Os episódios maravilhosos de Fátima

espiritualidade

Revisitando as Aparições da Virgem Maria em Fátima, sob a ótica daquela época.

Os episódios maravilhosos de Fátima

PELO VISCONDE DE MONTELLO

1921

CASA EDITORA EMPRESA VERITAS

AS APARIÇÕES DE FÁTIMA O INTERROGATÓRIO DOS VIDENTES OS FENÔMENOS ASSOMBROSOS DE 13 DE OUTUBRO DE 1917 UMA CURA EXTRAORDINÁRIA O DIA 13 DE OUTUBRO DE 1919 A MORTE DA VIDENTE JACINTA DE JESUS MARTO A GRANDIOSA PEREGRINAÇÃO DE 13 DE MAIO 1920

Exmo e Revmo Sr. Bispo da Guarda Fernando Paes de Figueiredo, proprietário da Empresa Veritas, desejando publicar um folheto intitulado “O episódios maravilhosos de Fátima” Pede a V. Excia Revma a necessária autorização se assim o julgar conveniente. Guarda, 19 de maio de 1921. Cônego Fernando Paes de Figueiredo. Nomeamos censor o M. R. Dr. Manuel Mendes do Carmo, Cônego da Nossa Sé. Guarda, 19 de Maio de 1921. f JOSÉ, Bispo da Guarda. Exmo e Revmo Sr. No cumprimento da missão que V. Ex.8 Revmo se dignou confiar-me, lí o opusculo intitulado “Os episódios maravilhosos de Fátima”. Apreciando, já em tempos de camaradagem universitária, a ciência solida e a solida piedade do seu autor, verifiquei que no citado opusculo nada há contra a Fé ou contra a Moral. Repassa-o num acentuado perfume de confiança na Imaculada Virgem Maria, que só poderá fazer bem às almas que o lerem. Não pretendendo o seu autor dizer a ultima palavra. cientifica sobre a validade ou caráter sobrenatural dos factos de Fátima, faz todavia um depoimento consciencioso que ajudará a esclarecer a sua natureza objectiva.

Guarda, 9 de Junho de 1921. Dr. Mendes do Carmo.

Imprima-se.

Guarda, 10 de junho de 1921. F. JOSÉ, Bispo da Guarda.

NOSSA SENHORA DE FÁTIMA - AS APARIÇÕES DE FÁTIMA

Na manhã do dia treze de Maio de 1917 um menino e duas meninas andavam apascentando, como era seu costume, um pequeno rebanho de ovelhas, pertencente a suas famílias, numa propriedade da serra de Minde, situada na freguesia de Fátima, conselho de Vila Nova d'Ourem, distrito de Leiria.

A mais velha das três crianças, de nome Lúcia de Jesus, era filha de Antônio dos Santos, que faleceu no ano seguinte, e de Maria Rosa dos Santos, e contava dez anos de idade. O menino e a outra menina, que eram irmãos, chamavam-se francisco e Jacinta, tendo aquele nove anos e esta sete anos de idade. foram seus pais Manuel,Pedro Matto e Olympia de Jesus Marto. Eram primos da Lúcia. As habitações das duas famílias, que, não sendo ricas, possuíam contudo alguns bens de fortuna, ficavam próximas uma da outra no lugar de Aljustrel, a cerca de um quilometro da igreja paroquial de Fátima. Nenhuma das crianças sabia ler nem escrever. A sua instrução religiosa era ainda muito rudimentar: Só a Lúcia tinha feito a primeira comunhão.

Aproximava-se naquele memorável dia a hora do meio-dia astronômico. Segundo o seu costume, as três crianças, depois de se terem ocupado durante bastante tempo nos seus inocentes divertimentos, puseram-se· a rezar o terço do Rosário, devoção muito querida dos habitantes daquela freguesia. Apenas tinham acabado de o recitar, quando viram de repente brilhar no espaço, a pequena distancia delas, a claridade fulgurante de um relâmpago e aparecer quase simultaneamente, sobre a copa de uma pequena azinheira, um vulto radioso e encantador de mulher, de extraordinária beleza. Assustadas com um acontecimento tão insólito e tão inesperado, pensaram em fugir, mas logo as tranquilizou completamente a altitude benévola da Aparição, que numa voz dulcíssima prometeu que não lhes faria mal algum.

A Aparição parecia não ter mais de dezoito anos de idade. O vestido era de uma alvura puríssima de neve, assim como o manto, orlado de ouro, que lhe cobria a cabeça e a maior parte do corpo. O rosto, de uma nobreza de linhas irrepreensível e que tinha um não sei que de sobrenatural e divino, apresentava-se sereno e grave e como que toldado de uma leve sombra de tristeza. Das mãos, juntas à altura do peito, pendia lhe, rematado por uma cruz de ouro, um lindo rosário, cujas contas, brancas de arminho, pareciam perolas, De todo o seu vulto, circundado de um esplendor mais brilhante que o do sol, irradiavam feixes de luz, especialmente do rosto, de uma formosura impossível de descrever e incomparavelmente superior a qualquer beleza humana.

Entre a Aparição e a Lúcia estabeleceu-se um dialogo, que durou cerca de dez minutos.

A Jacinta via a Aparição e ouvia distintamente as palavras que ela pronunciava dirigindo-se á Lúcia, mas nunca lhe falou nem a Aparição lhe dirigiu a palavra. O Francisco só via a Aparição, não ouvindo nunca o que ela dizia à Lúcia, apesar de se encontrar à mesma distancia e de possuir um excelente ouvido.

A Aparição convidou nesse dia os três pastorinhos a voltarem todos os meses no dia treze, durante seis meses consecutivos, aquele local, vulgarmente conhecido pelo nome de Cova da Iria e situado a pouco mais de dois quilômetros da igreja paroquial de Fátima, ao lado da estrada distrital de Vila Nova d'Ourem à Batalha. A principio ninguém prestava credito ás afirmações das crianças, que eram apodadas de mentirosas por toda a gente, mesmo pelas pessoas de suas famílias. A 13 de Junho umas cinquenta pessoas acompanharam os videntes ao local das aparições, na esperança de presenciarem o que quer que fosse de extraordinário. Nos meses seguintes o concurso de curiosos e devotos aumentou consideravelmente, reunindo-se talvez cinco mil pessoas em Julho, dezoito mil em Agosto e trinta mil em Setembro junto da azinheira sagrada. No momento em que se verificava a aparição, inúmeros sinais misteriosos, de que muitas pessoas fidedignas dão testemunho, se sucediam uns após outros na atmosfera e no firmamento.

A Aparição recomendou insistentemente que todos fizessem penitência e rezassem o terço do Rosário. Comunicou às crianças um segredo, que não podiam revelar a ninguém. Prometeu-lhes o Céu. Pediu que naquele local se erigisse uma capela em sua honra e declarou que no dia treze de Outubro havia de fazer um milagre para que todo o povo acreditasse que ela realmente tinha ali aparecido. Em treze de Agosto, momentos antes da hora da aparição, as crianças foram ardilosamente raptadas pelo administrador do concelho, que as reteve em sua casa durante dois dias, ameaçando-as de morte se não se desdissessem ou pelo menos não revelassem o segredo que a Aparição lhes tinha confiado.

Nesse mês a aparição teve lugar no dia dezenove, no sitio chamado dos Valinhos, quando as crianças já não pensavam que ela se verificasse senão no mês seguinte.

No dia treze de Outubro, estando presentes cerca de setenta mil pessoas de todas as classes e condições sociais e de todos os pontos do país, terminado o dialogo entre a Lúcia e a Aparição, que lhe declarou ser a Senhora do Rosário, a vidente recomendou aos circunstantes que olhassem para o sol. O firmamento estava completamente nublado. Chovia torrencialmente.

Como que por encanto rasgaram-se de repente as nuvens, e o sol no zenith apareceu em todo o seu esplendor e girou vertiginosamente sobre si mesmo como a mais bela roda de fogo de artifício que se possa imaginar, revestindo sucessivamente todas as cores do arco-íris e projetando feixes de luz de um efeito surpreendente.

Esse espetáculo sublime e incomparável, que se repetiu por três vezes distintas, durou cerca de dez minutos. A multidão imensa, rendida perante a evidencia de tamanho prodígio, prostrou-se de joelhos, o Credo, a Ave Maria e o ato de contrição irromperam de todas as bocas e as lagrimas, lagrimas de alegria, de gratidão ou de arrependimento, marejaram todos os olhos. Toda a imprensa, inclusivamente a de grande circulação, se referiu, em termos respeitosos e com bastante desenvolvimento, aos assombrosos acontecimentos de Fátima.

As apreciações desses fatos, mesmo no campo católico, não foram unanimes. As afirmações das crianças relativas ao próximo fim da grande guerra europeia contribuíram para essa divergência de opiniões Mas apesar disso, de ano para ano, a devoção a Nossa Senhora do Rosário de Fátima aumenta e propaga-se por toda a parte. O concurso de peregrinos é cada vez maior e verifica-se especialmente no dia treze de cada mês, nos Domingos, nos dias consagrados á Santíssima Virgem, e, mais do que nunca, no dia treze de Maio e no dia treze de Outubro de cada ano.

As graças e curas prodigiosas atribuídas à intercessão de Nossa Senhora do Rosário de Fátima são inúmeras.

Debalde os representantes da autoridade civil envidaram todos os esforços para pôr termo à torrente caudalosa e incessante das multidões atraídas pela voz humilde de três inocentes pastorinhos.

A intolerância e a perseguição tiveram apenas, como sempre, o efeito de tornar mais viva e intensa a fé e a piedade dos crentes. A concorrência de devotos, vindos de todos os pontos de Portugal, continua a ser cada vez mais numerosa, mais fervente, mais perseverante, e parece não haver forças humanas capazes de lhe pôr embargo. A autoridade eclesiástica, que iniciou o respectivo inquérito, ainda não ultimou os seus trabalhos, que são de sua natureza difíceis e demorados, nem proferiu o seu veredictum, que nos cumpre acatar, qualquer que ele venha a ser.

Enquanto aguardamos esse veredictum, procuremos viver como bons cristãos, cumprindo estritamente todos os nossos deveres, façamos penitência dos nossos pecados e rezemos com fervor o terço do Rosário, essa devoção tão querida de todos portugueses, para que Nossa Senhora do Rosário, se Ela efetivamente apareceu em Fátima, se digne dissipar todas as duvidas e tornar esse fato superior a toda a contestação de boa fé.

 

INTERROGATÓRIO DOS VIDENTES1 (27 DE SETEMBRO DE 1917)

1Reproduzo este interrogatório dos videntes, sem alteração de uma virgula. exatamente como o redigi, no dia 29 de Setembro de 1917, em face das notas tomadas.

No intuito de completar as impressões colhidas no dia treze do corrente mês de Setembro e habilitar-me com os elementos indispensáveis para fundamentar tanto quanto possível um juízo seguro acerca dos acontecimentos que nos ultimas cinco meses se tem desenrolado a três quilômetros ao sul da aldeia de Fátima, no local denominado Cova da Iria, fui pela segunda vez na quinta-feira ultima, vinte e sete, àquela pitoresca aldeia, graciosamente alcandorada num dos contrafortes da majestosa serra de Minde.

Eram três horas da tarde quando me apeei do trem que de Torres Novas me conduzira por Vila Nova d'Ourem à humilde povoação cujo nome é hoje pronunciado como uma promessa de bençãos e graças celestes por dezenas de milhares de lábios de um extremo ao outro de Portugal. O reverendo Pároco, a quem logo procurei, não estava em casa: tinha saído para fora da freguesia e só à noite devia voltar.

Pesaroso por não poder trocar com ele algumas palavras sobre o assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças favorecidas com aparições da Virgem Santíssima e ouvir da boca delas a narrativa pormenorizada dos estranhos acontecimentos, cuja noticia tem atraído dia a dia à Fátima um sem número de pessoas de todas as classes e condições sociais.

À distância de dois quilômetros da igreja paroquial e do presbitério, num insignificante lugarejo chamado Aljustrel, pertencente á freguesia, ficam situadas as modestas habitações das famílias dos pastorinhos.

As duas crianças mais novas estavam ausentes. Dirigi-me a casa da mais velha, onde a mãe me convidou a entrar e sentar-me, convite a que acedi. A uma pergunta minha sobre o paradeiro da filha, que eu procurava, respondeu-me que ela andava a vindimar numa pequena propriedade que lhe pertencia e que ficava dois quilômetros distante.

Alguém se prestou logo a ir chamá-la de ordem da mãe. Entretanto as duas crianças mais novas, que tinham regressado do campo, sabendo pelas vizinhas que eu lhes desejava falar vieram, ter comigo.

São dois irmãos, um menino e uma menina. Chegou primeiro a menina. Chama-se Jacinta de Jesus, tem sete anos de idade e é filha de Manuel Pedro Marto e de Olympia de Jesus.

Bastante alta para a sua idade, um pouco delgada sem se poder dizer magra, de rosto bem proporcionado, tez morena, modestamente vestida, descendo-lhe a saia até a altura dos artelhos, o seu aspecto é o de uma criança saudável, acusando perfeita normalidade no seu todo físico e moral. Surpreendida com a presença de pessoas estranhas que me tinham acompanhado e que não esperava encontrar, a principio mostra um grande embaraço, respondendo por monossílabas e num tom de voz quase imperceptível às perguntas que eu lhe dirijo. Momentos depois aparece o irmão, rapaz de nove anos de idade, que entra com um certo desembaraço no quarto, onde estávamos, conservando o barrete na cabeça, decerto por não se lembrar de que devia descobrir-se. Um sinal que a irmã lhe fez nesse sentido não foi percebido por ele. Convidei-o a sentar-se numa cadeira ao meu lado, obedecendo imediatamente e sem nenhuma relutância.

Principiei sem demora a interrogá-lo sobre o que tinha visto e ouvido desde o mês de Maio ultimo na Cova da Iria no dia treze de cada mês durante o tempo da aparição.

Entre mim e ele estabeleceu-se o curto dialogo que segue.

-Que é que tens visto na Cova da Iria nos últimos meses?

-Tenho visto Nossa Senhora. -Onde é que ela aparece?

-Em cima duma carrasqueira.

-Aparece de repente ou tu vê-la vir de alguma parte?

-Vejo-a vir do lado onde nasce o sol e colocar-se sobre a carrasqueira.

