primeiro ser humano. Pelo poder divino, em que esse sopro não passava de um instrumento, os membros mortos recobraram seu primitivo vigor.
Mas Eliseu não sofreu nenhuma diminuição em sua natureza, embora tivesse sido através de seu sopro que a alma e o espírito retomaram posse daquele cadáver. A única diferença que eu observo é que Deus só soprou uma única vez sobre o rosto do primeiro ser humano, que viveu imediatamente, enquanto que Eliseu soprou três vezes sobre o rosto do morto e somente então este recobrou a vida”.
Se tomarmos suas palavras literalmente, concluiremos que a única diferença entre o ato de Deus e o do profeta reside unicamente no número de vezes que o sopro foi emitido. Isto também é um erro que você deve corrigir. De fato, o que distingue a obra de Deus do milagre operado por Eliseu é que Deus emitiu o sopro de vida pelo qual o ser humano se tornou uma alma viva, enquanto que o sopro de Eliseu não animou e nem vivificou; ele é simplesmente uma figura de linguagem.
É verdade que essa criança recobrou a vida, mas não foi o profeta que a devolveu diretamente e com seu próprio poder. Deus somente foi o autor dessa ressuscitação, por ter se deixado tocar pelo amor e as súplicas de seu profeta.
Quanto ao triplo sopro que você atribui a Eliseu; ou a sua lembrança o engana ou você foi enganado por um texto alterado.
Por que insistir nisso? Para corroborar sua tese, não procure exemplos e nem argumentos. É melhor mudar de doutrina e de opinião.
Evite então acreditar, dizer e ensinar que não foi do nada, mas de sua própria natureza que Deus tirou a alma humana. Só assim você será católico.

Capítulo 8
O segundo erro de Vicente Vitor.

Evite acreditar, dizer e ensinar que "sempre e sem fim Deus dá as, almas àqueles que nascem e que "Deus as dá sempre, como existe sempre Aquele que as dá”. Somente assim você será católico.
De fato, virá um tempo emque Deus deixará de criar almas, sem, no entanto, deixar de existir. A rigor, as palavras "Deus dá sempre”,
poderiam ser interpretadas no sentido de que Deus não deixará de criar almas, enquanto forem criados corpos84. Este é, com efeito, o sentido que se dá a estas palavras do Apóstolo: Sempre a aprender sem nunca chegar ao conhecimento da verdade85. É evidente que a palavra sempre não significa que eles nunca deixam de adquirir novos conhecimentos, já que não aprendem mais quando deixam de viver e começam a sofrer os horrores do suplício etemo do inferno. Mas esta interpretação você a tornou impossível, ao dizer que "Deus dá sempre”, especificando que ele dá durante um tempo indefinido.
Você foi mais longe ainda e, como que para precisar para você a duração desse tempo indefinido, você chegou a dizer: "Deus dá sempre as almas, como existe sempre Aquele que as dá". Um erro assim é formalmente reprovado pela fé católica.
Longe de nós, de fato, acreditar que Deus dá sempre almas, como existe sempre Aquele que dá. Deus existe sempre no sentido em que não deixará de existir. Quanto às almas, ele não as criará sempre. Quanto terminar a era presente, o gênero humano deixará de se multiplicar e nada então motivará a criação de novas almas.

84 Cf Lucas 20:34
85 2 Timteo3:7,

Capítulo 9
O terceiro erro de Vicente Vítor.

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer e ensinar que "a alma perdeu alguma coisa de seus méritos através da carne, como se ela tivesse possuído méritos antes de estar unida à carne"86.
O Apóstolo não diz que não se pode atribuir méritos, nem bons e nem maus, àqueles que ainda não nasceram87? Como antes de estar unida à carne a alma poderia ter adquirido méritos, se ela não fez bem algum?
Como então você pode dizer: "Você não quer que uma alma receba a santidade de uma carne de pecado. Mas, você não vê que é pela carne que essa alma recebe, por sua vez, a santificação, de tal sorte que ela se vê reintegrada por aquilo que foi o instrumento de sua queda?”
Afirmar que antes de estar unida à carne, a alma gozava de existência e que aí ela adquiriu méritos, é, caso você não saiba, uma doutrina que a Igreja formalmente condenou nos antigos heréticos e bem recentemente ainda nos priscilianistas.

86 Livr II, cap 11.
87 C Romanos 9:11

Capítulo 10
O quarto erro de Vicente Vítor.

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer e ensinar que é pela carne que a alma renasce e recupera sua primeira condição, como foi "pela carne que ela mereceu ser maculada"88.
Sem mencionar estas outras palavras: "Portanto, é bem natural que seja pela carne que a alma recupere sua primeira condição, que ela parecia ter perdido pouco a pouco pela carne, de sorte que seja pela carne que ela comece a renascer, como foi por ela que ela mereceu ser maculada".
Eu fico espantado que você possa se contradizer tão formalmente e em proposições seguidas. De fato, você disse um pouco antes que, após ter perdido seu mérito anterior através da carne, a alma recupera também seu estado primitivo através da carne, por ocasião do batismo.
Em-seguida, falando ainda dessa alma, você afirma que ela mereceu ser maculada pela carne. Merecer o mal não é se tomar digno dele através de uma falta anterior? Disso se entende que esse estado primitivo da alma você considera sucessivamente como um estado de inocência e um estado de pecado.
Mas, sem insistir nesta contradição sua, basta declarar que a doutrina católica reprova formalmente a crença em um estado anterior da alma, seja ele bom ou mau.

88 Livro 1 cap. 6 e Livro II cap. 11.

Capítulo 11
O quinto erro de Vicente Vítor.

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer ou ensinar que "antes de qualquer pecado de sua parte, a alma mereceu se tornar pecadora89.
Com efeito, o maior mal que ela pode merecer, não é se tornar pecadora? Ora, um mérito assim não pode ser adquirido antes de qualquer pecado e, sobretudo, antes da união como corpo, já que, neste estado, a alma não pode merecer o bem e nem o mal.
Como então você ousa dizer que "Se a alma, que não podia ser pecadora antes de sua união com a carne, mereceu se tornar pecadora através da came. Por outro lado, ela não permaneceu no pecado, por que, prefigurada em Jesus Cristo, ela não devia e nem podia permanecer no pecado"?
Pese cuidadosamente o alcance de suas palavras e não hesite em reprová-las. Como compreender que a alma tenha merecido ser pecadora e que ela não podia sê-lo? Como uma alma, que não cometeu nenhum pecado, mereceu ser pecadora? Como ela se tomou pecadora, se ela não podia sê-lo? Ela só podia sê-lo através da carne, você me responde. Mas, então, não é merecer se tornar pecadora, merecer ser unida à carne? Se então, antes de ser unida à carne, a alma não podia ser pecadora, como ela mereceu ser punida?

89 Livro 1 cap. 8 e Livro II, cap. 12.

Capítulo 12
O sexto erro de Vicente Vítor

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer ou ensinar que "as crianças mortas sem o batismo podem obter a remissão do pecado original"90.
Quanto aos exemplos você apresenta como provas, seja o bom ladrão, que confessou a divindade do Salvador sobre a cruz ou Dinocrates, irmão de Santa Perpétua, esses exemplos enganam você e não ajudam em nada a sua doutrina errônea.
Primeiramente, você não sabe se o batismo não foi conferido ao ladrão, incluído por Deus entre aqueles que são purificados através do martírio. Uma pia crença não conta que a água que jorrou com o sangue de Jesus Cristo tocou o bom ladrão pendurado ao lado de Jesus Cristo é se tornou para ele a água do batismo mais santo?
Mas, eu passo em silêncio por essa tradição e pergunto se ele não teria sido batizado na prisão, como acontecia muitas vezes no tempo das perseguições. E se ele tivesse sido batizado mesmo antes de ser colocado a ferros? Após ter recebido de Deus o perdão de seus pecados, nem por isso ele ficaria menos sujeito ao rigor das leis civis quanto à morte física. Por fim, quem poderia dizer que ele já não era batizado quando entrou para o mundo do crime e que então ele não passava de um simples penitente sobre a cruz? Não é esta última hipótese que melhor nos explica a piedade que o Salvador viu em seu coração e que percebemos em suas palavras?

90 Livro 1 cap. 20 e Livro II caps. 13 e 14.

Afirmar que todos aqueles em que o batismo não é mencionado nas Escrituras são realmente mortos sem o batismo seria caluniar os apóstolos, já que em nenhum lugar é mencionado seus batismos, com exceção de São Paulo91.
Mas, se para estarmos convencidos de que eles foram batizados, nos bastam estas palavras dirigidas a Pedro pelo Salvador: Aquele que tomou banho não tem necessidade de lavar-se; está inteiramente puro92, que diremos de Barnabé, de Timóteo, de Tito, de Silas, de Filêmon, dos evangelistas São Marcos e São Lucas e de muitos outros, em que o batismo não nos é revelado por nenhuma palavra? Apesar desse silêncio, hesitaremos em acreditar que eles foram batizados?
Quanto a Dinocrates, ele tinha atingido seu sétimo ano e as crianças batizadas nessa idade recitam elas mesmas o símbolo e respondem em seu próprio nome. Por que então você não admite que, após ter recebido o batismo, essa criança, induzida pela impiedade de seu pai, tenha retomado aos sacrilégios do paganismo e tenha assim merecido sofrer não sei quais castigos, dos quais ela foi libertada pelas preces de sua irmã? Aliás, em nenhum lugar você leu que ela não tenha sido cristã ou que tenha morrido catecúmena. E se você leu em algum lugar, não foi seguramente nos cânones das Escrituras, cujos testemunhos são os únicos aceitáveis em questão dessa importância.

91 Cf. Atos: 9:18.
92 João 13:10.

Capítulo 13
O sétimo erro de Vicente Vítor.

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer ou ensinar que "aqueles que foram predestinado pelo Senhor ao batismo, podem-ser retirados dessa predestinação antes que o Todo Poderoso tenha realizado neles seus desígnios93.
De fato, eu ignoro que poder poderia se opor ao poder divino e impedi-lo, em tais circunstâncias, de realizar o que ele previu. É inútil sondar o abismo de impiedade que um erro assim traz consigo. Basta um comentário curto, pois creio estar lidando com um homem prudente e disposto a se corrigir.

Eis suas próprias palavras: "Invoco o exemplo das crianças que, predestinadas ao batismo, são arrancadas da vida presente antes de terem se regenerado em Jesus Cristo”. Trata-se realmente de crianças predestinadas ao batismo e arrancadas da vida antes de terem podido recebê-lo e Deus realmente as teria predestinado a um sacramento que ele sabia que devia lhes ser recusado ou que ele sabia que lhes seria recusado? Aqui não há meio termo possível: ou essa predestinação devia fracassar ou sua presciência devia ser enganada!

93 Livro II cap 13.

Você compreende os desdobramentos que eu poderia desenvolver aqui, se eu não permanecesse fiel à minha promessa e deixasse de lhe fazer apenas uma curta observação?

Capítulo 14
O oitavo erro de Vicente Vítor.

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer ou ensinar que são às crianças que morrem antes de terem sido regeneradas em Jesus Cristo94, que se aplicam estas palavras: Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma. Sua alma era agradável ao Senhor e é por isso que ele o retirou depressa do meio da perversidade. Tendo chegado rapidamente ao termo, percorreu uma longa carreira95.

94 Livro 8 cap 13.
95 Sabedoria 4: 11, 14 e 13.

Estas palavras não se aplicam, de forma alguma, às crianças que morrem sem o batismo, mas unicamente àqueles que, após terem sido batizados, levam uma vida santa e piedosa e veem a trama de seus dias prematuramente cortada, após terem amadurecido, não pela idade, mas pela graça e a sabedoria.
Supor que este texto se aplica às crianças que morrem sem o batismo é um erro que provoca ao santo batismo o mais violento ultraje, se for admitido que tais crianças, que poderiam ser batizadas antes de morrer, são atingidas pela morte antes do batismo, para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma. Não seríamos levados a crer que seria no próprio batismo que elas encontrariam essa malícia e essa astúcia que poderiam produzir nelas essas tristes devastações, se elas não tivessem sido levadas por uma morte prematura?
Além disso, como essa alma agradava a Deus, a ponto dele se apressar em retirá-la desse meio de iniquidade, sem dar tempo de realizar em sua pessoa o benefício ao qual ele a havia predestinado?
O Senhor preferiu então revogar os decretos da predestinação, do que se expor à ver perecer no batismo o que lhe agradava nessa criança não batizada?
Senão me engano, isto é o mesmo que dizer que essa criança teria encontrado sua perdição nesse banho salutar, onde se devia apressarem mergulhá-la, para que ela não perecesse.
Por pouco que se compreenda o sentido dessas palavras da Sabedoria, pode-se acreditar, dizer ou escrever que elas se aplicam às crianças mortas sem o batismo?

Capítulo 15
O nono erro de Vicente Vítor.

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer ou ensinar que "muitas das moradas que o Senhor disse que existem na casa de seu Pai estão fora do Reino de Deus"96.
O Salvador não diz: "Há muitas moradas com meu Pai”. E, se fosse isso que ele tivesse dito, essas moradas só poderiam estar também na casa do Pai celeste.
Mas o texto do Evangelho é formal: Na casa de meu Pai há muitas moradas97. Quem então ousaria separar do reino de Deus algumas partes da casa de Deus?
Os reis da terra reinam não somente em seus palácios, não somente em sua pátria, mas até sobre as praias distantes e além dos mares. O rei que criou o céu e aterra não reinaria em toda a extensão de seu palácio?

96 Livro 8 cap 14.
97 João 14:2.

Capítulo 16
O reino de Deus e o reino dos céus.

Talvez você possa dizer que tudo pertence ao reino de Deus, já que ele reina no céu, na terra, nas profundezas das águas98, no paraíso e no inferno. Onde então ele não reinaria, já que ele estende por toda par- te seu poder infinito?

98 Cf. Salmo 134:6.

Mas, uma coisa é o reino dos céus, cujo acesso, segundo as palavras do Salvador, só é acessível àqueles que foram purificados no banho da regeneração99. Outra coisa é o reino da terra ou de qualquer parte que seja do universo, onde se possa encontrar moradas da casa de Deus e que pertencem, é verdade, ao reino de Deus, mas não ao reino dos céus, que é, por excelência, o reino de Deus.
Dessas explicações segue-se que algumas partes ou algumas moradas da casa de Deus não são sacrilegamente separadas do reino de Deus. No entanto, todas essas moradas não são, por isso, preparadas no reino dos céus. Naquelas que estão fora dele, podem desfrutar da felicidade e habitar aqueles que Deus condescende de colocá-los ali; até mesmo as crianças que morrem sem o batismo. Elas estão, portanto, no reino de Deus, embora não estejam no reino dos céus, cujo acesso só é aberto àqueles que são batizados.

