Os Santos Anjos da Guarda

espiritualidade

Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina; sempre me rege, me governa, me ilumina. Amém

Os Santos Anjos da Guarda

Pe. AUGUSTO FERRETTI S.J.

Tradução e adaptação de
R. VELLOZO

IMPRIMI POTEST
Taubaté, 25 do janeiro de 1945.
Pe. Josephus Foggel S.C.J.
Praepos. Prov. Bras. Merid.

NIHIL OBSTAT
Taubaté, 25 de Janeiro do 1945
Pe. Frederico Bangder S.C.J.

IMPRIMATUR
Taubaté, 25 de janeiro de 1945.
D. Francisco Borja do Amaral
Bispo Diocesano.

 

Parte I
Fundamento dogmático e aplicações práticas

INTRODUÇÃO

Deus confiou aos seus anjos o guardar-te em todos os teus caminhos”, (Sl90,11)
É uma verdade de fé, diz o exímio teólogo Francisco Suarez, que Deus, em sua inefável providência, confiou os homens, enquanto peregrinam por este mundo, à guarda dos Santos Anjos. E é igualmente doutrina católica, que a cada homem, desde o primeiro instante do seu nascimento, é assinado um anjo em especial como seu particular guardador. “Singulis hominibus ab ortu nativitadis suae singulos angelos ad custodiam esse depufatos, assertio catholica est". (1)

(1) De Angelis, lb. VI, cap. XVII. n. 68.

Este ensinamento é fundado sobre a autoridade da Sagrada Escritura e dos santos Padres.
Quanto à Escritura, um dos textos sobre que principalmente se apoia, é o versículo, que há pouco citamos do salmo nonagésimo: “Deus confiou aos seus anjos o guardar-te em todos os teus caminhos.

Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis”.
É este versículo rico de doutrina. Cada uma de suas palavras merece ser meditada. E nós o faremos seguindo as pegadas do doutor melífluo, S. Bernardo, que assim as vai comentando: “Quem confiou? a quem? Que foi confiado? a respeito de quem? Oh que grande reverência te não deve inspirar uma tal disposição da Providência de Deus, quanta devoção infundir, quanta confiança trazer! Reverência, pois assim o exige a presença, certa de fé, dos santos anjos; devoção em retorno dos benefícios que te dispensam, e confiança pelo fato de estares sob os cuidados de tais guardadores”. (Sermo XII in ps. XC.)

Capítulo 1
A QUEM DEVEMOS A PROTEÇÃO DOS ANJOS

Indaguemos: o cuidado dado aos anjos, de velar sobre nós, por quem foi dado? Quis mandapit? Somente por Aquele de quem são os anjos súditos obedientes e zelosos ministros. Mas quem é aquele, segue interrogando S. Bernardo, de quem são súditos os anjos? E de quem são ministros?
Do Senhor, Deus altíssimo. Foi portanto Deus que deu aos anjos a ordem de proteger-nos em toda a nossa vida. E nesta ordem, como observa o seráfico doutor S. Boaventura, manifesta-se o seu poder supremo, a sua sublime sabedoria, a sua paternal bondade.

1 — Número e poder dos Anjos
Conforme a doutrina dos santos e doutores da Igreja, cada homem, ao nascer, recebe um Anjo para guarda seu e seu protetor particular.
Igualmente tem seu Anjo da Guarda cada nação, tem-no igualmente cada província, cada cidade, cada casa, cada família, cada comunidade, cada templo, cada altar. “Serviam a Deus milhares de milhares”, diz o profeta Daniel.
De forma que contamos com a proteção não somente do nosso Anjo particular, mas também com a daqueles que presidem as comunidades de que somos membros.
É exatamente por este motivo que diz a Escritura: “aos seus Anjos Deus ordenou que te guardassem, etc.”.
Diz “os seus Anjos” no plural, porque, como explica S, Roberto Belarmino, protege-nos não somente o nosso Anjo da Guarda, mas também os Anjos protetores da nossa pátria, da nossa província, da nossa cidade, etc.
São, portanto, inumerável multidão os Anjos deputados para a guarda dos homens.
E se a este ainda ajuntarmos os que assistem constantemente perante o trono de Deus E se a estes ainda somarmos aqueles que Deus envia à terra em missões especiais ou que pendem do seu mandado para cumprir cada uma de suas ordens?

(2) Ver Petavio, do Ang. 1. II, c. VIII. Suarez, de Aug. 1. Vl, c: XVII, n, 22; Perrone, de Deo Creatore, part. I, c. III, n. 49.

Então atingirão o incalculável. Foi indicando esse número sem número que o profeta Daniel exclamou: “milhares de milhares o serviam e mil milhões junto a Ele assistiam: “Míllia millium ministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei". (Dn7,10).
Número portentoso, na verdade, que no dizer do autor do livro sobre a Celeste Hierarquia, excede todos os cálculos e computações humanos (3).

(3) Cael, Hier, cap. XIV. Este livro era geralmente atribuído a S, Dionísio Aeropagita pelos escolásticos, Estudos críticos mostram que o devemos atribuir a outro autor do sec. V ou do princípio do sec. VI. É certamente um livro de grande autoridade. — Ver. 5, Tom. 1, P. q. 1 a  3.

Quem pode calcular o número das estrelas do céu e de todos os seres materiais que povoam o universo: homens, animais, plantas, insetos, peixes, etc, etc.? Pois bem, “a multidão dos Anjos, diz S. Tomás de Aquino, é ainda superior à multidão dos seres materiais”.
Tal é o número dos Anjos. Quanto ao seu poder, exalta-o a Escritura a cada passo. “Bendizei o Senhor, diz o real Profeta, todos os seus Anjos, poderosos em valor, fiéis executores de sua palavra (Es. C I 20). E numerosos são os exemplos em que tal poder resplandece, como se pode ver na segunda parte desta obrazinha.
Mas, além disto, patenteia-se bem o seu poder no mesmo poder daqueles que muitas vezes eram instrumentos seus — os santos. Causa espanto, na vida dos santos, o ódio com que se armava os demônios contra eles, e as infernais coligações que entre si faziam para perdê-los e arruinar a sua obra. Vêmo-los, entretanto, impassíveis ante os assaltos dos espíritos das trevas e tão poderosos que um instante lhes bastava para dispersar e pôr em fuga os exércitos da infernal nequícia.

Quem era, pois, que lhes incutia tão grande valor? Os Anjos de Deus, a cuja proteção sempre recorriam os santos. “Não poderia a nossa fraqueza, como diz S. Hilário, resistir à perversa ação dos espíritos infernais se não fosse confortada pelo poder dos Anjos (4). “E fora de dúvida, diz S. Bernardo, que não podemos resistir ao ímpeto dos espíritos malignos, se de nós se afastam os bons espíritos” (5).

(4) In Pealm. CXXXIV, n. 17.

(5) Serm, VII in cant. n. 4.

É força pois, confessar, que são poderosíssimos os Anjos, pois vencem a tão poderosos inimigos quais os demônios.
E é força, também, confessar, que onipotente é Aquele Senhor a que obedece tão grande multidão de príncipes celestiais, e cujo mandado pronta e fielmente executam. “Na verdade não há quem seja semelhante a Ti, ó Senhor; tu és grande, e grande em poder é o teu nome (Jr.10,6)”.

2 — Os ofícios dos Anjos

É com cuidado que um rei ou chefe de governo considera os seus súditos, para elevá-los, conforme a capacidade de cada um, aos cargos da administração oficial, Corresponde, então, perfeitamente, à excelsitude da dignidade e à jurisdição do seu cargo, a excelência dos dotes que neles descobre. É assim que a uns conserva junto de si, a outros envia como embaixadores; a uns encarrega o governo das províncias a outros a direção de cidades; a uns confia as pequenas comarcas, a outros as comunidades e pessoas particulares. Desta prudente e sábia distribuição de cargos, correspondentes às aptidões de cada um, é que resulta o bom governo do estado e a satisfação do povo.

Ora bem, isto é o que faz Deus Nosso Senhor, com sabedoria infinitamente superior, com relação aos seus anjos — criaturas suas excelentíssimas e santíssimas. Neles a multidão nada tem de desordem ou confusão; nem poderia haver lugar para a desordem nas obras de Deus.
Segundo a doutrina dos santos Padres fundada nas sagradas Escrituras, constituem os anjos uma milícia ou exército comandado por nobilíssimos generais (6): estão divididos em três hierarquias e cada qual consta por sua vez de três ordens ou coros.
A primeira hierarquia se compõe dos Serafins, dos Querubins, dos Tronos; a segunda das Dominações, das Virtudes e das Potestades; a terceira dos Principados, dos Arcanjos e dos Anjos (7).
Cada hierarquia, por sua vez, é ornada de dotes peculiares conforme a posição que lhe dá Deus na distribuição dos cargos do seu reino celestial.

(6) Ver São Tomás, I p. 7. CVIII; Suarez op. cit. 1. I, cap. XIII e XIV - Alguns nomes  desses angélicos generais, nos são conhecidos, Miguel, nome que significa “quem como Deus? Gabriel = Fortaleza de Deus — Rafael = Medicina da Deus".
(7) Sciendura, assim fala S. Gregório Magno, quod Angelorum vocabulum nomen. est officii, non saturge, “O vocábulo Anjo exprime não já a matureza, mas o ofício, o ministério, Por isso pode ser empregado de um modo geral um relação a todos os coros, e em particular, ao ínfimo.

Interessa-nos, no momento, somente a terceira hierarquia, pois a ela é que está confiada, conforme a doutrina do angélico S. Tomás, à proteção e a guarda dos homens em particular e da humana sociedade (8). Eis como vem isto discriminado pelo santo doutor: a guarda de cada homem particular é confiada ao último dentre os coros angélicos — no côro dos Anjos; a guarda universal da comunidade humana ao primeiro côro — o dos Principado, ou talvez dos arcanjos. (In p. q. CXIII, a 3).
Não é que Deus assim haja feito por não ser capaz de por si só reger as suas criaturas... Tal acontece com os soberanos e os chefes das nações mas de nenhum modo com o ser onipotente, onisciente e infinito em todos os seus atributos. Assim, entretanto, Ele procede, porque os diversos graus de seres por Ele criados trazem sempre este cunho de harmoniosa correspondência entre si.
Tem em vista fins altíssimos que a nossa mente não atinge. Mas no par destes fins altíssimos pretende Ele também, sem dúvida, tornar mais suave o seu governo e mais consentâneo à natureza humana. Céu e terra assim — e é este um outro grande e belo motivo — formam um só reino de perfeitíssima caridade, em que criaturas superiores e já bem-aventuradas, como os anjos, prestam direção e ajuda a criaturas inferiores e ainda peregrinas neste mundo, prestando-lhes estas em troca a homenagem de um grato amor e de uma dócil submissão (9).
Ah! verdadeiramente tudo fizeste com sabedoria (Sl103, 24); omnia in sapientia fecisti.

(8) E do notar aqui com Suarez com quanta sabedoria Deus reserva a incumbência da guarda dos homens ao côro dos Anjos.Esta obra, pelo fato do ser o ínfimo, é o que mais se aproxima do homem, e tem por isto imediata relação com ele. É, por conseguinte, segundo a disposição da divina Providência o mais adequado à guarda de cada homem em particular, Op. cit 1 VI, C. XVIII, n. 6.

3 — O que são os anjos de nós

Os Anjos são junto de nós exatamente aquilo que os preceptores são junto dos seus discipulos.
Os preceptores, como era de costume antigamente, deviam transformar a criança em um perfeito cidadão: para isto deviam dar-lhe modos, instruí-la, acompanhá-la em suas viagens, ampará-la, confortá-la.
Diante dos Anjos, espíritos sapientíssimos, somos de fato crianças que devemos ainda formar-nos nos bons modos cristãos, e que muito temos que aprender da doutrina divina que Jesus veio ensinar aos homens.
São por isto eles, de fato, os nossos preceptores.

Assim os chama a santa Igreja em seus hinos, assim os santos Padres, quer gregos quer latinos, os apelidam em suas admiráveis obras de apologética ou de instrução catequética.

(9) “Somos com os Anjos, diz S. Agostinho, uma só cidade de Deus... de que uma parte, que somos nós, peregrina por este mundo, e a outra parte, que são precisamente os Anjos, está pronta” a socorrer-nos”, — De civit, Dei, 1. X, 6 7.

S. Gregório Taumaturgo, S. Basílio e S. João Crisóstomo, dizem que são os “pedagogos e educadores das crianças S. Atanásio chama-os formalmente de preceptores dos homens e S. Bernardo se compraz em chamá-los de “os constantes seguidores de nossa alma”. No, pensar, portanto, desses grandes representantes da eloquência sagrada das primitivas igrejas, grega e latina, são os santos Anjos da Guarda os guias, os guardas, os tutores e a maior ajuda e mais constante valia dos que demandam, neste mundo, a pátria celestial.

“Ó amor imenso e todo inspirado na mais pura caridade! exclama S. Bernardo: “Ó vere magna dilectio charitatis”” Que solicitude, a do nosso Pai do Céu pelos filhos que erram neste mundo longe da casa paterna! É bem, portanto, que nos apropriemos das palavras do Arcanjo São Rafael quando se manifestou a Tobias: “Bendizei ao Deus do Céu, e dai-Lhe glória diante de todos os viventes, pois que fez resplandecer sobre vós a misericórdia”, (Tb12,6).

Admiração, portanto, louvor e bênção é o que deves, caro jovem, a Deus, por tão maravilhosa manifestação do seu poder, de sua sabedoria, de sua paternal bondade, deputando para junto de ti a esses príncipes de sua côrte, a essas criaturas de maravilhoso poder e santidade, que são os anjos.

E reflete que isto é um dogma de fé; dia e noite vela por ti, dia e noite junto de ti assiste um anjo, maravilhoso de poder e santidade, prestes a socorrer-te sempre que o invoques, pronto a ajudar-te sempre que recorras à sua proteção.

Capítulo II
A NATUREZA ANGÉLICA

Gostarias de certo, caro jovem, de ver ao teu lado o teu anjo da guarda. Tudo darias para poder contemplá-lo em sua celestial formosura, em sua atitude de habitante da pátria celeste, naquela feição peculiar e cheia de majestade dos seres superiores.
Se isto, por ora, te não é dado, nada impede que o contemples à luz dos ensinamentos da teologia católica.
Que são, pois, os santos Anjos? — Não é fácil responder. Mas sabemos de certo que — são puros espíritos — que são sumamente privilegiados dentre todos os seres criados — que têm também uma história como a nossa.

1 — Os anjos são puros espíritos

O Anjo, diz S. Gregório Magno, é espirito, e só espirito, enquanto que o homem é espírito e carne (10). Não são, portanto, seres corpóreos, como as criaturas que povoam este mundo que habitamos. Não são, também, compostos de espírito e corpo, como somos os homens. São seres simples e puramente incorpóreos sem que em sua constituição física entre matéria de espécie alguma, por leve e etérea que seja. Inútil dizer que são inacessíveis aos nossos sentidos: nem os podemos ver, nem os podemos tocar. Assim fala, a propósito, o IVº Concilio de Latrão: “Com seu poder onipotente tirou (DEUS) do nada, no principio, juntamente a uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, a saber, a criatura angélica e a criatura terrena, e em seguida a humana, como posta que é de espirito e de carne” (11). E por sua vez, o Concílio do Vaticano adota a mesma doutrina, transladando a citada passagem para uma de suas “Constituições” (12).
Não obstante bastas vezes deram-se a mostrar os anjos sob forma visível. Viram-nos deste modo Abraão e Ló, Jacó e Tobias e inúmeros outros personagens bíblicos. Foi, pois, para lhes poder falar, que tomaram forma humana, para poder guiá-los (como no caso de Tobias), para poder empenhar-se em porfiada luta, como aconteceu om Jacó. Tal, entretanto, não era o seu estado natural. S, Rafael Arcanjo, por exemplo, depois de revelar-se a Tobias, teve o cuidado de notar- lhe isto. “Eu parecia, disse-lhe ele, que de fato comia contigo e contigo bebia. Na realidade outro é o meu alimento, outra a minha bebida, invisíveis ambos aos olhos humanos”. (Tb, 12,19).
Por motivo semelhante os representamos em nossas imagens sob figura humana. Damo-lhes a forma humana, para indicar quanto estes nobilíssimos espíritos sejam amavelmente propensos aos homens; damo-lhes feições de belíssimos jovens, para indicar que as suas forças e prerrogativas jamais se deslustram ou afeiam, permanecendo eternamente louçãs e inteiras; damo-lhes asas para significar quanto estes excelsos ministros de Deus Altíssimo estejam prontos para executar as suas ordens; e os vestimos de vestes candidíssimas para designar, como diz S. Gregório Nazianzeno, a sua natural pureza, ad designandam natu ralem ipsorum puritatem. (Catecismo do Concílio de Trento).

(10) Moralium 1 TV, é, UI, 1. 8.
(11) Cap. Firmiter.
(12) Const, Dei Filius cap. I.

2 — Privilégios da natureza angélica

Percorramos a escala dos seres criados por Deus: os minerais, que apenas existem, mas que não vivem; os vegetais, que vivem, mas que não gozam da vida sensitiva (que lhes seria facultada por sentidos como os dos animais); os animais que veem, cheiram, ouvem, etc. mas que não têm conhecimentos intelectivos; o homem, que goza de vida intelectiva, mas que a goza dependentemente do cérebro, que é matéria; e enfim os anjos, que gozam da vida intelectiva independentemente da matéria.
Estes são, portanto, os seres mais perfeitos criados pelas mãos de Deus, assim como os minerais, que abrem essa escala de seres, são os mais imperfeitos, ou por outra, os que gozam de menos perfeições.
Em todos há uma tal ou qual semelhança com o seu Artífice: o simples ser, a simples vida, a vida cognoscitiva, a vida intelectiva, são semelhantes do ser da vida e do modo de conhecimentos divinos. Mas somente do homem está escrito: foi criado à imagem e semelhança de Deus. É verdade que o homem dentre os seres deste mundo é o que mais se aproxima de Deus pelo seu maravilhoso ser, à uma material e espiritual, mas o anjo ainda atinge maior perfeição, e ainda mais, por conseguinte, se assemelha a seu Criador, — Isto devido à sua mesma essência, que é de todo simples e espiritual. E em razão desta simplicidade de essência, Deus, melhor que no homem, reflete no Anjo a sua natureza perfeitissimamente simples e espiritual. E, consequentemente, mais se pode achegar em perfeição à inteligência de Deus, a inteligência do Anjo, e ao poder de Deus o maravilhoso poder do Anjo.
Quanto à inteligência, é sabido que a dos maiores gênios da humanidade não podem nem sequer comparar-se à sua; e quanto ao poder, um Anjo somente é mais poderoso que um exército de homens.
A propósito, enérgica é a expressão de S. Gregório Magno, aludindo a uma passagem do profeta Ezequiel. Se o homem, diz ele, é feito à semelhança de Deus, o anjo é selo (e como que sinete) de semelhança; na verdade, quanto mais imaterial à uma natureza qualquer, tanto mais vivamente traz em si estampada (aí está a ideia de selo) a imagem do Artífice supremo:... signaculun silimitudinis dicitur” (13).
São, portanto, os Anjos, seres maravilhosos, naturezas superiores, de indizível perfeição, sumamente privilegiados de Deus Nosso Senhor.
Mas isto não é ainda toda a verdade.
O anjo, como o homem, foi elevado à ordem sobrenatural. E que quer dizer isto? Quer dizer que lhe infundiu no ser Deus Nosso Senhor a graça santificante, dom seu inefável. É, efetivamente, graça santificante um tão grande dom de Deus às suas criaturas intelectuais, que as eleva acima de todo ser criado e acima de toda perfeição natural.
A criatura que tal graça recebe torna-se, de modo inefável, participante e consorte da mesma natureza divina, como diz o apóstolo S. Pedro (2,14).
Nela, de então em diante — enquanto permanecer em estado de graça — habita Deus N. Senhor, presente a ela de modo particular. Quem poderá então medir a estreita união e intima amizade de tal criatura com seu Criador?
Desde então, como consequência, fica a criatura toda outra, enriquecida pelas virtudes sobrenaturais e com direito à contemplação da mesma essência divina, a conhecer a Deus tal como Ele é em si mesmo, como diz o apóstolo e evangelista S. João: “videbimus Deum sicuti est”. Ora, quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur: aquilo que se recebe, é recebido conforme as disposições do que recebe. Sendo assim nenhum ser seria mais apto à recepção da graça santificante do que o anjo, pela excelência e dotes naturais de sua natureza espiritual. E, por conseguinte, nenhum ser, como o anjo, se alçou sobre si mesmo e como que se transfigurou sob a maravilhosa influência da graça santificante.

(13) In Evang. 1 II, hom. XXXIV, n. 7.

São os anjos, verdadeiramente, na manhã da criação, os Seus primeiros astros, conferindo-lhes Deus a graça ao mesmo tempo que lhes infundia o ser; “Simul eis, como diz S. Agostinho, et condens naturam, et largiens gratiam”. (De Civit, Dei, I. XII e IX).

4 — A história dos santos anjos

Terão os anjos, também, a sua história?
“Têm-na, tal como o homem. Como o homem foram criados, como o homem enriquecidos de soberbos dons de natureza e de graça, e como o homem sujeitos a uma prova, que decidiria da sua admissão ou não à visão intuitiva de Deus.

O que foi essa prova, só poderíamos saber por conjeturas fundadas em passos da Escritura.
Mas nada de certo sabemos. É o menos. É certo, entretanto, que passaram por esta prova. Assim o exigia a sua natureza intelectual e livre, e por ela quis Deus N. Senhor que passassem para que merecessem o céu. Durou-lhes um instante essa prova, e esse instante deu-lhes a eterna e imutável bem-aventurança — como aos que nela sucumbiram, a condenação.
Eis a propósito o que diz S. Gregório: “vendo os santos anjos que uma parte dentre eles havia caído, tanto mais firmemente resistiram, quanto mais humildemente” (14). Sabemos, pela Escritura, que capitaneava os bons S. Miguel Arcanjo, e os maus Lúcifer, anjo de grande formosura e enriquecido de maravilhosos dotes naturais. Ao seu grito de rebelião, opôs o anjo fiel o seu Quis ut Deus: “quem há semelhante a Deus?”... Só Ele é o autor de toda formosura e poder, de toda grandeza e excelência. Isto era o que proclamava o Arcanjo. Lúcifer, pelo contrário, endeusado na própria excelência, pensou poder dispensar o seu Criador... Ser magnificamente dotado pela mão criadora, julgou-se, entretanto, grande demais para confessar-se devedor, a outrem, de tudo quanto possuía... Recusou-se assim, a prestar a Deus o seu louvor, atribuindo-lhe o próprio ser e os próprios predicados. Ele, portanto, teria em si mesmo,a razão de sua existência e de sua grandeza — ele era Deus!... E como Lúcifer, pensaram os seus sequazes, assim como o mesmo pensar que Miguel, tiveram os seus seguidores — dois terços, ao que se conjetura, dos puros espíritos criados por Deus.
Salvou-os, portanto, a humildade, que é o reconhecimento do próprio nada diante do Criador.
Salvou-os o reconhecimento para com Deus, pelos benefícios que reconheciam ter recebido de sua mão. E em recompensa, diz ainda S. Agostinho, mereceram receber o devido prêmio: “os seus anjos, diz Nosso Senhor no Evangelho, referindo-se às crianças, sempre veem a face do meu Pai.

(14) Dialog. 1. III, cap. XIV.

Foi esta, precisamente, a recompensa. E S. Gregório: “que língua humana há que possa exprimir como, na posse da beatitude, sejam bem-aventurados; como, na contemplação da eternidade, sejam eternos; como, junto à verdadeira luz, se tenham tornado luz; como, na visão da imutabilidade, se tenham tornado imutáveis?”... (In. Ezech. À L hom. VII).
E a Igreja reconhece-lhes a grandeza a santidade e a excelência, dando-lhes, na sagrada liturgia, o primeiro lugar após a Virgem Santíssima, Mãe daquele que é nosso Rei e é, igualmente, Rei dos Anjos.
E nada, jamais, os poderá arrancar dessa excelsitude, nada dessa eterna e imutável bem-aventurança. É-lhes parte da recompensa, diz S. Agostinho, a impossibilidade em que estão de ser ingratos a Deus e pecar: praemium est non posse peccare. (Contr. duas epist. Pelagii, 1, 3 e 7).

Capítulo III
OBJETO DOS CUIDADOS DOS SANTOS ANJOS

É bem que reflitamos aqui: será o homem digno objeto, da tão assídua solicitude desses nobilíssimos espíritos?
É certo, de fé, que somos objeto de tal solicitude: “Deus mandavit de te”, Objeto, pois, dos seus, cuidados é o nosso corpo com todos os seus sentidos e a nossa alma com as suas potências.
E por que? Porque Deus quer salvar-nos.