-Vem devagar ou depressa?

-Vem sempre depressa.

-Ouves o que ela diz á Lúcia?

-Não ouço.

-Falaste alguma vez com a Senhora? Ela já te dirigiu a palavra?

-Não, nunca lhe perguntei nada; fala só com a Lúcia.

-Para quem olha, tambem para ti e para a Jacinta ou só para a Lúcia?

-Olha para todos três; mas olha durante mais tempo para a Lúcia.

-Já alguma vez chorou ou se sorriu?

-Nem uma coisa nem outra; está sempre séria.

-Como está vestida?

-Tem um vestido comprido e por cima um manto que lhe cobre a cabeça e desce até à extremidade do vestido.

-Qual é a cor do vestido e do manto ?

-É branca, tendo o vestido riscos dourados.

-Qual é a atitude da Senhora?

-É a de quem está a rezar. Tem as mãos postas à altura do peito.

-Traz alguma causa nas mãos?

-Traz entre a palma e as costas da mão direita umas contas que estão pendentes sobre o vestido. -E nas orelhas o que tem?

-As orelhas não se veem, porque estão cobertas com o manto.

-De que cor são as contas?

-São também brancas.

-A Senhora é bonita?

-É, sim.

-Mais bonita do que aquela menina que tu ali vês?

-Mais.

-Mas há senhoras muito mais bonitas que aquela menina...

-É mais bonita que qualquer pessoa que eu visse.

Concluído o interrogatório do Francisco, chamei de parte a Jacinta, que andava a brincar na rua com outras crianças, fiz-la sentar num banquinho ao pé de mim e submeti-a também a um interrogatório, logrando obter dela respostas completas e minuciosas como as do irmão.

-Tens visto Nossa Senhora no dia treze de cada mês desde Maio para cá?

-Tenho visto.

-Donde é que ela vem?

-Vem do céu, do lado do sol.

-Como está vestida?

-Tem um vestido branco, enfeitado a ouro, e na cabeça um manto também branco.

-De que cor são os cabelos?

-Não se lhe veem os cabelos, que estão cobertos com o manto.

-Traz brincos nas orelhas?

-Não sei, porque também não se lhe veem as orelhas.

-Qual é a posição das mãos ?

-As mãos estão postas á altura do peito, com os dedos voltados para cima.

-As contas estão na mão direita ou na mão esquerda?

A esta pergunta a criança responde primeiro que estavam na mão direita, mas em seguida, devido a uma insistência propositada e capciosa da minha parte, mostra-se perplexa e confusa, não sabendo precisar bem qual das suas mãos correspondia à mão com que a Aparição segurava o rosário.

-O que foi que Nossa Senhora recomendou á Lúcia com mais empenho ?

-Mandou que rezássemos o terço todos os dias.

-E tu rezá-lo ?

-Rezo-o todos os dias com o Francisco e com a Lúcia.

Meia hora depois de terminado o interrogatório de Jacinta de Jesus, aparece Lúcia de Jesus. Vinha, como já disse, de uma pequena propriedade de sua família, situada a dois quilômetros de distancia, onde tinha estado a vindimar.

Mais alta e mais nutrida que as outras duas crianças, de tez mais clara, robusta e saudável, apresenta-se diante de mim com um desembaraço que contrasta singularmente com o acanhamento e a timidez excessiva da Jacinta. Singelamente vestida como esta, a sua altitude não denota e o seu rosto não traduz nenhum sentimento de vaidade nem tão pouco de confusão.

Sentando-se, a um aceno meu, numa cadeira, ao meu lado, presta-se da melhor vontade a ser interrogada sobre os acontecimentos de que ela é a principal protagonista, sem embargo de se sentir visivelmente fatigada e abatida, mercê das visitas incessantes que recebe e dos inquéritos repetidos e prolongados a que é submetida.

Filha de Antônio dos Santos, de cinquenta anos de idade, e de Maria Rosa, de quarenta e oito anos, tem um irmão e quatro irmãs, todos mais velhos do que ela: Maria, de vinte e seis anos, já casada, Teresa de vinte e quatro, Manuel, de vinte e dois, Gloria, de vinte, e Carolina, de quinze. Completou dez anos de idade em vinte e dois de março do corrente nano. Tinha oito anos quando fez a sua primeira comunhão. A mãe, tipo da mulher cristã e da boa dona de casa, entregue ás lides domesticas, procurou sempre inspirar aos filhos o santo temor de Deus e levá-los ao cumprimento de todos os seus deveres morais e religiosos. Altamente preocupada com os acontecimentos que atraem a todo o momento as atenções de milhares de pessoas para a sua pobre habitação, até ha pouco tempo Ignorada do mundo, nota-se desde logo que o seu espírito hesita, numa ansiedade inquieta, entre a esperança de que sua filha seja realmente privilegiada com a aparição da Virgem e o receio de que ela seja vitima de uma alucinação que lhe traga desgostos e cubra de ridículo toda a sua família. A uma pergunta minha acerca da piedade da sua Lúcia, responde que não acha nela nada de extraordinário neste particular, vendo-a rezar da mesma f6rma e com o mesmo fervor que antes das aparições, exatamente como fazem as suas irmãs. Dou principio ao interrogatório da vidente.

-È verdade que Nossa Senhora te tem aparecido no local chamado Cova da Iria?

-É verdade.

-Quantas vezes já te apareceu?

-Cinco vezes, sendo uma cada mês.

-Em que dia do mês?

-Sempre no dia treze, exceto no mês de Agosto, em que fui presa e levada para a vila (Vila Nova d'Ourem) pelo senhor administrador. Nesse mês só a vi alguns dias depois, a dezenove, no sitio dos Valinhos.

-Diz se que a Senhora te apareceu também o ano passado. Que ha de verdade a este respeito? -0 ano passado nunca me apareceu, nem antes de Maio deste ano; nem eu disse isso a pessoa alguma, porque não era exato.

-Donde é o..que ela vem? Das bandas do nascente?

-Não sei; não a vejo vir de parte alguma; aparece sobre a azinheira e quando se retira é que toma a direção do ponto do céu em que nasce o sol.

-Quanto tempo se demora? Muito ou pouco?

-Pouco tempo.

-O suficiente para se recitar um Padre Nosso e uma Ave Maria, ou mais?

-Mais, bastante mais, mas nem sempre o mesmo tempo; talvez não chegasse nunca para rezar o terço.

-Da primeira vez que a viste não ficaste assustada?

-Fiquei, e tanto assim que quis fugir com a Jacinta e o Francisco, mas ela disse-nos que não tivéssemos medo, porque não nos faria mal.

-Como é que está vestida?

-Tem um vestido branco, que desce quase até aos pés, e cobre-lhe a cabeça um manto da mesma cor e do mesmo comprimento que o vestido.

-O vestido não tem enfeites?

-Veem se nele, na frente, dois cordões dourados que descem do pescoço e se reúnem por uma borla também dourada à altura do meio do corpo.

-Tem algum cinto ou alguma fita?

-Não tem.

-Usa brincos nas orelhas?

-Usa umas argolas pequenas.

-Qual das mãos segura as contas?

-A mão direita.

-Eram um terço ou um rosário ?

-Não reparei bem.

-Terminavam por uma cruz?

-Terminavam por uma cruz branca, sendo as contas também brancas. A cadeia era igualmente branca.

-Perguntaste-lhe alguma vez quem era?

-Perguntei, mas declarou que só o diria a treze de Outubro.

-Não lhe perguntaste donde vinha?

-Perguntei donde era e ela respondeu-me que era. do Céu.

-E quando foi que lhe fizeste essa pergunta?

-Da segunda vez, a treze de Junho.

-Sorriu-se alguma vez ou mostrou-se triste?

-Nunca se sorriu nem se mostrou triste, mas sempre séria.

-Recomendou-te, e aos teus primos, que rezassem algumas orações?

-Recomendou-nos que: rezassemos o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário, afim de se alcançar a paz para o mundo.

-Mostrou desejos de que no dia treze de cada mês estivessem presentes muitas pessoas durante a aparição na Cova da Iria?

-Não disse nada sobre esse assunto.

-É certo que te revelou um segredo, proibindo que o descobrisses a quem quer que fosse?

-É certo.

-Diz respeito só a ti ou também aos teus companheiros?

-A todos três.

-Não o podes manifestar ao menos ao teu confessor? A esta pergunta guardou silencio, parecendo um tanto enleada, e julguei não dever insistir repetindo a pergunta.

-Consta que, para te veres livre das importunações do senhor administrador no dia em que foste presa, lhe contaste, como se fosse o segredo, uma causa que o não era, enganando-o assim e gabando-te depois de lhe teres pregado essa partida: é verdade?

-Não é; o senhor administrador quis realmente que eu lhe revelasse o segredo, mas, como não o podia dizer a ninguém, não lho disse, apesar de ter insistido muito comigo para que lhe fizesse a vontade. O que fiz foi contar tudo o que a Senhora me disse, exceto o segredo, e talvez por esse motivo o senhor administrador ficasse julgando que eu lhe tinha revelado também o segredo. Não o quis enganar.

-A Senhora mandou-te aprender a ler?

-Mandou, sim, da segunda vez que apareceu.

-Mas, se ela disse que te levaria para o Céu no mês de Outubro próximo, para que te serviria aprenderes a ler?

-Isso não é verdade: a Senhora nunca disse que me levaria para o Céu em Outubro, e eu nunca afirmei que ela,me tivesse dito tal causa.

-O que declarou a Senhora que se devia fazer ao dinheiro que o povo deposita ao pé da azinheira na Cova da Iria?

-Disse que o devíamos colocar em dois andores, levando eu, a Jacinta e mais duas meninas um deles, e o Francisco, com mais três rapazes, o outro, para a igreja da freguesia. Parte desse dinheiro seria destinado ao culto e festa da Senhora do Rosário e a outra parte para ajuda duma capela nova.

-Onde quer a Senhora que se edifique a capela? Na Cova da Iria?

-Não sei: ela não o disse.

-Estás muito contente por Nossa Senhora te ter aparecido?

-Estou.

-No dia treze de Outubro Nossa Senhora virá só?

-Vem também São José com o Menino, e pouco tempo depois será concedida a paz ao mundo. -Nossa Senhora fez mais alguma revelação?

-Declarou que no dia treze de Outubro fará um milagre para que todo o povo acredite que ela realmente aparece.

-Por que razão não raro baixas os olhos deixando de fitar a Senhora?

-É que ela às vezes cega.

-Ensinou-te alguma oração?

-Ensinou, e quer que a recitemos depois de cada mistério do rosário.

-Sabes de cor essa oração?

-Sei.

-Dize lá . . .

-Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno e aliviai as almas do Purgatório, principalmente as mais abandonadas.

 

OS FENÔMENOS DO DIA 13 DE OUTUBRO DE 1917

Numerosos e interessantes relatos do chamado "milagre de Fátima" foram publicados pela imprensa Periódica e em folhetos na segunda quinzena de Outubro de 1917 e nos dois meses que se lhe seguiram. Apesar de ter tido a ventura de presenciar os acontecimentos assombrosos ao dia 13 de Outubro de 1917 e de poder por esse motivo narrá-los minuciosamente, prefiro reproduzir aqui dois relatos desses acontecimentos redigidos por escritores insuspeitos, um deles inédito, devido á pena cintilante do espirito inteligente e cultíssimo do Sr. Dr. José Maria de Proença de Almeida Garrett, que se dignou fazê- lo a meu pedido dois meses depois, e o outro da autoria do consagrado jornalista Sr. Avelino dAlmeida e publicado no numero 610, 2a série, de “A ilustração Portuguesa”.

O relato do Sr. Dr. Almeida Garrett é do teor seguinte:

"Vou relatar de uma maneira breve e concisa, sem frases que velem a verdade, o que vi em Fátima no dia 13 de Outubro de 1917.

As horas a que me referirei são as que nessa época marcavam oficialmente o tempo segundo a determinação do governo que unificara a nossa hora com a dos países beligerantes. Faço isto para maior verdade, pois não me era fácil designar com precisão o momento em que o sol alcançou o zenith.

Chegue ao meio dia. A chuva que desde manhã caía miuda e persistente, tocada de um vento agreste, prosseguia, irritante, na ameaça de querer tudo liquefazer.

O céu baço e pesado tinha uma cor pardacenta prenhe de água, prenúncio de chuva abundante e de longa duração.

Quedei-me na estrada, ao abrigo da capota do automóvel e um pouco sobranceiro ao local que diziam ser o da aparição, não ousando meter-me ao lamaçal barrento e pegajoso do campo frescamente lavrado. Estaria a pouco mais de cem metros dos elevados postes que uma tosca cruz encimava, vendo distintamente em redor deles o largo circulo de gente que, com os guarda-chuvas abertos, parecia um vasto sobrado de broqueis.

Pouco depois de uma hora chegaram a este sitio as crianças a quem a Virgem (garantiam elas) marcara Jogar, dia e hora da aparição. Ouviam-se os cânticos entoados pelo povo que as cercava.

Numa determinada altura esta larga massa, confusa e compacta, fechou os guarda-chuvas e descobriu-se num gesto que devia ser de humildade ou respeito mas que me deixou surpreso e admirado, porque a chuva, numa continuidade cega, molhava agora cabeças, encharcava e ensopava.

Disseram-me depois que esta gente, que acabou por ajoelhar na lama, tinha obedecido à voz de uma criança.

Devia ser uma e meia (treze e meia) quando se ergueu, no local preciso onde estavam as crianças, uma coluna de fumo, delgada, tênue e azulada, que subiu direita até dois metros, talvez, acima das cabeças para nesta altura se esvair. Durou este fenômeno, perfeitamente visível a olho nu, alguns segundos. Não tendo marcado o tempo da duração, não posso afirmar se foi mais ou menos de um minuto. Dissipou-se bruscamente o fumo e passado algum tempo voltou a repetir-se o fenômeno uma segunda e uma terceira vez. Das três vezes, e sobretudo da ultima, destacaram-se nitidamente os postes esguios na atmosfera cinzenta.

Dirigi para lá o binóculo. Nada consegui ver além das colunas de fumo, mas convencido fiquei de que eram produzidas por algum turíbulo, não agitado, em que se queimava incenso. Depois pessoas dignas de fé afirmaram-me que era de uso produzir-se o acontecimento no dia treze dos cinco meses anteriores, e que nesses dias, como neste, nunca ali se queimara nada nem se fizera fogo.