99 Cf. Tito 3:51; 1Coríntios 6:11 e Marcos 16:16.

Capítulo 77
O benefício do reino de Deus.

Aqueles que nos dão esta interpretação e atribuem valor a ela, não compreendem as Escrituras e nem esta simples prece: Venha a nós o vosso Reino100.

100 Mateus 6:10.

Que reino é este, se não é aquele no qual todas as almas fiéis formam uma única família com Deus e reinam com ele eternamente, no seio da alegria e da felicidade?
Quanto ao poder com o qual Deus governa todas as coisas, é certo que ele reina como senhor absoluto. Por que então lhe pedimos que seu reino venha a nós? Não é por que nós merecemos reinar com ele?
O poder de Deus se estenderá até sobre os infelizes reprovados que sofrerão no inferno o tormento das chamas eternas. Dirão que esses infelizes estarão também no reino de Deus? Uma coisa é desfrutar dos benefícios do reino de Deus. Outra coisa é ser encarcerado aí sob o império de suas leis.
Para convencer que não é o caso de conceder o reino dos céus àqueles que são batizados e outras partes do reino de Deus àqueles que morrem sem o batismo, veja o que diz o Salvador.
Ele não diz" Aquele que não renascer da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino dos céus", mas sim, "Não pode entrar no reino de Deus"101.
Dirigindo-se a Nicodemos, sobre o mesmo assunto: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus102. Ele não fala de reino dos céus, mas de reino de Deus.
Nicodemos questiona: Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?103 O Salvador, precisando ainda mais seu pensamento, lhe responde: Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.
As palavras quem não nascer de novo são assim explicadas pelo próprio Salvador: quem não renascer da água e do Espírito.
As palavras não pode ver correspondem a não pode entrar. Quanto às palavras o reino de Deus, o Salvador repete textualmente. Por que então procurar saber se o reino de Deus e o reino dos céus são uma só e mesma coisa, designadas por nomes diferentes? Não basta que aquele que não foi purificado no banho da regeneração não pode entrar no reino de Deus?
Quanto às numerosas moradas da casa de Deus, separá-las do reino de Deus é um erro cujo absurdo você compreende. E, já que você pôde pensar que, em algumas dessas moradas que o Salvador nos assinala na casa de seu Pai, seriam colocados aqueles que não renasceram na água e no Espírito Santo, se você me permitir, eu o convido a corrigir imediatamente seu erro e se manter na fé católica.

101 João 3:5
102 João 3:3.
103 João 4:4.
104 João 4:5.

Capítulo 18
O décimo erro de Vicente Vítor.

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer ou ensinar que "o sacrifício dos cristãos deve ser ofertado para aqueles que morrem sem o batismo105.
Você apresenta como prova o sacrifício dos judeus, mencionado no Livro dos Macabeus "106.
Mas, é impossível provar que ele tenha sido oferecido para judeus mortos sem terem sido circuncidados.
Ao formular sua doutrina, cuja novidade é condenada pela autoridade e a disciplina de toda a Igreja, você se utilizou de uma expressão das mais imprudentes. "Eu julgo”, disse você, "que se deve oferecer para as crianças, oblações assíduas e contínuos sacrifícios por parte dos sacerdotes”, como se você se esquecesse que, como leigo, você deve se submeter ao ensinamento dos padres de Deus, sem misturar a ele suas pesquisas e, sobretudo, sem se colocar no meio deles como censor e como juiz.
Meu filho, livre-se de tais pretensões. Não é assim que se caminha na via que nos ensinou o manso e humilde de coração Jesus Cristo107.Ensoberbar-se a este ponto é se colocar na impossibilidade de passar pela porta estreita que ele nos falou108.

105 Livro I, cap. 13 e Livro II, cap. 15.
106 2Macabeus 12:29-46.
107 Cf. João 14:6.
108 Cf. Mateus 7:13 e Lucas 13:24.

Capítulo 19
O décimo primeiro erro de Vicente Vítor:

Se você quer ser católico, evite acreditar, dizer ou ensinar que, "dentre aqueles que morrem, há alguns aos quais o reino de Deus é recusado por um tempo e somente entram no paraíso. Só mais tarde - ou seja, na ressurreição geral - é que eles conseguirão a felicidade do reino dos céus"109.

109 Livro II cap. 16.

Uma doutrina assim jamais foi defendida; nem mesmo pela heresia pelagiana, embora ela negue formalmente a transmissão do pecado original às crianças.
Como católico você admite a existência do pecado original e, no entanto, você - levado não sei por qual opinião, tão perversa quanto nova. ensina que, fora do batismo de Jesus Cristo, essas crianças podem receber a remissão de seu pecado original e entrar no reino dos céus.
Você não entende então que, sobre este ponto, você é mais inferior do que o próprio Pelágio. Ele é cheio de respeito pela sentença do Salvador - na qual é dito que aqueles que não são batizados não entrarão no reino dos céus - que recusa esse reino às crianças mortas sem o batismo, embora, de fato, ele as proclame isentas de qualquer pecado.
Você, pelo contrário, não leva em conta estas palavras tão formais: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.
Sem falar do erro grosseiro pelo qual você deseja estabelecer uma separação real entre o reino dos céus e o paraíso, você não hesita em prometer a remissão de seus pecados e a posse do reino dos céus a essas crianças que, como católico, você reconhece culpadas do pecado original e que você supõe que morrem sem batismo.
Você proclama ser um verdadeiro católico, por que afirma contra Pelágio a existência do pecado original, ao mesmo tempo em que opõe o mais formal desmentido às palavras pelas quais o Salvador afirma claramente a absoluta necessidade do batismo? Somente por causa disso você não é um novo herético?
Bem amado filho, a vitória que nós lhe desejamos sobre os heréticos não é a vitória do erro sobre o erro e, sobretudo a vitória de um erro maior sobre um erro menos culposo.
Eis as suas próprias palavras: "Talvez me reprovem por ter colocado temporariamente no paraíso a alma do bom ladrão e a de Dinocrates. Mas eu afirmo, ao mesmo tempo, que o reino dos céus lhes será aberto por ocasião da ressurreição, apesar da aparente contradição desta máxima fundamental: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus. Seja o que for esta frase, que não se tema abraçar minha opinião, contanto que não se tenha outro desejo que não seja dar mais extensão e mais encanto aos efeitos da misericórdia e da presciência divinas".
Estas são as suas própria palavras, pelas quais você aprova a opinião daqueles que sustentam que certas pessoas mortas sem o batismo são recebidas temporariamente no paraíso, de maneiras a, após a ressurreição, entrarem no reino dos céus. Não obstante a máxima fundamental pela qual o Salvador declara formalmente que aquele que não renasce da água e do Espírito Santo não entrará no reino dos céus.
Temendo violar essa grave autoridade do Salvador, Pelágio, que não acreditava que as crianças sejam culpadas do pecado original, não as admitia no reino dos céus quando morriam sem o batismo. Você, pelo contrário, admite que elas sejam culpadas desse pecado e, no entanto, as relega primeiro ao paraíso, para permitir que elas entrem mais tarde no reino dos céus.

Capítulo 20
Exortação de Agostinho a Vicente Vítor, para que ele seja fiel aos seu próprio propósito.

Quanto a esses erros e outros semelhantes que você pode descobrir em seus escritos, realize ali um estudo mais cuidadoso, assim que permitir seu tempo livre e corrija-os sem atraso, se você é sinceramente católico, ou seja, se foi bem este seu pensamento quando você disse: "Não tenho para mim a credulidade de pensar que posso provar o que me proponho. Estou então disposto a não sustentar minha opinião particular, se descobrir que ela é improvável e, condenando meu próprio julgamento, abraçarei de grande coração o sentimento que me parecer o melhor e mais verdadeiro".
Apresse-se a provar, meu bem amado, que estas palavras não eram uma mentira em seus lábios. Então a Igreja católica se regozijará por encontrar não apenas um talento, mas um talento prudente, pio e modesto, quando ela podia temer em você a teimosia discordante e os ardores insensatos da heresia.
É agora que se trata de cumprir, se eles eram sinceros, os votos que se seguiram a estas excelentes palavras que eu acabei de citar: "Como é dar prova de sabedoria e prudência seguir sem dificuldade a opinião da verdade, seria se mostrar além da loucura e da teimosia, não se colocar imediatamente do lado da razão110. Dê provas então de sabedoria e prudência e você se colocará ao lado da verdade. Não demonstre loucura e nem teimosia e você se colocará imediatamente ao lado da razão.
Se estes votos são sinceros de sua parte, se eles foram formulados com toda franqueza de seu coração e não somente de seus lábios, você rejeitará com horror todo atraso na obra tão bela de sua conversão.

110 Livro II, cap. 2.

É pouco dizer "É característico de um espírito mau e teimoso não querer se curvar ao jugo da razão", se você não acrescentar "Não querer se curvar imediatamente". Desta forma, você lança a maldição sobre aquele que se recusa sempre a essa nobre ação, já que aquele que se contenta em opor embaraços lhe parece merecer justamente a nota infamante de maldade e de teimosia.
Seja, portanto, coerente com você mesmo e sobretudo goze dos frutos de sua própria linguagem. Você não hesitará então em se jogar totalmente no caminho da razão, muito mais do que se deixar se desviar do bom caminho, sucumbindo às armadilhas de sua idade.

Capítulo 21
Agostinho exorta Vicente Vítor a corrigir imediatamente ao menos os onze erros principais.

Seria uma tarefa muito longa levantar, discutir e refutar um a um todos os erros que eu gostaria de ver desaparecer de suas obras e, sobretudo, de seu espírito. No entanto, evite se menosprezar e fazer pouco de seu espírito e de seu talento para escrever.
Eu pude me convencer de que sua memória se enriqueceu com uma grande quantidade de passagens das Escrituras e, no entanto, eu devo confessar a você que sua erudição não responde ao brilho de seus talentos e à intensidade de seu trabalho. Por isso eu não quero ver você se erguer muito alto e nem se abaixar muito.
Oh! Queira Deus que eu possa ler seus escritos com você e lhe mostrar seus erros em uma conversa! Uma conversa entre nós terminaria esse assunto mais facilmente do que através de cartas. Quantas cartas não seriam necessárias, se quiséssemos dizer tudo!
No entanto, eu quis lhe assinalar claramente os erros principais, alertando-o para corrigi-los prontamente e excluí-los de sua crença e de seu ensinamento.
Como eu gostaria que essa facilidade de discussão que você desfruta pela graça de Deus servisse a você utilmente! Não para destruir, mas para fundamentar e sustentar a doutrina sã e saudável.

Capítulo 22
Resumo dos onze principais erros de Vicente Vítor.

Eu já lhe assinalei como eu pude seus erros, mas creio dever listá-los mais uma vez, brevemente, tal como você os apresentou.
1) Deus tirou a alma, não do nada, mas dele mesmo;
2) Deus cria eternamente as almas, da mesma forma como ele mesmo é eterno;
3) A alma perdeu através da carne o mérito que ela tinha adquirido antes de sua união com a carne;
4) A alma recupera, através da carne, seu estado primitivo e renasce através dela, como foi através dela que ela mereceu ser maculada;
5) A alma mereceu se tornar pecadora antes de qualquer pecado;
6) As crianças mortas sem o batismo podem obter a remissão do pecado original;
7) Aqueles que Deus predestinou ao batismo podem escapar dessa predestinação e morrer antes de obter de Deus sua realização;
8) Às crianças que morrem antes de terem renascido em Jesus Cristo se aplicam estas palavras: Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma111 e outras passagens semelhantes tiradas do Livro da Sabedoria;
9) Dentre as inúmeras moradas que o Salvador afirma existir na casa de seu Pai, há algumas que estão fora do reino de Deus;
10) O sacrifício dos cristãos deve ser ofertado para aqueles que morrem antes de terem recebido o batismo;
11) Alguns daqueles que morrem sem o batismo entram, não no reino dos céus, mas no paraíso. É somente após a ressurreição dos mortos que o reino dos céus lhes será aberto.

111 Sabedoria 4:11.

Capítulo 23
O encorajamento a Vicente Vítor.

Estas onze proposições formam erros tão manifestamente contrários à fé católica, que você deve impiedosamente excluí-los de seu espírito, de sua linguagem e de seus livros, se você quer, não apenas passar pelos altares católicos, mas mesmo permanecer católico e nos deixar a alegria de seu feliz retorno.
Cada uma destas proposições, se teimosamente defendidas, se tornariam uma heresia especial. Não seria uma infelicidade se, em um só homem, fosse encontrado um número tão grande de opiniões em que cada uma bastaria para condenar todo desafortunado que a defendesse?
Longe de tentar defendê-las, combata-as generosamente com suas palavras e com seus escritos. Desta forma e condenando-as você mesmo, você atrairá mais glória do que se você confundisse o adversário mais temível. Por fim, lhe será mais glorioso reconhecer seus erros do que jamais tê-los cometido.
Que o Senhor o ajude, que seu divino Espírito derrame sobre o seu um poder tal de humildade, uma tal luz de verdade, uma tal doçura de caridade, uma tal paz, que você preferirá mil vezes vencer você em favor da verdade do que sustentar a mentira contra qualquer que seja o adversário.
Apesar das opiniões que você divulgou e que são diretamente contrárias à fé católica, evite acreditar que você perdeu a fé; contanto que seja diante de Deus, que sonda os rins e os corações -  total a sinceridade de sua alma, quando você escreveu: "Não tenho para mim a credulidade de pensar que posso provar o que me proponho. Estou então disposto a não sustentar minha opinião particular, se descobrir que ela é improvável e, condenando meu próprio julgamento, abraçarei de grande coração o sentimento que me parecer o melhore mais verdadeiro”.
Quando o coração é movido por disposições assim, o espírito, por ignorância, pode formular opiniões contrárias à fé. Mas, não se é menos católico somente pelo fato de se estar disposto a se corrigir.
Mas, é tempo de encerrar este livro, para que o leitor repouse um pouco e renove totalmente sua atenção, para melhor apreender o que deve se seguir.

Livro IV
A espiritualidade da alma

“Agostinho se justifica por não ter ousado se pronunciar sobre a origem da alma e por não ter estabelecidos sua espiritualidade. Ele retorna a este último ponto e prova, através das santas Escrituras, que nossa alma é um espírito.
A Vicente Vítor

Capítulo 1
Agostinho agradece humildemente as reprovações, mas as corrige com amabilidade.