1— A nossa alma
Aproximemos a nossa alma do anjo: que diferença entre uma e outro? Apenas que a alma foi criada para o corpo e o anjo não. Mas ela tão preciosa como ele, debaixo do ponto de vista da sua origem — criada à semelhança de Deus — e do seu destino, a visão de Deus, tal como o anjo.
É verdade que há uma diferença essencial entre a alma e o anjo: o anjo é um ser completo em si mesmo, e a alma não. A alma foi criada para o corpo, diz relação essencial para com o corpo que informa, que anima, que vivifica. A alma constitui, juntamente com o corpo, um único ser, que é o homem. A alma, portanto, não é um ser completo em si mesmo. É como que parte de um ser — ainda que parte precípua e que traz em si a especificação da natureza que ela integra.
O ponto de vista sobrenatural, entretanto, é o que mais nos interessa aqui. Que diferença há, pois, debaixo deste ponto de vista, entre o anjo é o homem? A sua origem e o seu fim, já o dissemos, são idênticos. Há, entretanto, uma diferença profunda, entre o anjo prevaricador e o homem pecador. O anjo prevaricador é castigado imediatamente após à prevaricação, e é desviado para sempre do seu fim. Para ele não há mais perdão, nem possibilidade de consegui-lo. O homem pecador é também castigado imediatamente após o seu pecado, mas não com um castigo eterno. Nem tão pouco foi desviado para sempre do seu fim.
Para ele haverá ainda perdão. Uma só palavra, dita de coração, exprimindo a dor d'alma por haver ofendido a Deus, pode reaviá-lo. Quando Davi reconheceu o seu pecado disse somente esta palavra: peccavi, pequei. E, imediatamente, o profeta: “e o Senhor tirou o teu pecado”. Estás perdoado. Estás novamente a caminho do céu.
Certamente contribui para esta diferença de tratamento de Deus para com uns e outros a mesma natureza do anjo e do homem. Mas, não podemos menos deduzir daí a preciosidade da alma humana, que Deus se empenha tanto em salvar.
Seu Filho, Jesus Cristo Nosso Senhor, fez-se nosso resgate. E que resgate!... Que resgate pagou ao Pai celeste para reaver-nos!
Mas outras considerações há mais consentâneas ao assunto. A alma humana está entregue à guarda de um príncipe da côrte celeste. “Oh como é grande a dignidade das almas, exclama S. Jerônimo, confiadas, desde o primeiro instante do seu nascimento, a um anjo, especialmente delegado para guardá-la!” (In Matth.).
Como é grande a sua dignidade, e como é ande a sua preciosidade! Pela dignidade e posição da guarda se pode avaliar a preciosidade do objeto guardado. Os chefes de governo andam cercados das mais altas patentes do seu exército, e os bancos usam de todas as precauções para ter em segurança as suas casas fortes, Por que? Porque um chefe de governo é algo de precioso para uma nação, e os depósitos dos bancos dão aos bancos o valor que têm. Assim a nossa alma. Inúmeras são as precauções que a Santa Igreja toma para conservá-la em estado de graça e poder conduzi-las ao céu, inúmeras as ajudas que o próprio Criador lhe concede.
A ti, jovem cristão, a ti, congregado mariano, cabe aproveitar dessas precauções e ajudar-te desses auxílios. Não ignoras quanto é preciosa a tua alma. Pois bem, se por ti só não podes salvá-la, salvá-la-às se quiseres aproveitar dos meios que Deus te oferece para isto. Dentre estes, um dos mais sólidos e profícuos é a devoção ao teu anjo da guarda, que sabes estar constantemente junto de ti. Que farás para lhe teres verdadeira devoção? É o que te diremos em outra parte deste livrinho.

2— Deus quer salvar-nos
“Mais do que tu mesmo, diz S. João Crisóstomo, mais do que tu mesmo, deseja Deus que vivas imune de pecado; nem se pode comparar o que desejas. para o bem da tua alma, com o que Ele se empenha em fazer pela tua salvação. E isto, é com os fatos que Ele o demonstra”.
Uma passagem de S. Paulo, referente aos santos Anjos, vem aqui a propósito: “Não são todos eles, diz o Apóstolo, espíritos que administram (administratores spiritus), destinados ao ministério de ajudar aos que hão de receber a herança da salvação?”. “Nonne omnes sunt administratores spiritus, in ministerinm missi propter eos, qui hereditatem capient salutis?” (15) Estão, portanto, empenhados em nossa salvação todos (omnes) os anjos de Deus. A todos eles podemos recorrer, a todos invocar, certos de que nos socorrerão solícitos, e como que lá estão na mansão de sua bem-aventurada à espera da nossa oração, para nos virem em auxílio. Não é isto apenas uma fria consideração. É a palavra do apóstolo S, Paulo, E S. Paulo escrevia para a instrução dos primeiros cristãos: tinha pois uma especial assistência do Espírito Santo, e portanto não podia errar.

(15) Hebr. 1, 14. — Este passo é um dos principais com que se prova a guarda dos santos Anjos.

Logo, não temos de que nos queixar, quando sentimos os efeitos das tentações do demônio, Tem estes, não há dúvida, o poder de nos armar ciladas, de suscitar em nossa imaginação representações que nos seduzam, e uma infinidade de modos de se nos insinuar com seus perversos intentos.
Mas, em nosso favor temos os exércitos angélicos, sempre prontos a socorrer-nos, se há quem mereça ser objeto de queixa em nossas quedas, somos nós mesmos. Julgamos que, por vezes, pode excusar-nos um pouco a violência das tentações. Seja. Mas o que é certo é que tal violência não pode de todo eximir-nos de culpa. Um exame sincero de nossa atitude na luta, nos dirá se tinha razão S. João Crisóstomo, quando disse que mais se empenha Deus em nossa salvação que nós mesmos.
Quantas vezes, na tentação não está a voz de Deus a chamar-nos, a mover interiormente a nossa vontade para longe do pecado, e nós resistimos a esta voz, afastamos os santos pensamentos que Ele nos suscita na alma, para nos entregar aos pensamentos do pecado e aos consequentes atos pecaminosos!
“Ao demônio, diz S, Pedro, devemos resistir fortes na fé: fortes in fide”. É avivar, portanto, na fé nessa esplêndida verdade da existência dos santos anjos, do seu papel de mediador entre nós e Deus, do seu papel de ministros da nossa salvação: in ministerium missi propter os que hereditatem capient salutis. Confortados por esta fé, “ainda que um exército se levante contra nós, não temerá o nosso coração”.

3 — A inescusável desídia dos que se perdem.

Uma dúvida: admitindo que os exércitos angélicos lidam em nosso favor, que são poderosos, e isto muito mais que os demônios, como é possível crer que estes nos possam levar à perdição?....
Antes de mais nada é preciso que nos lembremos que jamais cairemos no inferno se por nós mesmos não caminharmos para lá. “Quem ora, se salva, quem não ora se condena”, é a conhecida afirmação de S. Afonso de Ligório. “Ajuda-te, que Deus te ajudará”, diz a sabedoria popular. Portanto, se nós mesmos não cooperamos com Deus e os seus santos e anjos, de nada nos servirá que estejam a nosso dispor, no Céu, inumeráveis exércitos de espíritos bem-aventurados.
E a razão disto, está radicada em nossa mesma natureza. Somos seres racionais e livres, capazes de nos determinarmos a nós mesmos à escolha disto ou daquilo. A nossa natureza, portanto, como tal, não pode ser constrangida a eleger isto ou aquilo, a se determinar por este ou aquele caminho.
As criaturas inferiores ao homem na escala dos seres, estas cumprem fatalmente a sua finalidade, pela forca das leis físicas. Com o homem não é assim. Ele deve livremente atingir a sua finalidade de completa felicidade, na glória do seu Criador.
As leis que o devem reger não o induzem fatalmente a trilhar o caminho que lhe marcou a mão de Deus, Deus lhas apresenta, fá-lo ciente delas pela voz intima da consciência (Lei natural), e também expressa exteriormente, pelo magistério dos seus enviados, dos seus representantes na terra (a lei escrita).
O regime e o governo dos anjos, sobre nós, tem portanto que se conformar com a nossa natureza de seres livres. Eles cooperam conosco, dão-nos a mão, facilitando o caminho, quando pelo bom caminho é que queremos andar. Os anjos da Guarda são como executores da Divina Providência com respeito aos homens, diz S. Tomás: Custodia Angeli est quaedam executio divinae Prov dentiae, eirea homines facta”. (1 p. q. CXIII, a 6). Donde se segue que assim como a Divina Providência não exclui o exercício do livre arbítrio, nem nos necessita fisicamente a evitar o pecado, assim também não é tal coisa que havemos de esperar do ministério dos Anjos junto de nós.
É portanto inescusável desídia a de quem, sabendo que vive constantemente lado a lado com um Anjo de Deus, vive e morre em pecado. O mesmo Anjo que lhe devia ser auxilio, luz, proteção, torna-se-lhe testemunha e acusador no tribunal de Deus.

Capítulo IV
O MANDATO QUE CUMPREM

De que se ocupam precisamente junto de nós, os nossos Anjos da Guarda? Que fazem, em nosso favor? — Ocupam-se naquilo de que Deus os encarregou, cumprem com o mandato que Deus lhes deu. É que mandato foi este? “Que te guardem em todos os teus caminhos: ut custodiant te in omnibus viis tuis”. Que te guardem  nas jornadas do teu espirito através dos perigos espirituais — nas jornadas do teu corpo através dos perigos materiais — enfim em tudo, e sempre, por toda a tua vida.

1 — Proteção à alma

A alma, como espiritual que é, não pode ser atingida pelas desgraças e acidentes materiais deste mundo, O seu perigo é o perigo moral do pecado e, como consequência deste, a condenação eterna.
Mas, há real perigo de condenarmo-nos? E Jesus Cristo que o diz: “larga é a porta e espaçosa é a estrada que leva à perdição, e muitos são os que tomam por elas. Que apertada é a porta que leva à vida, que estreita a sua estrada, e como são poucos os que por elas trilham” Há, pois, real perigo de condenarmo-nos. Não é pois de admirar que em tão constante perigo de trilharmos o mau caminho, nos tenha dado Deus Nosso Senhor um anjo da sua côrte celeste para proteger-nos, guiar-nos, conduzir-nos!
Além disto pode ser que não sejamos tão espirituais que prefiramos a vida sobrenatural aos prazeres do mundo, e que por outra parte nos falte ânimo para seguir pela estreita senda do céu. Por outro lado a experiência dos esforços passados, nos pode desanimar. Sempre a entrar no bom caminho, e sempre a dele ver-se afastado! Não obstante, fica de pé a sentença do divino Mestre: só será salvo quem perseverar até o fim.
Pois bem, para animar-nos no bom caminho, para reconduzir-nos a Ele, quando transviados, é que nos deu Deus o santo Anjo da Guarda, Essas consolações espirituais que sentes na prática da virtude, no exercício da mortificação, na renúncia aos desejos da carne, quem é que te infunde? O teu Anjo da Guarda, que assim te quer animar a prosseguires no bom caminho. E de quem é essa voz que te chama quando transviado, que te repreende no íntimo do teu coração, que te admoesta e como que te convida a tornar ao bom caminho?
Do teu Anjo da Guarda. Eis o que faz junto da tua alma o teu Anjo da Guarda.
E pode ser que perseveres no bom caminho mas que sofras terríveis assaltos do demônio. O demônio, como diz o apóstolo S. Pedro, como um leão a rugir ronda por perto, à procura de uma presa para devorar. Far-lhe-á frente o teu Anjo da Guarda (desde que tu mesmo te não entregues ao inimigo), pô-lo-á em fuga, enchê-lo-á de temor por sua virtude sobrenatural, livrar-te-á das suas malhas, enfim será o teu estudo, o teu defensor, o teu libertador.
Particularmente encantadoras, dentre os mais comuns exemplares da arte cristã, são as imagens dos santos Anjos. Que beleza sobrenatural não ressumbra nessas pinturas, e como vêm vivamente expressos aí os três ofícios do santo Anjo da Guarda — de guarda, arrimo e escudo, ou seja, de guia, protetor e defensor! É guia, pois aponta para o e indica o caminho que para lá nos leva; é arrimo, pois dá o apoio de seu potente braço ao inexperiente infante que conduz; é defensor e libertador, pois com seu simples olhar fulmina ao horrível dragão que a ameaçá-los se lhes atravessa no caminho. (16)
As orações da Igreja assinalam esses mesmos três ofícios dos Anjos. À oração do Anjo da Guarda, que nos ensina o catecismo, é uma das mais belas que compôs a piedade cristã — toda repleta de sentimentos de confiança, reconhecimento da bondade de Deus e humilde submissão.
Confiança: Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador; reconhecimento da bondade de Deus: já que a ti me confiou a piedade divina; humilde submissão: sempre me rege, guarda, governa e ilumina, Amém. E aí estão expressos, ao mesmo tempo, os três ofícios do Anjo da Guarda; é ele com efeito, o zeloso guardador, que rege, que governa, que ilumina.
E digamos por último que, como verdadeiro guarda, guia e apoio, os anjos de todos se dedicarão e socorrer-te “tomando-te nos braços”, como enérgica e belamente o exprime a S. Escritura, para que não te venhas a magoar nas pedras do caminho: in manibus portabunt te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum (Sl90).

(16) Esses ofícios dos Anjos da Guarda assim são discriminados por vários autores: O Anjo da Guarda a progredir no bem — a não cair em pecado — se nele  se cair, a dele levantar-se — se dele não se levantar, não cair tão frequentemente para ruína própria e alheia. Este último efeito da guarda dos Anjos vem ainda notado por S, Tomás, I. p. q; CXIII, a 4. ad 3.

2 — Proteção ao corpo

Também o nosso corpo está exposto a perigos neste mundo e por isto também ele é objeto dos cuidados dos santos Anjos da Guarda. Não somente de luz das almas é sua guarda “illuminatores animarum, custodes earum”, os apelidaram os escritores eclesiásticos, mas também de zeladores dos nossos corpos e defensores dos nossos bens “selatores corporum, defensores bonorum”. (17) São frequentes os passos da Sagrada Escritura que os anjos aparecem protegendo visivelmente a vida, os haveres ou a fama dos seus devotos.
Mas este não é o modo mais comum de proteger-nos. Igual proteção eles nos dispensam sem que se nos mostrem aos olhos do corpo. E é tão eficaz e salutar quanto à que dispensavam fazendo-se visíveis e palpáveis. É-lhes, pois aplicável a sentença de Sêneca, a saber, que faz parte do benefício, o oculto e o segredo em que ele é feito.
Cheia, com efeito, está a nossa vida desses ocultos favores. Quantas e quantas vezes, principalmente em nossa mais tenra idade, não arrasta-nos perigos de que ainda não sabemos como saímos ilesos! A quem atribuir tão manifesta, ainda que oculta proteção? Aquele Anjo de Deus que conosco está para proteger-nos à alma e o corpo.
E, de certo que uma das grandes satisfações que teremos no céu será a de conhecer este oculto e constante amigo de toda a nossa vida, assim como inúmeros benefícios que nos fizeram. E como crescerá então a nossa amizade para com este bem-aventurado espirito! Que dulcíssima e eterna amizade, sob os olhares do Pai Celeste, em companhia de todos os santos de Deus!

(17) assim o autor dos sermões ad fratr. in er. serm 46.

3 — Proteção em tudo, e sempre, por toda a nossa vida

O desabrochar de uma vida!... Grande mistério, maravilhosa coisa!... Começar a existir é começar à tomar parte nas lutas desta vida, é candidatar-se a um trono no céu, é expor-se ao perigo das encruzilhadas que nos podem fazer transviar.
E é no começo do caminhar que se escolhe o caminho a seguir. É claro que a criança não está em condições de poder escolhê-lo. Escolhem-nos os pais — oh que grande responsabilidade! Os pais são os anjos visíveis da criança. Os Anjos da Guarda são os Anjos invisíveis, Ambos velam por esta tenra vidinha que começa — e oxalá saibam os pais cooperar com o Santo Anjo de Deus!
Para eles não há essa inversão de valores muita vez adotada pelos pais, em que os interesses da criança, que são os de maiores consequências para a vida e para a morte, são pospostos aos interesses simplesmente materiais e naturais da vida.
Apenas abre os olhos o pequenito à luz do mundo, põe-se-lhe ao lado o amável protetor, cercá-lo dos cuidados que inspiram a sua fraqueza, e pequenez. Mas não se limita a proteger-lhe a vida do corpo. Ele sabe que há uma vida infinitamente mais valiosa: a vida sobrenatural, que participação da mesma vida de Deus. Ele sabe que aquela criancinha pode participar dessa vida, incorporando-se pelo santo batismo, a Cristo, que de direito a possui. Da sua parte faz o que lhe é possível para que, aquiescendo a suas inspirações, levem-no logo os seus pais à pia batismal.
Mas eis que já desponta a luz da razão, É então que se lhe apresenta o Anjo de Deus como guia e ilustrador dessa mentezinha que então começa a refletir, como orientador daquele coraçãozinho quo começa a tomar consciência de que ama. A sua mente há de procurar o Autor da Vida, e o seu coração há de amá-lo com todas as suas forças, O caminho por onde leva o seu protegido é o caminho do bem, que é sempre ladeado pelas barreiras de uma educação de todo solidamente cristã.
E para as lutas do espírito, que com o uso da razão já principiam, arma-o com as armas do cristo, armas espirituais que lhe são ministradas no sacramento da Confirmação, Mas o mundo é sedutor, e hoje como nos dias de Sodoma a carne corrompe o caminho do homem...
Um impulso natural no homem, radicado nas profundezas do seu ser, ameaça o adolescente que ainda ignora os recursos de vida, que em si possui, e que pode deixar-se arrastar ao vício e à vida desregrada. Observando o Santo Anjo tudo isto, e a um perigo tão íntimo ele opõe um remédio igualmente íntimo, que desça ao âmago do coração humano e aí ponha a virtude e a inclinação a todo bem. E este remédio é a Eucaristia.
E ao par da Eucaristia, está a devoção a Maria Santíssima. Inspirando-lhe o amor de Maria, o Santo Anjo lhe inspira um remédio igualmente íntimo e durável, que lhe purifica os afetos, lhe transforma o interior da alma em tabernáculo de Jesus,
Vêm os trabalhos, os dissabores, as lutas pelo pão quotidiano. É já um consolo o sabermos que temos ao nosso lado um Anjo de Deus, e que ele já possui, o que possuiremos depois dos trabalhos da vida, Mas, além disto, que fortaleza de ânimo não inspiram aos homens de fé sincera os Santos Anjos da Guarda! Que paz na velhice, que serenidade na última enfermidade, que conformidade na morte!
E é este o caminho por onde, desde a sua juventude, vai o Anjo da Guarda levando o seu protegido: Proverbium est: adolescens iuzta viam suam, etiam cum senuerit, non recedet ab ea. O adolescente, ainda depois de velho, não se afastará daquele caminho que tomou em sua juventude.
Felizes portanto, daqueles que desde a sua juventude seguem pelo bom caminho, fiéis às inspirações do Santo Anjo da Guarda!
Eloquentemente S. Bernardo: solícitos tomam parte em nossas alegrias, confortam-nos em nossas penas, instruem-nos em nossa ignorância, em nossos riscos nos protegem, a tudo próvidos atendem: sollicite congaudent, confortant, instruunt, protegunt, providentque omnibus, ommes in omnibus. (18)
Felizes de nós se desta verdade nos soubéssemos persuadir! Que ventura tê-los ao nosso lado nas viagens, como companheiro, na enfermidade como médicos, como amigos na adversidade, como sapientes conselheiros nas dúvidas e perplexidades, poderosa ajuda nas fadigas e desânimos da estrada que trilhamos, qualquer que seja ela!

(18) Ep. LXXVIII, ad Sugerium.

Jovem cristão, jovem congregado, é a ti, sobretudo, que me dirijo. Invoca o teu Anjo da Guarda nas dificuldades dos teus estudos, e aos demais títulos seus para contigo, ele ajuntará mais este de celeste preceptor e mestre teu!
Mas não é tudo. Não há durante o dia ocupação alguma, em que não nos assista o Santo Anjo da Guarda, Esta foi a ordem que ele recebeu de Deus: guardar-nos em todos os nossos caminhos — in omnibus viis. Neste mesmo instante em que lês, jovem caríssimo, contigo o Santo Anjo se inclina sobre esta piedosa leitura, e te ajuda a torná-la proveitosa para a tua vida prática. E depois desta leitura irás porventura recrear-te de alguma forma: contigo estará o Santo Anjo. Contigo ele irá ao teu colégio, contigo estará à mesa, e velando o teu sono permanecerá quando te deitares a dormir. E dormirás e despertarás na manhã seguinte... E de joelhos em terra, farás a tua oração. E quem a levará ao trono de Deus? O teu Anjo da Guarda, tal como foi visto por S. João em uma de suas visões.
A oração nos une a Deus, e nos alcança as graças necessárias à nossa salvação. Não há, por este motivo, ato nosso em que mais se compraza o caritativo espírito celeste. Dizem-nos os santos que quando rezamos nunca estamos sós: assistem-nos os Anjos de Deus, rejubilantes sobremodo, na exultação de sua celeste alegria! Sendo assim, continua será a alegria dos Anjos, se contínua for a nossa oração, conforme ao ensinamento de Cristo nosso Redentor: “é preciso sempre orar e nunca deixar de fazê-lo”. Na verdade nada mais desejam os Santos Anjos, com tanta solicitude, do que transformar a nossa vida em uma continua oração. (19)

Capítulo V
REVERÊNCIA DEVIDA AOS SANTOS ANJOS

São guia, ajuda, defesa nossa os nossos Anjos da Guarda. Um tal fato, tão magnífico, tão certo, tão fecundo para a nossa vida espiritual, é justo que tenha a devida repercussão na nossa atitude perante eles, e em geral na nossa conduta. Qual, pois, deverá ser a nossa conduta perante os Santos Anjos? S. Bernardo: devemos reverenciar-lhes a presença, corresponder com sincera devoção à sua benevolente dedicação, e ter absoluta confiança na sua proteção — “reperentia pro custodia, depolio pro benevolentia, fiducia pro custodia”.
Não podia resumir melhor o Santo doutor as nossas obrigações para com os anjos de Deus. Que são eles, na verdade? Em si mesmos são espíritos nobilíssimos; com relação a Deus, são supremos ministros seus — e por isto lhes devemos reverência. Com relação a nós mesmos, vimos que são nossa guarda, nosso apoio, nosso escudo: e por isto lhes devemos devoção e confiança.

(19) Três “vias" distinguem os autores ascéticos: a via purgativa, própria dos principiantes na vida espiritual; a iluminativa, própria dos que já vão aproveitando nos caminhos do espirito e a unitiva, própria dos perfeitos. Em cada uma destas vias trazem os Anjos a sua ajuda aos homens. Aos incipientes, purgando-os dos seus defeitos; nos proficientes, iluminando-os com sábios ensinamentos; aos perfeitos corroborando-lhes a perfeição com seu validíssimo conforto. Ah! bem é verdade que nos guardam em todos os nossos caminhos! À estas três vias alude S. Dionísio no livro de Cael, Hierareh, no cap. III.

Três pequenos parágrafos: contínua presença do Santo Anjo — reverência que de nós requer essa presença — modo prático de jamais faltar- lhes o respeito,

1— Contínua presença do Santo Anjo
“Não é só pela vista, diz S, Bernardo, que nós comprovamos a presença das coisas”.
É isto precisamente o que se passa com os Santos Anjos. Estão-nos presentes, sempre e em toda a parte, e jamais os podemos ver. Mas nem por isto estão-nos menos presentes! Aliás, que de coisas, ainda materiais — e não espirituais, como os Anjos — nos são inatingíveis à vista! Quem jamais viu o oxigênio ou o hidrogênio do ar? Sentimo-los, é verdade, passar em voos desabalados e fustigar-nos a face... Não obstante, não os vemos.
Muitas vezes, também, passam junto de nós os espíritos celestes que baixam à terra em embaixadas de paz e amor... Não os vemos. Mas podemos percebê-los com as faculdades de nossa alma e a sensibilidade do nosso psiquismo: ora são as inspirações a mover-nos no bem, ora um certo aumento fervor de fé, de esperança, que nos dizem da presença dos amáveis mensageiros de Deus.
Há, entretanto, um Anjo, cuja missão é ficar instantemente junto de nós: é o Santo Anjo da Guarda. Não o percebemos, de continuo, como também não percebemos o ar quieto que nos envolve. Não ousaríamos, entretanto, por esse só motivo, negar a presença de um ou de outro. A existência do oxigênio, sabemos pela ciência. A do Santo Anjo da Guarda, pela fé — que é algo de mais certo que a mesma ciência humana. Aliás, quantos são, dentre os que admitem as asserções da ciência, os que não as admitem por um verdadeiro ato de fé na palavra da ciência? Quantos há que devem à averiguação do próprio raciocínio as verdades que lhes propõe a ciência?.... Ora bem, mais digna de crédito é à palavra de Deus que a palavra do homem.

E, pois, consultar a fé, Que nos diz a fé? Diz-nos que os Anjos nos estão presentes, sempre e em toda a parte, pois de Deus receberam a incumbência de assistir-nos, e de assistir-nos em todo tempo e lugar, ora, uma tal incumbência exige-lhes a presença. “Quomodo, interroga S. Ambrósio, longe stant, qui ad adiumentum sunt aitributi?” Como podem estar longe de nós seres que nos são dados por Deus para nossa contínua ajuda e defesa (In 1s.37,m.43).
Bem curta, na verdade, é a visão do nosso espírito! Bem lânguida a nossa fé! Praza a Deus se nos torne ela mais viva, Que magnífico espetáculo, então, aos olhos da nossa mente! Onde quer que vejamos um homem, aí veríamos igualmente um Anjo de Deus! Anjos de Deus a encher-nos o lar em que vivemos com nossos pais e irmãos, Anjos de Deus a encher os seus santos templos e altares, Anjos de Deus nas escolas, tão numerosos quantos os discípulos e mestres. Anjos de Deus, santos de sobre-humana nobreza onde quer que se ajuntem criaturas humanas! Ao lado do nosso pai um Anjo, ao lado de nossa mãe, ao lado de nossos irmãos, ao lado dos nossos condiscípulos, ao lado dos nossos amigos e companheiros.
Que magnifico espetáculo, que sublime visão de fé É o caso de dizer com S. Paulo: “viestes ao monte de Sião e a Jerusalém cidade do Deus vivo, e à companhia de muitos milhares de Anjos. Accessistis ad Sion montem el multorum millium Angelorum frequentiam”. (Hebr. XII, 22).