Continuando a olhar o Jogar da aparição, numa expectativa serena e fria e com uma curiosidade que ia amortecendo, porque o tempo decorrera longo e vagaroso sem que nada ativasse a minha atenção, ouvi o bruahahá de milhares de vozes e vi aquela multidão, espraiada pelo largo campo que se estendia a meus pés, ou concentrada em vagas compactas em redor dos madeiros erguidos, ou sobre os baixos socalcos que retinham as terras, voltar as costas ao ponto para o qual até então convergiram os desejos e ânsias e olhar o céu do lado oposto.

Eram quase duas horas.

O sol momentos antes tinha rompido ovante a densa camada de nuvens que o tivera escondido, para brilhar clara e intensamente. Voltei-me para este ímã que atraia todos os olhares e pude vê-lo semelhante a um disco de bordo nítido e aresta viva, luminosa e luzente, mas sem maguar.

Não me pareceu bem a comparação, que ainda em Fátima ouvi fazer, de um disco de prata fosca. Era uma cor mais clara, acriva e rica, e com cambiantes, tendo como que o oriente de uma pérola. Em nada se assemelhava à lua em noite transparente e pura, porque se via e sentia-se ser um astro vivo.

Não era, como a lua, esférica, não tinha a mesma tonalidade nem os claros-escuros. Parecia uma rodela brunida cortada no nacar de uma concha. Isto não é uma comparação banal de poesia barata. Os meus olhos viram assim. Também se não confundia com o sol encarado através de nevoeiro (que aliás não havia àquele tempo}, porque não era opaco, difuso e velado. Em Fátima tinha luz e calor e desenhava-se nítido e com a borda cortada em aresta, como uma tabula de jogo.

A abóbada celeste estava enevoada de cirrus leves, tendo frestas de azul aqui e acolá, mas o sol algumas vezes se destacou em rasgões de céu limpo. As nuvens que corriam ligeiras de poente para oriente não empanavam a luz (que não feria) do sol dando a impressão facilmente compreensível e explicável de passar por detrás, mas por vezes esses flocos que vinham brancos, pareciam tomar, deslisando ante o sol, uma tonalidade rosa ou azul diáfana.

Maravilhoso é que, durante longo tempo, se pudesse fixar o astro labareda de luz e brasa de calor, sem uma dor nos olhos e sem um deslumbramento na retina, que cegasse.

Este fenômeno com duas breves interrupções, em que o sol bravio arremessou os seus raios mais corusantes e refulgentes, e que obrigaram a desviar o olhar, devia ter durado cerca de dez minutos.

Este disco nacarado tinha a vertigem do movimento.

Não era a cintilação de um astro em plena vida. Girava sobre si mesmo numa velocidade arrebatada.

De repente ouve-se um clamor, como que um grito de angústia de todo aquele povo. O sol, conservando a celeridade da sua rotação, destaca-se do firmamento e sanguíneo avança sobre a terra ameaçando esmagar-nos com o peso da sua ignea e ingente mó. São segundos de impressão terrifica.

Durante o acidente solar, que detalhadamente tenho vindo a descrever, houve na atmosfera coloridos cambiantes. Não posso precisar bem a ocasião, porque já lá vão dois meses passados e eu não tomei notas. Lembra-me que não foi logo no princípio e antes creio que foi para o fim. Estando a fixar o sol, notei que tudo escurecia á minha volta.

Olhei o que estava perto e alonguei a vista para o largo até ao extremo horizonte e vi tudo cor de ametista.

Os objetos, o céu e a camada atmosférica tinham a mesma cor. Uma carvalheira arroxeada, que se erguia na minha frente, lançava sobre a terra uma sombra carregada.

Receando ter sofrido uma afecção da retina, hipótese pouco provável, porque, dado este caso, não devia ver as cousas em roxo, voltei-me, cerrei as pálpebras e retive-as com as mãos para interceptar toda a luz. Ainda de costas abri os olhos e reconheci que, como antes, a paisagem e o ar continuavam da mesma cor roxa.

A impressão que se tinha não era de eclipse. Vi um eclipse do sol, que em Vizeu, onde estava, foi total. À medida que a lua marcha a esconder o sol, a luz vai-se acinzentando até que tudo se torna baço e negro. A vista alcança um pequeno circo, para lá do qual os objetos se vão tornando cada vez mais confusos até que se perdem no negrume. Baixa a temperatura consideravelmente e dir-se-á que a vida da terra se extinguiu. Em Fátima, a atmosfera, embora roxa, permaneceu transparente até aos confins do horizonte que se distingue e vê claramente, e eu não tive a sensação de uma paragem na energia universal.

Continuando a olhar o sol, reparei que o ambiente tinha aclarado. Logo depois ouvi um campônio que cerca de mim estava dizer com voz de pasmo: "esta senhora está amarela!

De fato tudo agora mudara, perto e distante, tomando a cor de velhos damascos amarelos. As pessoas pareciam doentias e com icterícia. Sorri-me de as achar francamente feias e desairosas. Ouviram-se risos. A minha mão tinha o mesmo tom amarelo. Dias depois fiz a experiencia de fixar o sol uns breves instantes. Retirada a vista, vi, após alguns momentos, manchas amarelas, irregulares na forma.

Não se vê tudo de uma cor uniforme, como se no ar se tivesse volatilizado um topázio, mas nodoas ou malhas que com o movimento do olhar se deslocam.

Todos estes fenômenos que citei e descrevi observei-os eu sossegada e serenamente sem um emoção ou sobressalto.

A outros cumpre explicá-los ou interpretá-los.

Para terminar devo fazer a afirmação de que nunca, nem antes nem depois do dia treze de Outubro, vi iguais fenômenos solares ou atmosféricos.1

1 Algumas pessoas da Granja concorreram com a quantia de cinquenta mil réis, que foi entregue ao rev." Pároco de Fátima, para a construção de uma capela no local das aparições.

 

O MILAGRE DE FÁTIMA

(Carta a alguém que pede um testemunho insuspeito)

Quebrando um silencio de mais de vinte anos e com a invocação dos longínquos e saudosos tempos em que convivemos numa fraternal camaradagem, iluminada então pela fé comum e fortalecida por idênticos propositos, escreves-me para que te diga, sincera e minuciosamente, o que vi e ouvi na charneca de Fátima, quando a fama de celestes aparições congregou naquele desolado ermo dezenas de milhares de pessoas mais sedentas, segundo creio, de sobrenatural do que impelidas por mera curiosidade ou receosas de um logro... Estão os católicos em desacordo sobre a importância e a significação do que presenciaram.

Uns convenceram-se de que se tinham cumprido prometimentos do Alto; outros acham-se ainda longe de acreditar na incontroversa realidade de um milagre. Foste um crente na 'tua juventude e deixaste de sê-lo. Pessoas de família arrastaram- te a Fátima, no vagalhão colossal daquele povo que ali se juntou a 13 de Outubro.

O teu racionalismo sofreu um formidável embate e queres estabelecer uma opinião segura socorrendo-te de depoimentos insuspeitos como o meu, pois que estive lá apenas no desempenho de uma missão bem difícil, tal a de relatar imparcialmente para um grande diário, "O Século”, os factos que diante de mim se desenrolassem e tudo quanto de curioso e de elucidativo a eles se prendesse. Não ficará por satisfazer o teu desejo, mas decerto que os nossos olhos e os nossos ouvidos não viram nem ouviram coisas diversas, e que raros foram os que ficaram insensíveis à grandeza de semelhante espetáculo, único entre nós e de todo o ponto digno de meditação e de estudo...

O que ouvi e me levou a Fátima?

Que a Virgem Maria, depois da festa da Ascensão, aparecera a três crianças que apascentavam gado, duas mocinhas e um zagalete, recomendando-lhes que orassem e prometendo-lhes aparecer ali, sobre uma azinheira, no dia 13 de cada mês até que em Outubro lhes daria qualquer sinal do poder de Deus e faria revelações. Espalhou-se a nova por muitas léguas em redondeza; voou, de terra em terra, até os confins de Portugal, e a romagem dos crentes foi aumentando de mês para mês a ponto de se juntarem na charneca de Fátima, em 13 de Outubro, umas cinquenta mil pessoas, consoante os cálculos de indivíduos desapaixonados.

Nas precedentes reuniões de fieis, não faltou quem tivesse suposto ver singularidades astronômicas e atmosféricas que se tomaram como indício da imediata intervenção divina.

Houve quem falasse de súbitos abaixamentos de temperatura, da cintilação de estrelas em pleno meio-dia e de nuvens lindas e jamais vistas em torno do sol. Houve quem repetisse e propalasse comovidamente que a Senhora recomendava penitência, que pretendia a criação de uma capela naquele local, que em 13 de Outubro manifestaria, por intermédio de uma prova sensível a todos, a infinita bondade e a onipotência de Deus.

Foi assim que, no dia celebre e tão ansiado; afluíram de perto e de longe a Fátima, arrostando com todos os embaraços e todas as durezas das viagens, milhares e milhares de pessoas, umas que palmilharam léguas ao sol e à chuva, outras que se transportaram em variadíssimos veículos.

Desde os quase pré-históricos até os mais recentes e maravilhosos modelos de automóveis, e ainda muitíssimas que suportaram os incômodos das terceiras classes dos comboios, dentro dos quais, para percorrer hoje relativamente pequenas distancias, se perdem longas horas e até dias e noites! Vi ranchos de homens e de mulheres, pacientemente, como enlevados num sonho, dirigirem-se, de véspera, para o sitio famoso, cantando hinos santos e caminhando descalços ao ritmo deles e á recitação cadenciada do terço do Rosário, sem que os importunasse, os demovesse, os desesperasse, a mudança quase repentina do tempo, quando as bategas de água transformaram as estradas poeirentas em fundos lamaçais e às doçuras do Outono sucederam, por um dia, os aspérrimos rigores do Inverno...

Vi a multidão, ora comprimida à volta da pequenina arvore do milagre e desbastando-a dos seus ramos para os guardar como relíquias, ora espraiada pela vasta charneca que a estrada de Leiria atravessa e domina e que a mais pitoresca e heterogênea concorrência de carros e pessoas atravancou naquele dia memorável, aguardar na melhor ordem as manifestações sobrenaturais, sem temer que a invernia as prejudicasse, diminuindo-lhes o esplendor e a imponência…

Vi que o desalento não invadiu as almas, que a confiança se conservou viva e ardente, a despeito das inesperadas contrariedades, que a compostura da multidão em que superabundavam os campônios foi perfeita e que as crianças, no seu entender privilegiadas, tiveram a acolhê-las as demonstrações do mais intenso carinho por parte daquele povo que ajoelhou, se descobriu e rezou a seu mandado, ao aproximar-se a hora do "milagre,- a hora do sinal sensível, a hora mística e suspirada ao contato entre o Céu e a terra...

E, quando já não imaginava que via alguma coisa mais impressionante do que essa rumorosa mas pacifica multidão animada pela mesma obsessiva ideia e movida pelo mesmo poderoso anseio, que vi eu ainda de verdadeiramente estranho na charneca de Fátima? A chuva, à hora preanunciada, deixar de cair; a densa massa de nuvens romper-se e o astro-rei disco de prata fosca em pleno zenith aparecer e começar dançando num bailado violento e convulso, que grande numero de pessoas imaginava ser uma dança serpentina, tão belas e rutilantes cores revestiu sucessivamente a superfície solar.

Milagre, como gritava o povo; fenômeno natural, como dizem sábios? Não curo agora de sabê-lo, mas apenas de te afirmar o que vi... O resto é com a ciência e com a Igreja.

 

UMA CURA EXTRAORDINÁRIA

(13 DE OUTUBRO DE 1917)

À guisa de complemento destas ligeiras notas sobre as aparições, seja-me licito transcrever aqui uma carta endereçada a um amigo meu e publicada no numero de cinco de Outubro de 1918 do jornal “A Guarda”, o semanário de maior assinatura nas duas Beiras. Expondo minuciosamente e com a mais escrupulosa exatidão as circunstancias de uma cura extraordinária ligada com a história das aparições, essa carta reveste uma dupla importância, mercê da qual tem neste lagar o seu natural cabimento. É do teor seguinte:

A questão da origem e natureza dos acontecimentos extraordinários de Fátima é, como se costuma dizer, uma questão completamente aberta.

A Igreja não se pronunciou ainda sobre eles. O campo está, pois, patente a todas as discussões. Qualquer pensador tem o direito de apreciar, como melhor lhe aprouver, esses acontecimentos, negando a sua origem sobrenatural, pondo-a em duvida ou admitindo-a, que a ninguém assiste o direito de o censurar.

O católico não possui menos liberdade de apreciação e de crítica no exame desta matéria do que o ateu. E como todas as opiniões sinceras merecem deferência e respeito, mormente numa questão como esta, que ninguém até hoje conseguiu resolver satisfatoriamente, é justo que todos, respeitem a conclusão de um estudioso, mesmo os que a não perfilham, qualquer que ela seja, na investigação a que conscienciosamente proceder.

Os acontecimentos de Fátima constituem um fenômeno assombroso, incontestavelmente digno de estudo. Numa época em que a ciência atingiu, por assim dizer, o seu apogeu, seria deveras para lamentar que esse fenômeno não se impusesse à atenção daqueles que, pelo seu critério e pela sua competência, estão em condições de poder estudar com proveito e apreciar devidamente a origem e a natureza desse fenômeno, múltiplo e complexo. Eu sei que ilustres professores dos nossos mais altos institutos científicos continuam dedicando a sua esclarecida atenção ao estudo dos fenômenos meteorológicos sucedidos no dia treze de cada mês desde Maio a Outubro e ao grandioso fenômeno solar presenciado por mais de cinquenta mil pessoas, no dia treze de Outubro próximo findo, num dos planaltos da orla setentrional da serra de Minde.

Mas é absolutamente indispensável que, no interesse da verdade, seja ela qual for, todos contribuam com a sua quota parte para a solução deste difícil problema, até hoje insolúvel, para a decifração deste singular enigma, até hoje impenetrável. É o que intento fazer escrevendo-te esta carta e outorgando-te a liberdade de publicares o que te parecer conveniente.