Agora, permita-me expressar-lhe minhas convicções pessoais com toda franqueza e toda clareza que queira me inspirar Aquele que tem em suas mãos nossa vida e nossas palavras.
Você não teve medo de me qualificar e me dirigir diretamente uma dupla reprovação. Após ter, desde o início de seu livro, proclama do sua inexperiência e sua incapacidade, que você contrapôs à minha ciência e à minha capacidade, você nos oferece o espetáculo de um jovem repreendendo um idoso, um leigo criticando um bispo, cuja profunda ciência e impressionante capacidade acabou de louvar grandemente. Você me condenou, enfim, em matérias que acredita conhecer, enquanto que eu reconheço minha incompetência em resolvê-las.
Se sou sábio e hábil, eu ignoro. Ou melhor, eu sei de uma maneira, muito segura que não sou. Por outro lado, confesso sem hesitar que um ignorante pode saber algumas vezes o que um sábio ignora. Assim, só posso louvá-lo sinceramente por ter deixado de lado o respeito ao homem e ter dado preferência à verdade. Ou, pelo menos o que você acredita que seja a verdade, sem que você tenha jamais se aprofundado nela.
Se então, você foi imprudente ao se vangloriar de conhecer o que ignora, pelo menos você deu provas de liberdade e de independência, já que as considerações devidas à pessoa não lhe impediram de formular suas opiniões.
Só isso deve lhe fazer compreender que o maior de todos os nossos cuidados deve ser arrancar do erro as ovelhas de Jesus Cristo, já que as próprias ovelhas se reprovariam por esconder de seus pastores os vícios dos quais elas se acreditam culpadas.
Oh! Se você tivesse reprovado o que em meus escritos é realmente digno de reprovação! Não posso negar que meus próprios costumes e sobretudo muitas de minhas obras podem ser incriminadas sem nenhuma temeridade por parte de meus juízes. Se você se tivesse feito de censor nessas matérias, eu talvez pudesse lhe mostrar 0 que eu gostaria que você mesmo fosse, pelo menos com relação ao que você reprova em mim.
E, bem longe de me prevalecer de minha grande idade, em face de sua idade e de meu caráter, em face de sua inferioridade, eu próprio darei o exemplo da correção, bem convencido de que esse exemplo será tão saudável quanto mais humilde ele for.
Por que então você me reprova por coisas que, não apenas a humildade me ordena corrigir mas que a verdade me constrange ou a confessar ou a afirmar?

Capítulo 2
Vicente Vítor acha vergonhoso o ser humano não conhecer a si mesmo.

O que você me reprova é, primeiro, não ter ousado me pronunciar sobre a origem das almas dadas aos seres humanos desde Adão. Com efeito, confesso minha ignorância sobre este ponto.
Em seguida você me reprova ter afirmado, de uma maneira absoluta e segura, que a alma é um espírito e não um corpo. Sobre esse ponto você ainda me reprova duas coisas, ou seja, acreditar que a alma não é um corpo e acreditar que ela é um espírito.
De fato, você pensa que a alma é um corpo e não um espírito.
Pois bem! Eu quero hoje me justificar diante de você e, ao ler minha justificativa, você compreenderá, espero, de quais erros você mesmo tem que se justificar.

Eis o que você diz no livro onde você pronuncia meu nome: "Sei que a maior parte dos autores - e dos mais hábeis, com condições de se pronunciar guardaram silêncio ou se limitaram a generalidades, ao invés de dar às suas discussões uma solução franca e precisa. Esta foi, em particular, a impressão que produziram em mim, recentemente, as cartas de Agostinho, esse homem tão sábio, esse bispo tão ilustre. Que hesitações então não se acreditarão obrigados os modestos escritores que gostariam de tratar dessa matéria; como não sufocar neles mesmos suas próprias impressões; como não confessar publicamente que qualquer solução lhes parece impossível? Mas, creia-me, me parece muito absurdo que o ser humano ignore a si mesmo, quando lhe é dado conhecer todas as coisas. Onde buscar uma diferença entre o ser humano e o animal, se o ser humano não sabe dissertar sobre suas qualidades e nem sobre sua natureza? Não devemos então lhe aplicar com todo o rigor, estas palavras do Salmo: O homem que vive na opulência e não reflete é semelhante ao gado que se abate112?
Já que Deus não criou nada sem razão; já que ele fez do ser humano um animal racional, capaz de inteligência, que goza de razão e de uma viva sensibilidade; já que a divina Providência distribui todas as coisas com sabedoria, pesos e medidas; como admitir que a única coisa que ela recusou ao ser humano seja o conhecimento de si mesmo?
Não vemos a sabedoria do mundo realizar inutilmente suas investigações até sobre a própria verdade? Como ela não pode tocar sua própria natureza e sua entidade real, ela aponta sua tocha sobre tudo o que se aproxima da verdade e apresenta suas características.

112 Salmo 43:21.

Que vergonha então não seria para um católico ignorar a si mesmo e se proibir absolutamente qualquer pesquisa sobre este assunto!”

Capítulo 3
A ridícula e ofensiva pretensão de Vicente Vítor.

É nestes termos, tão eloquentes quanto explícitos, que você flagela nossa ignorância sobre o que diz respeito à natureza humana.
Você chega até mesmo a concluir. você e não eu. que se você ignora o que quer que seja que diz respeito a você, estamos no direito de compará-lo aos animais.

Sem dúvida, é fácil ver que é a nós que você faz alusão, ao citar estas palavras: O homem que vive na opulência e não reflete é semelhante ao gado que se abate, já que gozamos das honras da Igreja, enquanto que, até então, essas honras foram recusadas a você.
No entanto, não basta gozar das honras da natureza humana para que você tenha o direito de se preferir aos animais, aos quais, todavia, você se acredita assemelhado, se você ignora algo sobre o que diz respeito à sua natureza.
De fato, sua repreensão não se aplica somente àqueles que, como eu, ignoram a origem da alma. Também não estamos, sobre este ponto, na ignorância absoluta, pois sabemos que Deus soprou a face do primeiro homem e que ele se tornou alma viva113? Também não poderíamos saber isto por nós mesmos.
Sua repreensão, digo, se aplica também a outros, já que você diz: "No que o ser humano se diferencia dos animais, se ele não sabe dissertar sobre suas qualidades e nem sobre sua natureza?" Não diríamos que, em sua opinião, o ser humano deve conhecer tanto a extensão de suas faculdades e o fundo de sua natureza, que nada seja um mistério para ele? Sendo assim, se você não puder me dizer o número de fios de seus cabelos, você me dá o direito de compará-lo aos animais.
E se, apesar da perfeição que possamos atingir nesta vida, você nos permitir ignorar ainda alguma coisa no que toca à nossa natureza, queira nos dizer até que ponto você estende essa permissão. Você não nos permite, por acaso, ignorar a origem de nossa alma, embora permanecendo fiéis aos dados da fé, acreditemos firmemente que nossa alma nos foi dada por Deus e que ela não é da mesma natureza de Deus?
Você pensa que todos possam permanecer na ignorância em que você se encontra com relação à sua alma ou que se deve ter o conhecimento que você possa ter sobre isso? Se sua ignorância for um pouco maior do que a do outro, você lhe dará o direito de compará-lo aos animais. Se ele sabe um pouco mais do que você, você ainda lhe dará a honra dessa lisonjeira comparação?

113 Cf. Gênesis 2:7.

Diga-nos então o nível de ignorância que podemos ter, sem temer ser comparado aos animais. Apenas cuide bem para que aquele que sente sua ignorância sobre este difícil assunto não esteja mais acima dos animais do que aquele que se vangloria de saber o que ignora.
O ser humano, em sua natureza, é formado por um espírito, uma alma e um corpo. Assim, seria insensato recusar ao corpo a natureza humana. Os anatomistas, para chegarem a conhecer a natureza desse corpo, estudam, mesmo em pessoas vivas, os membros, as veias, os nervos, os ossos, a medula, o conjunto interior dos órgãos vitais e, no entanto, eles jamais nos compararam aos animais, embora ignoremos os detalhes de nosso ser.
Talvez você diga que eles comparam aos animais aqueles que ignoram, não a natureza do corpo, mas a natureza da alma. Então você não deveria se expressar como fez no início de sua obra. Ao dizer "Em que o ser humano difere do animal?” você não fala unicamente daqueles que não conhecem as propriedades e nem a natureza de sua alma, mas, em geral daqueles que ignoram as faculdades e a natureza de seu ser.
Ora, devemos considerar nosso corpo como fazendo parte de nossa natureza, o que não impede que possamos também discutir sobre cada uma das partes que compõem nossa natureza.
Se eu tivesse a pretensão de dizer tudo o que conheço sobre a natureza do ser humano, eu poderia compor vários volumes. No entanto, confesso sem hesitar que ignoro ainda muitas coisas sobre este tema.

Capítulo 4
Utilizemos uma argumentação séria e não uma injúria fácil

No livro precedente discutimos longamente sobre o alento humano. Esse alento pertence à natureza da alma, já que é ela quem o produz no ser humano? Ele pertence à natureza do corpo, já que é através da alma que o corpo é acionado para produzir esse alento? Ele pertence ao ar ambiente, sem o qual esse alento não poderia ser produzido? Ou, por fim, ele pertence a estas três coisas ao mesmo tempo; ou seja, à alma, que aciona o corpo; ao corpo, cujo acionamento recebe e devolve o alento; ao ar exterior, que alimenta o corpo ao penetrá-lo e o alivia ao sair dele?
Você é um homem letrado e eloquente e, no entanto, estas são coisas que você ignora, já que você acredita. como você mesmo disse, escreveu, ensinou a um imenso auditório que um odre aplicado em nossos lábios é inflado com nossa própria natureza, sem que nossa natureza experimente nenhuma perda. Para você se dar conta desse fenômeno, não há necessidade de consultar as páginas das divinas Escrituras; basta observá-lo você mesmo.
Como é então que você quer que, em um assunto que ignoro. a origem da alma eu recorra a você, que ignora o que você faz sem cessar através do movimento perpétuo de suas narinas e de seus lábios?
Agora que eu alertei você, queira Deus que você ceda imediatamente, ao invés de resistir a uma verdade cuja evidência lhe escapa.
Infle um odre, interrogue seus pulmões e antes de fazê-los dar uma resposta Contra mim, recolha a lição que eles lhe derem e a resposta verdadeira que eles lhe enviarem. Não falando ou discutindo, mas aspirando o ar e devolvendo-o para fora.
Apesar das virulentas reprovações com que você atacou minha ignorância sobre a origem da alma, eu não exalarei nenhum lamento.
Antes, eu darei graças a Deus, se você consentirem discutir esse assunto comigo sem injúrias, mas com razões verdadeiras.
Se você puder me ensinar o que ignoro, deverei me resignar pacientemente em ser golpeado; não somente com palavras, mas até mesmo com verdadeiros golpes dos punhos.

Capítulo 5
É mesmo necessário conhecer a origem da alma?

Quanto a esta matéria, confesso com sinceridade que desejo vivamente uma resposta conclusiva a uma ou outra destas questões: qual é a origem das almas e se podemos chegar a saber isso em nossa vida mortal.
A estas questões devemos aplicar as palavras do Eclesiástico: Não procures o que é elevado demais para ti; não procures penetrar o que está acima de ti. Mas pensa sempre no que Deus te ordenou114?
No entanto, eu gostaria que minhas dúvidas fossem esclarecidas; seja por Deus mesmo que sabe muito bem o que criou, seja por um doutor hábil que saiba o que diz e não por alguém que não conhece nem mesmo o alento que exala.
Não temos nenhuma lembrança de nossa primeira infância e você pensa que, sem uma revelação especial da parte de Deus, o ser humano pode conhecer como a vida lhe veio no seio de sua mãe. Sobretudo quando essa pessoa ignora a tal ponto a natureza humana, que ela não sabe, não somente o que ela experimenta interiormente, mas até mesmo os fenômenos exteriores que ela produz!
Então você se vangloria, filho bem-amado, de ensinar amimou a outros, como a vida se apodera de uma criança em seu nascimento!?
Você, que até aqui ignorava o que mantém a vida dos seres vivos e como a morte vem atingi-los, assim que são privados de seu alimento necessário!?
Você se vangloria de ensinar a mim ou a outros como os seres humanos recebem a vida!? Você que ignorava como os odres são inflados!?

114 Eclesiástico 3:22.

Já que você ignora a origem da alma, possa eu saber pelo menos se posso conhecê-la nesta vida! Se esta questão é daquelas que nos são interditadas escrutar sua profundidade, é de se temer que pequemos, não por ignorá-la, mas por querer resolvê-la. No entanto, se ela pertence à classe de questões muito elevadas, saibamos bem que não é no sentido de que nossa alma possa pertencer à mesma natureza de Deus e deixa de ser uma simples criatura, com todo o rigor deste termo.

Capítulo 6
Não é desonra ignorar tantos mistérios sobre nosso Corpo e nossa alma.

E se eu dissesse que dentre as obras de Deus há algumas que conhecemos mais dificilmente do que conhecemos o próprio Deus? A Trindade de Deus nos é conhecida através da revelação, enquanto que ignoramos inteiramente quantas espécies Deus criou e quantas delas puderam entrar na arca de Noé. A menos que você mesmo tenha averiguado!
Não lemos no Livro da Sabedoria: Se eles possuíram luz suficiente para poder perscrutar a ordem do mundo, como não encontraram eles mais facilmente aquele que é seu Senhor?
Dir-se-á que o que está em nós não pode estar acima do nosso alcance? De fato, nossa alma nos é mais íntima do que nosso corpo. Para chegar mais facilmente ao conhecimento do corpo, a alma procede exteriormente através dos olhos do corpo, do que interiormente por ela mesma.
O que existe nas partes mais secretas do corpo, se a alma não está lá? No entanto, se a alma conhece alguns dos princípios vitais mais secretos, é através dos olhos do corpo que ela chega a esse conhecimento.
No entanto, antes de conhecê-los ela os animava com sua presença. Era somente através dela que eles tinham o movimento e a vida; o que prova que é mais fácil para a alma vivificá-los do que conhecê-los.
Dir-se-á que o corpo é para a alma uma matéria mais elevada do que ela é para ela mesma? Eu suponho que essa alma queira saber em que momento a semente do homem se converte em sangue, em carne, em osso, em medula; quais são as espécies de veias e nervos que os numerosos desvios levam o sangue para todo o corpo, conectando as diferentes partes; se a pele deve ser considerada como os nervos e os dentes como os ossos, pois os dentes não têm medula como os ossos, como as unhas diferem dos ossos, dos quais possuem a durabilidade e dos cabelos, dos quais ela possui o crescimento, bem como a divisibilidade? Qual é a utilidade das artérias, destinadas à circulação, não do sangue, mas do ar? Se, eu digo, nossa alma quisesse se dar conta de todos esses fenômenos de seu corpo, lhe diriam: Não procures o que é elevado demais para ti; não procures penetrar o que está acima de ti?
E, quando se trata de sua própria origem, esse assunto não é muito elevado ou muito profundo para que ela possa abraçá-lo? Você vê como um absurdo impossível que a alma ignore se ela foi insuflada divinamente ou se ela é transmitida por via da geração, quando ela não tem, desse fato passado, nenhuma lembrança, quando isso é para ela confundido com os numerosos esquecimentos da infância, na medida em que ela não pôde ter disso a percepção e nem o sentimento.
E você não vê nenhum inconveniente e nenhum absurdo em que a alma não conheça seu próprio corpo; não somente os fenômenos passados, mas aqueles mesmos que se renovam sem cessar; que ela ignore se para viver no corpo ela deve mover as veias e mover também os nervos, para agir nos membros do corpo? Se é ela que opera esse movimento, por que os nervos só se agitam quando ela quer, enquanto que o sangue circula nas veias sem esperar o consentimento de sua vontade?
Em que parte do corpo se localiza a sede de seu império? É no coração, no cérebro, nas impressões e nos movimentos voluntários do cérebro ou é nas pulsações involuntária das veias e do coração? Se é do cérebro que ela comunica o sentimento e o movimento, por que ele experimenta sensações apesar dela, enquanto ela é perfeitamente a senhora do movimento dos membros como ela o quer? E, já que tudo isso só se passa no corpo através dela e com ela, por que ela ignora o que ela faz ou por qual princípio ela o faz?
Ela ignora tudo isso e você não faz disso um crime, enquanto que você a acusa de não saber de onde ou como ela é feita, quando não é ela que a faz?
Ninguém sabe como a alma opera nos corpo esses fenômenos.
Você não pensa em incluí-los entre as verdades muito elevadas e profundas?