2 — Reverência que de nós requer a presença dos Anjos

Não é difícil compreender a nossa obrigação de reverência e respeito para com os Santos Anjos.
Bastará um ato de fé na presença do excelso mensageiro de Deus junto a nós, para nos virmos na obrigação de nos compormos e de reverenciar-lhe a presença. Com efeito, é assim, que procedemos diante daqueles que têm lugar de destaque na hierarquia social. Por outra parte, também a santidade impõe respeito, reverência, devoção. Diante dos magnatas do mundo como diante dos santos de Deus, instintivamente nos mostramos respeitosos, atenciosos, educados.
Ora, os Anjos da nossa Guarda ocupam o mais destacado lugar na hierarquia da criação, e são de tão excelente santidade que nenhum dos grandes santos da Igreja se lhes pode comparar.
Os anjos, dizem-nos a porfia os santos doutores, são os domésticos de Deus, cidadãos do céu, excelsos em santidade, exímio em toda ciência, sapientíssimos e poderosíssimos. Formam a bem-aventurada côrte do Altíssimo e são seus ministros: administratorii spiritus — como já nos disse S, Paulo — in ministerium missi, Que profundo respeito, portanto, e que perfeita modéstia não é devida à sua presença! “Vela sobre ti, diz S. Bernardo, pois a ti estão os Anjos presentes: caute ambula, ut videlicet cui adsunt Angeli, in omnibus viis tuis”. Em todos os teus caminhos: portanto, sempre e em toda parte, quando sozinho ou quando acompanhado, em lugares públicos, nos templos ou em tua casa. Reverencia o teu Anjo da Guarda onde quer que estejas, no que quer que te ocupes: “in quovis diversorio, in quovis angulo, “Angelo tuo reverentiam habe”.

3 — Modo prático de jamais faltar o respeito ao Santo Anjo

"Cavenda nobis eorum offensa”, diz S. Bernardo: devemos evitar tudo aquilo que pode ofender aos Santos Anjos. Ora, uma coisa somente há que lhes ofende realmente a imaculada visão: o pecado (20). Na verdade, a ofensa feita a nosso próprio pai é a que mais nos ofende, e o desrespeito à autoridade a cujo serviço nos dedicamos, nos enche de dor e indignação. Nada, igualmente, pode ofender aos Santos Anjos, fora daquilo que ofende àquele Altíssimo Senhor, de que são eles zelosos ministros. Evitar, pois, o pecado, é evitar a ofensa dos nossos Anjos da Guarda, é conservar-nos reverentes e respeitosos à sua presença.

(20) S. Pedro Damião: “In Angelorum emspecto, mil sor dlidum mil fostet obseenum, mist vitium ct poceatum".

É exigir demais? Não, certamente, atentos aos meios de que dispomos, na Igreja, para evitá-lo.
A mais, a mesma fé, avivada, na presença dos “Santos Anjos, já é de per si um poderoso meio pura evitar qualquer espécie de pecado, “É impossível que não desista do propósito de pecar, diz S, Ambrósio, aquele que, alçando ao céu os olhos de sua mente, considere que a tudo enchem de sua presença os anjos: o ar, a terra, o mar, as igrejas que eles presidem (21)”. “E ousarás vós, retoma S. Bernardo, fazer na presença do vosso Anjo da Guarda, aquilo mesmo que não ousaríeis fazer perante uma alta personagem terrena... ou mesmo perante um homem vulgar qualquer?”
Devemos, portanto, fugir do pecado, não em tal ou qual momento, não neste ou naquele lugar somente, mas sempre e em toda parte, de dia ou de noite, em lugar patente ou escuro, em lugar solitário ou povoado. Sempre é em toda parte não podemos deixar de prestar ao Santo Anjo da Guarda aquela reverência que lhe é devida, pois sempre e em toda parte temo-lo a nosso lado, zeloso pelo nosso bem, como mensageiro de Deus Altíssimo: “in omné loco sedulus pedisequus ani mae (22)”.

(21) Enpos. iu ps, CXVII, serm I. 9.

(22) Serm. XXXI in cant. — Com essas palavras S. Bernardo compara o Anjo a um servo, a seguir os passos do seu senhor. E nem isto, conforme no que diz em outro sermão, deve parecer incrível, pois o mesmo Criador e Rei dos Anjos, vem à terra não já a ser servido “nas sim a servir e a dar à sua vida pelos homens.” (La festa S. Michaelis).

Capítulo VI
O QUE SINGULARMENTE OFENDE OS SANTOS ANJOS

Não há pecado, evidentemente, que não ofenda os Anjos da nossa Guarda. Não há pecado, portanto, que por nós não deva ser evitado por respeito à presença do Santo Anjo de Deus. Há, entretanto, alguns pecados que os ofendem mais, gravemente. É mister aborrecê-los profundamente e evitá-los com todo o cuidado para não desgostar ao amável protetor nosso e zeloso guarda de nossa alma.
É fácil compreender que pecados sejam estes, se consideramos os Santos Anjos de Deus sob três aspectos seguintes: com respeito a Deus, se: Criador e Senhor, com respeito a eles mesmos, com respeito a nós, os homens.
Com respeito a Deus, são ministros zelosíssimos seus: espírito administradores... Todo pecado, portanto, que ofende diretamente a majestade de Deus, é-lhes igualmente profundamente injurioso e profundamente os ofende.
Com respeito a si mesmos são puríssimos espíritos. Quer isto dizer que, não sendo, como os homens, compostos de carne e espirito, são de todo isentos dos atos carnais e sensuais inerente à natureza humana. Todo ato sensual, portanto não permitido por Deus Nosso Senhor, todo ato carnal não dirigido pela razão, de todo repugna sua puríssima e toda espiritual natureza.
Enfim com respeito aos homens são os seus guardas e nada têm mais a peito do que a sua salvação: “missi propter eos qui hereditatem capient aulutis”, Ora, há um pecado que se opõe a essa missão dos Anjos: é a pecado de escândalo. O escandaloso leva as almas à perdição como os Anjos da Guarda à salvação. Eis, portanto, a terceira espécie de pecado que os Anjos grandemente abominam.

1 — Injúrias que diretamente ofendem a majestade de Deus

De dois modos é possível injuriar a Majestade de Deus. Primeiramente, de modo indireto, e como que por consequência, violando deliberadamente os seus preceitos ou proibições, tal como acontece no homicídio, na detração, no ódio para com o próximo. Em segundo lugar, diretamente, e per si, tendo por alvo da injúria, imediatamente, a mesma divindade sacrossanta, ou ainda os atributos infinitos, tal como se dá na blasfêmia ou quando com insensata ousadia se maldiz a sapientíssima providência sua. Se zomba de sua santa religião, se rebela contra os seus santos dogmas. São estas últimas, injúrias de lesa Majestade divina, e são sumamente ofensivas aos anjos, zelosos ministros seus.
Qual é, com efeito, o ofício dos Santos Anjos com respeito a Deus? Como indica o mesmo vocábulo grego “angelos” são eles mensageiros e ministros de Deus. Ora bem, que ministro verdadeiramente fiel a seu senhor e solicito de seus interesses, não vibra de indignação contra o acinte de quem o insulta em sua mesma presença, não toma como suas as injúrias feitas ao seu Senhor, não se afoita cheio de zelo à pressão do ofensor e à vingança do ofendido? Assim fazem os fiéis servidores dos senhores da terra. Como não farão, então esses supremos ministros de Deus altíssimo?
É por vezes mentirosa, instável em todo o caso, e interessada, a fidelidade do homem ao homem; mas a fidelidade dos Anjos a seu Criador é leal, sincera, constante, acompanhada de zelo ardoroso.
Por outra parte, vai infinitamente menos do, servo ao senhor, por grande que seja, desta terra, do que do Anjo a Deus, ser infinito que lhe deu o ser é tudo o que ele tem. É pois, para o Anjo, a Majestade divina, algo de tremendo, altíssimo e adorabilíssimo. Daí todo o zelo, desses seus ministros e servidores. Só na misericórdia divina, com que se conformam os Anjos, se pode achar a razão pela qual não vingam eles incontinente e implacavelmente as ofensas feitas à divina Majestade. Deus, que é Pai de Misericórdia, ainda oferece a esses pecadores o auxílio de sua graça; também os Anjos continuam prestando-lhes, assistência, e como médicos compassivos todos empenham para que os infelizes se reaviem no caminho do céu. Mas quem poderá dizer a indignação suma dos bem-aventurados espíritos, obrigados a ser testemunhos de tão horríveis excessos?
'Sanctum et terribile nomen ejus": é santo, terrível, o nome do Senhor, diz o Salmista. Respeita-o pois, para que não venhas a ofender sua divina Majestade e para que não causes ao bom Anjo da Guarda o desgosto de assistir a tão horrenda injúria ao seu Criador e Senhor.
“Nem digas diante do Anjo: não há providência, para que não aconteça que irado o Senhor com tal falar, não faca perecer todas as obras de tuas mãos: neque dicas coram Angelo nom est providentia, ne forte iratus Deus contra sermones luos dissipet cuncta opera manuum tua- vu” (Ecle.5,5) — Guarda-te, pois, de tal falar, como te adverte o Espírito Santo. Não digas que o vosso Pai celeste não é bom ou não é justo. Não faças da sua santa religião objeto dos teus gracejos e muito menos das tuas zombarias. Submete a seus santos dogmas, que Deus se dignou revelar-lhe, o teu intelecto, certo de que Deus te guia na senda da verdade, sem o mínimo perigo de transviar-te.
Enfim, tudo o que se refere a Deus de um modo especial, é digno de veneração e respeito por tua parte: objetos, lugares, pessoas consagra-vos ao seu divino culto ou ao seu sagrado serviço.
Guarda-te, portanto, de toda irreverência na igreja e de todo desrespeito para com os ministros do santuário ou as sagradas cerimônias que aí se realizam. Os Anjos, como diz S. Teodoro Studita são os guardas que velam pelos altares e pelos templos de Deus: “per angelos altaria Dei custodiuntur et fidelium templa servantur”, Não é, por outra parte, por respeito aos Anjos, que S. Paulo preceitua que as mulheres devem conservam-se tom o véu sobre a cabeça na igreja? Com que olhos não verão, pois, esses Anjos que ai assistem, o infeliz que faz da casa de Deus não só teatro para seu divertimento, mas lugar de licença e escândalo? (23).
Há, entretanto, um momento em que todo respeito de tua parte é pouco no templo de Deus: é o momento da Santa Missa. Lembra-te que a ela assistem multidões de espíritos celestiais profundamente reverentes, e como que transidos de santo temor ante o Altíssimo mistério que ali se cumpre.
E como remate de todas estas considerações, que deves tomar como inspiradas pelo teu Anjo da Guarda, e como que saídas de sua boca, guarda em teu coração estas palavras de S. Gregório Nazianzeno, que te farão venerar e respeitar os sacerdotes de Deus, e quicá te movam a seguir-lhes a carreira: “os mesmos Anjos, diz ele, puros adoradores de Deus puríssimo, é provável que venerem o sacerdócio como coisa bem digna do seu culto: sacerdotium ipsi quoque Angeli, puri purissimi Dei cultores, tanguam ipsorum cultuí mini me impar, fortasse veneratione proseguuntur” (24).
E se queres uma palavra de autoridade divina que eleve o sacerdote a uma como identificação com o próprio Cristo, guarda esta breve e profunda palavra dita aos apóstolos e seus sucessores pelo divino Mestre: “quem vos ouve, é a mim que ouve; e quem vos despreza, é a mim próprio que despreza; qui vos audit, me audit, qui vos spernit, me, spernit."

(23) Na oração in sonetos Angelos, n. 2, Migne Patrol, Grace. tomo XCIX p. 730. — 8, Jerônimo comenta o texto de S. Paulo à que aludimos nos Coment. in Math. 1,III.
(24) Orat XVII, n. 12.

2 — Os pecados contrários à virtude angélica

Tais pecados, como ficou dito, sumamente repugnam à puríssima natureza angélica. Consequentemente, não podem eles deixar de abominá-los sumamente.
Suponhamos um preceptor, de ânimo singularmente sereno, de atitudes constantemente pacíficas. É fora de dúvida, que tal preceptor, se empenhará sobretudo, em tornar o seu discípulo igualmente paciente, calmo, pacífico. E tanto mais o amará quanto mais ele se conformar com o seu exemplo e ensino. E a razão disso, é clara: amamos aqueles que têm traços de caráter semelhantes aos nossos, e sentimos aversão pelos que nos são notavelmente dissemelhantes.
Os Anjos, portanto, nada devem aborrecer mais do que os pecados contrários à virtude da pureza. E isto pela razão explicada. A sua natureza puríssima os leva a amar os que lhe são semelhantes, e a aborrecer tudo aquilo que lhe é oposto.
Há, portanto, uma grave ofensa ao celeste Anjo que nos acompanha, em todo ato dessa natureza.
É quem deseja viver de sua fê, isto é, admitir, praticamente, a constante presença desse bem-aventurado espírito, deve por isso mesmo evitar tudo aquilo que lhe pode afetar a pureza dos costumes.
S. Basílio usa de uma comparação que nos torna assaz sensível o que asseveramos. “Assim como a fumaça, diz ele, afugenta as abelhas, e assim como um mau odor põe em debandada as cândidas pombinhas, assim esse lastimável e nauseante pecado repele o Santo Anjo de Deus, guarda da nossa vida (25).

(25) “Lacrimonum pecostum”, diz Brasílio: o pecado, provocador de lágrimas...  - In Pa. XXXIII n. 5.

É certo que não nos abandona o Santo Anjo da Guarda, depois que o ofendemos, como também não deixa de nos estar presente o próprio, Deus, no próprio ato pecaminoso, Deus continua presente, como ser Onipotente, mas não daquela forma peculiar, vivificando-nos da sua mesma vida divina. O Anjo da Guarda também continua presente... Mas é claro que os laços de caridade que o prendem a nós se tornam mais fracos... Por outra parte, sendo piores as nossas disposições, menos ele nos poderá ajudar espiritualmente.
No entanto, ao amor sucede a compaixão. E o bom Anjo de Deus, então, se empenhará em nos reconduzir ao bom caminho, por meio de suas inspirações e moções interiores,
Jovem que me lês, faze por conservar-te digno do amor do teu Anjo da Guarda, fazendo-te semelhante a ele pela pureza dos teus costumes. Se, no entretanto, suceder que venhas a tornar-te indigno até dos seus olhares, presta ouvido às suas inspirações, e volta, pressuroso, aos braços do amável e celeste companheiro do teu peregrinar.
E se neste momento em que me lês, reconheces que não és digno do amor do santo Anjo, dá-lhe, porventura pela primeira vez, o prazer de ver-te de novo puro como ele, e digno como ele, do amor de Deus!
Oh, que feliz a vida do moço puro, amável aos Anjos, admirado e respeitado dos homens! “O homem puro, diz S. Bernardo, faz-se de homem, Anjo. O Anjo, e o homem que leva a vida ilibada, diz ele, são, de certo, diferentes; mas não pela virtude, e sim pela felicidade ou excelência da natureza: “differunt... sed felicitate naturae, non virtute” (Epist, XXIV).
Podemos, pois, por virtude, ser o que os Anjos são por natureza.
Sejamo-lo, já que de nós depende,
Sejamo-lo, como verdadeiros seguidores de Jesus, Cordeiro sem mancha, lírio dos convales, como perfeitos filhos de Maria, Mãe puríssima, Rainha das Virgens, concebida sem pecado,

3 — Como ofende aos Anjos o escândalo

Muito se fala de escândalo, mas poucos sabem o que se entende por essa palavra. Dar escândalo é, na definição da ascese católica, nada mais que oferecer a outros ocasião de pecado. “Isto, diz S. Tomás, de dois modos se pode fazer; ou diretamente, ou indiretamente” (2. 2. q. XLIII).
O escândalo é direto quando o escandaloso tem em vista a ruína espiritual do próximo.
É indireto quando não se tem em mente tão perversa intenção, mas apenas se prevê que ações e palavras são ao próximo, ocasião de ruína espiritual, e não obstante se faz tal ação ou dizem tais palavras, sem que para isto haja uma justa razão.
Em ambos os casos, entretanto, o resultado ou fim, intencionado ou não, do ato escandaloso, é a ruína do próximo. E assim é o escândalo o maior dos males que a ele podemos fazer.
E pior é matar-lhe a alma e tirar-lhe a vida sobrenatural, que lhe custou o Sangue de Cristo, do que privá-lo da vida natural, que lhe custou, simplesmente um ato de sua onipotente vontade.
O escandaloso é um assassino de almas e um, esbanjador do Sangue de Cristo. O escandaloso deita a perder tudo o que Cristo sofreu de agonias e dores, de tormentos e injúrias, de injustiças e escárnios.
Se se pudessem ver as almas mortas, a muitas, delas veríamos cobertas das feridas deixadas pelo punhal assassino do escandaloso.
Ora, o que não veem os nossos olhos, por não perceberem o que é espiritual, veem-no os Anjos de Deus, que são da mesma natureza de nossas almas. O seu horror, então, pelos que escandalizam os inocentes, é bem semelhante ao de Jesus Cristo, que pronunciou severíssimas palavras a esse respeito. Perguntaram-lhe certa feita os seus discípulos quem era o maior no reino dos céus. Chamou então, Jesus, a uma criancinha, colocou-a em, meio deles e lhes disse que o maior no reino dos céus seria o que fizesse como aquela criança. E, ajuntou depois: "aquele que escandalizar a uma dessas criancinhas, seria bem que fosse lançado no fundo do mar com uma pedra de moinho atada ao pescoço”.
A enérgica expressão de Nosso Senhor Jesus, Cristo, traduz bem todo o horror que as almas santas sentem pelo escandaloso. Ora, os Anjos, as criaturas mais santas que Deus já criou excetuada Maria Santíssima. Quanto, pois, o pecado de escândalo os ofenda, bem se pode compreender.
Mas, além disso, ainda outros motivos mais particulares há. pelos quais o escândalo seja ofensivo aos Anjos. E estes motivos são os meios de que usa o escandaloso, o chefe a cujos serviços se põe e o fim que tem em vista. um, o Anjo, quer a salvação do homem, outro (o escandaloso) a sua ruína e condenação. Um, para esse efeito, sugere castos pensamentos, excita santos afetos, estimula a fugir do pecado e a praticar o bem, e o outro procura infundir nas almas perversas ideias, desperta as paixões mais vergonhosas nos corações, tudo faz para desencaminhar os bons.
Por fim, um é mensageiro de Deus, seu ministro e embaixador, outro sequaz do príncipe das trevas, seu agente e representante.
Portanto, foge, aborrece, abomina com todas as tuas forças ao pecado de escândalo, sumamente injurioso à Cristo, e ofensivo ao santo Anjo da Guarda.
E guarda-te, sobretudo, de escandalizar os inocentes, pois, diz Cristo Nosso Redentor: “os seus Anjos, no céu, sempre veem a face de meu Pai, que está nos céus: Angeli corum, in coelis, semper pident faciem Patris mei, qui in coelis est (26).

(25) Mt18,10. — Este lugar da Escritura é um dos mais evidentes e eficazes para demonstrar a verdade da guarda dos Santos Anjos. “Que cada fiel de Cristo seja assistido por um Anjo, diz S. Basílio, tal como de um preceptor e pastor a lhe reger a vida, ninguém o poderá contradizer, se se lembrar das palavras do Senhor, quando disse: “não desprezeis” etc. — Cont. Kumon. I,III.

Capítulo VII
O AMOR QUE DEVEMOS A ESSES NOSSOS CELESTES PROTETORES

Um amigo verdadeiro não é somente aquele que nos não ofende. É sobretudo aquele que com amizade afetuosa paga a amizade que lhe votamos, Se quisermos viver da nossa fé e fazer do esplêndido dogma da guarda dos Santos Anjos um apoio poderoso da nossa vida espiritual, é indispensável pagar-lhes com amor a amizade que eles nos dedicam.
Os três pequenos parágrafos que seguem — o amor que os Anjos nos têm; o que lhe devemos; e a sua alegria em se verem correspondidos — pretendem ajudar-te, com o auxilio de Deus, a pagar essa dívida de amor.

1— 0 amor que os Anjos nos têm
Hã duas espécies de amor. O amor de concupiscência e o de benevolência. Pelo de concupiscência procura, o que ama, não o bem do ser amado, mas o bem, à vantagem e a utilidade própria. E pelo de benevolência unicamente o bem, proveito e vantagem do ser amado.
Ora, nem os Santos Anjos (como dizia Sêneca a respeito de Deus (de benef. IV, c. 9) precisam dos nossos favores, nem nós lhos podemos fazer.
“Nec ille collato eget, nec nos ei quidquam corferre possumus”.
Na verdade, os Santos Anjos já são bem-aventurados em Deus, no céu: de que mais podem precisar?. que utilidade ou vantagem de nós, míseros mortais, podem auferir? Portanto o seu amor para conosco é um puríssimo amor de benevolência, e somente amor, de nossa parte, lhes podemos dar. Os Santos Anjos nos amam, diz S. Agostinho, por três motivos ou causas: por causa de Deus, por nossa causa, e por causa de si próprios. Por causa de Deus, porque Deus nos ama também, e com tais extremos; por nossa causa, porque lhes somos semelhantes na natureza racional; por causa deles próprios, porque nos querem sentados naqueles tronos supernos dos Anjos que prevaricaram (S. Ag. De dilig. Deo, cap. 3; S. Bernardo, Sermo 1 in festo S, Michaelis, n.4).
A estas razões do seu amor, ainda outras lhes podemos juntar. Amam-nos, porque é grande a aversão que sentem pelos demônios, capitais inimigos da natureza humana, Amam-nos porque nos veem tão amados de Maria Santíssima, queridíssima Rainha sua. Amam-nos, porque intensamente nos ama Jesus, nosso Redentor, e Rei dileto seu.
“Se o nosso Rei — assim faz Orígenes falar os Anjos — o Unigênito Filho do Pai, desceu do céu e desceu revestido de um corpo humano, se ele de mortal carne se vestiu, levou a sua cruz e morreu pelos homens; que mais esperamos nós, nós, (Anjos seus), seus ministros, que faremos? (Hom. Lin Ezech).
Maravilhoso espetáculo nos olhos de quem sabe contemplar! Três fontes puríssimas de amor, de que prorrompe, intenso e veemente, o amor dos Anjos para com os homens! É um amor não de meros desejos, não de estéreis afetos, mas de obras, “mas constante, duradouro como a vida, longo como a eternidade!
Não insistiremos mais nos fatos que provam o amor dos Anjos para com os homens. Apenas citaremos ainda uma profunda observação de S.Tomás, que se resume nisto: Todas as obras salutares e meritórias que fazemos, são outros tantos favores dos Santos Anjos, pois sem a sua ajuda e cooperação não as lograríamos fazer. Mas eis as textuais palavras do santo e angélico doutor: “o homem pode, por si mesmo, cair em pecado, mas não pode produzir obras meritórias, sem o auxílio divino, o qual lhe é dado mediante o ministério dos Anjos. Eles, portanto, concorrem para todas as nossas boas obras (I. p. q. CXIV a.3).

2 —A nossa dívida de amor

É uma coisa que a mesma natureza nos ensina (lei natural) que aquele que ama e faz benefícios a outros, deve encontrar, nestes últimos, amor e reconhecimento. E quem transgride a tão sagrado preceito, manifesta seu próprio coração vazio de afeições, “sine affectione”, como diz S. Paulo (11, Tim.). E sem amor, tido como ingrato, é de todos aborrecido. Nada, na verdade, mais natural.
Mas o amor cristão, abrange não só os amigos mas também os inimigos.
E se aos inimigos devemos amar, quanto mais aos amigos!
“Se aqueles, assim argumenta S. Agostinho, que são objeto das nossas obras de misericórdia ou de cujas obras nós próprios somos objeto, são chamados justamente nossos próximos, é claro que no preceito, que nos foi imposto, de amar o nosso próximo, também estão incluídos os Santos Anjos, pois eles cotidianamente exercem junto a nós inumeráveis atos de misericórdia” (De doctr. Christ).
Ainda mais longe podemos ir, e ajuntar que se preceito compreende especialmente os Santos Anjos, pois são, depois da bendita Mãe de Deus e Mãe nossa, Maria, os nossos mais assíduos e liberais benfeitores.
Veem-se por vezes certos santos cultuados com uma constante e nunca satisfeita devoção, por certos devotos, que se confessam objetos das mais assíduas e estimáveis gracas e favores, Mas creio que se pode afoitamente afirmar que nenhum santo do céu pode ter de nós cuidado mais assíduo e operoso do que o que de nós tem aquele Anjo que foi destinado por Deus a ser junto de nós, em toda a nossa vida, o nosso fiel guardador. É justo portanto, que à nossa correspondência e amor, a nossa devoção e gratidão para com o Santo Anjo da Guarda não seja em nada inferior à devoção e amor para com qualquer outro dos santos de Deus.
Mas sejamos práticos. A prova do amor são as obras. Ora, a epístola da festa dos Anjos da Guarda nos oferece um belo conselho: é preciso, para corresponder ao amor do bom Anjo de Deus, ouvir a sua voz. Isto resume tudo. Mas eis a dita lição: “Assim disse o Senhor Deus: Eis que enviarei o meu Anjo; ele te precederá e te protegerá no caminho e te introduzirá no lugar que eu te preparei. Respeita-o e escuta a sua voz, e guarda-te de o desprezar; porque ele não te perdoará quando pecares, pois nele o meu nome (autoridade) está. Se escutas a sua voz e fazes o que te digo, eu serei o inimigo dos teus inimigos e afligirei os que te afligem, pois o meu Anjo caminhará adiante de ti.
Na verdade bem frequentemente nos fala o Santo Anjo ao coração. Então é preciso ouvir a sua voz.
Vivos raios de luz, muitas vezes atravessam a obscuridade das nossas faculdades mentais, e, de súbito, se nos descobre ao conhecimento as verdades eternas e o nada das coisas da terra: é a voz do Santo Anjo.
Outras vezes são moções interiores que nos querem arrancar do pecado, afastar das suas ocasiões, levar à prática do bem, à oração, aos sacramentos, à obediência, ao estudo — são outras tantas vozes do Anjo da Guarda. Ouçamos-las, por que, como diz S. Ambrósio, as internas vozes dos Anjos são outros tantos convites e ordens de Deus, de Quem são eles obedientes ministros: “Angelorum verba mandata sunt Dei” (De Virginit).
Há um caso, sobretudo, em que é mister estar bem atento a essa voz do Santo Anjo, e bem dócil às suas moções: é o caso do chamado ao estado sacerdotal ou simplesmente ao estado religioso.
Com efeito, pode o cristão ser chamado a dois estados de perfeição: ao sacerdotal, simplesmente, ou seja ao estado de padre secular (que não pertence a nenhuma ordem ou congregação religiosa), e ao de religioso, nas congregações e ordens religiosas.
Num como noutro o homem se consagra e prende a Deus com vínculos especiais. No primeiro estado, além de fazer voto de castidade, contrai o sacerdote a obrigação de trabalhar no bem das almas, debaixo da obediência do bispo de sua diocese.
No 2o estado, de religioso (que pode ser também sacerdotal, ou não), abraçam-se plenamente os três grandes conselhos evangélicos, que são a condição do estado religioso, e ao mesmo tempo os caminhos mais seguros para a perfeição. Isto, é, o religioso imola a Deus as próprias riquezas, com o voto de pobreza; o próprio corpo, com o voto de castidade; e a própria vontade com o de obediência.
Não há dúvida que são grandes os sacrifícios que acompanham estes dois estados, e especialmente o segundo. Mas aquele que se vir chamado por Deus Nosso Senhor, tenha por certo que a graça do Senhor e a assistência do Santo Anjo se unirão para aplainar qualquer dificuldade, e suavizar qualquer sacrifício. Além disso se Deus pede o sacrifício é porque pode compensá-lo com as mil vezes mais preciosas: “todo aquele que deixar a sua casa, ou os irmãos, ou as irmãs, ou o pai, ou a mãe, ou a esposa ou os filhos, ou suas terras, por causa do meu nome (por minha causa), receberá o cêntuplo (em recompensa), e possuirá a vida eterna”. (Mt.19,20) Avalie-se agora se vale a pena fazer tal sacrifício.