Posto isto, era proposito meu principiar hoje a narração histórica dos fatos ocorridos em Fátima, se não me perguntasses na tua última carta se já se tinham verificado curas extraordinárias que abonas sem de algum modo a origem sobrenatural desses fatos. Para satisfazer a tua legítima curiosidade passo a descrever uma das muitas curas de que tenho conhecimento, consumada e, segundo parece, definitivamente assegurada no dia treze de Outubro, no celebre local das aparições, aonde desde então, sem embargo das violências brutais e sacrílegas do fanatismo anti·religioso, sempre inimigo da verdadeira liberdade de crença, concorrem ininterruptamente centenas em ilhares de pessoas de todos os pontos do país numa romagem piedosa e inofensiva que edifica, comove e encanta.

Maria do Carmo, de quarenta e sete anos de idade, natural do Jogar do Amai, freguesia de Maceira, conselho de Leiria, casada com Joaquim dos Santos, havia cinco anos que sofria de uma enfermidade bastante grave, que apresentava todos os sintomas característicos da tuberculose. Na primeira fase da doença experimentava, de vez em quando, dores, aliás não muito fortes, na cabeça, no estomago e nos intestinos. Em princípios de 1916 as dores agravaram-se de um modo extraordinário. Eram contínuas e dificeis de suportar. Sentia-as então também nas costas e, ainda com mais intensidade, no peito. Ao mesmo tempo começou a padecer de falta de ar. As mãos, os pés e o ventre incharam-lhe imenso. Suspeitava-se que tivesse um tumor no útero. Definhava e emagrecia a olhos vistos. Três meses depois não parecia a mesma pessoa, pois, de nutrida que era, tornara-se magra em extremo.

Não por pôr à cabeça nenhum objeto um pouco pesado pelas torturas que isso lhe ocasionava. Tinha com frequência vontade de vomitar, embora não vomitasse.

Quando tomava algum alimento e enquanto durava a digestão, aumentavam as dores de cabeça. As dores de estômago quase que não lhe permitiam dormir.

Para não passar pior, comia muito pouco.

Sustentava-se exclusivamente ou quase exclusivamente de leite.

Uma tosse funda e seca atormentava-lhe sem cessar o peito. A saliva sabia-lhe muitas vezes a sangue. Todos os vizinhos estavam persuadidos de que a infeliz se achava tuberculosa. Ela própria não deixava aproximar de si os filhos com medo do contágio. Um individuo que conhecia perfeitamente a gravidade do mal, estando um dia a conversar com alguns amigos e vendo-a passar próximo, disse-lhes num tom de voz que não deixava margem a duvidas que ela estava irremediavelmente perdida, não devendo viver mais de quinze dias. Passava-se isto em meados de Julho do ano próximo findo. Debalde procurou lenitivo para os seus incômodos nos recursos da medicina.

Pobre como era e não havendo médico senão a alguns quilômetros de distância, na Batalha , só ali foi uma vez com o marido consultar o distinto e hábil clinico dr. Padrão.

Os remédios que esse facultativo receitou não lhe produziram alivio algum. Nestas circunstancias não alimentava nenhumas ilusões acerca da gravidade do seu estado e aguardava resignadamente a morte. Por essa ocasião corria de terra em terra, de um extremo ao outro do país, a nova consoladora de que a Virgem Santíssima desde o mês de Maio precedente aparecia todos os meses no dia treze a umas humildes criancinhas que apascentavam gado num local vulgarmente denominado "Cova da Iria, pertencente à freguesia de Fátima, concelho de V ila Nova d'Ourem, a sete léguas de distância de Maceira. Um clarão de suave esperança iluminou subitamente o seu espírito abatido e amargurado. Cheia de fé, invoca a Mãe de Deus e, para obter por sua intercessão a cura tão suspirada, faz a promessa de ir quatro vezes a Fátima, a pé e descalça. Escolheu o dia treze de Agosto para iniciar o cumprimento da sua promessa.

Mas o marido, aliás homem temente a Deus, considerando tal empresa uma verdadeira temeridade, opôs-se á sua ida.

"Nós somos pobres - dizia ele á mulher- não dispomos de recursos para alugar um carro em que possas fazer a jornada sem perigos e com probabilidade de lá chegares viva. Tem paciência, mas não te deixo ir”.

Na verdade o seu estado de fraqueza era tão grande que se cansava imenso quando caminhava, por pouco que fosse . A cerca de duzentos metros da casa de habitação possui um pequeno prédio rustico. Havia muito tempo que era raro lá ir e, quando o fazia, precisava de se sentar um sem número de vezes á beira do caminho para descansar. As filhas faziam toda a lida da casa, indicando e distribuindo a mãe os diversos serviços, sem poder ajudá-las, como desejava, por lhe minguarem as forças. Insistiu, porém, tanto com o marido que este, vendo a sua inabalável confiança, acedeu ás suas porfiadas instâncias e resolveu-se a acompanhá-la.

Veio finalmente o dia treze d e Agosto, tão ardentemente esperado. À uma hora da madrugada desse dia a doente põe-se a caminho em companhia do marido, que continuava a considerar semelhante jornada como uma temeridade e uma loucura. Descansou varias vezes no percurso.

Eram nove horas da manhã quando chegou ao local das aparições. Estava bastante extenuada, sentia muitas dores, toda ela, segundo a sua própria expressão, era uma dor. Alguns instantes depois, com grande surpresa, experimentou notáveis alívios.

Sentou-se á sombra de uma grande e capada azinheira, onde tomou algum alimento, e ali se conservou até ás três horas da tarde, pondo-se então novamente em marcha. No regresso as dores eram menos intensas e não se sentia tão fatigada como à ida.

De dia para dia as melhoras acentuavam-se cada vez mais. Entretanto começou a tomar alimentos sólidos, mas o seu principal alimento continuava a ser o leite. Em treze de Setembro voltou pela segunda vez a Fátima, não lhe causando a viagem tanto incômodo como em treze de Agosto. De cada vez que lá ia rezava o terço do Rosário tanto na ida como na volta, não conversando nem prestando atenção ás conversas das pessoas que a acompanhavam.

A partir desse dia melhorou ainda mais,

Já trabalhava um pouco em casa e ia com menos dificuldade à fazenda. A treze de Outubro partiu de manhã cedo como das outras vezes, mas antes de chegar á Fátima surpreendeu-a a memorável chuva torrencial que assinalou aquele dia de Outono. Apesar de se ter molhado toda, ensopando a chuva a roupa que vestia, sentiu-se perfeitamente bem no local das aparições. As dores desapareceram para não mais voltarem. A intumescência do ventre e dos membros superiores e inferiores desapareceu igualmente, como que por encanto. Tendo regressado a casa, desde esse dia até hoje come de tudo, a qualquer hora do dia ou da noite, e, por mais indigestos que sejamos alimentos, não experimenta o mais leve incômodo.

Não tornou a sentir falta de ar. Trabalha muito e pode pôr à cabeça fardos pesados como antes da doença. Nunca mais teve tosse. Está gorda, sente-se forte e goza de excelente saúde. No dia treze de Novembro foi de novo à Fátima a fim de agradecer a sua cura á Virgem do Rosário.

Eis a narração mais exata possível, sem prejuízo de algum erro insignificante de detalhe, da doença e da cura de Maria do Carmo, narração redigida em face do processo verbal a que procedi de modo próprio no dia doze de fevereiro, em Maceira, na presença de várias testemunhas fidedignas e nomeadamente do marido, os quase todos confirmaram a exatidão do seu depoimento. Não cito nomes de testemunhas, posto que a isso esteja autorizado, porque todos os habitantes da freguesia estão intimamente convencidos de que a cura daquela enferma não se pode explicar de modo nenhum pela ação das forças da natureza. Poder-se-á considerar realmente essa cura como sobrenatural? Não me compete a mim dizê-lo: é á ciência e sobretudo a Igreja. Será fácil estabelecer com segurança o seu caráter sobrenatural, depois de decorridos tantos meses e não tendo havido provavelmente uma observação medica tão minuciosa como convinha? Ignoro-o, nem com isso me preocupo. O meu intuito é simplesmente chamar a atenção das pessoas sérias e cultas, quaisquer que sejam os seus princípios religiosos ou as suas opiniões acerca da índole dos acontecimentos de Fátima, para estes e outros fatos que se me antolham dignos de especial estudo, porque talvez possam contribuir para se determinar claramente a natureza desses acontecimentos. Serão eles o resultado de meras ilusões dos sentidos, especialmente da fantasia? Serão uma mistificação habilmente arquitetada pelo poder das trevas? Serão obra de Deus? É o que importa averiguar, sem ideias preconcebidas e sem partipris, como convém a um critico consciencioso e imparcial.

 

O DIA 13 DE OUTUBRO DE 1919

(DOIS ANOS DEPOIS)

Tínhamos escrito já este ligeiro relato do que se passou em Fátima no dia treze de Outubro de 1919, e hesitávamos em dá-lo á publicidade, quando o falecimento da pequena Jacinta, uma das pastorinhas de Fátima, veio de novo trazer à tela da discussão este problema que parecia um pouco esquecido.

Nossa Senhora apareceu, realmente, em Fátima?

A esta pergunta não pode, como é natural, dar-se já uma resposta concreta e positiva, quer num sentido quer noutro.

São questões de tal maneira transcendentes que seria temerário da parte de um católico aceitar ou rejeitar,in limine, qualquer intervenção sobrenatural num caso como aquele de que se trata.

O que nos resta pois fazer é esperar pacientemente ou que a aparição se confirme ou que pelo contrario a sua impressão se desvaneça por completo. Entretanto devemos orar muito a Nosso Senhor para que faça brilhar a luz da verdade e ao mesmo tempo devemos fazer a penitência que a Senhora recomendou e que, muito embora a aparição não fosse uma realidade, nem por isso deixa de ser necessária e tantas vezes lembrada por Deus, desde os famosos tempos de Nínive até a gruta de Massabielle.

E ao mesmo tempo que vamos orando convém recolher imparcialmente todos os factos ocorridos sem preocupações de qualquer especie e unicamente no intuito de esclarecer e fundamentar uma opinião, seja ela qual for.

Por isso nos resolvemos a dar à publicidade este singelo relato, a que acrescentaremos algumas notas soltas muito edificantes sobre a morte da humilde e inocente Jacinta.

 

A CAMINHO DE FÁTIMA

Raiou o dia treze de Outubro de 1919.

Na aldeia, aonde eu tinha chegado de véspera, o relógio da torre marcava no seu mostrador, enegrecido pelo tempo, dez horas e meia da manhã (hora oficial).

Longas fiadas de nuvens pardacentas corriam brandamente no céu, parecendo anunciar uma daquelas medonhas trovoadas, acompanhadas de fortes aguaceiros, que são tão frequentes no principio do Outono.

Percorrendo com a velocidade de sessenta quilômetros a hora a distância que me separava de Vila Nova d'Ourem, cheguei a esta importante povoação do distrito de Santarém às onze horas em ponto. Na véspera os jornais de grande circulação, nas suas correspondências da província, anunciavam paródia seguinte desusada concorrência de peregrinos e curiosos á terra das aparições, à estância do mistério e do prodígio, à famosa e sedutora Fátima.

Efetivamente assim sucedia. Era o segundo aniversário da sexta e ultima aparição aos pequenos videntes de Aljustrel e do assombroso fenômeno solar que eles tinham predito com uma certeza matemática e que cerca de sessenta mil pessoas de todas as classes e condições sociais e de todos os pontos do país tiveram a ventura de presenciar.

Ainda está na memória de todos o eco formidável que esse acontecimento inaudito produziu em toda a imprensa portuguesa, que dele se ocupou largamente.

Na estrada de Vila Nova d'Ourem à povoação de Fátima, que fica a doze quilômetros de distancia, o movimento, logo ao sair da vila, é extraordinário. Os habitantes assomam às janelas ou aparecem nas varandas ou às portas de suas casas, para contemplar o espetáculo interessante e comovente que se depara a seus olhos maravilhados.

Veem-se numerosos grupos de pessoas, umas a pé, outras a cavalo. Veículos de todos os tamanhos e de todos os modelos pejam literalmente a estrada. Aqui são homens e mulheres do povo que caminham vagarosamente e em silêncio. Alem é u m a família de distinção que vae comodamente instalada num trem de luxo. Mais adiante um ilustre oficial do exército guia uma charrete, que conduz algumas pessoas de sua família.

Depois passa um automóvel, que sobe rapidamente a encosta. Os grupos de peregrinos a pé, as filas de carros, as tradicionais burricadas, as fiadas intermináveis de bicicletas, os carros de bois, os trens e os automóveis isolados circulam cada vez em maior número, á medida que o veículo que me transporta se aproxima vertiginosamente do cume da da serra.

São,onze horas e meia quando chego ao pé da igreja paroquial de Fátima. Bastantes peregrinos, fatigados do caminho, descansam à beira da estrada, perto da igreja. faltam ainda três quilômetros para terminar a minha viagem, junto da modesta capella, ereta ao lado da azinheira sagrada. No resto do percurso, o movimento de peões, cavaleiros, trens e automóveis é assombroso. Os peregrinos das povoações mais próximas, satisfeitas as exigências da sua piedade, jã vão regressando aos seus lares para se entregarem aos trabalhos do campo, que se encontram então em plena atividade, especialmente a vindima e a apanha do figo.

Outros retiram, porque são de longe, tendo perdido a noite na viagem. fizeram a sua visita, cumpriram as suas promessas e voltam para suas casas, porque não foi a curiosidade, mas só o dever e a devoção o que os atraiu àquela estancia privilegiada.

Achamo-nos neste instante no alto da serra. Aquela hora da manhã e naquela altitude elevada, a temperatura é ainda, como não podia deixar de ser em tal estação, extremamente baixa: sente-se frio. O side-car em que viajo tem dificuldade em abrir caminho por entre a mole imensa de povo, que enche a estrada. A buzina toca sem cessar e a marcha do veículo, até então vertiginosa, a frouxa consideravelmente.

É notável o silêncio, a compostura e o recolhimento de toda aquela interminável vaga humana.