Capítulo 7
Por que não conheço o que acontece em mim?

Apresenta-se ainda uma questão mais importante, em minha opinião: por que tão poucas pessoas podem se dar conta de fatos realizados por todos? Por que - talvez você me diga - há poucas pessoas que estudaram esse ramo da ciência médica chamada anatomia. Quanto aos outros, eles não conhecem por que não quiseram aprender.
Eu poderia lhe responder que muitos tentam, mas em vão, adqui rir essa ciência. Sua mente é tão obtusa que eles não podem compreender a explicação que lhes é dada do que se passa neles e por eles.
Mas há algo mais grave: por que eu não preciso que nenhuma arte venha me dizer que há no firmamento o sol, a lua e as estrelas, enquanto que preciso que a ciência me diga se o movimento que eu provoco em meu dedo parte do coração ou do cérebro ou de ambos ao mesmo tempo ou de nenhum desses dois órgãos? Eu não preciso que esse doutor venha me ensinar que esses astros estão a uma grande altura acima de mim, mas eu espero que alguém venha me dizer de onde parte esse movimento que se opera em mim.
Pode-se muito bem dizer que o pensamento reside em meu coração, mas o que eu penso, ninguém pode saber e nem dizer. Depois, se queremos saber em que parte do corpo reside esse coração no qual se forma o pensamento, precisamos perguntar a uma pessoa que não sabe o que pensamos.
Quando a lei nos ordena amar Deus com todo nosso coração, eu sei muito bem que não se trata dessa víscera escondida em nosso peito, mas do poder criador de nossos pensamentos e ao qual se dá o nome de coração, por que nos é tão impossível impedir esse poder de pensar, quanto nos é impossível impedir nosso coração de lançar sangue para todas as partes do corpo.
Por outro lado, é a alma o princípio de todos os sentidos do corpo.
Por que então, apesar das trevas mais espessas e embora fechemos os olhos à ajuda de outro sentido que se chama tato, podemos perfeitamente contar todos os nossos membros exteriores, enquanto que, apesar da presença interior de nossa alma, sem a qual nada teria vida e nem movimento, não conhecemos nenhuma das vísceras interiores que nos compõem. Eu não falo somente dos médicos empíricos, dos anatomistas, dos dogmáticos, dos metódicos, mas eu digo em geral, que o ser humano não se conhece mais do que ele conhece seu semelhante.

Capítulo 8
Somos misteriosamente um mistério para nós mesmos.

Aqueles que quiserem conhecer esses mistérios da natureza, poder-se-ia aplicar estas palavras: Não procures o que é elevado demais para ti; não procures penetrar o que está acima de ti.
Trata-se aqui, não do que não poderia ser tocado por nosso corpo, mas do que nossa inteligência não conseguiria compreender e do que o poder de nossa mente não conseguiria penetrar.
No entanto, eu não falo do céu, nem da dimensão dos astros, nem da extensão do mar e das terras, nem das profundezas do inferno. Existimos e não somos capazes de nos compreender. Toda nossa ciência deve reconhecer sua impotência e sua inferioridade com relação a nós.
Não podemos nos compreender e, no entanto, não existimos fora de nós mesmos.
Todavia, não somos comparáveis aos animais, embora não saiba- mos o que somos. No entanto, você pensa que devemos nos assemelhar aos animais, se esquecemos o que fomos. Mas, para esquecermos, não deveríamos ter sabido?
No momento em que falo, nem minha alma me foi transmitida por meus pais e nem ela me foi soprada por Deus. Seja qual for o modo empregado por Deus para me dá-la, ele só o empregou no mesmo momento de minha criação. Hoje ele não criou nada de mim e nem em mim. Minha criação é um fato passado, completamente decorrido. Eu não sei mesmo se tive o conhecimento desse fato e se o esqueci. Eu não posso nem mesmo sentir e saber quando ele aconteceu.

Capítulo 9
Nossa memória continua sendo um mistério.

Neste momento em que estamos, em que vivemos, em que sabemos que vivemos, em que estamos muito certos de nos lembrar, de compreender e de querer, neste momento em que nos vangloriamos de conhecer muito bem nossa natureza, ignoramos totalmente o poder de nossa memória, de nossa inteligência, de nossa vontade.
Um de meus amigos de infância, chamado Simplício, era dotado de uma memória tão prodigiosa, que, a nosso pedido, ele nos recitava imediatamente e sem hesitar, começando pelo fim, os últimos versos de cada um dos livros de Virgílio. Nós o pedíamos que recitasse os versos precedentes e ele o fazia igualmente e nós sempre acreditamos que ele poderia citar Virgílio inteiro na ordem inversa, pois nós o interrogávamos sobre todos os livros indistintamente e ele sempre nos respondia.
Tentamos o mesmo experimento com os discursos de Cícero, escritos em prosa e que ele havia decorado. Ele recitou e em sentido contrário tudo o que lhe pedimos. Como nós nos prodigalizamos em louvores e em admiração, ele nos jurou que nunca havia pensado que poderia fazer aquilo.
Sua mente, portanto, não conhecia essa capacidade de memória e jamais ateria conhecido, se não tivesse sido convidado a tentar o experimento. No entanto, antes de tentar esse experimento, ele era a mesma pessoa. Por que então ele desconhecia ele mesmo?

Capítulo 10
Não sabemos a força da nossa memória.

Frequentemente nos vangloriamos de conservar a lembrança desta ou daquela coisa e, nessa presunção, deixamos de recorrer às Escrituras.
Frequentemente acontece também de invocarmos essas lembramos é não conseguirmos. Então nos arrependemos de nossa presunção e negligência, ao confiar nossas impressões ao papel. Então, essas lembranças reaparecem, sem que nem mesmo a tivéssemos invocado.
Não éramos então os mesmos, quando provocávamos esses pensamentos em nós mesmos? No entanto, não somos o que éramos, quando não podemos revelar em nós os mesmos pensamentos.
Por que então? Eu ignoro como escapamos de nós mesmos e como voltamos a nós mesmos. Somos outros? Estamos em outro lugar, quando procuramos sem encontrar o que confiamos à nossa memória? E quando, após não termos conseguido chegar até nós, como se estivéssemos em outro lugar, nós nos encontramos de alguma forma, quando encontramos o que procurávamos, onde nós procuramos, se não foi em nós mesmos? E o que procuramos, se não foi nós mesmos? Como se não estivéssemos em nós ou tivéssemos saído de nós mesmos.
Se você olhasse direto para um abismo assim, você não seria capaz de tremer? E esse abismo não é outra coisa além de nossa própria natureza. Não nossa natureza como ela podia ter sido outrora, mas tal como ela é agora. No entanto, mesmo neste sentido, ainda temos muito que procurar compreender nessa natureza que nos toca de tão perto.
Muitas vezes, ao me ver propondo uma questão, eu me vanglorio de poder resolvê-la através da reflexão. Eu reflito e a resposta não vem.
Outras vezes, no momento em que eu menos pensava, essa resposta se apresenta a mim. Concluo disso que as forças de minha inteligência me são desconhecidas e creio também que você não as conheça melhor.

Capítulo 11
Ignoramos a força de nossa vontade.

Você cobre minhas confissões com um orgulhoso desdém e chega até mesmo, por causa disso, a me comparar aos animais.
Da minha parte, eu o convido primeiro a conhecer melhor nossa enfermidade comum, na qual a virtude se aperfeiçoa115. Se você não concordar, eu o intimo, pois não quero que, glorificando-se por conhecer o que não conhece, você se coloque na impossibilidade de conhecer
a verdade.

115 Cf. 2Coríntios 12:9.

Estou convencido de que é esse fenômeno que você procura compreender, sem poder consegui-lo. No entanto, você procuraria, se não tivesse a esperança de encontrar? Só isso me convence de que você não conhece as forças de sua inteligência, já que, longe de confessar como eu a nossa ignorância comum, você proclama em alto e bom som que conhece sua natureza.
O que direi da vontade, na qual confessamos sem hesitar a existência do livre arbítrio? O bem-aventurado apóstolo São Pedro quis dar sua vida por Jesus Cristo116. Ele o quis sinceramente e Deus mesmo foi testemunha de sua boa vontade. Mas essa própria vontade não conhecia a medida de suas forças. O perigo se apresentou e esse apóstolo. para quem Jesus Cristo era realmente o Filho de Deus fugiu e se escondeu vergonhosamente.
Nós sentimos o querer e o não querer. Mas, a menos que nos enganemos, confessemos, querido filho, que ignoramos o que pode nossa vontade e até mesmo se ela é boa. Não sabemos nem mesmo quais são suas forças e nem a quais provas ela cederá ou não cederá.

116 Cf. João 13:37.

Capítulo 12
Os testemunhos do salmista e de São Paulo.

Reconheça então que, sem remontar ao passado, muitos fenômenos atuais de nossa natureza nos escapam; não somente no que diz respeito ao corpo, mas até mesmo ao espírito. Segue-se, no entanto, que possamos ser comparados aos animais? No entanto, você me inflige essa vergonha e essa degradação, por que confesso minhas incertezas sobre um fato há muito tempo acontecido: a origem de minha alma.
Mas, se ignoro alguma coisa, eu não ignoro tudo, pois sei que minha alma me foi dada por Deus e que ela não é da mesma substância de Deus.
Quando se trata da natureza de nosso espírito e de nossa alma, como enumerar tudo o que ignoramos? Tudo o que podemos fazer é dizer, como o Salmista: Conhecimento assim maravilhoso me ultrapassa, ele é tão sublime que não posso atingi-lo117. Ele fala do conhecimento que Deus tem de sua criatura, pois essa criatura não poderia conhecer a si mesma.
O Apóstolo foi arrebatado até o terceiro céu e lá ele ouviu palavras inefáveis, que não é dado ao ser humano repetir e ele não soube dizer se esse arrebatamento aconteceu com ou sem seu corpo118. Devia ele temer que você o comparasse aos animais? Ele sabia que seu espírito havia sido arrebatado ao terceiro céu, bem no centro do paraíso. Ele estava em seu corpo? Ele não sabia. Paulo não esteve propriamente no terceiro céu e nem no paraíso, enquanto ele permaneceu composto de corpo, alma e espírito. Ele tinha conhecimento dessas coisas profundas e sublimes, absolutamente estranhas à sua natureza e o que era mesmo a sua natureza ele ignorava. Como não se espantar que, diante do conhecimento de mistérios tão profundos, ele tenha demonstrado uma ignorância tão grande dele mesmo?

117 Salmo 138:6.
118 Cf. 2Coríntios 12:2.

Por fim, se a própria Verdade não tivesse se pronunciado, quem acreditaria em palavras como estas: Não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém119? Nossa grande preocupação deve recair então sobre as coisas que estão diante de nossos olhos.
Você me compara aos animais por que me esqueci do que já está muito distante de mim: a origem de minha alma. Você não ouve então o Apóstolo dizer: Consciente de não tê-la ainda conquistado, só procuro isto: prescindindo do passado e atirando-me ao que resta para frente, persigo o alvo, rumo ao prêmio celeste, ao qual Deus nos chama, em Jesus Cristo120?

119 Romanos 8:26.
120 Filipenses 3:13 e 14.

Capítulo 13
São Paulo oferece a confirmação com seu exemplo.

Você vai então rir de mim e me comparar aos animais, por que citei estas palavras: Não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém? Tolerarei mais uma vez seu desdém.
De fato, a própria prudência nos diz para nos preocuparmos mais, como futuro do que com o passado e dirigir nossas preces, não para o que nós fomos, mas para o que nos espera no futuro. Disso se segue que é muito mais vergonhoso para nós não saber o que pedir do que ignorar nossa origem.
No entanto, antes de me jogar pedra, revele suas lembranças e lembre-se onde você leu estas palavras, pois seu desdém poderia recair sobre uma pessoa que é muito cara a você. De fato, foi o próprio Apóstolo das Nações que pronunciou estas palavras: Não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém. E estas palavras ele confirmou com seu exemplo. Não foi, sem o saber, contra utilidade e a perfeição de sua salvação que ele pediu a Deus que lhe retirasse o espinho de sua carne, que havia sido dado a ele para livrá-lo do perigo do orgulho que o fazia correr a grandeza de suas revelações? E por que o Senhor o amava, lhe foi recusada a graça que ele só pediu por ignorância121.
No entanto, após haver dito: Não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, o mesmo Apóstolo acrescenta em seguida: Mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que perscruta os corações sabe o que deseja o Espírito, o qual intercede pelos santos, segundo Deus122.
Observe estas duas expressões. Recebemos o Espírito que clama “Abba, Pai!” e neste Espírito clamamos: Abba, Pai. Vemos claramente que o Apóstolo queria nos mostrar em que sentido o Espírito clama em nós, ou seja, que ela nos faz clamar.

121 Cf.2Coríntios 12:7-9.
122 Romanos 8:26 e 27.
123 Gálatas 4:6.

Quando ele quiser, que esse Espírito me ensine, se ele achar que é útil para mim, qual é a origem de minha alma. Eu não quero, sobre esse assunto, outro mestre que não seja o Espírito divino que escrutina as profundezas da divindade e eu recuso o ensinamento de um homem que não sabe qual é o sopro que infla um odre. Essa ignorância de sua parte não me autoriza, no entanto, a compará-lo aos animais, pois sua ignorância sobre este ponto é fruto da inadvertência e não de uma impossibilidade real.

Capítulo 14
Interessa mais o destino do que a origem de nosso ser.