3 — Alegria do Santo Anjo quando correspondemos ao seu amor

Nada há que nos cause tanta tristeza como ver-nos mal correspondidos em nossa dedicação por alguém, e nada que mais puramente nos alegre do que ver que a nossa dedicação provoca reconhecimento e o nosso afeto correspondência.
Exemplo frisante é a alegria de um pai e de sua mãe que veem os próprios filhos a crescer dóceis a seus desejos e mandados, morigerados e estudiosos; e o do mestre que vê crescer cada dia mais em saber os discípulos pelos quais se dedica.
Bem sabem, os que o experimentam, como é doce colher os frutos da própria fadiga e indústria.
Quanto à alegria dos Anjos em se verem correspondidos, fala a teologia católica por boca de S. Tomás de Aquino, um dos seus mais autorizados porta-vozes. *A alegria dos Anjos, diz ele, pode aumentar por motivo da salvação dos que se salvam por seu angélico ministério... Mas esta alegria pertence ao prêmio acidental, e como tal pode aumentar até o dia do juízo” (27). Logo, alegram-se os Santos Anjos de Deus com o nosso bem espiritual.
Por outra parte, diz N. S. J. Cristo, no Evangelho: “alegria haverá no céu, entre os Anjos de Deus, pela penitência e arrependimento de um pecador que seja”.

(27) I. p q. LXII a q ad 3.

De duas espécies de bem-aventurança, portanto, gozam os Anjos de Deus no céu: uma essencial, consiste na visão e no amor de Deus, e outra acidental, é resultado do conhecimento que podem ter acerca de outras coisas fora de Deus. Tal é a alegria pela conversão de um pecador, tal a alegria de se verem correspondidos em seu zelo junto de nós.
A tua vida, portanto, leitor amigo, pode ser causa dessa felicidade acidental dos Santos Anjos.
É por certo que já é uma grande felicidade ser a outrem causa de felicidade! Que felicidade, a de saber que os nossos pais, os nossos mestres, os nossos superiores, são felizes porque somos o que eles esperavam de nós! Pois bem, estejamos certos, que, se formos bons, também os Anjos serão felizes, e isso por nossa causa. Que motivo de alegria para nós!
Há ainda uma outra coisa sobre que deves refletir, O mestre que vê os seus esforços correspondidos, mais ainda se anima a levar o seu discípulo sempre a maiores conhecimentos, e a lhe desvendar os segredos da ciência que ao comum dos seus alunos ele não revela. De modo igual procede todo aquele que tem por ofício o dirigir, o guiar, o educar, seja nas ciências, seja nas artes, seja na vida em geral. O educando que corresponde aos cuidados do seu educador, merece os cuidados especiais de que é alvo ulteriormente.
Podes, portanto, merecer especiais cuidados do teu Anjo da Guarda, e podes não merecê-los.
No primeiro caso, podes contar com um muito especial auxílio nos perigos do nosso longo caminhar sobre a face da terra.
No segundo, ainda que de certo estará pronto o bom Anjo a socorrer-te quando o invocares, contudo, já não merecerás esse auxílio todo especial de que porventura necessitarás.
Enfim, pensa no seguinte.
O Anjo da Guarda tem direito a essa alegria de se ver correspondido, do mesmo modo que quem trabalha tem direito à remuneração correspondente ao seu trabalho. Se não fores bom, portanto, e não corresponderes aos cuidados do teu bom Anjo, priva-lo-ás de uma coisa a que ele tem direito.
E os males a que te exporás então? As boas árvores dão bons frutos, e as más, maus. Quer isto dizer que o mal acarreta o mal; e o bem o bem. Isto é natural, Das tuas ações más, só se poderá seguir o mal, a infelicidade de ser morto sobrenaturalmente, a desgraça de te perderes, talvez, eternamente.
E das tuas ações boas se seguirá o bem, toda sorte de bem para tua alma, — e é em tua alma que reside a tua verdadeira felicidade, e não no teu corpo.
Como foram felizes os santos, e como os cercaram os Anjos de cuidados! De certo que já admiraste, em suas vidas, este sinal do agrado do seu Anjo da Guarda. Pois bem, podes tornar-te digno de iguais favores. A não ser que queiras ser inimigo de tua alma — hostes animae mostrae, dizia o Arcanjo S. Rafael — e então não há que atribuir a culpa da tua miséria espiritual senão a ti mesmo.

Capítulo VIII
AINDA A NOSSA DÍVIDA DE AMOR

Duas partes compreende a nossa divida de amor; amor de reconhecimento e amor de reparação.
Do amor de reconhecimento já falamos no capítulo anterior, Resta-nos o amor de reparação.
É ele necessário?
Basta fazer um exame de consciência servindo-nos da leitura que fizemos até aqui. Temos sido para com o Santo Anjo da Guarda aquilo que deveríamos ser? Correspondemos, do modo devido, ao beneficio da sua continua assistência?
Temo-lo amado? Temo-lhe dado alegria? Temos merecido os seus especiais cuidados, ou, pelo contrário, temos desmerecido até os seus cuidados mais comuns?...
Reparar é pagar ou restituir amor. Devíamos amor aos Anjos e não lho pagamos no tempo oportuno; pagá-lo-emos agora pela reparação.
Capacitar-te-ás da necessidade desta restituição pensando na nossa má correspondência para com os Santos Anjos, na sua paciência para conosco, e em como lhes podemos praticamente dar satisfação.

1.-  A nossa má correspondência aos cuidados do Anjo da Guarda

Um rápido olhar à nossa vida passada nos convencerá de uma coisa: que os nossos pecados foram tão numerosos que nos seria impossível contá-los. Mais fácil nos fora contar as estrelas do céu...
Mas vamos restringir o campo de visão do nosso passado. Assestemos os óculos de alcance de nossa memória para as faltas de omissão somente. Aparecerão como enormes rombos no batel do nosso viver, rombos tão numerosos que teriam sido suficientes para nos fazer naufragar.
E, no entretanto, houve alguém que previu o perigo e procurou evitá-lo, procurou advertir-nos, procurou mesmo mover-nos da nossa inércia com as suas moções interiores: foi o nosso bom Anjo da Guarda. Não lhe prestamos ouvidos. Fizemos, com ele o que não faríamos com os nossos amigos, quando, interessados pelo nosso bem. Porque a estes, pelo menos, damos ouvidos, prestamos atenção às suas razões, Mas para com o Santo Anjo nem isto fizemos!
Outros rombos, ainda menores, veremos ainda são nas imperfeições cometidas nas boas obras, oração, assistência à Santa Missa, e outros deveres piedosos. E se tais imperfeições não foram simples resultado da fraqueza humana, mas má vontade, que ofensa para o Anjo da Guarda! Na verdade, tão grande ofensa é não fazer um favor como fazê-lo de má vontade.
Mas mais há que ver nas faltas de comissão pecados positivos, de pensamentos, palavras obras. Que pesada carga para o nosso pobre batel. Realmente, se não soçobrou foi só devido misericórdia de Deus, e a nosso fiel guardador!
E os pecados de escândalo? Quantas vezes não fomos nós os culpados dos pecados alheios, quantas vezes não fizemos o bastante para causar a ruína espiritual do nosso próximo?
Como é grande, portanto, a nossa dívida de amor reparador! Quanta alegria não roubamos a quem justamente a merecia! É o caso de dizer com o santo Jó: peccavi et vere deliqui. Realmente!... pequei, e muito pequei! Se o meu Anjo da Guarda fosse capaz de tristeza, eu lhe teria enchido de dor e pranto os dias de sua missão junto a mim!

2— O amor paciente e benigno com que nos tolerou o Santo Anjo da Guarda.
“Pequei e muito pequei, e não recebi o que merecia em castigo: et ut eram dignus non recep?”,
Nem sequer nos faltou, depois de tantas faltas, a amizade do Anjo da Guarda. No entanto, uma injúria somente basta para separar velhos amigos, converter em ódio a antiga amizade.
E isto por que? Porque a amizade humana em motivos humanos se fundamenta, e estes são instáveis. Não assim a amizade que nos tem os Anjos. Fundamenta-se em motivos espirituais, tais como o amor de Deus, de quem somos filhos de adoção, o preço de nossa alma, que foi o Sangue de Cristo — e, estes motivos são constantes, imutáveis. Constante é, portanto, a amizade que nos têm os Anjos, apesar das nossas culpas. Não há dúvida que estas enfraquecem a sua amizade para conosco, tanto mais quanto maior for a nossa culpabilidade, e menores as atenuantes da falta.
Entretanto é sempre verdade o que diz S. Pedro Damião: “Todos os dias é de muitas maneiras que ofendemos aos nossos Anjos da Guarda, à ofensa acrescentamos muitas vezes a negligência em arrepender-nos. Eles, porém, ainda que freguentemente sofram de nós tantas injúrias, toleram-nos, não obstante, e de nós se compadecem (28).
Bem sabe o médico paciente tolerar as injúrias do frenético que não se quer deixar tratar, a ele volta muitas vezes, apesar das afrontas, até vê-lo de todo curado. Assim procede para conosco o santo Anjo da Guarda: assiste-nos, exorta-nos, move-nos interiormente, e jamais se aparta do nosso lado, agenciando diante de Deus a nossa salvação. — “Oh prodígio de caridade, exclama o mesmo S. Pedro Damião, prodígio de todo inaudito entre os homens!...”
A caridade, diz o Apóstolo, é paciente, é benigna: caritas patiens est, benigna est. Ora, é na verdade a caridade do santo Anjo para conosco, caridade paciente, caridade benigna: patiens est, benigna est; Tudo sofre, tudo suporta: omnia suffert, omnia sustinet.

3 — Modo prático de reparar as nossas ofensas

Reparar sem um sincero desejo de não tornar cometer as injúrias feitas não é reparar. É agravar a culpa.
A culpa é um roubo e o fruto deste roubo é irrestituível.
A reparação é, portanto, a compensação que se dá em face da impossibilidade da restituição.

(28) Serm. 1 de Exaltat, Crucis.

Supõe o desejo de restituir o que se roubou, caso fosse possível. Ora, a disposição de restituir o roubado é incompatível com a de praticar outro roubo. Daí a necessidade de resolução de não tornar à ofensa, em quem quer que queira realmente reparar.
Isto, por sua vez, supõe o arrependimento da ofensa feita, Arrependimento, portanto, e resolução de emenda é condição sine qua non em toda verdadeira reparação.
Mas isto, ainda que indispensável, é apenas a condição. Não é tanto a reparação mesma, quanto o primeiro passo na vida de reparação ou, melhor ainda, à cessação da vida de ingratidão.
A reparação mesma, diz S. Bernardo que consistirá em fazer sobretudo todos aqueles atos que sabemos serem do agrado dos Anjos: in his mazí me exercendum nobis, in quibus novimus Angelos detectari.
Na verdade, só assim compensaremos a dor da ofensa pelo prazer do obséquio, a injúria pela honra, o desacato pelo mais dedicado culto de devoção.
“Muitos são os atos, continua S. Bernardo, que a eles agradam ou que lhes agrada ver em nós.
Tais são a sobriedade, a castidade, a pobreza voluntária (que praticam os religiosos), os freguêntes suspiros pelo céu (jaculatórias, santos desejos), e a oração acompanhada de lágrimas e de afetos fervorosos do coração. Mais, todavia, que tudo, exigem de nós os Anjos da paz, a concórdia e a paz que convém entre irmãos” (29).

(29) 8. Bernardo aí alude às palavras, “Angeli pacia" Anjos de paz, que se leem na profecia de Isaías.33,7.

Os Anjos são habitadores da pátria celeste, e vivem totalmente da vida sobrenatural, que é a verdadeira vida — assim como nós vivemos totalmente da vida natural, que não é a verdadeira vida, pois é vida mortal, e a verdadeira vida é o gozo perfeito, o conhecimento perfeito da verdade, o amor perfeito do bem e tudo isto, eterna e imorredouramente. Todos os atos, portanto, têm valor de vida verdadeira somente enquanto participam dessa vida sobrenatural. Tudo o mais que assim não for é realmente perdido. Por isto dizia S.Paulo: quer comais, quer bebais, tudo fazei para a glória de Deus. O motivo sobrenatural da nossa ação é que lhe dá valor.
Tudo isto vem expresso nas palavras do Arcanjo S. Rafael a Tobias: À oração com o jejum e a esmola (todos atos de valor para a vida sobrenatural) é melhor do que o trabalho de ajuntar tesouros (atos meramente naturais, sem valor, perecedouros). Se, portanto, queres agradar os Anjos, jovem que me lês, estima sobretudo a vida sobrenatural, pratica a caridade, vence as tuas paixões, reza, comunga, ouve as Missas que puderes.
Tudo o que fizeres ao próximo por amor de Deus, será esmola, toda mortificação, todo sacrifício será jejum, toda elevação da alma a Deus, todo pensar em Deus e a Ele amar será oração, Assim dizem os santos doutores que com estas três operações: oração, jejum, esmola, o homem totalmente se oferece a Deus. Com a oração oferece-lhe os bens da alma, com o jejum os bens do corpo, é com a esmola os seus bens exteriores de fortuna.
Entretanto há um tempo em que poderás praticar o jejum da acepção própria deste termo. É tempo em que a Igreja o prescreve. Aproveita-te avidamente desta ocasião de agradar ao santo Anjo da Guarda, e enriquece a tua alma de bens sobrenaturais, fá-la gozar sempre mais daquela vida que vale a pena viver, porque é a vida verdadeira.
Dá às coisas deste mundo o apreço que elas merecem. Sabe renunciar discretamente ainda ao que é ilícito, dizendo com S. Estanislau Kostka: “não nasci para as coisas da terra, e sim para os do céu; para estas hei de viver, e não para aquelas”.
Sê, enfim, como Jesus, o grande amigo de todos os que sofrem, de todos os enfermos, de todos as aflitos, levando-lhes o teu consolo, a tua ajuda.
Sê apóstolo, faze com que as tuas palavras e os teus exemplos só possam conduzir ao bem. Faze, sobretudo, com que tenhas imitadores nesta sólida devoção aos Anjos, reparte com os teus irmãos em Cristo o fruto que dela colhes. Assim, muitos, por tua indústria, prestarão aos santos Anjos a honra que tu Lhe roubaste com as tuas ofensas. Oh, então farás condigna reparação, então poderás estar seguro de que vendo em ti o santo Anjo ações tão contrárias às que antes havias praticado, de todo se esquecerá do passado, tal como se nunca o passado houvesse existido (30).

(30) Jm,31,4 — A este passo alude S. Paulo, Hb10,17.

Capítulo IX
“SANTO ANJO DO SENHOR, EU TENHO CONFIANÇA EM VOS!”

O verdadeiro devoto do santo Anjo da Guarda tem nele, naturalmente, a mesma confiança que a criancinha, pequenina, tem em sua Mamãe, Supérfluo é estarmos a exortar a uma criança a que tenha confiança em seus pais.
Da mesma forma, ao que crê na presença do seu Anjo, e sabe pela fé que esse espirito celestial vela sobre as nossas almas com o afeto e solicitude de uma mãe, supérfluo nos parece ainda exortá-lo a essa confiança.
Ora quem confia se entrega. É, pois, nosso dever entregar-nos ao santo Anjo da Guarda e confiar-nos à sua solicitude.
É o Santo Anjo o melhor guarda de nossa alma — a confiança que nele devemos depositar é sem limites — com especial confiança devemos a ele recorrer em algumas ocasiões — eis o que exporemos neste capitulo.

1 - O santo Anjo é o melhor guarda de nossa alma
O melhor guarda é o guarda mais fiel. Por isto foi que o velho Tobias disse no filho quando o enviou ao pais dos medos: vai, e procura primeiro um homem fiel que te acompanhe: inquirere tibi aliquem fidelem virum (Tb.5,4).
Mas a fidelidade deve vir acompanhada ainda da prudência. O guarda fiel, mas imprudente, pode perder-se, e mais aquilo que ele guardar.
Enfim, de que vale ser fiel, ser prudente, mas não ter o poder necessário para evitar o mal que a prudência manda evitar, para executar o que a fidelidade exige que se execute?
Ora bem, os Anjos, diz S. Bernardo, “são fiéis, são prudentes, são poderosos”. Ou, melhor, são fidelíssimos, prudentíssimos, poderosíssimos. É necessário ainda insistir sobre isto?... Não basta, para disto nos convencermos recordar o que já dissemos sobre a natureza angélica, o seu amor para conosco, a solicitude com que nos guardam, o amor que têm a Deus, de quem somos criaturas e imagens?
Nas jornadas perigosas, um bom pai só entrega o seu filho ao melhor, ao mais prudente, ao mais poderoso dos guardas. Assim o Paí celeste.
Os perigos desta vida terrena exigiam de seu paterno Coração um guarda tal que de fato nos valesse, nos defendesse, nos dirigisse. Confiou-nos então ao Santo Anjo da Guarda.
“Aqueles que invisivelmente guardam os servos de Cristo, diz S. Ambrósio, mais os guardam que os que os guardam visivelmente”, (Epistolar. classis 1. sermo c. Aux. n. 11).

1 — Confiança irrestrita no Santo Anjo da Guarda

Duas coisas nos poderiam abalar a confiança no Anjo da Guarda: o temor excessivo do perigo e a dúvida do seu socorro.
Em ambas as atitudes grande injúria faríamos ao Santo Anjo. Seria admitir ou falta de fidelidade da sua parte, ou de sabedoria e prudência ou de poder.
Aliás, a ofensa tem alcance inda mais considerável. Vai atingir o mesmo coração paterno de Deus, que nos teria assim confiado a um guarda incapaz de proteger-nos.
Não é tal a atitude do verdadeiro crente e devoto do Santo Anjo da Guarda. Muito pelo contrário, ele faz suas as palavras de S. Bernard “Que podemos nós temer sob a proteção de tão grandes guardas?” — Quid sub tantis custodib timeamus?
Como diz S. Inácio de Loyola em seus “Exercícios Espirituais”, o demônio espalha os seus satélites por todo o mundo, não deixando pessoa em particular sem o seu especial tentador. Esta doutrina de um especial tentador de cada homem, está fundamentada na opinião de alguns dos Santos padres (31). Entretanto, em nada ela nos deve atemorizar, pois, como diz S. Tomás de Aquino, bem pode ser que os demônios que nos tentam pertençam a um grau de hierarquia mais elevado que o nosso Anjo da Guarda. Mas mais poder tem este que aqueles pelo simples fato de serem instrumentos da todo-poderosa justiça divina (32).

(31), Orígenes, Hom. IV, et XXXV in S. Luc, — S. Gr. Nisseno do vita Moysis, — Ver Suarez op, cit, 1 VIII, c, XXI n. 20.
(32) Angelus, diz Tomás, qui est inferior ordine naturae, pracest dacmonibui, quamvis mpérioribus. ordine. naturae, virtua divinaa jutítiae, out inhavento Doni Angel, potior est, q virtus naturatis Angelorum.

É preciso, entretanto, não confundir confiança com presunção.
Aquele que, confiando no poder de seu Anjo da Guarda, deixa, por assim dizer, toda à iniciativa da luta ao Santo Anjo, não recorre fervorosamente a ele, não pede o seu auxílio em fervente oração, — este não tem confiança, tem presunção.
Da mesma forma a confiança que nos leva a expor-nos ao perigo, não é confiança, é presunção.
Repitamos aqui que a proteção dos Anjos segue e imita a divina Providência, de que é efeito.
Ora a Providência de Deus, ainda que vele sobre nós, exige entretanto que a Ela recorramos pela oração, como criaturas livres que somos.
Pedi e recebereis” diz o Evangelho.
E também está escrito, apesar de haver Providência a velar sobre nós: “Quem ama o perigo, nele perecerá”.
Da mesma forma protegem-nos os Anjos, mas exigem oração e fuga dos perigos. Não somos autômatos, que se deixam guiar cegamente por outros. Não são os Anjos os chaufeurs de nossas almas: são nossos protetores, nossos guardas, nossos iluminadores, mas tudo de acordo com a nossa natureza racional e livre.
Diz S. Bernardo que Deus ordenou aos seus Anjos que nos guardassem “em todos os nossos caminhos” e não em nossos precipícios. Por isto, diz ele que quando o demônio disse a Jesus que se lançasse do alto do templo, citou o versículo da Escritura: “aos seus anjos Deus ordenou que te guardassem”, mas calou a parte que diz: “em todos os teus caminhos” (Sermo XIV in. ps. XC).
E por que?
Porque caminhos não são precipícios. É necessário que na vida andemos por caminhos, mas não por precipícios. E quem neles se mete, neles perecerá, por soberba presunção.
Livros maus e más companhias, lugares e espetáculos maus, ocasiões, numa palavra, de pecado — eis os precipícios à que te não deves expor, caro congregado, querido jovem que me lês. Se em perigo, porém, te vires sem culpa tua, invoca o teu Anjo da Guarda e ele te protegerá em teus caminhos, pois não foste tu que te expuseste ao perigo, mas foi o perigo que se pôs em teu caminho. E o teu Anjo, instrumento da todo-poderosa Justiça divina, porá em fuga os demônios tentadores.

3 — Ocasiões em que devemos especialmente “recorrer ao Santo Anjo da Guarda

1o.) — Há ocasiões na vida em que nos sentimos pequenos, ou, pelo menos, desconfiados de nossas forças, ante a empresa com que vamos arcar.
É claro que sobretudo nessas ocasiões é preciso recorrer ao santo Anjo da Guarda.
Preparas-te para fazer a Santa Comunhão?
Pede ao teu Anjo da Guarda que te ajude.
Trata-se de escolher estado de vida? Suplica ao teu Anjo que te ilumine, te dirija, te guarde do mau caminho.
Queres cumprir bem com as tuas obrigações no oficio que escolheste ou que te impuseram?
Faze por merecer, com oração e obséquios, a ajuda do teu Anjo da Guarda. Enfim faze de modo semelhante se te vês a braços com um concurso, um exame, ou outra qualquer tarefa digna, que te deixe preocupado. Sempre é ao teu melhor amigo, o santo Anjo da Guarda, que deves recorrer, e tem confiança que de uma forma ou de outra ele te ajudará. Para isto te foi ele dado por Deus.
E, se ele te não pudesse valer, não o teria dado Deus.

2o) — Em segundo lugar, são as épocas das tribulações e das graves tentações a outra ocasião em que deves recorrer de modo especial ao santo Anjo da Guarda. Muitas vezes abandonam-nos os amigos justamente quando deles mais precisamos: na ocasião das tribulações. E assim fazem porque lhes falta a fidelidade que aos santos Anjos não falta. Temem os amigos deste mundo, muitas vezes, que a nossa desgraça a eles se comunique e os faça também desgraçados. Ou então se envergonham de nós, ou ainda não se querem dar ao trabalho de nos socorrer. O seu grande pecado, então, é a falta de caridade. Tivessem caridade, e com S. Paulo se haveriam de pôr como enfermos no lado dos enfermos, e haveriam de verter lágrimas pelo mesmo motivo por que as derrama o amigo.
Ora, os Santos Anjos de Deus são as mais amáveis criaturas, são todos caridade. Haja vista a alegria com que os exércitos celestiais anunciaram aos pastores o nascimento do Nosso Salvador, e a comiseração com que assistiram a Jesus em sua grande tribulação do Jardim das Oliveiras.
Por que? Porque a sua missão é uma missão toda de caridade, e esta tanto se alegra com o nosso bem, como se compadece dos nossos males.
Roguemos, pois, a Deus e aos seus Anjos, nossas tribulações, e o Anjo do Senhor nos confortará, tal como o fez o Anjo do Horto, que confortou a Jesus.
“Portanto, diz o grande doutor que vimos seguindo, S. Bernardo, todas as vezes que te assalta alguma desusada tentação, alguma grave tribulação, invoca o teu guarda, o teu guia, a tua ajuda nos perigos, na tribulação. Brada-lhe, e dize-lhe “Senhor salvai-me, pois estou prestes a perder-me”. Ou ainda (isto acrescentamos nós) dize-lhes “Santo Anjo do Senhor, valei-me! Eu tenho confiança em vós!”