Dir-se-ia que ela terna intuição viva e profunda de que o solo que pisa é sagrado e de que uma atmosfera de sobrenatural a envolve e satura. De todas as estradas, caminhos e atalhos aflui gente. Mas eis que a cerca de duzentos metros, do lado direito da estrada, se avista, no fundo dum vale, uma multidão imensa. Estamos, pois, no celebre local, vulgarmente chamado Cova da Iria, e agora conhecido como o lugar das aparições da Rainha do Céu. A linda capelinha ergue-se, já perto de nós, ao lado da azinheira, em que pousaram os pés da celeste visão, ostentando as suas paredes de uma alvura puríssima e erguendo para o alto, como uma súplica perene, o seu rústico mas gracioso telhado de telha encarnada.

Em torno dela estão ajoelhadas, em fervorosa prece, mais de quinhentas pessoas. Aqui e acolá, dum e doutro lado da estrada e por toda a vasta encosta, á sombra das carvalheiras, não se veem senão veículos de todas as espécies e numerosos grupos de romeiros a descansar ou a comer os seus farnéis, num silêncio e gravidade inspirados pela devoção e pelo respeito do local.

 

Cantando e rezando!... Bendito e louvado seja!

É quase meio-dia. Por entre nuvens, que sem cessar perpassam no firmamento, o sol aparece de quando em quando e dardeja sobre as nossas cabeças os seus raios vivíssimos. Um grupo de peregrinos vem-se aproximando processionalmente do local. São cerca de cem pessoas: homens, mulheres e crianças. Alguns homens vestem opas, conduzindo um deles à frente um pendão, em que se vê um painel com a imagem da Ss.ma Virgem. Enquanto caminham, rezam devotamente o terço do rosário, em voz alta. De espaço a espaço, nos intervalos dos mistérios, um coro de vozes argentinas entoa maviosos cânticos em honra de Nossa Senhora. Pergunto donde vem aquela procissão e dizem-me que é do Jogar das Covas, limite da Caranguejeira, freguesia do Alqueidão da Serra. A procissão pára junto da capela. Alguns peregrinos entram nela e um deles reza o terço alternadamente com os circunstantes.

Parte da multidão está de joelhos, a outra parte de pé. A todo o momento chega gente. Ponho-me a percorrer o local. Um pouco afastado da multidão, u m individuo, de aspecto venerando, modestamente vestido, está sentado no chão, de mãos postas, desfiando as contas do seu rosário; sem prestar atenção ao que se passa em torno dele.

Entretanto centenas de bocas cantam o comovente' cântico popular ao Augustíssimo Sacramento da Eucaristia, o Bendito e louvado seja.

 

DUAS CURAS

Um homem do povo aproxima-se de mim e conta-me a simples mas tocante historia da sua cura. Chama-se Manuel Antunes Carvalho e tem 45 anos de idade. Durante a sua narrativa a comoção embarga-lhe por vezes a voz e as lágrimas, grossas como punhos, deslisam-lhe a fio pelas faces. Antes da sua doença tinha vindo quatro vezes a Fátima. É a primeira vez que ali volta depois da sua cura. Veio com a mulher e quatro filhos cumprir a promessa que fizera para a obter.

Momentos depois passa diante de mim um homem novo, de maneiras decididas, para o qual me chamam a atenção. Pergunto-lhe por que motivo veio á Fátima. Responde com uma evasiva, por suspeitar que eu o interrogava para troçar dele. Vai a retirar-se sacudidamente. Algumas pessoas conseguem convencê-lo de que me acho presente para colher informações destinadas à publicidade.

Então volta confiadamente sobre os seus passos e descreve-me a cura de um filho que poucos meses antes julgara perdido sem remédio. Chama-se Veríssimo dos Reis Ambrosio e reside na freguesia do Pedrogam, conselho de Torres Novas. Diz que estando um seu filho de nove anos em perigo de vida, só com a pele e o osso, havia já dois meses, a mãe e a avó materna prometeram ir a Fátíma agradecer a cura da criança, se Nossa Senhora houvesse por bem conceder-lhes essa· graça. A criança curou-se completamente e ali estava agora muito gorda e respirando saúde ao colo da mãe, que entretanto se aproximara para ma mostrar.

 

Um fogueteiro agradecido!…

De repente, a cerca de cinquenta metros da capela, um fo guetão sobe aos ares e estraleja à enorme altura, produzindo um estampido formidável, semelhante ao de um tiro de canhão, que se repercute por montes e vales ao longe e ao largo, fazendo-se ouvir a muitas léguas de distancia. A este foguetão sucedem-se mais vinte.

Em torno de mim, algumas pessoas, ignorando o motivo daquela salva, manifestam o seu desagrado pela profanação do local das aparições com semelhante cena que tanto contrastava com o silêncio e recolhimento da multidão. Estranham e lamentam que o clero se alheie por completo do que ali se passa, porque decerto sob a sua direção tais fatos não se dariam.

Receiam que as edificantes manifestações de fé, que com tanta frequência se repetem alí, venham a transformar-se, com o decorrer do tempo, em vãos e ruidosos folguedos de arraial. Se a autoridade eclesiástica, diziam, essas pessoas, aliás respeitosamente e sem espírito de crítica, tivessem alguma ingerência no desenrolar dos acontecimentos de Fátima, não teria permitido essa descabida manifestação de regozijo, que represava uma irreverência e um desacato, ou pelo menos teria impedido que ela se realizasse tão perto, do venerando padrão dos acontecimentos maravilhosos. Com um caderno e um lápis na mão dirijo-me ao homem que deitara os foguetões e pergunto-lhe o nome. Ele perfila-se, muda de cor, formaliza-se todo e responde-me num tom sacudido e breve: "Se o senhor é autoridade e vem para me prender por ter deitado os foguetões sem licença, não me importo de pagar a multa, ou de ir para a cadeia. Cumpri a minha, promessa e agora estou por tudo. Tranquilizo sem demora, assegurando-lhe que o meu intuito é simplesmente saber se tinha dado a salva de vinte e um tiros em cumprimento de alguma promessa. Então recobra ânimo, a sua fisionomia alegra-se e ilumina-se e, cheio de entusiasmo, põe-se a narrar, numa linguagem singela mas eloquente, a sua tocante história.

Proprietário duma, fabrica de pólvora e fogo de artifício numa importante freguesia do conselho do Porto de Moz, vivia com sua mulher e filhos entregue , às ocupações da sua profissão e gozando de perfeita saúde. No princípio do mês de Julho ultimo começou a sofrer duma grave doença gastro-intestinal. Os socorros da medicina de nada lhe valeram. De dia para dia o seu estado agravava-se cada vez mais. Debalde os distintos facultativos Padrão, da Batalha, e Neves, de Alcobaça, prodigalizaram à sua cabeceira os recursos e desvelos do seu saber e da sua experiência.

Perdidas todas as esperanças humanas da cura dos seus males, receando deixar, com a sua morte, os filhos na miséria, volta se, cheio de confiança, para Aquela que é justamente chamada a Consoladora dos aflitos e a Saúde dos enfermos e invoca o seu patrocínio, prometendo, se obtivesse a cura, ir deitar em Fátima, no lugar das aparições, uma salva de vinte e um foguetes-morteiros, cada um do preço de um escudo, preparados de propósito para esse fim. feita a promessa, principia a sentir melhoras e pouco tempo depois acha-se completamente restabelecido.

Veio á Fátima acompanhado da mulher, da sogra, de um filho e um sobrinho, agradecer essa graça a Nossa Senhora e cumprir a promessa.

 

SENHOR DEUS!... MISERICÓRDIA!…

É meio-dia e três quartos. Uma mulher com uma fogaça à cabeça dirige-se de joelhos para a capela. Rodeiam-na varias pessoas, que a muito custo lhe abrem caminho por entre a multidão compacta que se comprimia em torno do padrão popular comemorativo das aparições.

Pouco depois um homem bem trajado, com um filho ao colo e seguido pela mulher com as lágrimas nos olhos encaminha-se também para a capela.

Entretanto a procissão das Covas reorganiza-se e põe-se em marcha para a igreja paroquial. Junto da capela, uma mulher do povo reza o terço alternadamente com os circunstantes. De tempos a tempos ouvem-se estas súplicas comoventes que partem do fundo d'alma : "Senhor Deus, misericórdia”, "Senhor, escutai a minha oração e chegue até vós o meu clamor!”

Um cavalheiro do lugar das Marruas (Torres Novas), que aparenta ter uns cinquenta anos, encontra-se a pequena distância do lugar onde eu estou. Impressiona-me a sua atitude. Dir-se-ia a estátua do sofrimento confortado pela fé. Pessoas que o conhecem contam-me a sua dolorosa história. Nos fins de janeiro do corrente ano um insulto apoplético entorpeceu-lhe os membros inferiores e produziu-lhe na laringe uma grave paralisia, que lhe extinguiu por completo a voz. Caminha com dificuldade e apoiado a uma bengala. Veio à Fátima, esperando com fé viva a sua cura. Aproximo-me, faço-lhe varias perguntas e dirijo-lhe algumas palavras de conforto. A comoção apodera-se dele e o pobre ancião chora alto e convulsivamente como uma criança. A esposa que se encontra a seu lado chora também mas em silencio, tentando carinhosamente animá-lo.

 

LÚCIA, A VIDENTE

É já uma hora. De boca em boca corre a notícia de que a pastorinha Lúcia, tida como a privilegiada da Virgem, e principal protagonista das aparições, vem a caminho da Cova da Iria e está já perto. Ouve-se um sussurro estranho e a multidão agita-se cada vez mais. Inúmeras pessoas precipitam-se ao encontro da vidente. Ela avança com dificuldade e dirige-se para a capela, onde reza o terço alternadamente com o povo.

De quando em quando, ao longe, na estrada, ouve-se a buzina dum automóvel que chega. A multidão é enorme, formam-se diversos grupos, que rezam o terço em voz alta. Junto da capela uma moça ora fervorosamente, invocando cheia de confiança a Rainha da paz.

 

TEMOS HOMEM!

Nesta altura tomo conhecimento doutro caso extraordinário. Trata-se dum rapaz que veio á Fátima agradecer as suas melhoras a Nossa Senhora. Chama-se Laurentino Carreira Poças. È filho de Adriano Carreira Poças e de Joanna Carreira Rebella Poças e tem quatorze anos de idade. Natural do Reguengo do Fétal, foi o ano passado para Leiria, onde tinha obtido colocação como caixeiro, numa loja de fazendas. De compleição débil, começou a sentir-se doente e o seu mal estar agravou-se tanto que o patrão resolveu mandá-lo para casa, afim de se tratar convenientemente. Ao chegar ao fundo da escada da sua residencia desmaiou e caiu desamparadamente no chão, devido ao seu estado de fraqueza. O dr. Pereira, que o tinha tratado durante a sua estada em Leiria, enviou por ele uma carta para um tio de nome Francisco Carreira Poças, na qual dizia que o sobrinho estava tuberculoso. Sua mãe, logo que ele chegou, fez a promessa de ir à Fátima, e dar a volta de joelhos à capela com uma oferta á cabeça, se ele melhorasse. O pobre rapaz sentia uma forte pontada no peito, do lado direito, até á altura do pescoço. Estava proibido de fazer qualquer esforço. A sua magreza era extrema. Não podia brincar. O seu único desejo era estar sempre em descanso. Atualmente não sente mal algum. Veio em bicicleta desde o Reguengo do Fétal; que fica a duas léguas de distancia, trazendo um rapazito diante de si no guiador do veículo. Na véspera, tinha feito três meses, que havia chegado doente a casa. Ha mês e meio o dr. Pereira tornou a vê-lo em Leiria, onde ele. foi consultá-lo, e disse que o achava muito melhor, proferindo estas palavras textuais que exprimiam ao mesmo tempo surpresa e satisfação: "Temos homem”!

 

SALVA DA PESTE!

Encontro de novo o pequeno grupo que pouco antes vira entrando para a capela.

São marido, mulher e um filho. O marido chama-se José Antonio Motta e tem 31 anos de idade. A mulher chama-se Maria do Espírito Santo Motta e tem a idade do marido. São naturais do lugar dos Vargos, freguesia do Paço, conselho de Torres Novas. A mulher esteve muito, doente com um ataque de broncopneumonia durante cerca de um mês, em Outubro e Novembro do ano passado .

O marido viu-a um dia tão mal que receou perdê-la e por esse motivo voltou-se para a Fátima, invocou Nossa Senhora do Rosário e fez a promessa de ir com a família àquela povoação e dar uma esmola em harmonia com as suas posses, se a mulher se curasse.

A Virgem Santíssima fez lhe essa graça e ele veio em companhia da mulher dum filho e da sogra, cumprir a promessa. Tinha vindo a Fátima faz hoje dois anos, no dia do grande prodígio.

A um metro de distância, do lado da estrada, vê-se avançar de joelhos, em direção à capella, uma mulher do povo. É uma hora e meia: precisamente meio-dia astronômico. Devem estar presentes mais de duas mil pessoas.

Ao pé de mim uma mulher, profundamente impressionada com tudo quanto tinha observado, dizia com intimativa que, ainda que se visse obrigada a sair para fora do país, havia de fazer toda a diligência para voltar á Fátima.

 

Virgem Santíssima, perdoai-me!

Nesta altura um homem bem trajado, que acabava de chegar, rompe por entre a multidão, que se apinhava em torno da capela, contempla com ar de troça e compaixão os peregrinos que oram ajoelhados e pára em frente da porta do santuário. Momentos depois, tomado duma comoção íntima, cai de joelhos e profere, num soluço, esta súplica que os circunstantes ouviram distintamente: "Virgem Santíssima, perdoai-me!... ficando durante muito tempo em recolhimento profundo.

Um oficial a cavalo avança com precaução por entre o povo a alguma distancia da capela. Pergunto quem é e dizem-me que é o administrador do conselho. Observa com atenção tudo quanto sucede e passeia constantatemente dum lado para o outro. Parece-me ter empenho em não faltar aos deveres que a correção impõe a uma pessoa inteligente e bem educada, apesar das idéias avançadas que me dizem possuir.

 

MORRERÁ A JACINTA?!

Chega ao pé de mim Jacinta de Jesus Marto, uma das videntes de Aljustrel, acompanhada pela mãe. Ambas trajam rigoroso luto por motivo do falecimento de Francisco Mario, irmão da Jacinta, que também teria sido favorecido com a visão da Virgem e que até ao último suspiro sustentou sempre a verdade das suas narrativas. A pequena está esquelética. Os braços são de uma magreza assombrosa.