Você mesmo reconhece que as questões tocantes à origem da alma são muito mais relevantes do que aquelas que tem por objeto o alento que aspiramos e expiramos. No entanto, tanto para um quanto para outro você invoca o impositivo testemunho das santas Escrituras, nas quais a fé nos revela o que os esforços do espírito humano são impotentes para nos ensinar.
Quantas coisas passam despercebidas por nós e que nos são reveladas pelas observações científicas dos médicos e pelo estudo atento dos fenômenos da vida, mesmo vegetativa! Mas, que abismo para chegar a saber que a carne ressuscitará para viver eternamente!
Seria lindo sair da ignorância em que estamos sobre a memória, a inteligência e a vontade com as quais a vontade é dotada. Mas, bem melhor ainda é saber que a alma que foi regenerada e renovada em Jesus Cristo gozará na eternidade das inefáveis delícias da felicidade! Ora, esse eminente destino de nossa alma só nos podia ser conhecido através do ensinamento dos divinos oráculos.
Mas, por que se glorificar por encontrar nesses divinos oráculos uma solução definitiva sobre a origem da alma? Sendo assim, não seria à natureza humana que você deveria atribuir a glória do conhecimento que o ser humano pode ter de suas qualidades e de sua natureza, mas unicamente à condescendência de Deus.
Você não disse: "Se o ser humano não se conhece, no que ele se diferencia dos animais?” Se devemos ter esse conhecimento somente pela distância que nos separa dos animais, por que procurar na leitura um conhecimento que já possuímos?
Da mesma forma como não é preciso que você me leia nada para que eu saiba que vivo, pois é na minha própria natureza que eu encontro esse conhecimento, assim também, se é em minha natureza que eu descubro a origem de minha alma, por que citar, sobre este assunto, passagens das Escrituras? Para se distinguir dos animais é preciso absolutamente ler as Escrituras?
Não é em virtude de nossa própria criação e antes de qualquer conhecimento literário que somos distintos dos animais? Como então você ousa afirmar que, pelo próprio fato de se distinguir dos animais, o ser humano sabe dissertar e resolver a questão da origem da alma, enquanto que, por outro lado e por uma contradição manifesta, você afirma que, para adquirir sobre este tema um conhecimento certo, é preciso a revelação sobrenatural, sem a qual todas as nossas forças humanas não bastariam?

Capítulo 15
É preciso saber que não se sabe.

Sobre este ponto, você também está no erro. De fato, os testemunhos divinos que você cita em apoio à sua proposição, não a provam de forma alguma.Tudo o que eles provam é que nossas almas nos foram dadas, criadas e formadas por Deus. Esta convicção, afinal, nos é absolutamente necessária para imprimir à nossa vida uma santa direção. Mas eles não nos dizem de que modo essas almas nos são dadas. É por via de uma insuflação nova e especial, como foi feito para a alma do primeiro ser humano? É por via de transmissão original?
Leia atentamente o que eu escrevi sobre isso ao nosso irmão Renato124. O que eu disse então, eu me abstenho de repetir. Para agradar você, eu deveria me pronunciar definitivamente, como você mesmo fez.

124 Livro I. cap. 17.

Eu devo me envolver nos inextricáveis embaraços que o levou a emitir contra a fé católica proposições tais que, se você se der ao trabalho de estudá-las seriamente, você logo compreenderá o quanto lhe teria sido útil saber que você ignora que você ignora e o quanto você seria feliz em sabê-lo hoje em dia?
Se é a inteligência que agrada você na natureza humana, por que sem a inteligência seríamos semelhantes aos animais, compreenda então que você não compreende, para que você não se tome incapaz de compreender qualquer coisa. E evite menosprezar toda pessoa que, por ter o sentido verdadeiro do que não compreende, compreende antes de tudo que não compreende.
Quanto às palavras do Salmista: O homem que vive na opulência: ele é semelhante ao gado que se abate125, leia-as e trate de compreender sua razão e seu alcance, se você quer se poupar de sua vergonhosa aplicação, antes de jogá-las orgulhosamente sobre quem quer que seja.
Este oráculo é dirigido a todos aqueles que não veem outra vida que não seja a vida camal e que não esperam nada após a morte, como os animais não tem que esperar. Mas, de forma alguma elas se aplicam àqueles que confessam que sabem o que sabem e que ignoram o que ignoram, provando assim que o conhecimento que eles possuem de sua própria fraqueza é um remédio seguro contra toda presunção do orgulho.

125 Salmo 48:13.

Capítulo 16
Respeite-se os segredos de Deus.

Eu peço então, meu filho, que sua presunção juvenil não bata tão forte em minhas senis hesitações. Após ter confessado que essa questão sobre a origem das almas não me foi esclarecida por Deus e nem por nenhum ser humano espiritual e que, desta forma, não posso resolvê-la, eu me sinto disposto a afirmar que Deus nos escondeu essa verdade como ele nos escondeu muitas outras, muito mais do que me expor à afirmar imprudentemente uma proposição cuja obscuridade seria tal que, não apenas eu não conseguiria fazer com que ela fosse compreendida pelos outros, como nem mesmo eu a compreenderia.
Muito menos eu consentiria em fornecer munição aos heréticos que afirmam a inocência perfeita das almas das crianças, com medo de fazer recair sobre Deus a responsabilidade dessa falta. Não seria melhor declarar essas almas inocentes, do que acusar Deus de tê-las tornado pecadoras, ao uni-las a uma carne pecadora, quando ele sabia, com sua presciência divina, que o banho da regeneração não lhes seria concedido e que elas não receberiam nenhuma graça do batismo que as arrancaria da eterna danação?
De fato, quantas crianças morrem antes de terem recebido o batismo? Para me livrar dessa dificuldade, eu não gostaria de manter, como você, este discurso: "A alma mereceu ser maculada pela carne e se tornar pecadora, embora não tendo até então nenhum pecado que a fizesse merecer tal castigo”. E ainda: "O pecado original é apagado fora do batismo". E, por fim: "O reino dos céus é concedido, no final, àqueles que não foram batizados”.
Se eu não visse nestas palavras um veneno mortal para a fé, talvez eu não temesse me pronunciar definitivamente sobre este tema. Até o momento eu acho mais sábio me manter na hesitação, do que me pro- nunciar sem saber.
Eu me atenho ao que o Apóstolo ensinou, de uma maneira bem clara e bem formal. Foi por causa de um só homem que todos os seres humanos que nascem de Adão são submetidos à condenação126, a não ser que eles renasçam em Jesus Cristo, através do sacramento da regeneração que ele próprio instituiu e que todos devem receber antes de morrer, se querem ter parte nessa vida eterna à qual Deus os predestinou, em sua infinita misericórdia.
Quanto àqueles que são predestinados à morte eterna, Deus lhes aplicará o castigo na medida mais rigorosa da justiça, não somente pelos pecados atuais que eles teriam cometido voluntariamente, mas também somente pelo pecado original, se eles só são culpados desse pecado.
Esta é para mim a solução dessa questão. Por mais secretas que sejam, aliás, as obras de Deus, antes de tudo eu quero conservar toda a integridade de minha fé.

126 Cf. Romanos 5:18.

Capítulo 17
A alma pode ser uma substância corpórea?

Isto posto, na medida em que Deus me conceder a graça, devo responder a interpelação sobre a alma que você me dirigiu diretamente.
Eis suas palavras: "Apesar da opinião contrária, notoriamente defendida pelo douto bispo Agostinho, não admitimos que a alma seja incorpórea e espiritual”.
Antes de tudo, discutamos então a questão de saber se, como eu defendo, a alma é um espírito, ou se, como você defende, ela é corpórea. Veremos em seguida se, nas Escrituras, essa alma nos é apresentada como um espírito, embora geralmente a palavra espírito só designe uma faculdade da alma e não a alma inteira.
Primeiramente, eu gostaria de saber qual é a definição que você dá de corpo. Se o corpo, ao seu ver, deve ser composto de membros carnais, nem a tera, nem o céu, nem a pedra, nem a água, nem os astros, nem todas as coisas deste gênero serão corpos. Se por corpo você entende tudo o que pode ser aumentado ou diminuído e que ocupa um espaço mais ou menos restrito em extensão, todos os objetos citados são corpos. O ar é um corpo, a luz visível é um corpo e, pode-se dizer como o Apóstolo: há corpos celestes e corpos terrestres127.

127 Cf. ICoríntios 15:40.

Capítulo 18
A incorporeidade da alma.

Desta forma, a alma é um corpo? Esta é uma questão muito delicada e muito sutil.
Você afirma primeiramente que Deus não é um corpo e eu o felicito por esta afirmação. Por que então me mergulhar novamente na pre- ocupação, quando você diz: "A alma é espiritual, no sentido de que como pensam alguns — não passa de uma vacuidade vazia, uma substância aérea e sutil?” A julgar por estas palavras, parece que você acredita que tudo o que não tem corpo não passa de uma substância inútil.
Se é assim, como você ousa dizer que Deus não tem corpo, como você não teme que se conclua disso que ele não passa de uma substância inútil? Afirme, como você fez, que Deus não tem corpo, mas não acrescente que ele não passa de uma substância inútil. Disso se concluirá que tudo o que não tem corpo não passa de uma substância inútil.
Por consequência, pode-se afirmar que a alma é incorpórea sem, que se entenda com isso que ela não passa de uma substância inútil e fútil, já que Deus é incorpóreo, sem que com isso ele não passe de uma inutilidade vazia.
Compreenda então que há uma imensa diferença entre o que eu disse e o que você diz que eu disse. Estou longe de sustentar que a alma é uma substância aérea, pois eu admitiria com isso que ela é um corpo.
De fato, o ar é um corpo; pelo menos é esta a inabalável convicção de todos aqueles que, falando dos corpos, compreendem o que dizem. Agora, por que eu disse que a alma é incorpórea, você conclui que afirmei que ela é uma substância aérea. É o contrário que você deveria concluir, já que, se eu disse que ela não é um corpo, ela não é, portanto, aérea.
Por outro lado, o que se enche de ar, não pode ser uma vacuidade.
Como os odres mencionados por você não o fizeram compreender isso? Quando eles se enchem, não é pelo efeito do ar que se coloca alí?
Tampouco eles podem ser uma acuidade, já que seu peso pode ser medido.
Talvez você acredite haver uma diferença entre o vento e o ar.
Mas o vento não passa de ar em movimento, como é fácil se convencer ao agitar um avental. Por outro lado, pegue um vaso que você acredite estar vazio e, se você quer se convencer de que ele está cheio, mergulhe aabertura dele na água e você observará que, por causa da pressão do ar que o preenche, o líquido não poderá penetrá-lo. Ao contrário, se você colocar a abertura horizontalmente à superfície do líquido ou um pouco de lado, o líquido se precipitará para ele, ao mesmo tempo em que o ar escapa pela parte da abertura que ficou livre. É mais fácil realizar este experimento do que descrevê-lo. Mas, por que insistir nisso por mais tempo?
Compreendendo ou não que o ar é um corpo, você deve admitir que eu não disse que a alma é aérea, mas absolutamente incorpórea.
Esta propriedade você atribui a Deus, do qual, no entanto, você não ousa dizer que ele seja uma inutilidade e em quem você deve reconhecer uma substância onipotente e imutável.
Por que então, se a alma é incorpórea, temeríamos que ela não passe de uma vacuidade vazia, já que Deus é incorpóreo sem ser por isso uma vacuidade vazia? Concluo disso que um Deus incorpóreo pôde criar uma alma incorpórea, como um ser vivo pode gerar um ser vivo, embora um ser imutável só possa criar um ser cambiante e embora um ser onipotente só possa criar uma natureza bem inferior à sua própria.

Capítulo 19
Corpo, alma e espírito possuem a mesma natureza?

Seguramente, não vejo por que você quer fazer da alma, não um espírito, mas um corpo. Seria por que, em uma de suas epístolas, o Apóstolo distingue, nestes termos, a alma do espírito: Que todo o vosso ser, espírito, alma e corpo, seja conservado irrepreensível para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo128. Mas então você também tem razão para sustentar que a alma não é um corpo, já que o Apóstolo a distingue igualmente do corpo. Se você afirma que a alma é um corpo, embora ele tenha falado textualmente do corpo, isso permite supor que ela também seja um espírito, embora ele tenha falado textualmente em espírito.

128 1Tessalonicenses 5:23.

De fato, você tem muitas razões para admitir que a alma é um espírito, mais do que um corpo, já que você defende que o espírito e a alma são de uma única e mesma substância, enquanto que nega essa unidade de substância entre a alma e o corpo. Como então a alma pode ser um corpo, já que sua natureza é diferente da natureza do corpo? E como a alma não seria um espírito, já que a alma e o espírito são de uma única e mesma natureza?
Se você quisesse ser coerente com você mesmo, você não deveria concluir que o espírito é um corpo? Se você admite que o espírito não é um corpo, mas que a alma é, não diga que o espírito e a alma são de uma única e mesma substância. No entanto, você diz isso e afirma de uma maneira absoluta.
Se então, a alma é um corpo, diga igualmente que o espírito é um corpo, pois, se não for assim, não é mais posseGível admitir que a alma e o espírito sejam de uma única e mesma substância.
Consequentemente, as três coisas enumeradas pelo Apóstolo — espírito, alma e corpo — são simplesmente três corpos; observando, no entanto, que o corpo, que chamamos também de carne, é de uma natureza diferente da alma e do espírito.
Por fim, é destes três corpos. sendo que dois deles são da mesma substância, enquanto que o terceiro é de uma substância diferente — que é composto o ser humano inteiro, formando uma única coisa e uma única substância.
Nada é mais explícito do que uma afirmação assim e, no entanto, mesmo admitindo que o espírito e a alma são de uma única e mesma substância, você não quer que ambos sejam designados pelo termo espírito. Pelo contrário, se for a alma e o corpo, você nega que eles sejam de uma única e mesma substância e, no entanto, você pretende que se deva dar a ambos o nome de corpo.

Capítulo 20
Os absurdos sobre os supostos homens "interior, exterior e íntimo”.