3º) — São os santos Anjos, diz um pio autor que nos levam ao pranto da contrição e da penitência: “Ipsí sunt per quos ad fletum contritionis et poenitentiae inducimur." (serm. fr. in er, XLVI).
É esta a terceira ocasião de invocar o Santo Anjo da Guarda, o tempo do retorno a Deus.
Pode ser que nos tenhamos exposto a perigo, que tenhamos omitido a oração suplicante a Deus e a seus Anjos, e que assim tenhamos caído no pecado. É este um estado perigosíssimo, principalmente para vós, caros jovens que viveis no meio do mundo, Mas tende confiança e devoção para com o santo Anjo da Guarda. Ele, apesar da tentação de te deixares ficar em tal estado, te haverá de conduzir ao bom caminho, por meio das lágrimas da penitência, ou seja do sincero arrependimento dos teus pecados.
Mas cumpre secundar a ação do teu Anjo. Grave é o estado em que te encontras. Lança-te nos braços do teu bom Guarda, pede-lhe desculpas de lhe ter injuriado a presença, pede-lhe que te reconduza a Deus, e ele te aplainará o caminho, far- lhe-á superar a tentação da vergonha, da irresolução, e por sua vez te lançará no regaço de tua Mãe do Céu, que te levará a Jesus. Há no final desta obra algumas orações que a isto te ajudarão.
E Jesus te dará a graça divina, e tu te tornarás, como teu Anjo da Guarda, Filho de Deus, herdeiro do Paraíso.
Se acaso é este o teu estado presente, sabe que se inclina sobre ti o teu bom Anjo, na esperança de te ouvir invocá-lo, para reconduzir-te ao bom caminho.
Ah, não o faças esperar em vão! Espera-te o teu melhor amigo, faze a sua vontade! Ele tem nas mãos o preciosíssimo dom de que depende a tua felicidade — a paz e a graça de Deus, Sem paz não serás feliz neste mundo, nem sem a graça divina te poderás salvar. E se até hoje só tendes retribuído com injúrias os benefícios do teu Anjo da Guardas dá-lhe, ao menos desta vez, a alegria que sabes lhe inunda o ser quando “um pecador se quer arrepender dos seus pecados”. “Sede ocasião de alegria nos santos Anjos, dir-te-ei com S. Ambrósio, alegrem-se eles de te verem tornar a Deus: esto Angelis laelitiae, gaudeant de reditu tao".

Capítulo X
NA ALVORADA DO PARAISO

O dia da eternidade se aproxima.
Pode esse dia ser o dia mais belo da nossa existência, e também o mais terrível. Para o verdadeiro devoto dos santos Anjos sem dúvida que será o mais belo.
E isto porque o santo Anjo da Guarda dispõe o seu devoto à grande provação, validamente o conforta no grande conflito, caritativamente o acompanha na grande passagem.

1—.0 Santo Anjo predispõe o seu devoto à grande provação.

Põe em ordem os teus negócios, diz o profeta Isaías, porque morrerás e já não terás vida: "dispone domui tuae, quia morieris fu et non vives”. (27,1).
Ao devoto do Anjo da Guarda, como asseguram os santos, o dia da passagem para a eternidade sempre os encontra prevenidos, E por que?
Previne-os o santo Anjo: “Põe em ordem a tua alma...” Esse sentir dos santos é de todo razoável. De certo que na visão de Deus têm os nossos Anjos conhecimento do nosso futuro. Ora, que amigo haverá que sabendo aproximar-se o grande e temeroso dia para o seu amigo, o não previne, o não exorta a preparar-se, o não ajuda em tudo na medida de suas possibilidades?
Ora, é isto o que, precisamente, no dizer de santos, fazem os nossos Anjos ao aproximar-se hora de nossa morte, o dia de nossa eternidade,
O como eles nos previnem e predispõem é difícil precisar. Mas, ou sejam manifestações mais ou menos claras, ou sejam vozes interiores mais ou menos expressas, o fato é que acha meios o bom Anjo de nos fazer sentir que já inclinamos para o ocaso.
E não são meros pressentimentos... Ao par de nos sugerir que nos preparemos, redobra cuidados o Santo Anjo para que a morte do seu devoto seja realmente a aurora do Paraíso e não o ocaso que precede a uma noite eternamente tenebrosa.
Bem-aventurados os devotos dos santos Anjos da Guarda, pois, quando o vier visitar o Senhor, ele o achará vigilante, pronto para acompanhá-lo ao festim do Paraíso.
Bem-aventurados, mais uma vez, os devotos dos santos Anjos, que os tiveram, nesta vida, por amigos, em todos os momentos, por conforto na hora da morte, e por eternos comensais no céu!

2— Válido conforto do Anjo da Guarda no grande conflito.

Não sem razão chamamos de grande conflito a hora da morte. Grande pelo ardor que nele se luta, grande pelos adversários que nele se empenham, grande pelas consequências que dele dependem.
É de todo natural e lógico que o demônio não queira perder essa última batalha. todas as vitórias conseguidas em vida, ele trocaria de bom grado por esta única vitória. Ora, numa batalha decisiva como esta, empregam-se todas as forças à disposição.
Há, pois, uma batalha a travar na hora da morte, À Igreja a previne solicitamente com as orações da agonia. E santos houve que a sustentaram sobremodo duras e terríficas.
Na verdade são aí adversários, de um lado, “Anjo de Deus, a alma remida por Cristo, e o próprio Cristo e seus santos, e do outro o espirito das trevas, amigo de todo mal, causa de toda nossa ruína.
As consequências desta luta são tais que dela depende o mesmo valor da própria existência, ou, em termos vulgares, dela depende o ter, ou não, valido a pena existir.
Perigo algum, portanto, de nossa existência, se pode comparar aos perigos da hora da morte.
Inútil e até dispensável fora a ajuda do Anjo da Guarda nos perigos da vida, se ele na hora da morte não nos pudesse valer.
Admira-nos o zelo dos santos ao socorrer os moribundos, e o quanto se empenham para lhes obter uma santa morte, E por que? Porque os santos conheciam o valor da alma, amavam-na caridosissimamente, não queriam ver a sua eterna ruína. Ora, os Anjos são ainda mais santos e caridosos que os próprios santos. Que não farão, pela salvação de um seu devoto!
Conforto, resignação, consolo pela brevidade da agonia e eternidade do gozo, coragem a exemplo dos mártires, a exemplo de Maria Santíssima Dolorosa, a exemplo de Jesus Cristo — eis os sentimentos que infundem os santos nos seus moribundos, muitas vezes gente desconhecida — eis os sentimentos que com muita maior razão infundem os santos Anjos em devotos e amigos seus de toda uma existência.
Não faltará ao devoto do santo Anjo arrependimento dos pecados: ele lho inspirará, assim como uma grande confiança nas chagas do Salvador Crucificado. Ele lhe trará um sacerdote e a este inspirá os sentimentos e palavras a sugerir ao enfermo. Fará com que receba os últimos sacramentos e com que, com pias jaculatórias nos lábios, espire suavemente no ósculo do Senhor.
Será uma preciosa morte na presença de Deus!
preliosa in conspectn Domini (Sl.115,5).

4. O Anjo da Guarda acompanha o seu devoto na grande passagem.

No momento mesmo em que a alma se separa do corpo, termina para nós o estado de via (estado dos que estão em provação), e com ele termina também, para falar com acerto, a guarda dos santos Anjos.
Isto não necessita de esclarecimentos quando se trata de uma alma que parte deste mundo merecedora de condenação eterna. No lado em que cair a árvore, como diz o Eclesiastes (2,5), aí permanecerá eternamente. Nada mais tem a fazer com tais almas o santo Anjo da Guarda. De todo estão abandonadas, pela própria culpa.
Quanto às almas que morrem em estado de graça, estão salvas. Já não se faz necessário o auxílio do santo Anjo.
Entretanto ainda alguns caritativos encargos formam à si os Anjos com respeito às almas daqueles que protegeram em vida (33).
Antes de mais nada as acompanham no tribunal de Cristo. Como não perturbar-se profundamente, pergunta S. Bernardo, se se vê só e desamparada do seu fiel guia, ao sair do corpo?
Qnomodo enim non vehementissime turbarelur, si sola hine egrederetur?
Na parábola do rico glutão e de Lázaro, o mendigo, diz Nosso Senhor: aconteceu que veio a morrer o mendigo e foi transportado pelos Anjos ao seio de Abraão. (Lc16,22).

(33) Ver Suarez, op. cit, 1. V, e. XIX n. 9.

É isto, precisamente, o que faz o Anjo da Guarda e ainda outros Anjos quando a alma deixa o tribunal de Cristo isenta de culpa.
E se ainda tiver culpas que expiar no Purgatório, até lá a acompanham os santos Anjos, aí a visitam e consolam, e, para seu alívio e libertação faz com que se façam preces, na terra, por elas.
“Não deixam os Anjos de auxiliar os eleitos diz São Beda, enquanto os não introduzem na pátria celeste”, (De templo Salomonis, cap. XHT) — Oh, que alegria a do santo Anjo, ao introduzir no céu aquele que protegera por toda a vida! Enfim, eis coroados de pleno êxito os seus esforços e solicitude! E que alegria a do devoto do santo Anjo! Também ele não cessará de bendizer a suave e sólida devoção que o levara ao paraíso.
Bem se pode imaginar, então, os agradecimentos da alma ao Anjo da Guarda, e as congratulações e amplexos deste.
De tudo isto, e de tudo quanto havemos exposto, devemos concluir com S. Bernardo: “Não não nos é lícito ser ingratos para com os santos Anjos, que, obedecendo tão caritativamente à ordem de Deus, nos são de ajuda em tão grande necessidades. Sejamos pois devotos dos Santos Anjos, sejamos gratos a estes nossos celestes protetores. Paguemos-lhes amor com amor, honramo-los tanto quanto podemos, tanto quanto vemos... Nutramos bem vivo afeto para com os Anjos do Senhor, como para com aqueles que um dia nos terão como co-herdeiros seus no céu, e por ora são junto de nós tutores e mentores a nós dados pelo Pai do Céu, a fim de que nos defendam e governem”.

II PARTE
EXEMPLOS OU MANIFESTAÇÕES VISÍVEIS DOS ANJOS, NO VELHO E NOVO TESTAMENTO E NA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA

Capítulo I
OS ANJOS NO ANTIGO TESTAMENTO

Muitos são os passos da Sagrada Escritura em que se referem os favores e benefícios que os Anjos de Deus fizeram aos homens, que são, diz a mesma Escritura, “pouco inferiores aos Anjos: minuisti eum paulo minus ab Angelis”.
Mais de quarenta manifestações de Anjos enumera nos livros santos o P. Cornélio a Lápide, que é um dos mais doutos intérpretes da Escritura. E o Catecismo Romano diz: “Está cheia a história dos santos deste gênero de exemplos...” (P. IV, cap. 9). Escolheremos, dentre esses muitos exemplos do Velho Testamento, alguns mais interessantes e de maior edificação, resumindo-os quando  conveniente.

1 - Um Anjo socorre a Agar e seu filhinho Ismael já desfalecente pela sede

Agar, vendo-se obrigada a deixar a casa de Abraão fugiu para o deserto. Mas o Anjo do Senhor lhe apareceu junto a uma fonte, na estrada de Sur e lhe disse: “volta para a casa de tua senhora e submete-lhe às suas ordens”. Em seguida lhe disse que pusesse o nome de Ismael no filhinho que estava para dar à luz, e lhe predisse que ele seria um dia um grande homem, robusto, valente e chefe de povo numeroso (Gn.16).
Mas, depressa teve a pobre Agar que tornar ao deserto, pois Abraão, devendo escolher por esposa a Sara, teve que despedi-la de sua casa. Deu-lhe um bocado de pão, pôs-lhe ao ombro um odre com água, e a despediu juntamente com Ismael, que então já havia nascido.
Partiu a desditosa e, alguns dias, vagou sem rumo pelas solidões de Bersabéia. Depressa acabou-se a água do pequeno odre que levava e, naquele deserto, não havia uma fonte que manasse o precioso líquido, um pouco sequer! E Ismael criança ainda, e desacostumado aos ardores da sede no deserto, começava já a desfalecer... Que fazer, a quem pedir socorro? Como reanimar aquela tenra criança já quase agonizante?
Aflita, atônita, sem saber que partido tomar a pobre mãe depositou o filho à sombra de um árvore, e correu para longe, para não assistir-lhe a triste agonia. À distância que pode alcançar o arremesso de uma flecha parou, e sentada se pôs a chorar, e a soluçar, e a exclamar: “ai! que não hei de ver a agonia de meu filho, nem tenho coração para isso. Non videbo morientem puerem!
Mas eis que lhe aparece o Anjo de Deus e lhe diz: “Não temas, pois Deus ouviu a voz do teu filho, no lugar onde está”. Em seguida mostrou-lhe um poço com água, e desapareceu. Depressa correu Agar, encheu o odre de água e a levou para Ismael, Ismael bebeu e, saciado, começou de novo a viver. Depois, ajoelharam-se ambos e deram a Deus as devidas gracas (Gn.21).

2 — Dois Anjos salvam Ló e sua família do incêndio de Sodoma

Ló morava numa cidade que se tornou famosa pela vida infame que levavam seus habitantes.
Essa cidade se chamava Sodoma. Só ele permanecia ileso da geral pestilência e desregramento de costumes. Ora bem, como castigo de seus nefandos pecados Deus Nosso Senhor, justíssimo Juiz, condenou ao fogo a cidade com todos os seus habitantes, assim como três cidades mais, pecadoras como Sodoma. Mas Ló era inocente. Por isso Deus quis salvá-lo antes que o fogo caísse sobre a cidade. Isto se deu do seguinte modo.
Estava Ló um dia sentado às portas da cidade, quando avista dois jovens que para ele se encaminhavam. Eram belíssimos, e vinham com grande pressa. Crendo que fossem peregrinos, correu ao seu encontro e os convidou, com maneira afabilíssima, a passar a noite em sua casa.
Mas os peregrinos eram dois Anjos. “Não podemos aceitar, disseram, nós temos que passar a noite na praça”. Mas Ló tanto fez e disse que acabaram por aceitar o seu convite. Em casa de Ló os dois jovens (pois pensava Ló que não passavam de jovens peregrinos) tomaram alimento e dormiram.
No dia seguinte, bem cedinho, acordaram os Anjos. Foram ter com Ló e lhe disseram que era preciso abandonar imediatamente a cidade. Levanta-te, lhe disseram os Anjos, toma contigo a tua mulher e os teus filhinhos, e vem conosco. Saiamos da cidade para que não venhas a perecer na sua iniquidade. Hás de saber que foi para destruir a cidade que fomos enviados, mas antes temos que salvar-te a ti e aos teus.
Compreende-se o espanto de Ló. Foi preciso, que os Anjos o tomassem pela mão, assim como, à mulher e aos filhos, e os fizessem sair da cidade quase à força. Quando, pois, estava Ló em lugar seguro, deixaram-no os Anjos. Caiu então do céu uma chuva de enxofre e de fogo e incendiou a cidade com todos os seus habitantes (Gn19).

3 - O Anjo de Isaac

Um dia Deus, para experimentar até onde ia a obediência de Abraão, ordenou-lhe que lhe oferecesse Isaac em sacrifício sobre uma montanha.
Ora, Abraão amava ternamente a seu filhinho Isaac, Mas, achando que devia sobretudo obedecer a Deus, que é o autor da nossa vida, resolveu-se prontamente à cumprir com a ordem de Deus. Fez um feixe de lenha, pô-lo às costas de Isaac, tomou do cutelo com que o devia imolar, empunhou um tição para acender a lenha e partiu para, o monte Moria.
Enquanto caminhavam, eis que Isaac começou a perguntar: “Meu pai, a lenha e o fogo estão aqui; mas onde está a vitima para ser sacrificada?” E Abraão respondia: “Meu filho, Deus providenciará...” Depois de muito caminhar chegaram Monte Moria, e Abraão fez um altar de pedra e dispôs a lenha sobre ele. Em seguida, amarrou Isaac com a corda, pô-lo sobre o altar... e puxou do cutelo.
Já estava para desfechar o golpe fatal quando ouviu uma voz: “Abraão, Abraão!” Era um Anjo de Deus. E a voz continua: “não desfeches o golpe sobre a criança nem lhe faças mal algum, pois já sei que temes a Deus e que nem a teu filho único poupaste por meu amor”. Virou-se então o obediente Abraão e viu um cabrito que estava preso pelos chifres num cipoal. Agarrou-o e o ofereceu ao Senhor em lugar de Isaac. Entretanto, ainda uma vez lhe falou o Anjo e renovou quantas promessas lhe havia feito Deus e quantas bênçãos prometido (Gn22).

4 — A escada de Jacó e os Anjos que por ela subiam e desciam

Certa feita partiu o patriarca Jacó de Bersabéia com destino a Arã Apanhado pela noite ainda em meio da viagem, tomou uma pedra que avistou à beira do caminho, fez dela travesseiro e o melhor que pôde, procurou conciliar o sono.
Assim mesmo conseguiu dormir profundamente, mas teve uma estranha visão. Viu uma escada tão grande, tão comprida, que apoiava o pé na terra e tocava o cimo no céu. E viu que subiam e desciam por ela uma porção de Anjos. Na parte que tocava o céu, apoiava-se o próprio Deus do Céu, que assim falava: “Eu sou o Senhor Deus de Abraão teu pai, e o Deus de Isaac. Darei a ti e a teus descendentes essas terras sobre que repousas” (Gn27).

Não podemos deixar de citar aqui a bela reflexão que sobre esta visão faz S. Bernardo: “Os Anjos sobem, diz ele, por causa deles próprios, e por nossa causa descem, ou melhor condescendem.
Assim esses bem-aventurados espíritos sobem com a contemplação até Deus e descem, com compaixão por nós, até nós, para guardar-nos em todos os nossos caminhos. Sobem até a face de Deus e descem a mandado do mesmo Deus: Deus mandavit de te. Contudo, não perdem a vista de Deus quando descem pois sempre veem a face do Pai Celeste: "semper vident faciem Patris... qui in coelis est” (In Sl. 90,9).

5 — Mais são os que estão a nosso favor do que os que estão contra nós

Foi no tempo em que Benadad, rei da Síria, estava em guerra com o rei Joram, que governava Israel. Ora, vivia nesse tempo em Israel um grande profeta, chamado Eliseu. Este desvendava a Joram quanto tramava Benadad no mais secreto dos seus conselhos com os seus ministros e generais.
Pode-se imaginar a ira de Benadad quando soube do procedimento de Eliseu. Jurou que o havia de capturar, custasse o que custasse, e que daria o prêmio merecido, a morte.
Passados tempos foi Eliseu com Giesi, seu servo, a uma cidade chamada Dotan, a doze milhas de distância. Soube-o Benadad, e mais que depressa fez armar carros e soldados, e lá chegando já noite fechada, limitaram-se a distribuir as tropas em volta da cidade, de modo a ficar inteiramente cercada.
Na manhã seguinte acorda Giesi e vê todo aquele exército, carros e cavalos em volta dos muros da cidade. Cheio de espanto, corre ao profeta Senhor, lhe disse, que fazer? Somos poucos e desarmados e teremos que lutar contra tão numerosos esquadrões de gente armada?” O homem de Deus limitou-se a sorrir e respondeu calmamente: “não há motivo para temer, pois mais são os que estão a nosso favor do que os que estão contra nós”. Entretanto, vendo que o pavor de Giesi, não o deixava sossegar, prostou-se em oração, e exclamou: “Senhor, abri os olhos de Giesi, para que ele veja”. Coisa maravilhosa! Imediatamente aparecem aos olhos estupefatos de Giesi todo aquele monte, em que estava a cidade, coberto de numerosa cavalaria, e carros de fogo, em volta de Eliseu.
Eram Anjos do céu, enviados por Deus em socorro do seu profeta. Apareceram sob aquela forma de chamas e de fogo, para indicar que assim como este depressa pega nos corpos e os devora, assim também os Anjos com rapidez e força irresistível reduzem a nada os inimigos. E assim foi na realidade. Os Anjos, usando do seu poder maravilhoso sobre a natureza, feriram de cegueira os soldados sírios e em vez de capturarem o profeta de Deus, foram eles que ficaram prisioneiros do rei de Israel.
E foi assim que Giesi aprendeu a ter em conta não só as forças e os soldados visíveis, mas também os exércitos invisíveis dos Anjos, nossos fiéis guardadores. (IV, Reg. VI).

6 — Os três jovens na fornalha ardente e Daniel na cova dos leões

Esses dois fatos apresentamo-los juntos porque têm grande semelhança entre si.
Houve um rei da Babilônia, tão poderoso e tão soberbo, que ordenou que todos os seus súditos prestassem honras divinas à sua estátua de ouro, que levantara nos campos de Dura. Este soberbo rei chamava-se Nabucodonosor.
Houve também um rei dos medos, igualmente soberbo, que ordenou que pelo espaço de 30 dias a nenhum deus se fizesse orações ou sacrifício: unicamente em sua honra deviam ser feitas todas as orações e sacrifícios. E o nome deste rei dos medos era Dario.
Nabucodonosor, ordenou que todo aquele que, transgredisse as suas ordens fosse lançado em uma fornalha em fogo; e Dario, que os desobedientes aos seus decretos fossem atirados à caverna dos leões.
Ora, havia três jovens hebreus em Babilônia, chamados Sidrac, Misac e Abdênago, todos eles ocupando altos cargos públicos. Estes, não obstante os seus cargos públicos, desobedeceram a Nabucodonosor e disseram que não adorariam a sua estátua, pois a adoração só ao Deus do céu é devida.
Com igual firmeza Daniel, que também ocupava o elevado cargo de sátrapa do reino, não deu importância ao régio mandato e, como de costume, três vezes por dia punha o joelho em terra para adorar ao Deus do Céu e agradecer-lhe os benefícios.
Nabucodonosor, sabendo da desobediência dos três jovens hebreus, mandou acender a fornalha sete vezes mais intensamente que de costume e mandou atirar ao fogo Sidrac, Misac e Abdênago.
De modo semelhante ordenou Dario, que Daniel fosse lançado aos leões. Mas eis como Deus Nosso Senhor veio em socorro dos seus servos fiéis.
Um Anjo desceu em meio às chamas da fornalha, afastou as chamas e fez correr no meio da fornalha uma brisa fresca e suave, de modo que nem sequer neles tocou o fogo nem lhes fez mal algum. Ao ver tal prodígio o rei Nabucodonosor exclamou cheio de espanto: “vejo os quatro jovens que, soltos e livres, caminham no meio das chamas, sem que estas lhe façam mal algum; e o quarto jovem é semelhante a um Anjo de Deus”. Isto dito, mandou que os três jovens saíssem da fornalha. Saídos que foram, cercaram-nos todos os que ali estavam, admirados de que o fogo não tivesse tido nenhum poder sobre os seus corpos. Nenhum cabelo de suas cabeças estava queimado, as suas vestes eram como se não tivessem passado pelo fogo, e nem sequer o cheiro da fumaça lhes ficara nos corpos. No entanto, dizem os livros santos, que tal era o fogo da fornalha que suas línguas lhe saiam devoradoras pela boca a fora. Três dos servos, que deviam lançar nas chamas aos três hebreus, descuidaram-se e foram carbonizados por essas línguas de fogo.
Foi também assim que Daniel foi salvo da morte.
Um Anjo desceu do céu e fechou a boca dos leões, Estes submissos, mansos, nenhum mal fizeram a Daniel. Pelo contrário, vieram deitar-se a seus pés.

Testemunhou tão grande milagre o próprio Dário, que debruçado sobre a entrada da caverna, assim falou: “Daniel, servo de Deus vivo, o teu Deus, a quem serves tão fielmente, pôde livrar-te dos dentes dos leões?” E Daniel respondeu de lá de dentro: “O meu Deus enviou o seu Anjo e este me salvou”. Depressa foi Daniel tirado para fora, e viram todos com espanto, que os leões o haviam deixado ileso. Este milagre se tornou mais patente com o que aconteceu depois. Pois foram lançados aos leões, em lugar de Daniel, os seus acusadores perante o rei, e estes, antes que chegassem ao fundo, já haviam sido estraçalhados pelos esfomeados dentes daquelas feras (Dn3-4).
Não foi esta, entretanto, a única vez que Daniel foi lançado aos leões, e que escapou por meio de um Anjo. Em outra ocasião, destruíra ele o ídolo, chamado Bel, e matara um monstro que os babilônios adoravam como Deus. Cheios de ódio foram estes a Ciro, que então governava, e disseram: “entrega-nos Daniel, ou mataremos a ti e à tua família”. Grandemente atemorizado com a ameaça, entregou-lhes Daniel. De posse do profeta foi o povo a uma caverna de leões e lá o lançaram.
Havia muito tempo que os leões passavam fome, e seis dias deixaram com eles a Daniel. Mas o Anjo o salvou também desta feita daquelas feras, lhe deu de comer de maneira, não menos maravilhosa, que passamos a narrar.
Morava nesse tempo na Judeia um profeta chamado Habacuc. Tinha este uma lavoura e muitos servos nela trabalhavam. Um dia, preparou almoço para os seus trabalhadores, pô-lo em uma cesta e partiu para a lavoura. Ora, no caminho apareceu-lhe um Anjo do Senhor e lhe ordenou que levasse aquele alimento a Daniel, que estava em Babilônia, na caverna dos leões. Respondeu-lhe Habacuc que nem sabia onde era Babilônia e nem em que lugar de Babilônia se encontrava a tal caverna. O Anjo não se deu por achado. Tomou a Habacuc pelos cabelos, levou-o pelos ares, e o depositou às bordas da caverna dos leões em Babilônia. E feita a entrega do alimento a Daniel, de novo levou a Habacuc para o lugar de onde o havia tirado.
Quando já sete dias haviam passado desde que Daniel fora lançado à caverna, foi o rei com sua comitiva ver que haviam feito do profeta aqueles terríveis e esfomeados animais. É fácil imaginar o seu espanto ao ver o profeta são e salvo.
Mandou tirá-lo da caverna e em seu lugar mandou lançar a ela aqueles que haviam tramado a sua morte. Foram incontinente devorados, ali, debaixo de suas vistas (Dn14).