Desde que saiu do hospital de Vila Nova d'Ourem, onde durante dois meses se esteve tratando sem resultado, anda sempre a arder em febre. O seu aspecto inspira compaixão.

Pobre criança! Ainda o ano passado cheia de vida e saúde, e já hoje como uma flor murcha, pendendo à beira do sepulcro A tuberculose depois de um ataque de broncopneumonia e duma pleurisia purulenta, mina-lhe desapiedadamente o débil organismo. Só um tratamento apropriado num bom sanatório é que poderia talvez salvá-la.

Mas seus pais, conquanto não sejam pobres, não podem fazer face às avulta das despesas que esse tratamento exige.

Bernadette, a humilde zagala de Lourdes, ouviu da boca da Imaculada

, que se dignou aparecer-lhe nas rochas de Massabielle, a promessa de que a faria feliz, não neste mundo mas no outro. Teria a Virgem feito identica promessa à pastorinha da serra de Minde, a quem comunicou um segredo que a vidente a ninguém pode revelar?

Assim os sofrimentos de Jacinta de Jesus, suportados com resignação cristã, serão para ela uma fonte de merecimentos, que hão de tomar mais brilhante e preciosa a sua coroa de glória no Céu.

 

TERRA ABENÇOADA!

Juntamente com a peregrinação das Covas, que regressa da igreja paroquial, vem uma moça que sofria de uma grave enfermidade e cuja cura, atribuída à intercessão de Nossa Senhora de Fátima, tem sido o assunto das conversas de todos os romeiros nos últimos meses.

Muitas pessoas a acompanham, ouvindo da sua boca a narração dos episódios da sua doença e da sua cura.

Está já perto da capela. Aproximo-me, rompendo a custo por entre a multidão que a envolve num círculo apertado.

Passo a interrogá-la. Chama-se Maria da Conceição, tem 21 anos de idade, e é filha de Francisco Correia e Maria dos Anjos Correia e natural e moradora na lugar da Carreirancha, freguesia do Alqueidão da Serra, distrito de Leiria. Tem dois irmãos e quatro irmãs, que vivem com ela na casa paterna. Mora num dos extremos do lugar, na parte mais alta.

Há sete anos sofreu dum forte ataque de gripe e, não se tendo tratado como devia, o estado geral da sua saúde ressentiu-se imenso. Alguns meses depois de ter tido a gripe sobreveio-lhe uma meningite cérebro-espinhal, sendo tratada durante esta grave doença pelo dr. Padrão, da Batalha. Os remédios que tomava não lhe produziam alívio algum. Sentia dores violentas na cabeça, no peito e nas pernas. Uma tosse funda e seca atormentava-lhe constantemente o peito. Há cerca de três anos e meio deitou sangue com abundancia pela boca durante quinze dias consecutivos. O sangue deixou de correr depois de instantes súplicas a Nossa Senhora. Muita gente, vendo o seu estado de fraqueza e abatimento, dizia que ela estava condenada a morrer em breve, vítima da tuberculose. Durante os últimos sete meses esteve de cama, paralítica, mal se podendo mover. As dores que experimentava eram horríveis. Não descansava nem de dia nem de noite, porque a violência das dores não lhe permitia conciliar o sono. Porém, no meio dos seus atrozes sofrimentos, nunca perdera a confiança na proteção da Santíssima Virgem, de quem esperava inabalavelmente a sua cura.

No dia 23 de Março do corrente ano, á tarde, disse à família que Nossa Senhora lhe tinha aparecido e assegurado que dois dias depois, ás 9 horas da manhã, se poderia levantar do seu leito de dor, recomendando-lhe que fosse à Fátima e prometendo-lhe que se havia de curar com o uso da terra do local das aparições. Contra a expectativa da família, que se recusava a prestar crédito ao que ela dizia, supondo-a vítima de uma alucinação, no dia 25, á hora marcada, a doente levanta-se, com grande estupefação de todos, e, montando a cavalo, parte para a Fátima. Tendo regressado a casa, depois de satisfeitas as suas devoções e de dadas as devidas ações de graças, começa uma novena. Rezando o terço e uma estação cada dia e aplicando a terra do local das aparições dissolvida em água como remédio para uso externo e interno, sente-se curada no fim da novena, Atualmente caminha sem dificuldade, não se cansa com o trabalho, nem sente dores.

Todos os meses desde então tem ido à Fátima, no dia treze, excepto no mês de Setembro, agradecer a Nossa Senhora a sua cura. Manuel Pastilhas e Maria de Jesus, de Boiceiros, e outras pessoas, que a acompanham, afirmam tê-la visto num estado lamentável, paralítica e extremamente magra.

 

OUTRA CURA

Em torno de mim comprime-se uma multidão enorme.

Todos querem ouvir a narração da cura de Maria da Conceição, mas é impossível. A custo consigo romper o círculo de ferro que me aperta. Um homem do povo dirige-se a mim e conta-me a traços largos a interessante his1oria da sua cura. Chama-se Antônio d’Oliveira Dias. tem 58 anos de idade e reside no lugar dos Carrascos, freguesia do Paço, conselho de Torres Novas. Sofria havia doze anos,· duma faringite crônica, rebelde a todo o tratamento. Os médicos eram de opinião que nunca se curaria radicalmente. Em treze de Outubro de 1917 tinha vindo á Fátima e presenciado o estupendo fenômeno solar. Em Novembro desse mesmo ano fez a promessa de ir à Fátima agradecer a Nossa Senhora a sua cura, se ela se dignasse alcançar-lhe essa graça por que tanto suspirava. A partir dessa data, apesar de não fazer nenhum tratamento, foi melhorando pouco a pouco e, passado um ano, em Novembro de 1918, achou-se completamente curado.

 

SANGUE RUIM!

Um grupo interessante de quatro pessoas uma senhora e três meninas chama a atenção dos circunstantes.

Veem agradecer a Nossa Senhora a cura, de que uma delas foi objeto. São mãe, duas filhas e uma afilhada.

Residem em Lisboa, na Rua de D. Estephania no 115, 3o. A mãe chama-se D. Amelia Júlia dos Santos, viúva de Carlos Alberto dos Santos. Uma das filhas, a mais velha, é a protagonista deste comovente episódio. O seu nome é Maria Manuel dos Santos e tem 25 anos de idade. Esteve quatro anos como aluna no Colégio de S. Pedro d'Alcantara tendo entrado em 1910 e saído em 1914. Pertence a uma família rudemente provada pelo sofrimento.

Muitos parentes próximos tem morrido tuberculosos, entre eles um irmão com seis anos de idade. O pai morreu louco e um irmão enlouqueceu há meses, encontrando-se atual mente no hospital dos irmãos de S. João de Deus, no Telhal.

Concluídos os estudos, saiu do Colégio e foi para o Alemtejo, estabelecendo-se como professora particular em Arraiolos, aonde chegou .no dia quatorze de Outubro de 1914. Poucos dias depois foi acometida dum ataque de apendicite, retirando para Lisboa por conselho do médico a vite e quatro do mesmo mês. Em Novembro do ano seguinte sofreu um segundo ataque e um terceiro em Março. A vinte e oito de Maio entrou para o hospital de D. Estephania, afim de ser operada. A operação teve logar a onze de Junho e foi feita pelos drs. Monjardim, Pinto Coelho e Medeiros. No fim do mês, a vinte e oito, saiu do hospital, sendo conduzida num trem a sua casa. Esteve pouco mais dum mês em casa, voltando de novo para o hospital, a quinze de Agosto, porque o seu estado de saúde se agravara. Alí esteve até quatorze de Novembro, dia em que foi operada pela segunda vez. Entretanto começou de sentir uma dor fortíssima que tinha a sua localização na perna direita, estendendo-se desde o quadril até ao joelho.

Por vezes a violência da dor atingia o paroxismo, tornando-se insuportável. Só conseguia sossegar á força de injeções.

Havia épocas em que não dormia durante noites consecutivas. A perna estava sempre encolhida e dobrada.

Eram-lhe aplicadas extensões de ligaduras e gessadas. A febre era constante, mas não muito alta.

Definhava e emagrecia de dia para dia. O apetite desaparecera. foram-lhe receitados varias tônicos glycero-fosfato de cal, xarope iodotânico e strychnina, e injeções de diversas espécies -arrenhal, cocodylato e dynamol. A sua doença foi diagnosticada de roxalgia, proveniente de uma queda que a enferma dera, quando ain criança, de um quarto para um terceiro andar pela escada; Quando sucedeu esse desastre, contava onze anos de idade. ficara apenas com a perna magoada e cheia de nódoas negras, que depressa se desvaneceram sem deixarem vestigios de lesão interna.

Os médicos eram de parecer que a ação do cloroformio e do ether, com que fora anestesiada por ocasião das operações, tinha posto a descoberto a doença latente!

 

VIA DOLOROSA!...

Antes da segunda operação as dores não eram tão fortes e a doente podia andar, embora com muita dificuldade. Morava então na Rua de Passos Manuel, próximo do Largo de Santa Barbara. Ficava a duzentos passos do hospital. Conservou-se em observação e tratamento durante um ano; estando ora três meses no hospital, ora seis meses em casa".

Quando estava em casa, ia ao hospital fazer o tratamento, apoiando-se a uma sombrinha. Teve de internar-se no hospital umas cinco vezes, indo ora de trem, ora em maca. Depois de dois anos e meio de tratamento, no dia um de Novembro de 1916, por conselho dos médicos, saiu do hospital de D. Estephania e foi para o Sanatório do Outão, próximo de Setubal, na esperança de que o ar do mar trouxesse algum lenitivo aos seus padecimentos. Foi transportada até ao Terreiro do Paço num automóvel da Cruz Vermelha. Passaram-na ao colo para o vapor que fez a travessia do Tejo. Do Barreiro foi levada nas mesmas condições para o comboio, em que seguiu para SetubaL Ali aguardava-a um automóvel, que a conduziu ao Sanatório.

 

NO SANATÓRIO

Nessa estância esteve dez meses. Durante o primeiro mês não se levantou da cama. Depois, com o auxílio de muletas, começou a andar a pé com a perna metida num aparelho de gesso. Ao cabo de sete mês declarou-se-lhe uma coxalgia também na perna esquerda. Sentiu uma dor aguda na coxa, a perna principiou a encolher, vendo-se a infeliz menina obrigada a recolher à cama. A perna direita continuava imobilizada. no aparelho de gesso e a perna esquerda foi adaptada uma bota de gesso. Como o médico que a tratava havia partido para França e o clínico que lhe sucedeu na direção do Sanatório era especialista de doenças pulmonares e não de doenças ósseas, a enferma tinha vontade de regresar a Lisboa. Entretanto o seu estado de saúde piorou por motivo de uma infecção intestinal, que lhe sobreveio.

Uma doente sua amiga, que para ela fora sempre uma desvelada enfermeira, compadecida do seu estado, escreveu à mãe uma carta, em que lhe dizia que fosse buscar a filha, porque ela estava a morrer.

A pobre senhora, com a alma alanceada de dor, partiu sem demora para o Outão, afim de levar a filha para a capital, mas, como o medico se opusesse ao que justamente considerava uma temeridade, desistiu, por então, do seu intento, regressando sozinha a Lisboa. Passados cinco dias, por diligências suas, uma enfermeira do hospital de D. Estefania seguiu para o Sanatório, afim de ver se conseguia trazer a enferma para casa.

Por essa ocasião uma professora de Lisboa costumava ir três vezes por semana ensinar lavores às crianças do sanatório. Aproveitou-se um dos dias em que ela regressava á capital para que pudesse acompanhar a doente, que veio também acompanhada pela enfermeira já referida e por um enfermeiro do Sanatório.

 

DE HERODES PARA PILATOS!,,,

No pátio do Sanatório, um trem recebeu a enferma que foi transportada num tabuleiro aos ombros de dois criados. No trem veio sempre ao colo da professora e da enfermeira. Uma das pernas estava metida no aparelho e a outra na bota de gesso e entre talas. As dores eram horríveis. A fraqueza era extrema. Qualquer movimento fazia-a desmaiar. Na estação de Setubal os seus Ires companheiros de viagem transportaram-na do trem para o comboio com mil precauções.

Um individuo que seguia no mesmo compartimento, ajudou-a caritativamente a subir e a instalar-se. Durante o trajeto perdeu os sentidos repetidas vezes.

A enfermeira, não lhe sentindo o pulso, afligia-se imenso com receio de que ela morresse durante a viagem. No Barreiro foi transportada em braços, desmaiada, do comboio para o vapor, e bem assim em Lisboa, do vapor para o automóvel da Cruz Vermelha, que a conduziu a casa, já então na rua de D. Estephania. No cais a família aguardava a sua chegada. Quando desembarcou, o rosto estava de uma palidez cadavérica. As pessoas que a viam passar lamentavam, cheias de compaixão, a sua triste sorte.

Umas diziam que ela estava morta, outras que estava ferida, outras finalmente que estava queimada. Na pequena maca do automóvel foi conduzida até á cama, num terceiro andar.

Era o dia dez de Agosto. Por indicação de um farmacêutico das relações da família, mandou-se chamar o dr. Miranda, especialista de doenças ósseas. Só oito ou dez dias depois é que esse medico pode visitar a doente. Logo que a viu, aconselhou-a a ir ao hospital á consulta, afim de se lhe pôr um novo aparelho. Ela assim fez. Foi esterilizada para lhe poderem estender convenientemente as pernas. Como, porém, o aparelho não ficasse bem colocado e se quebrasse, não estando por isso a perna tão direita como era preciso, o medico mandou-a estar dez dias com uma extensão. Depois voltou para casa. Mais tarde, no dia seis de julho de 1918, foi ao consultório do dr. Miranda, na Avenida da Liberdade, para que ele lhe pusesse, como efetivamente pôs, outro aparelho, grande, desde os joelhos até ao estômago. foi em maca num automóvel da Cruz Vermelha, o qual esperou que fosse posto o aparelho, transportando-a depois para casa. Conservou esse aparelho durante os meses de Janeiro e fevereiro. Entretanto a enferma por intermédio das empregadas do hospital ia fornecendo ao medico informações acerca do seu estado. Pela Páscoa mandou-lhe pedir que lhe fosse aplicar outro aparelho, porque ainda sentia dores. O medico disse-lhe que havia de ficar sempre com dores e aconselhou-a a que comprasse o cabedal preciso; pois ele se prontificava a fazer um aparelho, que ela devia usar durante toda a vida. Como o aparelho de gesso se tivesse partido e ela sentisse poucas dores quando ele estava em bom estado, pediu ao medico que substituísse aquele aparelho por outro lambem de gesso. O medico acedeu a esse pedido, A doente foi, por isso, para o hospital, onde esteve quatorze dias certos. Entrou a doze de Março e saiu a vinte e oito do mesmo mês,sexta feira santa. foi e veio num automóvel da Cruz Vermelha, ficando três meses de cama com o mesmo aparelho.