Não vou insistir mais, para que a questão que nos ocupa não pareça uma simples questão de palavras. Vejamos então se o homem interior é uma alma, um espírito ou, ao mesmo tempo, uma alma e um espírito.
Se avalio bem seus escritos, você define o homem interior como sendo uma alma. De fato, estas são suas palavras: "Essa substância, inicialmente imperceptível, se coagula pouco a pouco, de maneiras a se tornar um corpo, englobado no corpo exterior pela força e o sopro de sua natureza. Foi assim que apareceu o homem interior, envolvido como que em um envelope corpóreo e imprimindo a esse envelope as forma-se os hábitos exteriores correspondentes à sua própria natureza”.
Você conclui: "Foi então o sopro de Deus que fez a alma. E mais, esse sopro se tornou alma de forma substancial, corpórea por sua natureza e perfeitamente semelhante ao seu corpo”.
Daí você passa ao espírito: "Essa alma, que tem por origem o sopro de Deus, não pôde existir enquanto não era dotada do sentido próprio e do intelecto íntimo que chamamos espírito”. Se não me engano, o homem interior é a alma; o homem íntimo é o espírito, que é interior à alma, como a alma é interior ao corpo.
Da mesma forma então que o corpo, no vazio interior que ele apresenta, recebe, segundo você, outro corpo, chamado alma, assim também, a alma apresenta um certo vazio, no qual ela recebe um terceiro corpo, chamado espírito. Desta maneira, podemos distinguir o homem exterior, o homem interior e o homem íntimo. Você vê então a que absurdos você se expõe, ao sustentar que a alma é corpórea?
Queira então me dizer o que será restaurado pelo conhecimento de Deus, segundo a imagem Daquele que a criou?129 É o homem interior ou o homem íntimo? Eu ouço bem o Apóstolo falar do homem interior e do homem exterior, mas eu não o vejo em nenhum lugar falar do homem íntimo ou interior ao homem interior.

129 Cf. 1Colossenses 3:10.

Seja como for, escolha aquele que você deseja destinar para ser restaurado segundo a imagem de Deus. Como então poderá receber essa imagem aquele que já tem a imagem do homem exterior? De fato, se o homem interior já escorreu para os membros do homem exterior e se coagulou ali (eu me sirvo desta expressão tal qual você a empregou, como se realmente esse corpo formado de poeira tivesse sido fundido), como o homem pode ser restaurado à imagem de Deus, se a primeira forma que lhe foi impressa pelo corpo continua absolutamente a mesma? Ele possuirá então duas imagens: uma que veio do alto, ou seja, de Deus e outra que veio de baixo, ou seja, do corpo, absolutamente como encontramos nas moedas a cara e a coroa?
Talvez você diga que a alma assume a imagem do corpo e o espírito recebe a imagem de Deus, já que a alma se aproxima mais do corpo, enquanto que o espírito toca de mais perto a Deus.
É então o homem íntimo que será reformado à imagem de Deus e não o homem interior? Desculpa inútil, De fato, se esse homem íntimo está espalhado por todos os membros da alma, como a alma está espalhada por todos os membros do corpo, é certo que, através da alma, ele já assumiu a imagem do corpo e recebeu dessa alma uma forma toda especial.
Se então esse homem íntimo conserva a imagem do corpo, como ele receberá a imagem de Deus? A não ser que, como eu já disse, ele se pareça com as moedas e possua duas imagens: uma superior e outra inferior.
Estes são os absurdos aos quais você reduz mal oubem as ideias camais que você aporta ao estudo da alma.
Por outro lado, como você mesmo concorda, Deus não é um corpo. Como então um corpo pode receber a imagem de Deus?
Eu te rogo, irmão bem-amado, Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito130 e não julgue segundo a carne, pois isto é a morte131.

Capítulo 21
Os seres incorpóreos também têm forma.

Você diz: "Se a alma não tem corpo, o que podia então o rico mau reconhecer no inferno? No entanto, ele reconheceu Lázaro e reconheceu Abraão132, Como então ele pôde reconhecer Abraão, que estava morto há muito tempo?

130 Romanos 12:2.
131 Cf. Romanos 8:6.
132 Cf. Lucas 16:19 e 31.

Você supõe então que se pode reconhecer o ser humano através da forma de seu corpo. Suponho também que, para se reconhecer, você se olha frequentemente no espelho, por medo de que não possa mais se reconhecer, caso venha se esquecer da forma de seu rosto.
Diga-me, a pessoa que melhor conhecemos não somos nós mesmos? No entanto, de todos os rostos que nos rodeiam, é o nosso o que menos vemos. Depois, quem poderia reconhecer Deus, já que você afirma sem hesitar que ele é um espírito? Se, como você diz, só se pode reconhecer pela forma do corpo ou, em outros termos, se só os corpos podem ser reconhecidos?
Que se coloque a um cristão estas questões tão graves e tão difíceis, eu não creio que ele tenha se esquecido tanto dos oráculos divinos, para dizer: "Se a alma é incorpórea, é necessário que ela não tenha forma", Você se esquece de que o Apóstolo nos fala mesmo da forma da doutrina?133 Você conclui então que a forma da doutrina seja corpórea?
Você se esqueceu então que o Apóstolo nos diz que Jesus Cristo, antes da encarnação, estava na forma de Deus?134 Então, contrariamente, como você ousa dizer: "Se a alma é incorpórea, é necessário que ela não tenha forma"? Deus é um espírito e, no entanto, ouvimos falar da forma de Deus, o que não o impede de se expressar como se a forma só existisse para os corpos.

133 Romanos 6:17. Gratias autem Deo quad fuistis servi peccati, obedists autem ex corde in cam formam doctrine, in quam traditi estis.
134 Filipenses 2:6. Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo.

Capítulo 22
Os substantivos abstratos.

Você acrescenta: "Os nomes devem ir até onde não há mais formas a distinguir. No momento em que não há mais designação de pessoas, toda denominação nominal não tem mais razão de ser”. Daí você tenta provar que a alma de Abraão era corpórea, já que o rico mau pôde dizer: "Pai Abraão”.
Eu acabo de dizer que pode haver forma onde não há corpo. E se as designações nominais não tem nenhuma razão de ser onde não há corpo, queira, por favor, enumerar os seguintes nomes: O fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança135.
Diga-mê se você não tem nenhum conhecimento destas virtudes, cujos nomes você pronuncia ou se o conhecimento que você tem delas, você o representa como delineamentos de corpos. Diga-me somente qual figura, quais membros, que cor tem a caridade. Portanto, se essa virtude não é inútil, ela só poderia lhe parecer alguma coias de inútil e de imaginária.
"Só se poderia implorar socorro daquele que nos aparece sob uma forma corpórea", você diz. Se as pessoas ouvirem você, ninguém daqui por diante implorará o socorro de Deus, já que ninguém vê nele um ser corpóreo.

Capítulo 23
O antropomorfismo.

Você continua: "Nesta passagem, os membros da alma nos são descritos como se ela fosse um corpo verdadeiro". Também você afirma: "que o olho designa a cabeça inteira; a língua, o palato e a garganta; o dedo, a mão”, já que é dito que o rico mau levanta os olhos e depois diz: “Envia Lázaro para que ele mergulhe na água a extremidade de seu dedo e que ele refresque minha língua".

135 Gálatas 5:22 e 23.

No entanto, como você afirma que Deus é incorpóreo e temendo que se lhe contraponha as passagens onde são mencionados os membros de Deus e que se conclua contra você que Deus é, portanto, também um ser corpóreo, você se precavem e diz: "Esses membros designam unicamente, em Deus, virtudes e forças incorpóreas”.
Mas, com que direito, eu lhe pergunto, você pode sustentar que esses nomes de membros não exigem que Deus tenha um corpo, já que eles são exigidos para a alma? Devemos considerar essas expressões no rigor da letra quando se trata de uma criatura, enquanto que só se deve ver uma figura de linguagem quando se trata do Criador?
Você vai também nos dar asas corpóreas? Pois não é do Criador, mas da criatura, ou seja, do ser humano, que é dito: "Se prendo minhas asas como a pomba"136.
Se você conclui que o rico mau tinha uma língua corpórea, por que ele pede que Lázaro refresque sua língua, conclua igualmente que nesta vida nossa língua tem mãos corpóreas, pois está escrito: "A morte e a vida estão nas mãos da língua" 137.
Eu suponho que o pecado não lhe parece ser uma criatura e nem um corpo. Por que então ele tem uma face? Não é dito nos Salmos: "Não há paz para meus ossos, em face dos meus pecados"138.

136 Cf. Salmo 138:9. Si sumpsero pennas meas diluculo e habitavero in extremis maris.
137 Cf. Provérbios 18:21. Mors et vita in manu lingua; qui diligunt eam comedent fructus ejus.
138 Cf. Salmo 37:4. Nam est pax ossibus meis, a facie peccatorum meorum.

Capítulo 24
O seio de Abraão.

Você toma em um sentido corpóreo o seio de Abraão que é mencionado nessa mesma parábola e o vê como designando o corpo inteiro.
Ora, devo confessar a você que esta interpretação me parece uma brincadeira e uma piada de sua parte e não a obra de uma pessoa séria e respeitosa.
Com efeito, eu posso supô-lo tão insensato para admitir que o seio corpóreo de um único homem suporte um número tão grande de almas, ou melhor e aqui eu utilizo a sua linguagem, a imensa multidão dos corpos de todos os santos que os anjos transportam, como eles transportaram Lázaro?
Talvez você me diga que só a alma de Lázaro mereceu chegar até o seio de Abraão. Mas, se você não está brincando, se você não está fazendo um jogo infantil, você deve ver nesse seio de Abraão a morada suprema e misteriosa do repouso eterno desfrutado por Abraão.
É por isso que Abraão nos é apresentado como sendo o pai, não somente de Lázaro, mas de um grande número de nações, às quais a fé desse santo patriarca é proposta como o mais belo modelo a imitar. É neste sentido também que Deus quer ser chamado de o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, embora ele seja o Deus de todos os povos da terra.

Capítulo 25
A imaginação e a memória provam a imaterialidade da alma.

Não conclua do meu raciocínio que eu admito a impossibilidade, para a alma de uma pessoa morta ou adormecida, de experimentar sensações agradáveis ou tristes, de forma absoluta, como se ela as sentisse em um corpo real.
No sono, quando experimentamos algum sofrimento ou alguma dor, conservamos perfeitamente nossa personalidade e se essas imagens penosas não desaparecessem quando despertamos, nós sentiríamos a tristeza mais amarga.
No entanto, seria preciso nunca ter refletido seriamente, para supor que todos esses objetos imaginários, sobre os quais nós caminhamos em nossos sonhos e imaginação, são corpos reais.
Não é mais justo dizer que, se a alma fosse um corpo, ela não poderia apreender pelo pensamento as imagens desses numerosos objetos, tais como eles nos aparecem?
Eu não suponho, de fato, que você chegue a sustentar que são realmente corpos que nos aparecem em sonho, quando sonhamos com o céu, a terra, o mar, o sol, a lua, as estrelas, os rios, as montanhas, as árvores, os animais. Acreditar que são mesmo corpos que nos aparecem assim na visão, seria o cúmulo do absurdo. No entanto, como essas visões se parecem mesmo com corpos!
Podemos incluir na mesma classificação todas as aparições que podem nos vir de Deus, seja durante um sonho, seja durante um êxtase.
Mas, qual é a natureza dessas aparições, qual é sua matéria, é que ninguém pode encontrar e nem conhecer. Tudo o que sabemos é que essas aparições são espirituais e não corpóreas. Não estão aí corpos, mas representações de corpos, formadas pelo pensamento e contidas nas profundezas da memória. Elas saem assim, não sei de que cantos secretos e sob não sei que forma espantosa e vem assim se colocar, de alguma forma, sob nossos olhos.
Ora, se à alma fosse um corpo, ela poderia apreender pelo pensamento essas grandes e vastas imagens e a memória poderia contê-las?
Você mesmo não disse que "A substância corpórea da alma não ultrapassa os limites exteriores do corpo"?
Agora, eu pergunto: pelo efeito de que grandeza, que não lhe pertence, a alma poderia conter as imagens desses corpos prodigiosos, desses espaços imensos, dessas regiões sem limites? E não seria espantoso, se ela aparecesse para ela mesma, na semelhança de seu corpo, se ela mesma não tem corpo?
De fato, o corpo com o qual ela aparece no sonho não é um corpo real. No entanto, é com essa imagem ou simulacro de seu corpo que ela percorre lugares conhecidos e desconhecidos e experimenta todas as impressões de alegria e dor.
Eu não penso, afinal, que você teve a imprudência de dizer que essa representação de corpos e membros, tal como nos aparecem em sonho, seja um corpo verdadeiro. Sendo assim, seria preciso ver como verdadeira e real a montanha cuja encosta a alma parece escalar, a casa na qual ela acredita entrar, a árvore ou floresta sob a qual ela parece se sentar e a água que ela parece beber.
Enfim, se a alma é um corpo, por que ela aparece assim nos sonhos, é preciso dizer que todos esses objetos com os quais ela caminha nos sonhos, são também corpos verdadeiros.

Capítulo 26
Uma visão de Santa Perpétua.

Devo igualmente dizer umas palavras sobre as aparições dos mártires, já que você acreditou encontrar aí um testemunho a seu favor.
Santa Perpétua teve um sonho no qual ela se viu como um homem que combatia um egípcio. Podemos duvidar que esse novo corpo fosse outra coisa além de uma simples figura ou representação e não um cor- po real, já que seu corpo sempre esteve lá, mergulhado em um sonho profundo e com o sexo que lhe pertencia, enquanto sua alma parecia combater o corpo de um homem?
O que você acha? Esse simulacro de um corpo masculino era ou não um corpo real, apesar de sua perfeita semelhança? Escolha a resposta que quiser. Se ele era um corpo, por que ele não conservou a forma de sua pele? É por que a carne dessa mulher havia subitamente se metamorfoseado em uma carne masculina, de maneiras a que a alma que o habitava fosse logo adaptada a essa forma nova "por um tipo de congelamento”, para usar uma expressão sua?
Além disso, o corpo dessa mulher ainda vivia. Sua alma lutava, mas ela esteve sempre em sua pele, encerrada em todos os membros desse corpo cheio de vida e conservando a forma que ela tinha do corpo com que era dotada.
Até então ela não havia abandonado esses membros, já que essa separação só se opera por ocasião da morte. Até então ela não havia arrancado seus próprios membros dos membros com que eram formados. Donde lhe veio então esse corpo masculino no qual ela se via combatendo contra seu adversário?
Por outro lado, se esse simulacro não era um corpo verdadeiro, pelo menos ele era um símile perfeito, no qual a alma experimentou um verdadeiro trabalho e uma alegria verdadeira.
É preciso mais para convencer você de que uma alma pode fazer para ela mesma um simulacro perfeito de um corpo, sem que esse simulacro seja, no entanto, um corpo verdadeiro?

Capítulo 27
O significado da ferida que Perpétua vê na alma de seu irmão morto.