7— Favores do Arcanjo Rafael aos dois Tobias e a Sara filha de Raquel

Era Tobias da tribo e cidade de Neftali. Como diz a Bíblia, foi um homem sábio, desde os seus primeiros anos, e temente a Deus. Enquanto os outros concidadãos do seu povo, andavam a adorar os bezerros de ouro que o rei Jeroboão havia mandado erigir, dirigia-se Tobias ao templo de Jerusalém, para adorar aos Deus de Israel nos dias das três principais festas judaicas, e oferecia fielmente ao Senhor as primícias e os dízimos ordenados pela lei. E isto, desde pequenino se acostumara a fazer.
Ora bem, o rei Salmanazar, Ninivita, venceu o povo de Deus, e levou a sua população cativa para Nínive, na Assíria. Também Tobias foi levado para lá com toda a sua família. O exílio foi a ocasião para Tobias revelar ainda mais o seu grande coração: foi ele um exemplo de paciência em suportar os sofrimentos do desterro, e um modelo de caridade para com os seus companheiros de infortúnio. Era um edificantíssimo espetáculo vê-lo ajudar, tanto quanto podia, aos seus concidadãos e, à noite, ocupado na faina de dar aos falecidos uma honrosa sepultura no seio da terra.
Quando atingiu a idade de cinquenta e seis anos, una tribulação ainda maior veio provar à sua virtude: uma repentina e total perda da vista.
Não se queixou da divina Providência nem deixou de ser o homem temente a Deus de sempre, rendendo-lhe graças em todos os dias de sua vida.
Não compreenderam, os seus amigos, o seu sofrimento, e frequentemente o censuravam e inculpavam; a sua mesma mulher os acompanhava em tão injusto tratamento. Foi então que, exacerbado pela dor, pediu humildemente a Deus Nosso Senhor que se dignasse libertá-lo de tal sofrimento, levando-o desta vida.
Assim, fez a sua oração a Deus, e depois, esperando ser ouvido, chamou o seu jovem filho, que também se chamava Tobias, e que então tinha vinte e um anos, para lhe fazer as últimas recordações. Disse-lhe muitas e belas coisas, mas as principais foram que fosse temente a Deus, respeitoso para com a sua mãe, e caridoso para com os pobrezinhos (34).
E guardou para o fim o que é o principal argumento de toda esta história, que vem a ser: que fosse a Rages, na Média, e cobrasse, de um tal Gabelo, dez talentos que há muitos anos o bom velho lhe havia tomado emprestado.
O jovenzinho respondeu pressuroso: “estou pronto, meu pai, a executar quanto me ordenastes.
Mas como farei para conseguir esse dinheiro se nem conheço a Gabelo, nem sei o caminho que leva ao seu país?”
“Dar-te-ei, respondeu o pai, o quirógrafo (espécie de recibo) de Gabelo, e por meio deste ele ti reconhecerá como meu filho, e te dará o dinheiro. E, quanto à viagem, põe-te a caminho e vê se encontras um homem de bem e fiel, que nele te guie e proteja”.
Partiu então, sem mais demora, o jovem Tobias, e pôs-se a procurar um guia à que se pudesse confiar em tão longa viagem.

(34) Tb5. Honra a tua mãe em todos os dias da tua vida; pois deves lembrar-te de quanto ela sofreu por ti quando ainda não eras nascido... E em todos os dias da tua vida tem a Deus no teu pensamento, guarda-te de consentir jamais no pecado, é de transgredir o preceito do Senhor nosso Deus. Faze esmolas do que tens e jamais voltes as costas aos pobres que a pedem: assim também a face do Senhor não se afastará de ti. A estes piedosíssimos conselhos, ajuntou outros, principalmente o conhecido “não faças a outrem o que não quiseres que te façam a ti." — preceito de lei natural, que também é eficazmente inculcado por N. Senhor Jesus Cristo, como se lê em Mt7,12  e Lc6,31.

Ora, enquanto em Nínive levava o velho Tobias vida tão santa e tão tribulada, vivia, em um cidade de Média, uma piedosa jovem, chamada Sara, que igualmente passava em lamentos os seus lutuosos dias.
É que por sete vezes se havia casado e por sete vezes no mesmo dia do casamento lhe amanhecera morto, no seu lado, o novo esposo, vítima da fúria de um mau espírito. Mas não foi tudo. Sua aflição chegou ao auge com uma atroz afronta que recebeu. Um dia, repreendida por não, sei que falta, uma de suas domésticas, assim lhe, gritou esta no rosto: “Que jamais nasça de ti nem filho, nem filha, oh mulher assassina dos teus maridos! E queres também me matar a mim?”
Ao ouvir tais palavras, soltou a pobre Sara um grito de dor e, sem proferir mais uma palavra correu em lágrimas à sua câmara, pôs-se de joelhos, e em oracão permaneceu por três dias, sem provar um pedaço de pão ou gota dágua em todo esse tempo. Nesses três longos dias outra coisa não, fez que suplicar a Deus com lágrimas e soluços que se dignasse livrá-la de tão grande opróbio.
E perante o trono de Deus eram apresentadas pelos Anjos, as orações de Tobias em Nínive e de Sara na Média.
E Deus Nosso Senhor atendeu às suas orações. Expediu, então, o Arcanjo S. Rafael em uma missão de conforto e alegria junto dos seus atribulados servos: missus est Angelus Domini sanctus Rae pheel ut curaret eos ambos, quortm uno tempo; sunt orationes in conspectu Domini recitatae. Fez se, pois o Santo Arcanjo encontradiço a Tobias, e saudando-o, mal este pôs o pé fora de casa, declarou-lhe chamar-se Azaria (ajuda de Deus), filho do grande Ananias (providência de Deus), e amavelmente se lhe ofereceu para companheiro de viagem, e guia para a longínqua Média (35).
Deixemos agora, que o próprio Tobias nos conte quanto lhe fez o bom Anjo de Deus em sua viagem.

1) Enquanto durou a viagem, jamais de mim se separou o bom Anjo: de Nínive me levou à casa de Raquel, e daí me reconduziu são e salvo a Nínive. “Me duxit et reduzit sanum”.

2) Na viagem, quase que um terrivel peixe me devorou, e quem dele me livrou foi Azarias: Meipsum a devoratione piscis eripuit.

Foi o caso nas margens do rio Tigre. As mansas águas do rio eram tranquilas e convidavam Tobias, a parar, descansar e lavar os pés. Tobias parou, mas quando, despreocupado mergulhou os seus pés dentro de suas águas eis que um de seus ferozes habitantes, um peixe de enormes proporções investiu de dentes armados contra ele, querendo devorá-lo. “Salva-me, gritou Tobias” Mas Azarias respondeu: não temas. Abaixa-te, agarra-o pelas guelras, e puxa-o para fora dágua. Óbedeceu Tobias e puxou o peixe para terra.

(35) Eis o que disse o velho Tobias ao separar-se de Tobias o Azarias: Ide e  sede felizes, o Senhor esteja convosco durante a viagem, e o seu Anjo vos acompanhe. E, chorando Ana pela ausência do filho, assim lhe falou: “Não chores, porque eu creio que o bom “Anjo de Deus o acompanha próvido a solícito em tudo o que lhe acontece, para que alegre ele volte um dia para nós”.
Por aí si vê a crença da Igreja judaica na guarda dos Santos Anjos, — Não menos belo exemplo se encontra, no Gênesis (48,16), onde se marra que antes de morrer chamou Jacó os seus filhos, e lhes disse: “o Anjo que me livrou de todos os males, abençoe também a estes meus filhos”. — E ao entrar vitoroso em Betúlia, exclamou Judite; “o Anjo de Deus foi quem me guardou quando daqui me ia, quando longe daqui permaneci, e quando para cá voltei". (Jd13,20).

O Anjo, então, lhe ordenou que o abrisse, tirasse o coração, fel e figado, e que guardasse tudo.
isso muito bem: porque, ajuntou, são meios muito bons para afugentar os demônios e remédio muito bom para fazer cegos recobrarem a vista.

3) Procurou-me uma boa esposa, livrando-a do demônio que a afligia, e enchendo de alegria os seus pais. “Uxorem ipse me havere fecit...”

E isto assim se passou. Quando chegaram mais ou menos nas proximidades da casa que Azarias sabia ser de Raquel, disse ele a Tobias: é alí que nos vamos alojar. O dono dessa casa, continuou, tem uma filha única, que se chama Sara. Deus a destina para tua esposa. Por isso a pedirás a seu pai. E nem te preocupes com o demônio que lhe tem morto os esposos... Sabe que demônio só tem poder contra aqueles que afastam a Deus de si e do próprio coração, e se entregam aos desregramentos da própria vontade. (Tb16,17).
Foi então que Tobias recebeu o prêmio de sua obediência, conservando as entranhas do peixe, porque, queimando estas no quarto nupcial, pôde escapar ao triste fim que tiveram os sete primeiros maridos de Sara.
E foi assim que o bom Deus, que à procela faz suceder a calma e depois do pranto nos infunde na alma a alegria, deu a Tobias uma santa e rica consorte, premiou a paciência com que ela tolerava as adversidades, e enfim inundou de indizível alegria a toda a família de Raquel.

4)...E o dinheiro que tinha que receber de Gabelo, foi o próprio Azarias que o recebeu: “Pecuniam a Gabelo ipse recepit”.

Depois que Tobias e Sara já estavam casados, pediu-lhe esta que não partissem já, mas que ficassem ainda em casa de seus pais ao menos duas semanas. Ora, Tobias tinha ainda que dirigir-se a Rages para cobrar de Gabelo o que ele devia ao seu velho pai... Por outra parte, queria fazer u vontade de sua bela e virtuosa esposa. Mas como conciliar as duas coisas, e voltar a Nínive sem fazer o pobre velho pai esperar demais?
Teve então a seguinte ideia. Foi, cheio de confiança ter com Azaria, e lhe disse: Azaria, irmão meu, rogo-te que escutes as minhas palavras.
Nem mesmo que eu me fizesse teu escravo poderia compensar-te pelos benefícios que me tens feito. Entretanto, tenho ainda um pedido a fazer.
É que aprontes um bom cavalo, chames os servos, e te transportes a Rages, onde mora Gabelo. Mas vu não poderei ir contigo. Lá chegando deves apresentar o meu quirógrafo a Gabelo. À sua vista ele te pagará uma soma e tu o convidarás para assistir às minhas próximas núpcias. Peço-te, Azaria, que me facas este grande favor, pois do contrário, se eu me demorasse uns dias a mais, nem podes calcular que dor profunda irá na alma de meu pai, que um por um vai contando os dias da minha ausência.
Falou-lhe ainda, Tobias, do pedido que lhe fizera Raquel, e o bom Anjo, agradando-se dos bons sentimentos de Tobias, partiu sem mais demora para Rages, fez a tal cobrança, e voltou para a casa de Raquel. E Gabelo veio com ele.

5) E agora, de volta, em nossa casa, foi também Azaria que te fez, ó pai, ver de novo a luz cintilante dos espaços. “Te pidere fecit tum coelr”.

Já se haviam celebrado as núpcias de Sara e Tobias, e enfim Raquel mãe de Sara, resolve deixá-los partir, pois já duas semanas haviam transcorrido (36).
Entregou ao genro a filha e com ela a metade do que possuía em servos, servas, rebanhos e dinheiro. E todos, com alegria e grande acompanhamento se puseram de caminho para Nínive, precedidos pelo Santo Arcanjo Rafael.
Já onze dias haviam caminhado, quando chegaram a uma região já assaz achegada à cidade de Nínive. Então propôs o Santo Arcanjo a Tobias uma coisa: que Sara, com seus servos e rebanhos os seguissem n distância, lentamente, e ele e Tobias apressassem o passo para abreviar a hora da alegria do bom velho pai que os esperava.
Tobias o ouviu docilmente, como todas as outras vezes, e assim como propôs Azaria assim o executaram. E depressa, assim, chegaram à vista da grande cidade.
A primeira pessoa que os avistou ao longe foi Ana, sua mãe. Todos os dias ela subia ao cimo de uma colina e lá se quedava horas e horas aguardando a chegada do filho querido, e a todos perguntando se o teriam visto.
Avistá-lo, portanto, e correr a avisar o marido da chegada do filho, foi tudo uma coisa só.

(36) Raquel se separou de Sara e Tobias com estas palavras: “O Anjo santo do Senhor esteja convosco na viagem, e salvos vos conduza ele”. (Tb10,11).

O bom velho, arrimado em dois dos seus servos, lhe foi ao encontro, abracou-o ternamente e desfez-se em copioso pranto de alegria.
Dado esse primeiro desafogo no coração, prostraram-se todos em terra para dar graças a Deus.
Depois, sentaram-se alegremente.
Foi então que Tobias, tomando o fel do peixe como lhe havia ensinado o Anjo, ungiu com ele os olhos do seu pai. Todos tinham os olhos postos no velho Tobias, e dele só os despregaram para pô-los em Azaria, que na partida para Média, havia dito: “Sê de bom ânimo que breve te haverá Deus de curar" (V,3). Pois bem, chegara esse felicíssimo momento. De fato, o bom velho recobrou a vista com a unção do fel e, ajoelhando-se agradeceu a Deus: “Eu vos bendigo, ó Senhor, Deus de Israel, porque me castigastes e salvastes. Eis que em boa hora de novo vejo  o rosto de Tobias, meu filho".
Passados poucos dias chegou Sara com seus servos e rebanhos. Não cabem em descrições a alegria, a exultação e gáudio que nesses dias encheram aquele lar.
Mas aos dois Tobias, pai e filho, lhes parecia que tinham uma grande divida a saldar. Como agradecer e recompensar devidamente a Azaria pelos seus benefícios? “Que podemos dar a este santo homem que veio contigo?” perguntava o velho pai. “Que lhe podemos dar em proporção dos seus benefícios?” replicava o filho. Por fim, concordaram em lhe dar metade de todas as riquezas que tinham trazido da Média.
Chamaram, então, a Azaria, e, com instância, lhe faziam os seus oferecimentos. Mas o Santo Arcanjo os interrompeu com as seguintes e celestiais palavras:
Bendizei o Deus do céu, dai-lhe glória perante todos os seres vivos, por ter feito resplandecer sobre vós a sua Misericórdia. Porque se é bom guardar em segredo os secretos negócios dos reis, é coisa louvável, entretanto, publicar as obras de Deus”.
A oração acompanhada de jejum e da esmola, é melhor do que acumular e mais acumular riquezas: pois a esmola nos livra da morte, ela nos purifica do pecado e nos faz encontrar misericórdia e vida eterna. Mas aqueles que cometem à iniquidade e o pecado, são inimigos da própria alma.
Eu, portanto, vos descubro a verdade, e não guardo em segredo um depósito arcano. Quando, tu, com lágrimas quentes, oravas ao Deus do céu, davas sepultura aos mortos, te levantavas em meio da refeição para cuidar dos cadáveres dos teus patrícios, trazê-los a casa, e depois de aí escondidos, sepultá-los nas horas caladas da noite, eu oferecia ao Altíssimo a tua oração.
E foste provado da tentação, porque eras para Deus objeto de predileção.
Mas eis que o Senhor me mandou para curar-te a ti, e para livrar do demônio a Sara, mulher do teu filho.
Pois sabe que eu sou o Anjo Rafael, um dos sete que constantemente estamos na presença Senhor: “Ego sum Raphael Angelus, umus ex septem qui adstamus ante Dominum”.
Tais palavras fizeram tal impressão em Tobias e seu pai que, tremendo, caíram com a face por terra.
“Não temais, disse o Anjo. A paz seja convosco.

Enquanto estive em vossa companhia, por vontade de Deus estive: bendizei-o, pois, e cantai os seus louvores.
“Parecia-vos que eu comia e bebia convosco: mas eu me sirvo de um alimento invisível e de uma bebida que não pode ser vista pelos homens.
“Mas já é tempo de tornar àquele que me enviou. Quanto a vós, bendizei a Deus e narrai todas as suas maravilhas”. Dito isto, desapareceu de diante dos seus olhos.
Por três horas ficaram Tobias e seu pai prostrados por terra bendizendo e louvando a Deus.
Depois levantando-se, a todos contavam os favores que Deus lhes havia feito. Ainda viveu o velho Tobias quarenta e dois anos. E feliz em sua velhice, partiu em paz para a outra vida. Antes de morrer, chamou o filho e sete jovenzinhos, seus netos, e assim lhes falou: “Ouvi, filhinhos, a este velho pai.
Servi, com coração sincero, ao Senhor nosso Deus, e procurai fazer aquilo que Lhe agrada. Recomendai a vossos filhinhos que façam obras de justiça e esmolas, que se recordem de Deus, louvando-o em todo tempo com coração sincero e com todas as suas forças”.
Depois lhe aconselhou sair de Nínive e transportar-se para a Média.
Assim fizeram eles. Mortos pai e mãe, Tobias, com todos os seus se passou à casa do sogro, em Rages, onde prosperamente viveu anos longos e felizes e jamais deixou de louvar a Deus, pelos conselhos e exemplos do seu santo pai, assim pelos cuidados que com ele tivera e os benefícios que lhe havia feito o Arcanjo Rafael.

Capítulo 11
OS ANJOS NO NOVO TESTAMENTO

1 — OS ANJOS E JESUS CRISTO

Não necessitava Jesus Cristo, como é evidente, de Anjos da Guarda que O guiassem, protegessem, iluminassem. Ele é o Senhor dos Anjos, deu-lhe a sabedoria que eles mesmos possuem — não podia, portanto, necessitar do auxílio de servos seus, como se diante dele fossem seres superiores, “Não lhe cabia, como fala S. Tomás de Aquino, um Anjo da Guarda, como superior, mas antes um ministro (ou servo) como inferior.
É precisamente desses serviços dos Anjos prestados a Jesus, seu Senhor e Rei, que fala o Evangelho. Seguiremos o Evangelho nos passos principais.

1. — Nascimento de Jesus
É tocante a narração da parte que tiveram os Anjos no nascimento de Jesus.
Apenas nascido o Redentor, diz o Evangelho que havia naquela região uns pastores, velando e guardando, nas vigílias da noite, o seu rebanho. E eis, continua o texto Sagrado, que apareceu junto deles um Anjo do Senhor, e a claridade de Deus os cercou de esplendor; e tiveram grande medo.
Porém o Anjo lhes disse: não temais, porque eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo. É que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
E este é o sinal com que o reconhecereis: Achareis uma criancinha envolta em panos, e deitadinha numa manjedoura.
E, subitamente, apareceu com o Anjo uma multidão da milícia celeste, louvando a Deus, e dizendo: “Glória a Deus, nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade”.

2— Fuga para o Egito
Foi também um Anjo de Deus o incumbido de livrar o bom Jesus, recém-nascido, do furor do rei Herodes. Assim conta S. Mateus: “Tendo partido os Reis Magos, eis que o Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e lhe disse: Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito.
E lá permanece até que te venha de novo avisar.
Pois o rei Herodes vai procurar a criança para matá-la.
De fato assim aconteceu. Herodes, iludido pelos Magos, que por outro caminho que não o de Jerusalém, havia voltado para as suas terras, enfurecido, ordenou a matança de todas as crianças de Belém, que tivessem menos de dois anos. Infalivelmente, se lá houvesse ficado, também o Menino Jesus teria sido morto. Mas a essa hora já Ele estava longe de Belém, em lugar seguro — e tudo por ministério de um Anjo. É mais um favor que lhes devemos.
Mas, passado o perigo, com a morte de Herodes, de novo apareceu o Anjo em sonhos a S. José, e lhe disse: “Levanta-te toma a criança e sua mãe, e parte para terra de Israel, pois já morreram os que a buscavam para matar”.
E a Sagrada Família, pôde então, com segurança, voltar pare a sua terra natal.

3 — Jesus no deserto é alimentado pelos Anjos
Jesus quisera começar a sua vida pública por um ato de humildade, e um de penitência. A humildade, praticou-a ao ser batizado em meio ao comum do povo, como se fosse pecador como eles. A penitência, praticou-a no deserto, logo após o batismo, lá ficando quarenta dias seguidos no mais absoluto jejum.
Mas Jesus era homem como nós e sentia as necessidades da nossa natureza. Por isto, ao fim de tão longo jejum, sentiu a necessidade de alimentar-se, “teve fome”, como diz o Evangelho.
E como muitas vezes as nossas necessidades se convertem em tentações, assim também o bom Jesus quis igualmente nisto ser semelhante a nós.
Permitiu que o demônio o tentasse.
Apareceu então o demônio, e lhe sugeriu que transformasse em pão aquelas pedras que ali estavam — assim saciaria a sua fome, e ao mesmo, tempo provaria que era o Filho de Deus.
Mas Jesus, reconheceu nisto uma tentação, respondeu que não é somente o alimento material que nos alimenta mas também o espiritual, que fortifica a nossa alma e, concomitantemente e por redundância, também avigora o corpo.
Ainda duas tentações permitiu Jesus que o demônio lhe fizesse: uma que se atirasse do alto do templo e outra que o adorasse, e ele, o demônio, lhe daria em troca todos os reinos do mundo e toda a sua glória.
É instrutivo observar que na primeira destas duas tentações o demônio citou umas palavras justamente acerca do ministério dos Anjos junto a nós, que dizem: “Porque foi para teu bem que Deus mandou os seus Anjos e eles te levarão em suas mãos para que não venham a magoar os pés nas pedras do caminho”.
Foi, portanto, pretendendo convencer a Jesus, por meio da Escritura que o demônio lhe disse que se atirasse do alto do templo. O demônio nos tenta, muitas vezes, até com as coisas santas.
Mas Jesus, lhe deu a conveniente resposta, e, após a terceira tentação, ordenou formalmente que se retirasse. O demônio, então, afastou-se vencido, e os Anjos do céu vieram servir ao bom Jesus o de que Ele necessitava.

4 — Agonia de Jesus no Horto
A agonia de Jesus no Horto é um dos mais comoventes passos da história evangélica, Jesus, na previsão do que ia sofrer, e diante da indiferença dos homens ante os sofrimentos com tanto amor padecidos, é assediado em seu coração de homem de tal pavor, de tal desgosto, de tal tristeza, que cai com a face por terra em oração a seu Pai, e começa a suar sangue.
Jesus estava só, inteiramente só, naquele lugar. Perto dali é verdade que estavam três apóstolos, mas... também eles, com o céu da alma toldado por negras nuvens de iminente tempestade. De modo que, abatidos, como que vítimas de algum entorpecente psicológico, nada, absolutamente nada podiam fazer que confortasse Jesus e lhe aliviasse o pesar.
Mas Jesus orou, e um Anjo de Deus desceu do céu e lhe trouxe o conforto que os seus discípulos não podiam dar. Onde quer que se manifeste o Anjo, é sempre essa amável criatura que conforta, que ajuda, que nos põe à disposição os maravilhosos recursos de sua excelsa natureza.

5— A Ressurreição de Jesus Cristo
Tudo o que Jesus havia pregado seria verdadeiro se Ele ressuscitasse, e poderia ser posto em, dúvida se não ressuscitasse.
Por isto, depois de estar debaixo da terra duas noites e um dia, Ele ressuscitou.
Eis a parte que na sua ressurreição tomará os Anjos.
Contam os Evangelhos, que as Santas Mulheres que sempre acompanhavam a Jesus, vieram ao sepulcro para ungir com perfumes seu corpo.
Mas, chegando lá, viram que a pedra que vendava a entrada estava removida do lugar, que o corpo de Jesus não estava no sepulcro; que um Anjo de Deus tinha descido do céu e tinha removido a pedra, justamente para que Madalena e suas santas companheiras vissem.
Jesus não estava no sepulcro, porque tinha ressuscitado.
Diz S. Lucas que essa enorme pedra, que o Anjo removera sem dificuldade fora posta de lado e que sobre ela se postara o Santo Anjo.
Visível a olhos humanos na figura de um belíssimo rapaz, esse Anjo tinha entretanto um aspecto que lhe revelava a natureza superior e o mundo bem-aventurado em que vivia.
“A sua face, era tal como o de um relâmpago, diz S. Lucas, é as suas vestes brancas como a neve”.
Ora, guardavam o sepulcro os soldados de Pilatos, para que não acontecesse que os apóstolos viessem roubar o corpo de Jesus.
Mas quando o Anjo chegou, já os guardas guardavam um sepulcro vazio, porque Jesus havia ressuscitado e saído da sepultura, sem que fosse preciso que lhe tirassem a pedra de entrada.
Diz o citado evangelista que tal foi o medo dos soldados ao verem o Anjo, que caíram por terra como mortos.
Também Madalena e as outras mulheres se sentiram amedrontadas, como é natural, pois nunca tinham visto um Anjo. Mas o Anjo lhes disse: “Não temais, Sei que procurais a Jesus, o qual foi crucificado.
Mas por que procurais entre os mortos a quem está vivo? Ele aqui não está. Ressuscitou,
Recordai-vos do que Ele vos disse quando ainda vivia convosco, na Galileia, a saber: que era preciso que Ele fosse entregue aos pecadores, e que seria crucificado, e que ressuscitaria ao terceiro dia.
Então de tudo se recordaram elas”.
E o Anjo ainda lhes disse que fossem contar tudo aos apóstolos e principalmente a S. Pedro, e que lhes dissessem que os esperaria na Galileia. E aí está como os Anjos são mensageiros de Deus; dirigem-nos, guiam-nos, instruem-nos, informam-nos.