 

A PIEDADE DE UMA IRMÃ

Por ocasião da última aparição de Fátima, a treze de Outubro de I917, sua irmã Lúcia Maria Anna dos Santos, de vinte anos de idade, que estava a passar o verão no lugar dos Carrascos, freguesia do Paço, conselho de Torres Novas, em casa de sua prima D. Amelia Estevam, foi com várias pessoas de família àquela povoação da serra de Minde e assistiu aos fenômenos maravilhosos que alí se verificaram, pedindo com o maior fervor e na maior aflição à Santíssima Virgem que se dignasse curar a irmã. A cura da irmã era a sua grande preocupação de todos os dias, de todas as horas, de todos os instantes. Era o seu mais ardente desejo, a graça que mais ambicionava, o favor do Céu que suplicava com mais vivo empenho e com maior constância. Já no dia treze do mês anterior tinha ido a Fátima e implorado ardentemente essa graça.

Antes desse dia, ainda em Setembro, tinha pedido a um primo seu, Julio Netto d'Almeida, que não se esquecesse de recomendar a sua intenção ás pastorinhas privilegiadas de Fátima. A treze de Outubro ela própria pediu às videntes o auxílio das suas orações e prometeu que a irmã iria à Fátima agradecer à cura, se Nossa Senhora se dignasse favorecê-la com essa graça. Entretanto continuava a orar a Nossa Senhora da Fátima, alimentando a esperança de ver a irmã curada, apesar das graves crises por que ela passava e de todos perderem as últimas esperanças de salvação. "Uma cura extraordinária!" Diz o médico... A enferma, quando passados, três meses em junho, se tirou o ultimo aparelho, como a enfermeira se oferecesse para a levar ao colo até ao banho, recusou o oferecimento, dizendo que podia ir por seu pé. Um mês depois já andava sem se encostar a cousa alguma, embora com dificuldade. foi depois para fanhões, nas proximidades de Loures, regressando a Lisboa passados dois meses. Ali, andava apoiada a uma bengala, vindo de lá a caminhar bem. Antes de sair para fanhões foi ao hospital. O medico, ao vê-la, ficou estupefacto. Não queria crer que fosse a mesma pessoa. interpelou-a, dizendo " 0' moça, és tu?! Parece um milagre!. E logo, como que reconsiderando, acrescentou: "Um milagre, não; uma cura extraordinária, um caso raro.. Depois observou – a atentamente e disse que a achava boa. Muitas pessoas das relações da enferma, que eram pouco crentes, diziam assombradas, que a sua cura parecia um milagre. As pessoas de sentimentos religiosos que tinham conhecido bem o seu lastimoso estado não alimentavam dúvidas a respeito do caráter sobrenatural da sua cura...

 

PEDI E RECEBEREIS!...

Por ocasião das duas operações a enferma recebeu os sacramentos. A irmã todos os dias ou quase todos os dias, sobretudo depois dos acontecimentos de Fátima, rezava o terço do rosário e oferecia-o pela sua cura. A doente, por carta que a irmã escreveu dos Carrascos à mãe quando da sua ida a Fátima, soube da promessa que ela tinha feito e associara-se às suas intenções, mas conformando-se resignadamente com a vontade de Deus e pedindo a Nossa Senhora o que fosse melhor para a sua alma.

 

COMO ERA BOM CONTINUAR AQUI!...

São três horas menos um quarto. Estão presentes mais de mil pessoas. O movimento de vai-e-vem é extraordinário. Entretanto tomo conhecimento doutra cura. Maria José, de 50 anos, natural do lugar da Ameixieira, freguesia de Fátima, casada com Antonio do Rosario, começou a sofrer gravemente dos olhos no mês de Julho findo. Turvava-se-lhe a vista, vendo muito pouco. Tinha dores e prurido nos olhos. Prometeu, se melhorasse, ir de joelhos até junto da capela desde o ponto em que primeiro a avistasse. Sente-se efetivamente melhor, quase de todo curada. Veio por isso cumprir hoje a promessa.

Olho em torno de mim. O espetáculo é soberbo. A multidão parece arrancar-se com dificuldade deste lugar sagrado, a que ficam presos os corações. Desfruta-se aqui uma alegria suave e santa, uma consolação que não parece deste mundo. Respira-se o sobrenatural a largos tragos.

 

...mas é preciso partir!...

São horas de regressar. O meu relógio marca quatro horas. Parto para a igreja paroquial, que anda em reparações. Muitos peregrinos vão ali visitar Jesus Sacramentado e ver as obras. Os operários, quando ultimamente procediam à demolição de uma parte das paredes do altar-mor, descobriram uma estátua de Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo, de tamanho natural e em perfeito estado de conservação. A descoberta desta imagem causou sensação em toda a região e entre os peregrinos, tanto mais que tudo parece indicar que se trata de uma imagem de Nossa Senhora do Rosário.

 

De regresso à casa!...

Pelas estradas, que percorro e que vão cheias de romeiros de regresso a suas casas, vê-se o mesmo espetáculo como da manhã, mas talvez ainda mais impressionante. Ao perto e ao longe. não se ouve senão a recitação cadenciada do terço do rosário, ou o canto da ladainha da ladainha Santíssima Virgem, ou de hinos populares em sua honra. E quando, à noite, a sete léguas de Fátima, me dirigia depois de jantar, para a estação de Payalvo, a fim de tomar o rápido de Lisboa, ainda pelas estradas se ouvia o Avé de Lourdes, cantado pelos peregrinos que, a pé ou a cavalo, suspiravam por chegar o mais depressa possível aos seus lares distantes, onde nos serões do inverno, á lareira, irão recontar aos que tinham ficado as estupendas maravilhas da misteriosa Fátima. E com o poeta repetirão cantando cheios de fé e confiança na Augusta Padroeira de Portugal, as formosas e inspiradas estrofes, cujos sons os montes e vales da serra de Minde parecem repercutir ao longe:

Hoje... Mas hoje inda é estrela

Santa Maria !... Inda é Mãe!

Veio ao condado de Nuno

dizê-lo em terras de Ourem!

Quando Roma em culto alçava

Dom Nuno a trono de luz,

veio a Fátima sorrir-nos

a doce Mãe de Jesus!

Veio dizer-nos, na bruma

da nossa tarde sombria,

que ora do Céu por nós velam

frei Nuno e Santa Maria.

 

A morte da pequena Jacinta

Como prometemos, vamos agora dar aos leitores umas ligeiras notas sobre o falecimento da pequena Jacinta, uma das videntes de Fátima, e seguidamente diremos também alguma cousa acerca das nossas impressões do dia treze de Maio de 1920 que a inesperada proibição da autoridade veio pôr em destaque, produzindo efeito contraproducente.

É crença geral entre o povo que toda a família das crianças, assim como também estas, estão condenadas a desaparecer dentro de pouco tempo, e acrescenta-se que isso lhes teria sido anunciado pela Senhora. Qualquer que seja o fundamento desta crença, o certo é que o pequeno Francisco, irmão da Jacinta, já faleceu, a Jacinta também, o pai da Lúcia da mesma forma, e a mãe esteve há pouco tempo à morte, assim como também está muito mal uma irmã da Jacinta.1

1faleceu no princípio do mês de Maio findo.

Das três crianças resta apenas a Lúcia, que era a que conversava com a Senhora, segundo ela afirma.

A Jacinta, que era relativamente robusta, teve como dissemos, a pneumônica, donde lhe resultou uma pleurisia purulenta, seguida doutras complicações.

Tendo vindo a Fátima um distinto especialista da capital, e tendo observado a pequena, empenhou-se em que ela fosse para Lisboa, afim de ver se, por meio de uma operação, ainda era possível salvá-la.

Buscou-se-lhe alojamento em casa dalguma pessoa abastada, mas nada se conseguiu.

Foi então hospedar-se na pobre morada duma modesta criatura, que a recebeu de bom grado, com grande contentamento da pequena, que tirada do seu meio provinciano, toda ela era acanhamento e confusão.

Para fazer a operação escolheu-se o hospital de D. Estephania.

Antes, porém, da criança recolher ao hospital, disse ela que a Senhora lhe havia novamente aparecido, assegurando-lhe que morria, e por isso a pequena achava que a operação era inútil.

Apesar disso, e muito embora ela teimasse que tudo era inútil, fez-se lhe a operação que correu bem, conquanto sem exito feliz, como se viu.

Quatro dias antes de morrer, como a criança tivesse grandes dores e se queixasse, dizia-lhe a criatura que a havia recolhido e a quem tratava por madrinha, que suportasse com paciência as suas dores, que isso seria muito agradavel a Deus.

Na manhã do dia seguinte disse-lhe então a Jacinta:

-Olhe, madrinha! Eu já não me queixo ! Nossa Senhora tornou-me a aparecer, dizendo que em breve, me viria buscar e que me tirava já as dores!

E de fato, desde esse dia até que morreu, segundo consta, não tornou a queixar-se nem deu mostras de sofrimento.

Sucedendo a madrinha passar ou sentar-se ao pé da cama, não longe do lugar em que a Jacinta disse ter visto a Senhora - a vidente exclamou:

-Tire-se daí, madrinha, que aí esteve a Senhora!...

E a mesma preocupação se lhe apresentava quando alguma enfermeira passava pelo mesmo lugar. Como fossem ao hospital algumas pessoas, imodestamente vestidas, ou vê-la a ela ou ver outros doentes, e algumas enfermeiras apresentassem certos exageros no traje - dizia indicando essas pessoas e referindo-se a determinados enfeites e decotes:

-Para que serve aquilo!? Se soubessem o que é a eternidade!...

Falando de alguns médicos que ela julgava serem incrédulos - lastimava-os, dizendo:

-Coitados, mal sabem eles o que os espera!

Afirmava a vidente que Nossa Senhora lhe havia comunicado: que o pecado que leva mais gente à perdição era o pecado da carne, que era preciso deixarem-se de luxos, que não deviam obstinar-se no pecado come até aqui, que era preciso fazer muita penitencia. E parece que a Senhora ao dizer isto se mostrava muito consternada, porque a pequena acrescentava:

-Ai! eu tenho multa pena de Nossa Senhora! Tenho muita pena!

Enquanto esteve em casa, antes de ir para o hospital, vivia em companhia doutra pequenita, a quem ela recomendava muitas vezes - que fosse muito obediente, que não fosse preguiçosa e que nunca faltasse à verdade. Pouco antes de morrer perguntando-se-lhe se queria tornar a ver a mãe, respondeu: - que a família dela durava pouco tempo e que em breve se encontrariam no Céu. Disse mais que Nossa Senhora - devia ainda aparecer outra vez, mas não a ela, porque com certeza morria, segundo ela lhe disse. Pediu licença para se confessar, muito embora se tivesse confessado e comungado antes de entrar para o hospital. Foi confessá-la o rvmo. prior dos Anjos, Dr. Pereira dos Reis, mas não teve tempo de lhe dar a comunhão. Entrou para o hospital no dia 2 de fevereiro, e morreu no dia 20. Depois de falecer, alguém aventou a idéia de a transportarem para a terra da sua naturalidade e assim se fez, promovendo-se uma subscrição para esse fim.

Muitas das pessoas que a não tinham querido receberem sua casa, depois que a pequena morreu já todas se mostravam solícitas em lhe prestar homenagem, até talvez com um bocadinho de exagero, - o que provocou alguns reparos justos dum ilustre sacerdote. Esteve o cadáver da pequena na casa do despacho da Igreja dos Anjos, aguardando a remoção para a estação e as necessárias formalidades, saindo depois com grande acompanhamento.

Alguém notou a coincidência de, quando saiu o enterro, se achar na Igreja o Dr. Domingos Pinio Coelho e algumas pessoas de família, que por incidente ali haviam ido, e relacionou este fato com o celebre artigo escrito por sua excia. em Outubro de 1917, que, apesar de ortodoxo, motivou reparos dalguma gente que ferve em pouca água. A pequena deixou dois segredos para uma pessoa que se tem interessado por este assunto. Em suma e em conclusão:

Deus permita que a luz da verdade resplandeça sobre este caso, não só pelo que ele possa ter de miraculoso - como pelas consequências que daí possam resultar para a regeneração espiritual desta nossa querida pátria. E entretanto, seja como for, vamos nós cumprindo a exortação que a pequena atribui a Nossa Senhora – e que é, afinal, a doutrina da Igreja: Façamos penitência! Evitemos o luxo e o pecado da carne! Não nos obstinemos no pecado - para que não nos suceda como a alguns a quem a pequena se referiu, quando, dizendo-lhe a madrinha que era preciso também orar por eles, ela respondeu: -Pois sim, madrinha, mas esses já não tem remédio!

 

O DIA TREZE OE MAI0 DE 1920

O dilúvio

Cheguei no dia treze de Maio último, de madrugada, a Vila Nova de Ourem, debaixo duma carga de água torrencial, entre o fuzilar dos relâmpagos e o ribombar dos trovões.

A minha saída de Lisboa corriam os boatos mais terroristas sobre o caso de Fátima. dizendo-se que era inútil a viagem, porque havia ordens terminantes para não deixar passar ninguém de Vila Nova de Ourem.

Por esse motivo, muitos, que tinham combinado vir comigo, não vieram, mas eu teimei e vim, quando mais não fosse, para ver o que havia de verdade.

Ao mesmo tempo que eu, chegaram duas senhoras, uma nova ainda, elegante e formosa, com uns grandes olhos cor de myosoti, filha de um antigo ministro da monarquia, e a outra de aparência distinta, já de certa idade, e que me consta ser aparentada com uma das famílias mais conhecidas da Beira, e nomeadamente da Guarda.