O que você diria se, mesmo nos infernos, esses fenômenos se re- produzissem, se as almas se reconhecessem, não em seus corpos, mas nos simulacros dos corpos? Em nossos sonhos, os membros com os quais parecemos agir não passam de simulacros e, de forma alguma, realidades. No entanto, quando impressões falsas nos atingem, a dor que sentimos não é um simulacro, mas uma realidade. O mesmo acontece com a alegria. Mas, como Santa Perpétua não estava ainda morta, você se opõe à aplicação deste raciocínio?
No entanto, toda questão pendente entre nós consiste em saber de que natureza são esses simulacros que nos aparecem nos sonhos. E esta questão estaria perfeitamente resolvida no momento em que você visse aí somente imagens e, de forma alguma, realidades corpóreas.
Por outro lado, você sabe que Dinocrates, irmão dessa santa, estava morto e apareceu para sua irmã, apresentando em seu corpo o ferimento que o levou ao túmulo. Quais serão então os resultados de seus intensos esforços para provar que, quando os membros do corpo são cortados, a alma não fica diminuída por causa disso? A alma de Dinocrates trazia nela o ferimento cuja violência a separou do corpo em que habitava.
Você nos disse: "Quando se cortam os membros do corpo, a alma se livra desse corte e se refugia nas outras partes do corpo, para não se ver amputada pelo ferimento feito ao corpo. É assim, sem dúvida, que se passam as coisas, quando o infeliz sobre o qual isso acontece está profundamente adormecido e sem nenhuma consciência". Mas como você ainda pode defender esta opinião?
Você atribui à alma uma vigilância tal que, mergulhada no mais profundo sono e inteiramente absorvida em seus sonhos, ela se livra, com toda felicidade e prontidão, a qualquer dano que possa atingir a carne inesperadamente, de sorte que ela não pode ser golpeada, machucada e nem cortada.
Tudo bem! Mas, apesar de sua prudência, você se esquece então que, se a alma se livrasse assim de qualquer machucado, ela não poderia experimentar o contragolpe e a dor?
Eu sei que você se livra do embaraço me respondendo que a alma retrai todas as suas partes e as concentra no interior, para escapar de toda amputação e de todo ferimento que poderiam ser feitos sobre seu corpo. Pois bem! Lembre-se de Dinocrates e diga-me por que sua alma não se retirou dessa parte do corpo sobre a qual foi desferido o golpe mortal. Seria, no entanto, o único meio de impedir que a cicatriz desse ferimento aparecesse após a morte dessa pobre alma corpórea.
Pressionado por todo lado, talvez você me responda que essas aparições não passam de simulacros de corpos e não corpos reais, de sorte que, o que parece ser um ferimento, não é um ferimento, da mesma forma que o que parece ser um corpo, não é um corpo.
Se a alma pudesse ser ferida por aqueles que ferem o corpo, não seria de se temer que ela fosse igualmente morta por aqueles que matam o corpo? Ora, uma proposição assim é formalmente condenada pelo Salvador139.
Assim então, a alma de Dinocrates não podia morrer sob o golpe que fez morrer seu corpo. Se ela apareceu ferida como o corpo tinha sido ferido, foi por que ela não era um corpo e por que ela trazia unicamente o simulacro de um ferimento no Simulacro de um corpo.
Ora, em um corpo imaginário, a alma seria presa de uma dor real; dor claramente representada pelo ferimento gravado em seu corpo e que foi libertado pelas santas preces de sua irmã.

139 Cf. Mateus 10:28.

Capítulo 28
A teoria da alma defendida por Vicente Vítor é insustentável

Você nos diz também que a alma recebeu sua forma do corpo é que ela se estende e se desenvolve até à própria proporção do corpo.

Você não vê então que você vai tomar monstruosa a alma de um jovem ou de um idoso que, porventura, tiver perdido um de seus braços na infância?
“A alma se contrai, por medo de que sua mão seja cortada ao mesmo tempo em que a mão do corpo e ela se condensa e se aperta nas outras partes do corpo", diz você. Por consequência, o braço da alma que eu mencionei, só pôde, no braço de uma criança, receber uma pequena extensão e essa extensão ela a conservará assim, sem aumento e nem diminuição, em toda extensão onde ela puder se conservar. Ao perder sua forma, ela perdeu assim todo princípio e todo meio de crescimento.
Por consequência, para o jovem ou para o idoso que perdeu sua mão na infância, sua alma possui ainda, é verdade, suas duas mãos, já que aquela que estava ameaçada pelo corte que atingiu a mão do corpo, se retirou a tempo. Mas, dessas duas mãos, uma tem a extensão de uma mão de jovem ou de um idoso, enquanto que a outra continua pequena como a mão de uma criança.
Creia-me, não é a forma do corpo que faz tais mãos; elas são formadas pela própria deformidade do erro.
De fato, você só parece poder escapar desse erro na medida em que, coma ajuda de Deus, você estude atentamente os sonhos daqueles que dormem e lhe será dado compreender que essas aparições não passam de simulacros e não de corpos verdadeiros.
É certo que todas as imagens que formamos dos corpos são da mesma natureza que esses sonhos. No entanto, no que diz respeito aos mortos, só podemos ter uma ideia mais exata vendo o que se passa com as pessoas adormecidas. De fato, não é sem razão que as santas Escrituras dão à morte o nome significativo de sono, pois o sono é um parente muito próximo da morte140.

Capítulo 29
A alma depois da morte.

Se a alma fosse um corpo, a imagem na qual ela se vê no sono seria igualmente corpórea, já que ela seria a reprodução de um corpo.
Desta forma, embora tendo perdido este ou aquele membro de seu corpo, jamais a pessoa, em um sonho, se veria privada desse membro e estaria sempre em uma integridade completa, por que sua alma não teria perdido nada de sua integridade.
Ora, acontece que, em seus sonhos, as pessoas mutiladas se veem tanto em sua integridade, como na forma que elas são, ou seja, mutiladas. Este fato não prova que, tanto com relação ao seu corpo como com relação a todas as coisas com que ela se ocupa em sonho, de uma maneira ou de outra, a alma humana trabalha, não sobre alguma coisa de real, mas sobre simples simulacros?
Por outro lado, se ela experimenta alegria ou tristeza, prazer ou dor, suas impressões são sempre reais, tendo suas visões, como objeto, corpos verdadeiros ou somente simulacros.

140 VIRGÍLIO. Eneida, Livro VI, verso 279.

Você mesmo não disse e com muita verdade que "Os alimentos e as roupas são necessários, não à alma, mas ao corpo"? Porque então o rico mau no inferno desejou tanto uma gota d'água141? Por que, como você mesmo relatou, Samuel aparecia sempre com sua roupa comum142. É por que o rico mau sentiu a necessidade de reparar com um pouco dágua as perdas de sua alma, como se repara as perdas do corpo?
É por que Samuel saiu todo vestido de seu próprio corpo? Não, mas o rico mau experimentou realmente todas as angústias que dilaceraram sua alma, embora o corpo para o qual ele implorou a água não fosse de verdade. Por outro lado, Samuel pôde aparecer vestido por que ele apresentava então, não um corpo verdadeiro, mas um simulacro com todos os costumes do corpo. Que não se diga das roupas o que se quis dizer dos membros do corpo: que eles enlaçam a alma e lhe imprimem sua forma particular.

141 Cf. Lucas 16:24.
142 Cf. 1Samuel 28:14.

Capítulo 30
O misterioso poder cognitivo das almas no além.

Após a morte, quando as almas más forem despidas de seus corpos corruptíveis, que força de conhecimento elas podem então adquirir?
Boas ou más, essas almas podem se servir de seus sentidos interiores para perceber e conhecer, sejam os corpos ou os simulacros de corpos, sejam as boas ou as más impressões do entendimento, embora essas almas não tenham mais então o envelope exterior para delimitar seus membros?
A estas questões ninguém pode responder a não ser com o silêncio. Seja como for, o rico mau, no meio de seus sofrimentos, reconheceu seu pai Abraão e, no entanto, a figura de seu corpo não lhe era conhecida. Sua alma, mesmo sendo incorpórea, tinha recebido desse santo patriarca alguma impressão que pôde fazer com que ele fosse reconhecido.
Para dizer que se conhece alguém, não se deve conhecer sua vida e sua vontade, embora essa vida e essa vontade não possuam extensão física e nem cores? Em virtude deste princípio, podemos dizer que não temos de ninguém um conhecimento tão certo quanto de nós mesmos, por que nossa consciência e nossa vontade nos são conhecidas. Nós temos mesmo uma visão clara e precisa delas, embora elas não tenham, nem mesmo para nós, a semelhança de um corpo.
Isto é o que nós não podemos ver, mesmo em uma pessoa colocada diante de nossos olhos, enquanto que, mesmo em sua ausência, seu rosto nos é conhecido e, por assim dizer, está presente através de nosso pensamento.
Não podemos fazer o mesmo para nosso próprio rosto e, no entanto, nós nos conhecemos melhor do que conhecemos qualquer outra pessoa. Só isso basta para nos fazer compreender no que consiste o verdadeiro e o melhor conhecimento do ser humano.

Capítulo 31
Nossa diversa faculdade cognitiva.

Assim então, uma coisa é sentir os corpos verdadeiros e é o que fazemos através de nossos cinco sentidos. Outra coisa é perceber, não corpos, mas os simulacros de corpos; o que se faz sem nenhuma ação dos sentidos.
Quando se trata de nós mesmos, não nos vemos como não sendo semelhantes a corpos. Diferente é aplicar nosso entendimento, não sobre corpos ou imagens de corpos, mas sobre coisas que não possuem cor e nem extensão, como são a fé, a esperança e a caridade, cujo conhecimento adquirimos, no entanto, de forma bem precisa.
Sendo assim, se eu pergunto onde devemos localizar preferencialmente, onde seremos renovados ao conhecimento de Deus, segundo a imagem Daquele que nos criou, eu não devo responder que é no que eu assinalei em terceiro lugar, ou seja, em nossa alma essencialmente espiritual? Lá, pelo menos, não trazemos nenhuma característica e nem nenhuma semelhança a sexo.

Capítulo 32
É improvável o monstro de Vicente Vitor.

Com efeito, no momento em que você admite essa forma de uma alma masculina ou feminina, que se revela com as características que distinguem um e outro sexo, não é uma simples imagem de um corpo, mas um corpo verdadeiro que, bem ou mal, você deve aceitar que é homem ou mulher, se ela aparece como um ou outro.
No entanto, se, como você pensa, a alma é um corpo e um corpo vivo, dotado de mamas fecundas e protuberantes, privado de barba, mas possuindo todas as características genitais próprias das mulheres, sem, no entanto, que ela seja uma mulher, eu não tenho o direito de afirmar — e com mais razão ainda que ela tem uma língua, dedos, olhos, enfim, todos os membros correspondentes aos do corpo? O que não impede que ela não seja um corpo, mas uma simples imagem do corpo.
Pelo menos eu tenho, para ajudar em meu favor, todas as imagens, que fazemos dos ausentes e todas as representações que eles fazem deles mesmos e dos outros, quando os sonhos vem perturbar o sono.
Quanto àquela anomalia monstruosa, podemos encontrar na natureza o exemplo de um só corpo, ao mesmo tempo verdadeiro e vivo, um corpo de mulher que não tenha, no entanto, o que o faz próprio do sexo feminino?

Capítulo 33
Se a alma fosse corpo, ainda teria sexo.

O que você diz da ave fênix não tem nenhuma relação com a questão que nos ocupa. Supondo, como se acredita, que ela renasça de suas cinzas, ela seria a imagem da ressurreição dos corpos e não destruiria, de forma alguma, a crença no sexo das almas.
Eu imagino, no entanto, que você teria considerado sua digressão como devendo produzir pouco efeito se, na época da fênix, você não estivesse dedicado a todas as declamações comuns aos jovens.
Essa fênix tinha então em seu corpo os órgãos genitais masculinos, sem ser macho ou os órgãos genitais femininos, sem ser fêmea? A única coisa que eu lhe peço é que pese bem o que você diz, o que você afirma, o que você nos quer convencer.
Você diz que a alma, espalhada por todos os membros, se condensou ali por uma espécie de congelamento e que depois, de alto a baixo, desde a medula mais íntima até a superfície da pele, ela se deixou impregnar pela forma do corpo. Por consequência, quando ela está em um corpo feminino, ela toma as diferentes formas do corpo da mulher, de maneiras que, estando em um corpo verdadeiro, tendo membros verdadeiros, ela não é, no entanto, uma mulher.
Diga-me então como pode ser que, tendo um corpo verdadeiro e vivo, com todos os membros de uma mulher, ela não seja uma mulher?
Como pode ser que, tendo um corpo verdadeiro e vivo, com todos os membros de um homem, ela não seja um homem? A quem viria o pensamento de acreditar, dizer e ensinar um absurdo desses?
Você diz que as almas não geram? Mas as mulas e os mulos não são machos fêmeas? O que eu diria dos eunucos? Pode-se privá-los de movimento e de fecundidade, mas o sexo não lhes é retirado e eles conservam sempre os membros e o caráter. Ao se tornar eunuco não se deixa de ser homem. Depois, para ser coerente com você mesmo, você devia dizer que a alma de um eunuco conserva todas as características que o corpo exterior foi privado. De fato, na medida em que a operação se realizava, à alma devia se retirar pará não sofrer essa mutilação, de sorte que ela conservasse a primeira forma que tinha, antes que essa mudança acontecesse em seu corpo e, por uma repressão súbita, se conservasse em toda sua integridade.
Por outro lado, quando se trata do estado das almas após a morte, você não quer lhe conceder a distinção dos sexos, embora elas conservem ainda os órgãos que estabelecem essa distinção. Você dá, como justificativa para isso, a afirmação de que sua conformação primeira é unicamente o resultado do lugar que elas habitavam, ou seja, o corpo exterior.
Todas essa alegações, meu filho, não passam de mentiras. Se você não quer admitir a distinção dos sexos nas almas, não as veja como corpos.

Capítulo 34
As representações e visões bíblicas são reais mas não corpóreas.

Nem tudo o que tema semelhança de um corpo tem, só por isso, a realidade de um corpo.
Durma e você verá. Mas quando acordar, diferencie com cuidado o que você viu. Tudo o que vê em sonho lhe parece corpóreo e, no entanto, não é o seu corpo, é sua alma; não é um corpo verdadeiro, mas o simulacro de um corpo. Seu corpo estará em completa imobilidade, enquanto sua alma caminha. A língua do seu corpo permanecerá silenciosa e sua alma falará. Seus olhos estarão fechados e sua alma verá.
Enfim, os órgãos do seu corpo, embora vivos, parecerão inanimados e, no entanto, eles não estarão mortos.
Isto é o que prova que a forma congelada de sua alma como você diz. não saiu ainda de seu envoltório e, no entanto, é nela que você vê, com toda sua integridade, o simulacro de sua carne.
A este tipo de simulacros corpóreos, que não são corpos verdadeiros, embora tenham sua aparência, se relacionam todos os fatos que você lê, sem compreender, nos livros santos, com relação às visões proféticas. Essas visões representavam certos eventos presentes, passados e futuros.
Se você está no erro com relação a isso, não é por que essas visões são propriamente enganosas. É por que você dá a elas uma falsa explicação.
Trata-se da aparição das almas dos mártires143? Vemos aparecer ao mesmo tempo o Cordeiro imolado trazendo sete chifres em sua testa144. Cavalos e outros animais aí são representados com todas as características desejáveis. As estrelas nos são mostradas aí se precipitando em sua queda e o céu se enrola como um papiro145 e, no entanto, o mundo não se desmorona.
Todas essas visões são reais e, no entanto, se nós lhes dermos a explicação que elas pedem, não encontraremos aí nada de corpóreo.