6. — A Ascensão
Depois de Jesus ficar quarenta dias ainda na terra depois da ressurreição, subiu, cheio de majestade, ao céu. S. Lucas diz nos Atos dos Apóstolos que tão embevecidos ficaram os apóstolos e cerca de quinhentos discípulos, com a majestosa subida de Jesus ao céu, que quando a nuvem encobriu a Jesus dos seus olhos se ficaram eles fitando o céu, como não conformados com ter que olhar de novo para a terra.
Foi preciso, mesmo, que dois Anjos lhes aparecessem e dissessem: Por que estais, galileus, a olhar assim para o céu? Este mesmo Jesus que acaba de vos deixar e subir ao céu, voltará um dia, deste mesmo modo com que o vistes a subir”.
Mas não foram só estes dois Anjos que narraram parte na ascensão de Jesus.
É coisa muitíssimo digna de crédito, diz exímio doutor Francisco Suarez, que no glorioso dia da ascensão todos os Anjos do céu vieram ao encontro do Salvador, em homenagem e reconhecimento de sua régia dignidade.
E ele, cheio de majestade, elevou-se sobre Anjos e Arcanjos, passou glorioso pelos Principados e Potestades, pelas Virtudes e Dominações, pelos Tronos, Querubins e Serafins, e foi assentar-se à direita do mesmo Deus, Pai do Céu”.
Jesus, pois, como disseram os dois Anjos aparecidos aos discípulos e apóstolos, um dia voltará. Será no fim do mundo, para julgar a todos os homens.
Então todos ressuscitarão com os corpos que tiveram em vida e irão ou gozar no céu ou sofrer no inferno.
Também os Anjos ai terão papel importante.
“Então, disse Jesus no Evangelho, sairão os Anjos e afastarão os maus do meio dos justos. Os bons irão para a eterna felicidade, e os maus para o suplício eterno.

2 — Os Anjos e Maria Santissima

Também Nossa Senhora podia dispensar a guarda dos Santos Anjos. Por sua excelência de mãe de Deus, o Criador lhe concedeu em grau sumo todos os privilégios que concedera aos seus simples servos, os Santos Anjos do céu.
Por esse motivo, não há duvida que muitos desses bem-aventurados espíritos terão sido delegados por Deus a assistir junto dela, não tanto porque o necessitava Maria, quanto pela reverência que lhe deviam os Anjos, como fala Dionísio Carlusiano: “non tam ob indigentiam quam ob reverentiam'” (In cant, art. 12).
Por outra parte não necessitava de quem a defendesse dos assaltos do demônio pois já no primeiro instante de sua Conceição ela lhe havia esmagado a cabeça. E dizem os santos que ela foi de todo isenta de tentações.
Nas vias do espirito, o seu iluminador e instrutor era o próprio Deus, E a sua santidade pairava muito acima da santidade dos Anjos.
Anunciar-lhe, portanto, os divinos favores, servi-la com seus ministérios, recreá-la com sua presença, era tudo o de que, junto da Virgem Santíssima, deviam incumbir-se os Anjos.
Pelo que se deduz do pouco — pouco nas palavras e muito no sentido — que a seu respeito nos narra o Evangelho, deve ter tido um caráter de assiduidade e familiaridade todo especial, o trato de N. Senhora com os Anjos.
Alguns doutores, mesmo, como S. Bernardo, (De batismo afirmam que S. Gabriel, o Arcanjo da Anunciação (Lc1) teria sido o Anjo destinado por Deus, de modo especial, a assisti-la e servi-la.
Entretanto, deve-se ter em vista que a vida da Virgem Santíssima não teve aquele caráter que teve a de seu divino Filho, alvo das mais espalhadas profecias do Antigo Testamento, e objeto da observação dos seus contemporâneos. A vida de Jesus, teve a publicidade que condizia com a sua missão de Mestre, Profeta, Messias, Salvador Nosso.
A de Maria Santíssima foi um vida escondida, toda interior, toda espiritual. Maria Santíssima aparece no Evangelho, sempre em função de Jesus Cristo. É, pois, natural, que as aparições de Anjos, no Evangelho, sejam mais numerosas com relação a Jesus que a Maria.
O Evangelho, a respeito de Nossa Senhor: apenas menciona uma aparição de um Anjo. Foi na anunciação.
“No sexto mês, (a contar da visita a S. Isabel e concepção de S. João Batista) foi enviado por Deus o Anjo Gabriel a uma cidade da Galileia, de nome Nazaré, a uma virgem desposada com um homem da casa de Davi, chamado José — e o nome da virgem era Maria.
E aproximando-se dela, o Anjo disse: Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo, bendita és tu entre as mulheres.
Mas ela, ouvindo isto, atônita ante tais dizeres, ficou pensando que saudação seria esta.
E o Anjo lhe disse: não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus.
Eis que conceberás, e darás à luz um Filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus,
Ele será grande e será chamado o Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai, e Ele reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.
Perguntou então Maria ao Anjo: “como se fará isto, pois não conheço varão”.
Respondeu-lhe o Anjo: “O Espirito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. .
Por isso, também o santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus.
E eis que Isabel, tua parenta, concebeu um filho em sua velhice; e este é o sexto mês daquela que é chamada estéril, porque a Deus nada é impossível”.
Tais foram as palavras do Arcanjo S. Gabriel.
E Nossa Senhora respondeu: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”.

8— Os Anjos e os Santos Apóstolos (37)

a) A bela história de Cornélio, centurião romano.
Havia, na cidade de Cesaréia, na Palestina, um gentio chamado Cornélio, e que era o centurião, ou seja comandante de uma centúria.
Era Cornélio homem sumamente piedoso, assíduo na oração como nas obras de caridade. E, toda a sua família lhe seguia o exemplo.
Ora, um dia, aí pela nona hora, lhe aconteceu uma coisa extraordinária. Viu que um Anjo de, Deus vinha para ele, e o chamava pelo nome: Cornélio!
Atônito com tão inesperada aparição, respondeu: “Senhor que é que quereis significar com isto”?
Mas o Anjo continuou: “As tuas orações e as tuas esmolas subiram até a presença de Deus. É, pois, mister, que envies alguém a Jope, a chamar Simão, cognominado Pedro, que mora com um certo curtidor Simão na vizinhança do mar. Ele te dirá o que deves fazer”. — E o Anjo desapareceu.
Cornélio, portanto, mais que depressa chama, a dois dos seus servos, tudo lhes conta, e os manda com um soldado de sua côrte a Jope.
Ora, enquanto estes caminhavam S. Pedro, em Jope, estava em oração, e teve também ele uma maravilhosa visão.

(37) Jesus é Nosso Rei e Senhor, como também dos Anjos, Por esto motivo, os Anjos nos consideram conservos seus com relação à Jesus Cristo: “sou servo como tu, disse um Anjo a S. João, como tu e como teus irmãos, que dão testemunho de Jesus". (19,10).

Viu que pendia do céu, sobre a terra um grande lençol, suspenso pelas quatro pontas. E este lençol estava cheio de animais, de toda casta: mesmo aqueles cuja carne os judeus são proibidos de comer.
E ao mesmo tempo S. Pedro ouviu uma voz, que dizia: “levanta-te, Pedro, mata-os e come-os.
Ora, S. Pedro, julgava que não podia comer assim todos os animais, indistintamente, pois a lei judaica não o permitia. Por isto respondeu: “Longe de mim tal coisa! Pois nunca comi animal impuro (que a lei considerava impuro)”.
Mas a mesma voz de novo falou: não chames de impuro o que Deus purificou”.
Aconteceu isto por três vezes. Depois se recolheu ao céu o lençol.
Impressionado, inquietou-se S. Pedro pensativo, procurando interpretar tão estranha revelação. Mas os fatos lha vieram explicar.
A esse tempo, exatamente enquanto pensava S. Pedro, à sua porta batiam os três enviados do centurião romano e perguntavam se não era ali que morava um tal Simão, cognominado Pedro.
Falou então, o Espirito Santo a S. Pedro: “estão aí três homens que te procuram. Levanta-te, portanto, e desce, e deixa-te levar, pois fui Eu quem os enviou”.
Enquanto isto, estava em sua casa ansioso Cornélio, esperando com toda a família reunida, pela volta dos seus.
Estes ficaram aquela noite com S. Pedro, e só partiram no dia seguinte. E S. Pedro levou também consigo alguns discípulos.
Chegado que foi à Cesaréia, ajoelhou-se-lhe Cornélio aos pés, como para adorá-lo. Mas S. Pedro o levantou, dizendo: "Levanta-te, que também sou homem mortal”.
Em seguida, fê-lo Cornélio entrar em sua casa, Entrou pois, S, Pedro, e vendo alí reunidos tantos gentios, disse; “bem sabeis quanto abominam os judeus comunicar-se ou aproximar-se dos gentios.
Mas Deus me mostrou em uma visão que a ninguém me é permitido chamar de impuro (e indigno das relação de um judeu)”.
Depois perguntou como fora que tivera Cornélio a ideia de o chamar. E lhe disse Cornélio, que devido a aparição de um Anjo.
Por ministério de um Anjo se convertia assim, ao cristianismo, um pagão, primícias da conversão de todo o mundo pagão — de que também nós, em nossos antepassados, fazíamos parte.
Mas, tal como a contam os Atos dos Apóstolos, é bela por demais esta história para deixá-la inacabada em todos os pormenores.
Ouvindo, pois, S. Pedro, a narração de Cornélio acerca da aparição que tivera, exclamou: "na verdade, acabo de compreender que para Deus não existe acepção de pessoas. Quem quer que tema, seja ele quem for, e que pratique as obras da justiça, lhe é aceito”.
E em seguida falou-lhe de Jesus Cristo: como havia pregado por toda a Judéia a paz reino de Deus, havia sido batizado por João Batista, passara a sua vida semeando o bem, curando os doentes, libertando os possessos dos maus espíritos — e que, não obstante, havia sido crucificado pelos judeus. Falou-lhes também de sua ressurreição e de como ele, Pedro, e os demais apóstolo haviam até comido e bebido com Jesus depois de ressuscitado; de como Jesus os mandara a pregar ao povo, e, enfim, que tudo estava predito pelos profetas, conforme se lê nos livros santos.
“Ainda Pedro falava — diz S. Lucas nos Atos dos Apóstolos — quando desceu o Espirito Santo sobre todos os que o ouviam.
E ficaram admirados os fiéis circuncisos (judeus) que haviam vindo com Pedro. Pois viam que também nos gentios se derramava a graça do Espirito Santo, pois os ouviam falando línguas e exaltando a bondade de Deus”.
E S. Pedro, tendo-os batizado, ainda ficou alguns dias com eles, para lhes satisfazer a devoção.

b) Um Anjo liberta a S. Pedro do cárcere de Herodes Agripa, quebrando-lhes as correntes.

Há sete anos reinava na Judéia Herodes Agripa, quando resolveu perseguir os cristãos. Para isto, mandou degolar S. Tiago, irmão de S. João Evangelista, e vendo que tal ato agradava aos judeus, passou adiante: prendeu também a S. Pedro.
Era nas vésperas da Páscoa. Herodes pretendia apresentar o seu novo preso ao povo depois dessa grande festa. Por isso mandou que o guardassem quatro piquetes, cada um de quatro soldados.
Mas enquanto S. Pedro estava no cárcere, estavam os cristãos rezando por ele sem cessar.
Ora, na mesma noite em que Herodes o ia apresentar ao povo, dormia S. Pedro entre dois soldados, atado com correntes duplas. E os guardas, à porta, vigiavam o cárcere.
E eis que veio um Anjo do Senhor, e uma luz resplandeceu na prisão. E tocando em S. Pedro, despertou-o o Anjo e disse: levanta-te depressa” E caíram as correntes das mãos de S. Pedro.
Disse-lhe o Anjo: “põe o cíngulo e calça as sandálias”. E assim fez.
E depois: “põe a tua capa, e segue-me”,
E saindo, Pedro o seguia sem compreender que era realidade o que se fazia por intervenção de um Anjo, pois julgava ter uma visão.
Passando a primeira e segunda guarda chegaram à porta de ferro que conduz à cidade, a qual se lhes abriu por si mesma.
E saindo, passaram um quarteirão, e aí se apartou o Anjo de S. Pedro.
Então S. Pedro, tornando a si, disse: “Agora sei verdadeiramente que o Senhor enviou o Anjo e me livrou das mãos de Herodes e de toda expectativa do povo dos judeus”.
Assim dizendo, dirigiu-se S. Pedro para a casa de Maria, mãe de João, de sobrenome Marcos onde muitos fiéis se haviam reunido para rezar.
Batendo, pois, S. Pedro, à porta dessa casa, Rodes, mocinha que lá estava, foi ver quem era.
Ficou fora de si de alegria, ao ouvir a voz dé S. Pedro. E em vez de abrir a porta, ansiosa para dar a nova, foi dizê-lo aos fiéis. Mas estes disseram: “estás doida?...” E ela insistia e afirmava que só podia ser ele. E os fiéis: “não, não é ele, mas o Anjo dele”.
Enfim, continuando S. Pedro a bater, foram à porta e deram com o Santo Apóstolo! Ficaram admirados.
Fez-lhes S. Pedro sinal que calassem, e contou-lhes como fora livrado pelo Anjo.
Pouco depois, Herodes, que se retirara para Cesaréia, como dizem os Atos, foi ferido pelo Anjo do Senhor, porque não dera honra a Deus — e morreu devorado pelos vermes.
Vem a propósito uma observação de Orígenes a respeito da palavra dos fiéis “Não é Ele, mas o seu Anjo”. “Portanto, diz Orígenes, deduz-se que um é o Anjo de Paulo, o outro o de Pedro, outro o de cada um dos demais apóstolos, e assim por diante a respeito dos outros homens (Homil, 2 in Numer.)” E igualmente daí se conclui que a fé dos primitivos cristãos no Anjo da Guarda, estava longe de ser o que é hoje em dia a grande maioria dos fiéis — uma fé lânguida e quase que morta na vida prática.
“Angelus ejus est: é o Anjo dele"! o Anjo de Pedro, que nos vem trazer alguma mensagem do apóstolo. Não podia ser mais espontânea a confissão de sua fé nos nossos Santos Anjos! Era isso resultado da firme persuasão em que viam da certeza desse fato e desse grande e fecundo dogma.
Jovem que me lês, é bem possível que muitas vezes tenhas ouvido a voz do teu Anjo da Guarda e que a não tenhas reconhecido.
Aprende, com os cristãos dos tempos apostólicos, a reconhecer a voz do teu Anjo: “Angelus meus est”, dize então, e presta ouvido a essa voz: “audi vocem ejus”. Assim fazendo terás a fé dos primitivos cristãos, e viverás de uma vida inatingível aos sentidos do corpo, mas que é a verdadeira vida.
E não perecereis afogado no lodo deste mundo.

Capítulo III
EXEMPLOS TIRADOS DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA

O Cristianismo, no decorrer de sua história, fiel à doutrina biblica e aos ensinamentos dos apóstolos, também nos fornece belos e numerosos exemplos de manifestações dos santos Anjos em favor dos homens.
Deixamos de lado a devoção dos grandes cristãos e dos santos em geral pelo Anjo da Guarda, pois isto, de comum, se encontra em quase todas as vidas edificantes que nos legaram os nossos antepassados.
Quanto aos favores obtidos pelos santos dos seus Anjos, apenas mencionaremos os principais.
Assim, foi um Anjo que livrou do cárcere a S, Felix de Nola, e o conduziu são e salvo ao santo, bispo Máximo. Os Anjos confortam aos santos Trifônio e Respício em seus tormentos, quando a eles condenados na perseguição de Bitínia. O grande Simeão Estilita, que obedecendo a uma inspiração do alto, passava a sua vida de penitência no cimo de uma coluna, é assistido na última luta, à hora da morte, por um amabilíssimo Anjo do Senhor.
Segundo narra João, o diácono, um Anjo, na forma de peregrino, ajuntou-se aos doze pobres que S. Gregório Magno, fazia sentar à sua mesa e servia, quando já eleito para a cadeira de S. Pedro. E o próprio S. Gregório nos conta em seus diálogos, numerosos exemplos de proteção dispensada pelos Anjos em favor dos seus devotos. Um Anjo desperta do sono a S. Raimundo de Penaforte e o convida a rezar; serve de guia a S. Domingos e o reconduz ao convento; indica o caminho a S. Feliz Benício e o reconforta abundantemente com um maravilhoso alimento.
Na vida de S. Nicolau de Tolentino se narra uma coisa maravilhosa, a saber: alguns meses antes de sua morte ouvia todas as manhãs as melodias celestiais dos Anjos, e assim foi advertido de sua morte próxima. E nos trinta e quatro anos de enfermidade de S. Ludwina, bastas vezes lhe apareceram os Anjos. Não menos maravilhoso é o que se lê nas revelações de grandes santos, tais como S. Brígida e S. Maria Madalena de Pazzi, a saber: que os santos Anjos da Guarda não somente nos assistem durante a vida, mas também nos acompanham ao tribunal de Deus, visitam-nos e nos consolam nas chamas do Purgatório.
Entretanto, pelo interesse que despertam e pela autoridade histórica dos autores que os narram, os exemplos seguintes merecem ser para aqui transladados com os seus pormenores.

1 - Aparição de S. Miguel Arcanjo no Monte Gargano.

Tanto na Sinagoga, dos Judeus, como na Igreja Católica é reconhecido S. Miguel Arcanjo como especial protetor e guarda, tal como se lê no livro oficial de orações dos sacerdotes — o breviário (dia 8 de maio). Devemo-lo portanto, reconhecer, como nosso insigne e assíduo patrono.
A Santa Igreja várias vezes o invoca, em suas orações, durante o dia. E nós, como filhos seus dóceis ao ensinamento dos seus exemplos, igualmente lhe devemos prestar cotidianamente um humilde tributo de reverência, amor e confiança.
E durante o ano, são duas as festas em que Igreja lhe presta a homenagem pomposa de suas festas litúrgicas. No dia oito de maio, ela comemora a aparição de S. Miguel Arcanjo sobre o monte Gargano; e no dia vinte e nove de setembro faz memória do mesmo santo Arcanjo, “quando em seu nome sobre este mesmo monte foi consagrada uma igreja de tosca fábrica, sim, mas ornada de celestial virtude”.
Ora, se esse fato mereceu uma tão grande consideração por parte da Igreja, deve ele ser de importância capital, e por isto o narraremos pormenorizadamente.
Vivia no século V na cidade de Siponto, ao pé do monte Gargano, um pastor, que tinha preciosamente o nome de Gargano, Era rico em rebanhos e pastagens.
Ora, aconteceu que um dia fugiu-lhe uma de suas reses, e indo-lhe o pastor no encalço, foi encontrá-la no alto do dito monte, à entrada de uma gruta.
O animal era feroz, e por isto Gargano resolveu matá-lo. Tomou do arco, fez pontaria, lhe desferiu uma flecha certeira. Mas esta, como se fosse agarrada no ar por uma mão invisível voltou-se de súbito no espaço e veio ferir o próprio Gargano que a atirara.
Grande foi o espanto dos que o acompanhavam. Mas, não sabendo explicar o mistério e nem ousando aproximar-se da gruta, correram à cidade a informar a bispo do extraordinário acontecimento.
Ouviu-os o santo prelado, e não sabendo também ele a que atribuir tal fenômeno, ordenou aos seus diocesanos três dias de jejum com o fim de pedir luz a Deus sobre o caso.
No fim de três dias, revelou-se o segredo de modo maravilhoso.
Apareceu ao santo bispo o próprio S. Miguel Arcanjo e fê-lo saber que o prodígio da montanha havia sido operado por ele próprio, para indicar que aquele lugar estava debaixo da sua especial proteção e que ali queria se lhe rendesse culto especial, assim como a todas as hierarquias angélicas do céu. Depressa, por sua vez, fez o bispo sabedor o seu povo da aparição que tivera, e todos, bispo e povo, partiram para a montanha em demanda da já famosa gruta.
Lá chegados, logo começaram a celebrar os divinos ofícios, pois a gruta, cavada na rocha, era assaz espaçosa, e tal qual uma igreja.
Com o tempo transformou-se aquela simples caverna em um celebérrimo santuário, local de frequentes e insignes milagres.
Na verdade é Miguel Arcanjo, como dizia a Igreja, “principe da milícia celeste”, os obséquios que lhe são prestados trazem benefícios aos povos, e a sua intercessão conduz os homens ao Reino do Céu. A ele confiou Deus a guarda dos seus eleitos, para que ele os conduza à celeste mansão da felicidade. Princeps militiae coelorum, cuius honor praestat beneficia populorum et oratio perducit ad regna coelorum, cui tradidit Deus animas Sanctorum, ut perducat eas in paradisum ersultaionis”.

2— Os Anjos guardas dos templos

S. Nilo, o Grande, escritor dos feitos de S. João Crisóstomo e contemporâneo seu, refere o seguinte fato, que transcrevemos quase que na íntegra.
O admirável e santo bispo João Crisóstomo, luminar da Igreja bizantina, ou melhor, da Igreja, Universal, tinha, por tal forma aguçados os olhos do espírito, que via com freguência e em diversas horas, cheia a sua igreja de anjos do céu, ocupados em guardá-la, principalmente durante incruento sacrifício da Missa. Maravilhado diante de tão consolador espetáculo, narrou-o repleto de alegria, a alguns dos seus amigos íntimos.
“Apenas começa o sacerdote o sacrossanto rito, dizia ele, logo baixam das alturas multidões de espíritos bem-aventurados. Vestem candidíssima roupagem e trazem os pés descalços. Junto do altar eles se dispõem em circulo, e com grande veneração, sossego e silêncio, assistem de fronte inclinada ao tremendo mistério. Chegado o momento da comunhão, cercam reverentes o bispo, os sacerdotes, os diáconos que distribuem fiéis o precioso Corpo e Sangue do Salvador”.
Quis escrever estas coisas, ajunta S. Nilo, para que se veja com que modéstia e com que grande reverência devemos estar nas igrejas, principalmente quando sobre os altares se oferece ao Altíssimo a Hóstia pacífica de propiciação — (11 in epist. CCXCIV. ad Anastasium episc.).
Outro escritor da vida do mesmo santo, Paládio, conta que, condenado o santo doutor ao exílio, não quis partir sem primeiro despedir-se do anjo de sua igreja. “Ao partir de sua diocese, diz ele, disse nos bispos que o acompanhavam: vinde, rezemos, e despeçamo-nos do anjo que preside a igreja”. E ajunta que com o seu bispo partiu o anjo daquela igreja, mal sofrendo a solidão e o abandono da mesma: una cum co egressus est Angelus Ecclesiae, soliludinem Ecelesiae non fe- rens. (Bollandistas, 14 de IX).

3 — Os Anjos, guardas das comunidades

Os anjos, já o dissemos na 1.º parte, conforme doutrinam os santos Padres, fundados na Escritura, estão encarregados não somente da guarda dos indivíduos mas também das cidades, dos reinos e das demais comunidades outras que tais.
Por outra parte os santos, sempre obedientes às inspirações de Deus, nutriam em geral especial devoção, primeiramente ao seu Anjo da Guarda particular, e em segundo lugar ao anjo da comunidade a que pertenciam.
Ilustraremos o que afirmamos, em primeiro lugar, com o exemplo do B. Pedro Fabro, da Companhia de Jesus, zeloso missionário em vários países da Europa. Como se vê, grande era o campo que se lhe abria diante dos olhos. Mas não desanimava o santo, confiado na proteção dos Anjos, invocando-os constantemente, para que tornassem eficazes as suas palavras e frutuosas as suas fadigas.
Certa feita, de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, chegou, depois de atravessar a França, nas fronteiras da Espanha. Que grande campo para o seu zelo, mas que incapacidade a sua para promover a glória divina! Tomado, então, de fervor, pôs-se de joelhos e implorou os anjos tutelares daquele lugar que lhe fossem propícios.
O resultado não se fez esperar. Narra-o Boero na vida desse primeiro e definitivo companheiro S. Inácio.
Também S. Francisco de Sales, exortando a Filoiéa, refere com as seguintes palavras a mesma coisa: “fazei com que vos sejam bem familiares os santos anjos, lembrai-vos com frequência, de sua presença e, de modo especial, amai e obsequiai os anjos da diocese em que morais, os das pessoas com que viveis e mais que a todos honrais o vosso Anjo da Guarda. Dirigi-vos a ele com freguência, invocai-o de quando em quando, e procurai merecer-lhe a ajuda e o socorro todos os vossos misteres quer espirituais quer temporais”. E aduz o exemplo do B. Pedro Fabro:
“O grande Pedro Fabro, assim escreve primeiro pregador, primeiro lente de Teologia santa Companhia do Nome de Jesus, e primeiro companheiro do B. Inácio, seu fundador; voltando da Alemanha, onde levara a cabo grandes empresas para a glória de Nosso Senhor, e passando por esta Diocese, lugar de seu nascimento, citava, que no percorrer muitos dos países dominados pela heresia, haviam recebido grandes favores e consolações, por haver saudado em todas as, paróquias, logo que a elas chegava, os seus anjos tutelares. Estes, como sensivelmente conhece lhe haviam sido propícios já defendendo-o do ódio dos hereges, já lhe conduzindo muitas almas e tornando dóceis aos ensinamentos da eterna salvação. E isto ele narrava com tanta energia que uma nobre matrona, ainda jovem nessa época, o referia com grandíssimo sentimento ainda há qutro anos atrás, ou seja, mais de sessenta anos após o fato” (Introd. à vida dev. p. TI, cap. 16).
Igual era a devoção de S. Francisco Xavier para com os santos anjos em suas empresas apostólicas. S. Francisco, tal como o B, Pedro Fabro, foi dos primeiros companheiros de S. Inácio, e habitou com Fabro um mesmo quarto, quando ambos eram estudantes em Paris. Teve a seu cargo, por uma admirável disposição da Divina Providência, que não vem ao caso mencionar, a evangelização do extremo Oriente, Nesse trabalho, eram os anjos os seus grandes auxiliares, como consta da carta de seu próprio punho, que escreveu aos seus irmãos de Goa, e de que transcrevemos o trecho que se segue:
"Vivo em grande esperança de que Deus me conceda a graça da conversão destes países, porém, em tudo desconfiado de mim mesmo, toda minha confiança está em Jesus Cristo, na S. S. Virgem sua Mãe, e em todos os nove coros dos anjos, dentre os quais escolhi como protetor o príncipe e campeão da Igreja militante, S. Miguel; e não pouco espero nesse arcanjo, a cuja particular solicitude está entregue este grande reino do Japão. Todos os dias me recomendo especialmente a eles, assim como a todos os outros Anjos da Guarda dos japoneses, que têm como oficio rogar a Deus pela sua salvação”. (Bartoli Dell Ásia, 1. TD.