Coitadas! Debaixo daquela chuvada toda, que até fazia lembrar o versículo genesiaco: -Et opertae sunt cataractae aquarum et fonts abyssi magni, não se queixavam, tamanha era a sua fé e o seu entusiasmo, e apenas, as preocupava a idéia de que as não deixariam chegar ao local das aparições!...

 

A arca de Noé

A muito custo lá conseguimos chegar a uma estalagensinha que fica mesmo em frente da igreja e que dá pelo nome de Hospedaria da Maria Joanna, e aí descansamos um pouco, num canapé tremelicante, até romper o dia, pois a respeito de quartos era cousa que não havia. Manhãzinha cedo, mal luziu o buraco, sentimos um grande tropel de cavalos.

Corremos à janela!

Era um esquadrão de cavalaria da guarda republicana, que marchava a todo o galope para a Fátima.

- Então sempre seria verdade?

lnquirimos da criada da locanda o que havia... que se dizia por lá...

-A mesma incerteza... Boatos!... Boatos!...

Que havia infantaria... cavalaria... metralhadoras… não sei que mais...

Uma ofensiva em regra!

-Mas porquê, Santo Deus?!

Ninguém sabia explicar!... dizia a mulherzinha.

-Uma cousa já conseguiram eles: De Ourem não vai ninguém à Fátima. Estavam todos os carros alugados a 40,000 cada um. Pois foram todos dispensados com grande zanga do alquilador que é republicano esturrado e que não percebe por que razão se pode proibir a um cidadão pacifico ir em passeio onde muito bem lhe apeteça!

De Thomar não vem ninguém pelo mesmo motivo! Em muitos conselhos, segundo dizem, os respectivos administradores do conselho proibiram a saída dos veículos!!...

Estávamos nessa conversa quando nos apareceu um rapaz da J. C. de Lisboa, dono de uma tipografia para os lados de Belém, e daí a nada o Dr. Diniz da Fonseca que dormira na hospedaria, pois tinha ali vindo na véspera defender um réu numa audiência geral.

Peço informações. Também não sabem. Que até à Fátima parece que deixarão ir, daí por diante não... que ralha o Pai do Céu!...

Tinha levantado a chuva!...

Desço abaixo a rua e começo a ver passar carros, carroças, automóveis, caminhões, gente a pé, gente a cavalo, uma verdadeira romaria!...

-Ah! mas então para que diacho serviu a proibição? Começo eu a pensar...

Eu pensava que não encontraria ninguém e afinal vejo constantemente passar homens, mulheres e crianças… num verdadeiro corropio!

.É uma interminável fita de povo!

O Herodes de Ourem

Chars-á bancs enormes, puxados por machos guizalhantes,carregados de gente a rir pela estrada afora, a rir como perdida da figura do administrador que eu vejo agora especado no meio da rua... de palhinhas, muito embaçado.. com um sorrisinho amarelo a desfranzir-lhe as comissuras do lábios... carroças engrinaldadas de flores e automóveis trepidantes com rouquejar forte de sereias ou estridentes arreda dos auto-boxes, caminhões pesados e resfolegantes, com seus tejadilhos amplos repletos de farnéis, e cortinas a dar... a dar…, caleches e lanaaus aristocráticos, modestas carripanas, mulheres e homens a pé, encharcados, enlameados, com os guarda·chuvas em funeral, escorrendo água, mas satisfeitos, felizes, com cara presenteira, tudo isso desfilou diante de mim como uma longa fita cinematográfica!...

Donde vinha tanta gente? De muitas partes, mas sobretudo de Torres Novas, dizem.

Afinal passava-se!... de Ourem, pelo menos!

Mas que andaria o administrador com o seu palhinhas a cirandar dum lado para o outro?!...

Nova fita?!... Quem sabe?!...

Eu queria seguir cedo para Fátima. Mas a missa?

Pergunto a que horas é na matriz:

Às 11! Demais a mais, num dia tão caro, eu desejaria receber Nosso Senhor...

Deixo ir toda a gente e espero pela missa...

 

A caminho de Fátima

Depois de ouvir missa e comungar, almoço às pressa e sigo caminho de Fátima, subindo a íngreme ladeira que durante uns poucos de quilômetros serpeia pelos cabeças de Ourem, até lá.

O panorama é surpreendente.

A terra cheia de verdura e empapada em água brilha à luz dum sol envergonhado, fazendo negaça entre nuvens, ainda ameaçadoras de novas borrascas.

Por toda a parte à beira da estrada, casinhas rústicas afestoadas de rosas de toucar, numa profusão, como nunca vi.

Na parede que circunda um trigal ondeante, estrelado de papoulas e malmequeres, um rancho de petizes teve a delicada ideia de encher com flores campezinas todos os interstícios livres das pedras!

Vamos subindo sempre...

O Castelo de Ourem, o Castelo do Santo Condestável, ergue para o Céu o seu perfil artístico, coroando o cume da montanha em que assenta.

Aqui são cabeços de mato encantadoramente baleados, arregoados de vales, cheios de verdura, onde serpeiam regatos fugitivos que a chuva da manhã tornara barrentos e apressados.

Passa veloz, vindo de cima, um automóvel que deixa ver dum lado e doutro carabinas em leque, ameaçadoras...

É o administrador do conselho... e a sua escolta!...

Não a veio fazer boa, diz um rapaz que nos segue em bicicleta, pedalando...

Ha hora e meia já que vimos subindo... Fátima não está longe!... Entram de novo a cair pingas de água...

Daí a pouco tempo entravamos efetivamente no pequeno largo junto á igreja.

Por toda a parte carros, carroças e automóveis parados. Uma grande multidão de gente, alguns milhares de pessoas enchiam o largo e atulhavam a igreja...

No meio da estrada forças de infantaria e cavalaria da guarda republicana impedem de passar adiante.

 

Por aqui não se passa!

Faltam ainda uns três quilômetros para chegar ao local das aparições.

Indago dos circunstantes se não tem passado ninguém. Até ao meio dia passou toda a gente, mas depois veio o administrador do conselho e deu ordem em contrario. Pergunto ao comandante da força se não se pode passar. Delicadamente ele informou:

-Até aqui tenho deixado passar, mas o administrador do conselho manda agora o contrario; tenho de cumprir as ordens.

Retrocedo e venho para o pé da enorme multidão que dentro da igreja e no alpendre, em volta, comenta o caso tristemente sem compreender como é que há perigo de ordem pública na Cova da Iria, e não o ha a três quilômetros de distancia, sendo a gente a mesma!...

É uma perfeita estupidez!...

Muita gente, não podendo seguir pela estrada, precipita-se ainda através dos campos, furtivamente, saltando muros, e lá consegue chegar até ao local da aparição, dando-se por muito feliz de poder ajoelhar na terra molhada e recitar devotamente o terço.

Será isto que põe em perigo o regime?!…

 

Oração, comunhão e penitência!

Dentro da igreja o Dr. Cruz faz piedosas praticas, intercaladas com a recitação do terço e com cânticos religiosos.

Ha muita gente ainda, que se confessa.

Uma senhora ceguinha, vinda de ao pé de Aveiro, com grande sacrifício, caminha amparada ao ombro duma parenta, debaixo duma chuva impertinente que entra de novo a cair.

Não se lastima, antes pelo contrario, bendiz confiadamente a Deus e encaminha-se para a igreja.

Um indivíduo de barbas, que me dizem ser médico e muito idoso, explica a um grupo que o rodeia a razão providencial da proibição.

Segundo lhe diziam, havia quem pretendesse começar a levar ali musicas, fungágás, foguetes, etc.

Ora a Senhora não quer nada disso.

Apareceu num descampado, precisamente porque querer ser ali amada e venerada em espírito, sem nenhuma dessas exibições espetaculosas e barulhentas de arraial.

Oração, comunhão e penitencia.

Isto e só isto, é o que ela quer!

Fazendo a proibição, as autoridades satisfazem inconscientemente os desejos da Senhora!

 

Chuva e peixe espada

A chuva caia agora a potes outra vez . .

E todos procuravam refugiar-se ou debaixo dos carros, ou debaixo do alpendre, que na igreja o apertão era já enorme.

Nisto vejo eu a guarda republicana de espadas desembainhadas descarregando pranchada a torto e a direito nalguns pacíficos camponeses que de guarda-chuvas abertos olhavam melancolicamente para aquilo tudo... e que, surpreendidos da agressão inesperada, desatavam a correr sem saber por que eram agredidos.

Alguém se dirige aos guardas a indagar do que se trata . Queixam-se de que um homem do povo queria passar á força e, como o impedissem disso, os ameaçava, e dai aquele alvoroço em que pagava o justo pelo pecador, como sucede quase sempre.

Explicado o caso e restabelecida a tranquilidade, converso com alguns camponeses a quem prudentemente aconselho que se abstenham de passar, visto que é mais meritória a obediência a ordens mesmo injustas desde que não ofendam a nossa consciência do que a resistência temerária.

Um dos guardas republicanos diz-me então num assomo de sinceridade:

-Se o senhor soubesse o que me custa estar aqui!

Cumpro ordens e cumpro-as à risca: mas creia que cá por dentro, tudo isto me revolta!

Eu sou religioso, senhor, e não compreendo que utilidade haja em estar a proibir essa pobre gente de ir rezar lá abaixo!... Isto até da vontade de chorar!...

-Tenho uma irmã, que foi a Senhora de Fátima que lhes salvou a vida!

E de fato, pela cara tisnada do pobre guarda que ali estava cumprindo ordens, bem contra a sua vontade, deslisava vagarosa mente uma gota de água que não era positivamente irmã daquelas que escorriam em borbotões do seu capuz de oleado, porque a chuva continuava a cair teimosamente…

 

O fruto proibido

Volto, e ia dirigir-me a casa do prior, cuja varanda à antiga portuguesa fora também assaltada pelos que procuravam abrigar-se da chuva, quando vejo a minha companheira da manhã, franzina, delicada, com os seus olhos azuis e cismadores, feita num pinto, chapinhando na lama, mas sempre alegre e despreocupada, como se estivesse confortavelmente assentada nalgum tea elegante, bem abrigada e enroupada, e não debaixo daquele dilúvio.

E mostra-me uma estampazinha em gravura da Senhora de Fátima...

Está ali! diz ela, e aponta-me a sacristia da igreja!

E depois, baixinho, como que em segredo, rindo muito, com uma pontinha de malícia a iluminar-lhe os grandes olhos azuis como o firmamento, acrescenta:

-E agora vou lá abaixo! Ensinaram-me um atalho por onde se pode ir!... Atravessa-se o campo!... Mas hei de ir!

E lá abalou debaixo da chuva, encharcada até aos ossos, chapinhando na lama, mas sempre risonha, sempre feliz e contente por ir lá abaixo e pregar assim uma pirraçasinha aos Herodes da governança!...

- Oh! As mulheres quando elas querem!...

 

A fé do carvoeiro!

Entrei na sacristia a ver o que é que estava ali. Era uma imagem da Senhora de Fátima, lindíssima na verdade, que um devoto mandara de proposito fazer. E porque a intolerância das autoridades a não deixava colocar no nichozinho da Cova da Iria, por isso a puzera ali para que os fieis, desfilando perante ela, a vissem e admirassem!...

E era de ver a devoção com que muita daquela pobre gente lhe rezava!

Eu não sei em verdade se no culto da gente humilde e ignorante entrará um pouco de paganismo ou de superstição, que é inata ao coração do homem desde a queda no paraíso terreal, mas como é admirável de ingenuidade e de simplicidade a forma como, por exemplo, estes crentes rezam o seu terço!

Era o celebre Pasteur que dizia de si próprio ter a fé, dum bretão, mas que, se vivesse mais tempo viria a ter a fé duma bretã, ou como nós dizemos cá, a fé do carvoeiro!...

E os que, às vezes, censuram a materialidade das devoções populares, não são os mesmos que enchem as salas de Madame Brouillard e outras bruxas mais ou menos celebres, que se deixam embair com duas cantigas dos Bernheim de pacotilha engendrados cada ano pelas nossas Universidades, e que se prostram reverentes perante as colunas do Templo, cobertos de aventais e de triângulos com penduricalhos ridículos ao pescoço, que deixam a perder de vista as fitinhas azuis das filhas de Maria?!...

 

É estúpido!...

Mas a chuva continuava impertinente . . • O cocheiro advertia que a estrada não estava boa e era preciso voltar mais cedo... Por isso, feitas as nossas devoções e as nossas despedidas até á primeira... voltamos caminho de Ourem para depois regressarmos a casa.

Na estação, antes de tomarmos o comboio, encontramos inúmeras pessoas de diversos pontos do país que regressavam às suas terras, como nós!...

Lá estava a Ceguinha de Aveiro acompanhada por uma senhora do Porto, que apesar de terem estado ambas com os vestidos completamente molhados e serem ambas doentes, nada tinham sofrido e conservavam a mesma boa disposição. Lã estava um conhecido ourives de Lisboa, lá estavam muitas outras pessoas da capital.

Não tornei a ver a minha companheira de olhos azuis, que provavelmente lá ficou a caminhar por montes e vales até chegar onde queria chegar!...

E um honrado comerciante, republicano ao que parece, cobria de enérgicas invectivas o administrador do conselho, porque tolhia o progresso da terra e impedia o comércio de fazer o seu negocio!...

-É estupido! Concluiu ele...

-Imaginem vocês... que esta proibição, só aos alquiladores de Thomar, Ourem e Torres Novas, deu mais de vinte contos de prejuízo!

 

CONCLUSÃO

Mas perguntará o leitor: "Nossa Senhora apareceu realmente em Fátima? Abstemo-nos adrede de formular o nosso juízo em assunto tão delicado e melindroso. Continuamos a manter-nos, como até aqui, em benévola expectativa. Os fatos - uma parte deles apenas, e sem duvida a menos importante, aí ficam narrados em toda a sua singeleza e com a mais escrupulosa imparcialidade. Cada qual, seja crente ou descrente, tem o direito de pensar o que lhe aprouver acerca da origem e natureza desses acontecimentos tão extraordinários. Entretanto ninguém de bom senso deixará por certo de achar justa a exclamação proferida por um ilustre advogado, que foi testemunha presencial das medidas arbitrárias e violentas adaptadas pela autoridade administrativa para impedir o acesso ao local das aparições: "Palavra d'honra! Não acreditava, mas agora, desde que o governo proíbe que se vá lá, começo a crer que Nossa Senhora apareceu realmente em Fátima!