143 Cf. Apocalipse 6:9.
144 Cf. Apocalipse 5:6.
145 Cf. Apocalipse 6:14.

Capítulo 35
Termina o discurso sobre a incorporeidade da alma.

Seria muito longo querer esgotar a discussão sobre esses simulacros corpóreos. Seria preciso falar da aparição dos anjos bons e maus, soba forma humana ou sob qualquer outra forma. Eles possuem corpos verdadeiros e são vistos na realidade de seu ser? Quando são vistos em sonho ou no êxtase, seriam eles simples imagens ou corpos verdadeiros? Aqueles que são vistos na vigília seriam alguma coisa de real ou mesmo tangível? Todas estas questões não me parecem que devam entrar nos limites que eu me propus ao escrever este livro.
Eu creio ter esgotado a matéria relacionada à alma corpórea. Se você quer admitir que ela seja corpórea, antes de tudo dê-nos uma definição exata de corpo, pois poderíamos muito bem estar de acordo sobre as ideias e discutir unicamente sobre palavras.
Seja como for, eu penso que você está prudentemente convencido de todos os absurdos que decorrem de um sistema como o seu e como qual você fez da alma um corpo semelhante a todos os outros corpos e dotado de todas as propriedades que lhes são atribuídas pelos cientistas.
Todos os corpos, eles dizem, possuem comprimento, largura e extensão. Todos ocupam necessariamente um espaço na extensão. Espaço maior ou menor, de acordo como esses corpos sejam maiores ou menores. O corpo que você atribui à nossa alma tem todas estas propriedades?

Capítulo 35
Diferença entre alma e espírito.

Só me falta mostrar que o espírito não é a alma inteira, mas somente uma faculdade da alma, segundo as palavras do Apóstolo: Todo o vosso ser, espírito, alma e corpo146. Ou então, segundo estas palavras: “Você separou minha alma do meu espírito”.

146 1Tessalonicenses 5:23.

No entanto, como é muito comum tomar o espírito pela alma inteira, a questão poderia muito bem não passar de uma simples questão de palavras.
De fato, a partir do momento em que existe certamente em nossa alma uma faculdade chamada propriamente de espírito e além da qual as outras faculdades são chamadas simplesmente de alma, não há mais que se alegar qualquer dificuldade real.
O que prova isso ainda melhor é que estamos perfeitamente de acordo sobre à faculdade que chamamos de espírito. Entendemos por isso, tanto um quanto o outro, a faculdade pela qual raciocinamos e pela qual compreendemos. E é neste sentido que interpretamos esta passagem do Apóstolo: Todo o vosso ser, espírito, alma e corpo.
O espírito é chamado também de entendimento, como nesta passagem: De um lado, pelo meu espírito, sou submisso à lei de Deus; de outro lado, por minha carne, sou escravo da lei do pecado147. Esta frase, de fato, é apenas a repetição desta: Porque os desejos da carne se opõem aos do Espírito e estes aos da carne, pois são contrários uns aos outros148.
Entendimento e espírito designam então uma só e mesma faculdade e é errado pretender que o entendimento designa ao mesmo tempo o espírito e a alma. Não conheço mesmo uma única passagem que possa servir de pretexto a esta interpretação. O entendimento para nós é apenas nossa faculdade racional e intelectual.

Quando então o Apóstolo nos diz: "Renovai-vos pelo espírito de vosso entendimento149, não é como se ele dissesse: “Renovai-vos pelo vosso entendimento"? O espírito do entendimento é apenas o entendimento, como o corpo da carne é apenas a carne. O Apóstolo não diz: "No despojamento do corpo de carne150, chamando de corpo de carne a própria carne?


147 Romanos 7:26.
148 Gálatas 5 17.
149 Efésios 4:23. Renovamine autem spiritu mentis vestra.

Em outro lugar, é verdade, São Paulo distingue o espírito do entendimento. É quando ele diz: Se eu oro em virtude do dom das línguas, o meu espírito ora, mas o meu entendimento fica sem fruto151. Mas, não temos que nos ocupar aqui com a diferença entre o espírito e o entendimento. Isto seria, afinal, uma questão muito difícil, pois a palavra espírito é encontrada muitas vezes nas santas Escrituras e com sentidos bem diferentes. Para nós, neste momento, o espírito é a faculdade de raciocinar, de compreender, de julgar. Quando então falamos do espírito como tal, estamos de acordo em dizer que ele não é a alma inteira, mas uma simples faculdade da alma.
Agora, se você negar que a alma seja um espírito, por que a palavra espírito nos representa especialmente a inteligência, você poderá, com muita razão, negar que toda a descendência de Jacó seja chamada de Israel, por que, com exceção de Judá, designava-se com este nome o povo das dez tribos que formaram o reino da Samaria 152, Mas, por que nos deter por mais tempo em tais minúcias?

150 Colossenses 2:11. In expoliatone corporis carnis.
151 1Coríntios 14:14.
152 1Reis 12:20.

Capítulo 37
Espírito, em sua acepção ampla, inclui também a alma e não uma parte dela.

Para tornar minha demonstração mais fácil, queira observar quea alma é geralmente chamada de espírito. Lemos então: Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: Tudo está consumado. Inclinou a cabeça e rendeu o espírito153. É evidente que nesta passagem a parte é tomada como o todo. Por que então você quer defender que a alma não poderia ser chamada de espírito?

153 João 19:30

Pois bem! É você mesmo que eu quero invocar como testemunho da verdade que exponho. Na definição que você dá do espírito, vemos claramente que você se expressa de maneira a negar o espírito aos animais, mas lhes concede uma alma. Com efeito, chamam-se irracionais os seres que não possuem razão e nem inteligência. Quando você então quer provar ao ser humano que ele precisa conhecer sua natureza, é nestes termos que você se expressa: "Em sua infinita bondade Deus não fez nada sem um motivo e criou o ser humano como um animal racional, dotado de inteligência, de razão e de uma sensibilidade muito desenvolvida, para que ele fosse capaz de colocar em uma ordem conveniente tudo o que é privado de razão”.
Estas palavras afirmam claramente que o ser humano é dotado de razão e de inteligência, enquanto que os animais são privados delas. Daí você, se apoiando em um oráculo divino, diz que os seres humanos que não compreendem, são comparáveis aos animais que não tem inteligência154.
Em outra passagem, é dito igualmente: Não queiras ser sem inteligência como o cavalo, como o muar, que só ao freio e à rédea submetem seus ímpetos155.

Isto posto, veja em que termos você define o espírito, para melhor mostrar a diferença que você coloca entre ele e sua alma: "Essa alma, saída que é do sopro de Deus, não pôde existir sem o sentido próprio e sem a inteligência íntima que chamamos de espíritos”, você diz.
Um pouco à frente, você acrescenta: "Embora a alma anime o corpo, no entanto, o que sente, o que julga, o que vivifica é necessa- riamente um espírito".
Por fim, você escreve também: "Uma coisa é a alma, outra coisa é o espírito, o discernimento e o sentido da alma". Com estas palavras você formula bem claramente a ideia que você tem do espírito, que você faz a força racional pela qual nossa alma sente e compreende. E, quando você fala do sentido da alma, você não quer dizer o sentido do corpo, mas o sentido íntimo que se produz para fora, por uma afirmação que chamamos sentença. É isto então o que nos distingue essencialmente dos animais, já que estes são privados de razão.

154 Cf. Salmo 48:13.
155 Salmo 31:9.

Esses animais não possuem, por consequência, inteligência, o sentido da razão, o discernimento e nem mesmo possuem uma alma. Não é deles que se fala: Pululem as águas de uma multidão de seres vivos.
Deus criou os monstros marinhos e toda a multidão de seres vivos que enchem as águas. Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie156?
Para que você não ignore nada, observe ainda que, segundo a linguagem dos oráculos, essa alma recebe também o nome de espírito e é chamada de o espírito dos animais. Portanto, esses animais não possuem, eu penso, esse espírito, entre o qual e a alma você estabelece uma distinção tão pronunciada.
No entanto, é fora de dúvida que a alma dos animais puderam ser chamadas de espíritos, segundo estas palavras do Eclesiastes: Quem sabe se o sopro de vida dos filhos dos homens se eleva para o alto e o sopro de vida dos brutos desce para a terra?157
Por ocasião do dilúvio, lemos igualmente: Todas as criaturas que se moviam na terra foram exterminadas: aves, animais domésticos, feras selvagens e tudo o que se arrasta na terra, e todos os homens.
Tudo o que respira e tem um sopro de vida sobre a terra pereceu158.
Após testemunhos assim tão formais, a hesitação não é mais possível e é preciso concluir que o espírito é o nome genérico dado à alma.

156 Genesis 1:20,21 e 24. Producant aquae reptile animae viventis. Creavitque Deus cete grandia, etomnem animam viventem atquae motabilem, quam produxerant aquae in species suas. Producat terra animam viventem in genere suo.

157 Eclesiastes 3:21.
158 Genesis 7:21 e 22.

Esta palavra, por fim, tem uma extensão tal que ela convém até mesmo a Deus159.
Até o sopro atmosférico, que é corpóreo, é chamado de espírito de tempestade!160
Em face de testemunhos tão formais, nos quais a alma do animal, embora privada de inteligência e de razão, é, no entanto, chamada de espírito, não estou no direito de concluir que daqui por diante você não recusará a denominação de espírito? E se você compreendeu tudo o que dissemos sobre a alma incorpórea, você não deve mais se espantar ao me ouvir afirmar, com conhecimento de causa, a incorporeidade e a espiritualidade da alma. Todas as razões possíveis não foram reunidas para provar que a alma não é um corpo e é designada pelo termo geral espírito?

159 Jo 4:24: Deus é espírito e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade.
160 Cf. Salma 54:9. Exspectabam eum qui salvum me fecit pusillanimitate spritus et tempestate.

Capítulo 38
Resumo dos erros e exortação para a correção.

Se então você receber e ler esses livros com toda a caridade com que eles me foram inspirados e ditados, se você perseverar nessa louvável disposição que você demonstrou no início de sua obra, de renunciar a todas as suas opiniões, se elas lhe parecerem improváveis161, queira antes de tudo se precaver contra estas onze proposições que eu lhe assinalei no livro precedente162.

161 Livro cap 2,

Não diga mais que "a alma vem de Deus, no sentido de que ela foi criada não do nada, não de outra natureza, mas da própria natureza de Deus"; que "Deus cria indefinidamente almas, como ele próprio tem uma existência indefinida"; que "a alma perdeu, através da carne, o mérito que ela tinha adquirido antes de estar unida à carne"; que "a alma recupera, através da carne, seu estado primitivo"; que "é pela carne que ela renasce, como foi pela carne que ela mereceu ser maculada"; que “antes de qualquer pecado, a alma mereceu se tornar pecadora”; que "as crianças mortas antes de terem sido regeneradas pelo batismo conseguem a remissão do pecado original"; que "aqueles que Deus predestinou ao batismo podem ser arrancados dessa predestinação e morrer antes que o Todo Poderoso a tenha realizado neles"; que "é àqueles que morrem sem batismo que se deve aplicar estas palavras: Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma163 e todos os desenvolvimentos dados a estas palavras; que "dentre as numerosas moradas que o Salvador afirma existir na casa de seu Pai, há algumas que estão fora do reino de Deus"164; que "o sacrifício do corpo e do sangue de Jesus Cristo deve ser ofertado por aqueles
que morrem sem o batismo”; que "dentre aqueles que morrem sem o batismo, há os que são recebidos temporariamente no paraíso, para que sejam admitidos mais tarde na beatitude do reino dos céus”.

162 Livro III, cap. 22 e 23.
163 Sabedoria 4:11.
164 João 14:2.

Estes são, meu filho, os principais erros contra os quais você deve se precaver e não se vanglorie do seu nome Vicente, se você quer ser Vítor (vitorioso) sobre o erro.
Não creia saber uma coisa quando você a ignora, mas para aprender, aprenda a ignorar. Não se peca por ignorar alguma coisa das secretas obras de Deus, mas ao considerar imprudentemente como conhecidas aquelas que não o são e ao produzir é defender o falso invés do verdadeiro.
Eu digo que ignoro se Deus cria para cada ser humano uma nova alma ou se a alma nos vem de nossos pais através da transmissão original, embora, mesmo neste caso, seja fora de dúvida que a alma é diretamente criada por Deus, sem ser tirada de sua substância.
Ora, esta ignorância não deve ser reprovada ou ela só deve sê-lo par aquele que se sente no poder de dissipá-la. Para isso, ele precisa antes de tudo confessar que as almas trazem com elas mesmas os simulacros ou representações incorpóreas dos corpos; que essas almas não são corpos; que mesmo admitindo uma distinção entre alma e espírito, a denominação espírito convém universalmente à alma.
Estas são as proposições, eu creio, sobre as quais eu penso ter formado as convicções de sua caridade. Supondo, no entanto, que eu não o tenha convencido sobre este ponto, eu afirmo, todavia, que se deve ter convicções formadas sobre todas estas verdades. Aqueles que lerem estes livros julgarão por eles mesmos.

Capítulo 39
Venha me ver.

Por fim, se você deseja conhecer todos os outros erros em sua a- bundante obra, venha se encontrar comigo, sem problema e sem dificuldade. Não será um discípulo que vem se encontrar com um mestre, mas um jovem que se juntará a um idoso; um homem vigoroso que vi: tará um doente.
Sem dúvida que você não terá que publicar tais erros, mas a grande, a verdadeira glória neste caso, é corrigir e confessar o erro, muito mais do que receber lisonjas de um mentiroso.
Quanto àqueles que assistem à leitura de se livro, estou seguro de que nem todos aplaudiram os erros, que nem todos foram descobertos e nem todos supuseram que você os abraçou voluntariamente.
Diante da impetuosidade e do ardor que você colocava em sua leitura, era pouco provável apreender o alcance de cada proposição. Aliás, aqueles que puderam perceber os erros de suas palavras, não louvaram em você a clara pureza da verdade, mas a abundância de seu discurso e a explosão de seu talento.
Não acontece muito frequentemente que se louve, que se exalte e que se ame a eloquência de um rapaz, em razão das esperanças que ela faz nascer, embora ele ainda não se encontre na maturidade e na fé de um doutor?
Se então, você quer dar toda correção possível aos seus pensamentos e assegurar à sua eloquência, não somente os aplausos das multidões, mas os frutos sérios da luz e da edificação, despreze esses aplausos estranhos e pese seriamente o alcance e o valor de suas palavras.