4 — Os Anjos, guardas da inocência

S. Policarpo nasceu cerca do ano 70 da nossa era, foi discípulo do apóstolo S. João, e por foi ele sagrado bispo de Esmirna.
Ainda bem criancinha faltaram-lhe seus pais, e assim se viu a pobre criança sem quem tomasse a seu cargo a sua educação.
Ora bem, sabia-o o seu santo Anjo da Guarda em tal conjuntura e, com o prodígio que vamos narrar, lhe deu o de que necessitava.
Morava na cidade de Esmirna uma piedosa senhora, de nome Calista. Foi ela a escolhida pelo santo Anjo. Apareceu-lhe e lhe disse: “levanta-te e vai à porta chamada de Éfeso, onde verás entrar uma criancinha em companhia de dois homens. Perguntar-lhes-eis se querem vender o rapazito, e eles te dirão que sim. Desembolsarás, então a soma pedida, conduzirás à tua casa o menino, e adotando-o por filho, o educarás com ternal amor na piedade e santo temor de Deus.
Mais que depressa se dirigiu a boa matrona, à dita porta e, encontrando a Policarpo, levou para casa e tratou de educá-lo. Por sua parte respondeu Policarpo a seus maternais cuidados, com o andar dos anos se tornou eminente em sapiência e virtude.
Ora, um dia — Policarpo já era então mocinho — teve Calista que ausentar-se por algum tempo de Esmirna. Ao partir chamou o filho adotivo e lhe confiou a guarda de toda a sua casa: tanto ela o estimava e tanto nele confiava!
O bom rapazinho, que prestara atentos ouvidos a quanto lhe ensinara a sua protetora sobre a caridade para com os pobres, apenas viu em suas mãos tão numerosos bens, começou a distribuir pelos pobres tantas esmolas que em breve acabaram-se o trigo e vinho e óleo, e quanto havia em casa para o sustento da família.
Ora os criados da casa viam tanta generosidade com maus olhos. Por isto, apenas de volta Calista, foram-no acusar perante ela de pródigo e esbanjador dos bens da casa. “Esse moço, disseram-lhe eles, a quem deixaste no governo da casa de preferência aos teus velhos servidores, acabou, de tolo que é, com tudo o que havia!”
Ouvindo isto, Calista chamou Policarpo. Em seguida, com ar carrancudo dirigiu-se à dispensa, e ordenou que lhe abrisse a porta. Queria, por assim dizer, convencer ao delinquente do seu erro no próprio local do delito.
O pobre Policarpo não proferiu palavra. Desceu depressa à dispensa e aí prostrando-se por terra, fez a Deus esta bela oração: “Ó Pai celeste, que por virtude do teu profeta Elias enchestes o vaso de farinha e o odre de óleo da viúva de Sarepta, mandai que o vosso anjo renove em meu favor o mesmo milagre! Peço-o em nome do vosso diletíssimo Filho Jesus Cristo”.
Foi ouvida esta oração. Agradou a Deus tanta fé e simplicidade. Em um instante encheram-se os vasos de óleo e de vinho, e os sacos se encheram de trigo.
Ora, sobreveio Calista, e viu que quanto lhe haviam contado os seus criados tudo era falso.
Indignada ameaçou-os com severos castigos, mas interveio Policarpo: “não te irrites, disse-lhe ele, e nem castigues aos teus servos. Não foi por mal que o fiz, mas a verdade é que tudo eu havia dado aos pobrezinhos que me batiam à porta. Deus portanto, Pai do bendito Senhor Jesus Cristo, serviu-se de mim para saciar os famintos, e ao mesmo tempo tudo te restituiu por ministério do seu santo Anjo, para que possas continuar no teu santo costume de dar esmolas”.
A tais palavras a piedosa Calista mal reprimia as lágrimas, maravilhada pelo que via, e toda possuída de emoção, pois abrigava em sua casa um verdadeiro santo de Deus (Bolandistas, 26 de Jan,).

5 — Os Anjos nos salvam dos perigos do corpo

O exemplo que segue é também tirado da vida de S. Policarpo, não já em sua adolescência, má em sua plena virilidade, quando já eleito à sé episcopal de Esmirna,
Foi em uma de suas viagens apostólicas. Viajava por um deserto lugar, e vindo a noite teve que se acolher ao primeiro albergue que encontrou. Lá por alta madrugada, dormia o Santo despreocupadamente quando ouve que alguém o chama: “Policarpo, Policarpo”, — E o santo bispo: “Quem me quer?...” — E a voz prosseguiu: “Levanta-te e foge depressa, pois dentro em pouco desabará este albergue”.
Logo se pôs de pé o santo, despertou o companheiro, que era um moço chamado Camério, e convidou a levantar-se incontinente, Mas o pobre Camério, cansado e dominado pelo sono disse: “Mas meu santo pai, para que tanta pressa?... Mal entramos no primeiro sono! Se queres ler as escrituras e meditá-las como costumais, bem, meditai-as embora, mas deixai-me dormir a mim...”

Calou-se Policarpo e voltou para o quarto. Mas apenas entrou nele, a mesma voz se fez ouvi igualmente intimando a que se retirasse o mais depressa possível. Desta vez foi o santo com mais resolução a Camério, e ordenou que se levantasse.
Ainda assim disse este, não sem espírito: “enquanto Policarpo estiver dentro desta casa, tenho plena confiança em Deus que ela não cairá”,

“Sim, respondeu o santo, é Deus precisamente que quer que nós nos salvemos. Para isto enviou-me um anjo que nos diz que partamos já daqui”. Não tinha ainda acabado de falar quando lhes aparece o santo anjo e pela terceira vez manda a ambos, que deixem o albergue. Assustado, então, Camério, pulou para fora do leito e antes que S. Policarpo chegasse à porta do albergue já ele estava em plena estrada...
Uma vez ambos na estrada, trataram de afastar-se, poucos passos andados, ouviram o estrondo do albergue que desmoronava. Cheios de reconhecimento ajoelharam-se onde estavam, e Policarpo, levantando os olhos ao céu rendeu graças a Deus com esta devota oração: “Ó Senhor Deus Onipotente, Pai de Jesus Cristo, bendito Filho Vosso, que por meio do grande profeta Jonas predissestes a ruína de Nínive, e concedestes aos seus habitantes de escapar do iminente desastre, com todo o coração vos bendizemos, porque por meio do vosso anjo nos significastes a ruína deste albergue e piedosamente nos salvastes de tão grande perigo” (Bolandistas, ibid.).
Ajuntemos ao que acabamos de narrar o que vem a seguir, que mostra que, assim como o Anjo da Guarda dos indivíduos os salva de perigos pessoais, assim também os anjos tutelares das comunidades as livram das desgraças que as ameaçam.
Foi no ano de 593. Roma gemia em suprema aflição, pois uma terrível pestilência campeava na cidade. Governava a Igreja o santo pontífice Gregório Magno. Para implorar da Misericórdia de Deus quisesse pôr termo a tão temível flagelo, ordenou uma processional romaria, de clero e povo, até a igreja do glorioso apóstolo S. Pedro.
Passava a procissão pela ponte que conduz à Adriana, quando apareceu um anjo ao pontífice, numa atitude que indicava a cessação do flagelo.
Estava precisamente sobre a Adriana, e trazia na mão uma espada que introduzia na sua bainha, Os fatos mostraram que a espada da divina justiça, que se desembainhara sobre o povo, voltara de fato à bainha, pois em breve desapareceu a epidemia (38).
E em memória desta miraculosa aparição tomaram ponte e castelo o nome de santo anjo.
A sua estátua foi aí colocada, por sobre o mausolel do castelo, naquela atitude em que tinha sido visto pelo dito santo pontífice.

(38) Conforme antiga e divulgada tradição, que aliás é seguida por Barônio, Annalos eceles, a Ch, 590, XVIII.

6 — O Anjo da Guarda nos protege contra os perigos da alma

Mais importante é a alma que o corpo. Mais através, portanto, são os perigos daquela que os deste. Livrando-nos os anjos dos perigos do corpo, não podem deixar de nos proteger contra os da alma e de deles nos livrar.
Ora, os males da alma, que são os pecados, dependem em geral da nossa vontade. Por isto o trabalho do santo Anjo é todo interior — são moções e inspirações que nos falam no intimo.

Há casos, entretanto, em que sem culpa nossa nos vemos de súbito no perigo. Então ou o santo anjo nos infunde a coragem e a força necessárias para sairmos ilesos, ou então procura afastar-nos dele de modo mais ou menos manifesto.
Na vida do Cardeal Carlos de Principi Odescalchi encontramos um belo exemplo disto. Carlos Odescalchi nasceu em Roma a 5 de março de 1785, e morreu religioso jesuíta, ai pela metade do século passado, na cidade de Módena. Foi um homem de eminente virtude. De todo desapegado dos bens deste mundo, renunciou primeiramente às riquezas de sua principesca família para fazer-se eclesiástico, e depois ao esplendor da púrpura cardinalícia, e à alta dignidade de Vigário Pontifício, para fazer-se pobre e escondido religioso de S. Inácio de Loiola. O exemplo a que nos referimos é o seguinte.
Dezessete anos apenas, era a idade que então tinha Carlos, e se achava em Viena, de visita os principais e celebres monumentos dessa então imperial cidade. Percorria, pois, museus e pinacotecas à cata de instrução e das elevadas emoções que nos proporcionam as obras de arte, Foi precisamente numa dessas pinacotecas que se deu o que vamos narrando.
Estava para passar de um compartimento do edifício a outro, quando se lhe apresenta um belíssimo jovem e o detém, indicando-lhe a que tome outra direção. Em seguida desapareceu, tal como se se tivesse diluído no ar.
Deteve-se Carlos e tornou atrás, impressionado com o que acabava de acontecer. Encontrou-se, então, com um dos guardas da pinacoteca e lhe perguntou se sabia que é que se expunha em tal sala que se achava em tal parte do edifício... O guarda respondeu que sim. As obras que ali se achavam, eram grandemente obscenas.
Mais tarde contou aos seus íntimos o horror que então sentira pelo perigo que correra e como se lhe enchera o ânimo de reconhecimento pelo santo Anjo da Guarda, que sob forma daquele jovem, dizia ele, lhe havia aparecido.
Cresceu-lhe ainda mais, de então em diante, a devoção para com o seu celeste protetor. Mais freguentemente, de então em diante, implorava a sua ajuda, e sobretudo nas viagens lhe rogava quisesse protegê-lo e livrá-lo de todo perigo de alma e do corpo.

7 — Indústria do Santo Anjo da Guarda para conduzir à fé o seu cliente

Dentre os santos mais ilustres do terceiro século deve-se merecidamente reconhecer a Gregório dito o Taumaturgo, ou seja, operador de prodígios, primeiro bispo de Neo-Cesaréia, no Ponto.
Nascido de pais pagãos, foi instruído na fé por Orígenes, juntamente com seu irmão Atenodoro. E foi precisamente em reconhecimento pela instrução recebida que o santo recitou a seu mestre a conhecida e bela oração panegírica in Originem oratio Prosphon, et paregyr. Nesta, largamente fala do Santo Anjo de Deus destinado à sua guarda, a cuja indústria e cuidado atribui a sua vinda à Cesaréia na Palestina, o ter aí encontrado Orígenes, o ter sido por ele instruído na fé e, finalmente, o tê-la fervorosamente abraçado. Eis, traduzidos do grego, os passos que mais dizem ao nosso intento:

“Remetendo ao divino Verbo o agradecer dignamente ao celeste Pai por sua inefável providência”, diz ele que do agradecimento a Orígenes, ele próprio, Gregório, se incumbia. E ainda não pago com isto, “levantando-se aqueles sublimes espíritos que, invisíveis, têm cuidado dos homens”, volta-se ao mesmo tempo ainda “a aquele que em força de um soberano decreto tomou-me para reger e educar desde criança; a aquele sagrado anjo que, como diz o dileto servo de Deus, me apascenta desde a minha juventude, qui pascit me ab adolescentia mea”.
E, “quanto a nós (prossegue S. Gregório), além do comum Senhor e Governador de todos, que é magni consilit Angelus Anjo do Grande conselho, bem conhecemos e preconizamos ainda ESTE OUTRO ESPECIAL PEDAGOGO NOSSO, quem quer que seja ele a respeito de quem somos nós verdadeiramente crianças e pequeninos. Este sim, que sempre e em tudo se me tem mostrado como meu bom nutrício e tutor; titulo que de certo nem a mim para comigo mesmo, nem a nenhum dos meus parentes ou amigos pode competir, pois todos somos, cegos, nós outros, ainda em coisas as mais óbvias e cotidianas, para escolher o que a nós nos importa; mas compete, sim, aquele sobre-humano ministro, que quanto redunda em vantagem de nossa alma sabe prover. Ora, como tal, até tem ele vindo nutrindo-me, educando, e como que conduzindo pela mão. Mas o que vem cumular os seus favores é de certo o ter-me trazido a travar relações e a tratar com tão digno personagem (Orígenes)...; coisa que, como penso, teve ele em mira desde o começo da minha vida e da minha educação. Mas, longo seria relembrar o como pôde ele trazer-me a estes termos” (Nm4).

E aqui, indicando vicissitudes várias de sua vida, detêm-se Gregório a narrar como, por desejo de sua mãe viúva, se aplicara ao estudo da retórica. “Senão que (continua o santo) aquele meu vigilantíssimo e divino pedagogo e meu verdadeiro tutor, sem que nisso pensassem os meus, e nem, mesmo eu desejasse, oportunamente interveio”.
E como? Inspirando a um seu mestre de língua latina, grande conhecedor, também do direito, que induzisse o seu aluno à aprender dele as leis romanas: já que uma tal disciplina dizia ele, lhe seria de grande ajuda na carreira do foro ou em outra semelhante. Palavras que, ditas pelo seu mestre com intenção bem diversa, se tornaram, como o nota S. Gregório, um verdadeiro vaticínio. Com efeito, a cultura de tais leis pôs a Gregório e a seu irmão Atenodoro na necessidade de se encaminharem à cidade de Berito, em que florescia uma celebre universidade romana de tais estudos.
Ora, Berilo pouco dista de Cesareia da Palestina, onde S. Gregório escreveu estas coisas, e para onde outros cuidados haviam trazido a Orígenes de Alexandria, Egito, levando-os assim a Providência, um ao encontro do outro.
Assim dispostas as coisas para a viagem a Berito, apareceu-lhe um soldado com público transporte para Cesareia, pois um cunhado de Gregório havia sido escolhido para ministro no governo da província e mandara buscar a esposa, irmã de Gregório. Desta forma foi que Gregório e Atenodoro, desviando-se de Berito, fora ter a Cesareia.
Tantas circunstâncias providenciais levaram Gregório a reconhecer em tudo isso a mão do santo Anjo. “A esta complicada história, prossegue Gregório, se ajunta uma outra não complicada, mas mais digna de estima: tratar com este homem (Orígenes), receber dele o verdadeiro conhecimento e fé do Divino Verbo, tratar da própria salvação, eis o destino a que nos levava, a nós, cegos e ignorantes, a nossa viagem a Cesareia. Não foi portanto o soldado que aqui nos trouxe, mas foi esse cortês e divino companheiro, esse bom guia e guarda, que durante toda a nossa vida, como que em longa viagem, nos assiste a guarda de todo perigo.
Foi ele que, guardando-nos de tantos transvios e da própria Berito, a que parecia que nos devíamos dirigir, para cá nos trouxe e aqui nos veio deixar. Não descansou o bom anjo enquanto não nos pôs em mãos daquele que para nós foi autor e fonte de tantos bens”.
Mais não podia fazer o bom Anjo de Deus “A tal homem me confiando, diz o santo doutor, já nada lhe restava a fazer: tinha cumprido com todas as providências e cuidados possíveis”.
E assim, tendo sempre em mente tão insigne favor, torna Gregório ao seu Anjo da Guarda, saúda-o no final do seu discurso, e com sumo afeto o invoca “bondoso guia e fiel companheiro”.

8 — O santo Anjo da Guarda — protetor da virgindade

São as santas Virgens um dos mais belos ornamentos da santa Igreja Católica. Mas ainda mais esplendidamente a adornam as Virgens que ao mesmo tempo que são Virgens são também mártires,
Dentre estas, há algumas de que todo dia se faz menção na santa Missa, a saber: santa Ágata, santa Luzia, santa Inês, e santa Cecília.
Ora, percorrendo as atas de sua santa vida e martírio, vemos que quase todas atribuíam a ilibada candura de sua virgindade em meio aos perigos da vida, à eficaz proteção do seu santo Anjo da Guarda.
“Tenho comigo, dizia a santa virgenzinha Inês o Anjo do Senhor, guarda do meu corpo”. — “Se me condenares ao fogo, assim respondeu S. Ágata ao juiz, os Anjos lhe mitigarão os ardores com o suave orvalho do céu (39)”.

(39) Leem-se estas palavras no Breviário nas festividades destas mesmas santas.

Celebres são também as palavras que ao esposo Valeriano, dirigiu S. Cecília, com ele desposada, Referia-la-emos no decorrer da narrativa que se segue, e que versa sobre S. Cecília, já que na exiguidade deste nosso pequeno trabalho não cabe falar de todas as santas Virgens.
Veio ao mundo Cecília no seio de uma das mais antigas e ilustres famílias romanas, Conta-se, por exemplo, entre os seus antepassados Caia Cecília Tanaquilla que foi a mulher de Targiúnio o Velho. E entre as honras que os seus antepassados obtiveram, basta enumerar as do triunfo e do consulado, várias vezes obtidas, quer sob a república quer sob o regime monárquico imperial.
Cresceu, pois, Cecília, em meio às pompas e às riquezas de tão ilustre casa. Mas se fizera cristã, e vivia para a vida sobrenatural que recebera no batismo, desprezando as miseráveis pompas desta vida mortal. Era assídua na leitura do Sagrado Evangelho, que trazia sempre sobre o coração, e os seus jejuns eram freguentes. Além disto, ocultava debaixo de suas ricas vestes a aspereza de um penoso cilício. (40).
Dela com verdade se pode dizer que seu coração era todo de Jesus. A Ele tinha escolhido por seu celeste esposo, jurando-lhe perpétua virgindade.

(40) Nom dicbus, non hoctibus, a collogutis divinio et orationtbus cessobat. Absconditem semper Bvangelium Christi geralat du pectore. Biduannis ao triduannia feiuniis orans... Caceilia nero subtus ad cornem eiicio induta, desuper auro toxtia vesti dus tegebatur. Acta 8, Caociliae.

Mas pensavam de outra maneira os seus pais.
Ora em suas relações se contava Valeriano, jovem patrício entre os primeiros de Roma, mas pagão. E os pais de Cecília lho destinaram por esposo.
Já despontava o dia da celebração do enlace, já se ornamentavam os ricos salões do palácio, já um coro de profanos músicos fazia retumbar as galerias com dulcíssimas melodias.
Também Cecília cantava. Não, porém, esses cânticos terrenos que enchiam o seu palácio, mas sim as celestes harmonias, e os angélicos louvores da mansão da Glória: “que intacto, Senhor, se conserve o meu corpo, para que sobre mim não caia a confusão” (41).
Como de estilo, terminados os festejos com, que se celebraram as bodas, ficou sozinha Cecília com Valeriano, e assim lhe falou: ótimo e dileto jovem, tenho um segredo a contar-te, e desejo que me jures guardá-lo com inteira fidelidade. Jurou Valeriano, e ela prosseguiu. Sabe, portanto, tenho um Anjo de Deus como amigo meu, e que este Anjo de Deus vela com suma solicitude na guarda do meu corpo. Pois bem, se ele em ti descobrir amor profano, incontinente se encherá de santo zelo, e com severos castigos te punirá.
Mas se te vir amando-me com casto amor também a ti, pressuroso, ele receberá sob a proteção”.

(41) Constantibus organis, Caecilia in cord suo soli Domino decantobat, dicens: fiat cor meum et corpus immaculatum non confundar. — Ibid.

Respondeu Valeriano, sem ocultar a perturbação que lhe ia na alma diante de tal declaração: *Se queres que eu dê crédito às tuas palavras, faze que eu veja esse tal Anjo. E se nele eu reconhecer, verdadeiramente, um Anjo de Deus Altíssimo, farei de boa vontade o que quer que ele se dignar indicar-me”.
“Valeriano, replicou a piedosa donzela, se o que ajuizei merece em ti acolhida, se crês naquele Deus único, que vivo e verdadeiro reina no alto do céu, e se tu aceitas seres lavado naquela água que jorra da fonte da vida, poderás ver o Anjo que sob a sua proteção me tem”.
Acedeu o jovem às palavras de Cecilia e transportou-se às catacumbas, onde encontrou o santo bispo Urbano, (42), e lhe deu a conhecer o fim de sua vinda. Chorou o santo bispo de alegria, “Senhor Jesus Cristo, exclamou em seguida, autor de castos pensamentos, recebe o fruto da divina semente que por ti foi posto no coração de Cecilia. "Ó bom Pastor, Cecília, tua serva, como industriosa ovelhinha, já cumpriu com a parte que confiaste. E eis que este seu esposo, que ela recebeu como um feroz leão, transformou-o a tua ovelhinha em meigo cordeirinho. Não me teria, oh não, não me teria ele procurado se já o lume da vossa fé lhe não brilhasse na mente. Completa agora a tua obra, ó Senhor, e faze com que dê ouvidos às vozes que lhe bradam no intimo da alma, que ele por Criador seu te confesse, e renuncie às loucas superstições do gentilismo."
Enquanto assim orava o bispo, eis que se lhes junta um venerando ancião, trajando vestes cândidas como a neve, e empunhando um livro todo escrito em caracteres de ouro.

(42) Mais verossímil nos parece a opinião segundo a qual a santa virgem Cecilia padeceu o seu martírio não já no governo de Alexandre Severo, mas nos de M. Aurélio e Comodo Imperadores, e que por isto esse Urbano, de que se faz mensão nas Atas da Santa, não teria sido Urbano Papa, mas um bispo de idêntico nome, “arrancado talvez da sua sede episcopal pela violência da perseguição, e refugiado em Roma. O autor das Atas, que certamente escreveu depois do terceiro século e provavelmente já nos fins deste século e começos do seguinte, lendo o nome de Urbano nas primitivas atas do martírio da santa, ajuntou-lhe, por sua própria conta, “quem Papam sum chriatiant nominamt”, erro em que caiu devido à idoneidade do nome. De resto, a mesma leitura das Atas, e especialmente o interrogatório Judicial, indicam suficientemente o erro do seu autor. Ver Tilemont, Hist. Ecel T. III; o Bolandista Sollier, Acta Sanctorum, Mai; GB. de Rossi, Roma soterranen, T. II, Discorso prelimiu. c. 2.

Era Paulo, o Apóstolo das gentes.
Voltando-se para Valeriano lhe disse: “Lê as palavras deste livro e crê; assim merecerás contemplar o Anjo de quem te falou a fidelíssima virgem Cecilia”.
Tomou o livro Valeriano e leu a seguinte passagem: “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, é em todas as coisas e em todos nós”. (43)
Terminando, disse-lhe Paulo: Crês que é assim?
Respondeu-lhe Valeriano: “Sim, nada há mais verdadeiro, nada que deva ser crido mais firmemente”. — Desapareceu então o santo Apóstolo, e Valeriano recebeu, o santo Batismo.

(43) Ephes, IV, 5.

E voltou para casa. Trajava cândidas vestes, símbolo do sacramento de regeneração, que havia recebido. Ao entrar em casa viu Cecilia absorta em oração. Junto dela estava o Anjo de Deus com a face radiante de vivíssimo esplendor e as asas cintilantes de cândida luz. Em suas mãos tinha duas coroas tecidas com rosas e lírios. Uma, colocou-a sobre a fronte de Cecilia e a outra sobre a de Valeriano, E assim lhes falou: “Empenhai-vos por conservar sempre convosco estas coroas que recebestes, Consegui-lo-eis pela pureza de vossos corações e com a santidade dos vossos corpos. Trouxe-as dos amenos jardins do céu. Jamais murcharão estas flores, e sempre exalarão suave odor. Mas a ninguém jamais é dado vê-las sem que primeiro tenha como vós merecido a complacência do céu”,

9— Os santos Anjos: ajuda e conforto dos Mártires

São ilustres testemunho, as atas dos santos Mártires, de quanto sejam eles poderosos e de quanto se empenhem em nos valer com sua poderosa ajuda.
Eram os santos Anjos da Guarda que davam aos santos Mártires aquela valentia com que enfrentavam os tiranos e superavam os tormentos inventados para fazê-los fraquejar.
Citemos, entre muitos, o exemplo de S. Vicente, mártir do século IV, grandemente celebrado por Prudêncio, celebre poeta sacro, assim como por santo Agostinho.
Foi, primeiramente, teatro do seu martírio, a cidade de Saragoça, na Espanha, e em seguida a de Valença, cidade também espanhola.
Os tormentos que teve que enfrentar foram, muitos e de rara fábrica. Foi estirado no ecúleo, descarnado com unhas de ferro, deitado sobre um leito de ferro em brasa e sobre grelhas ardentes, Finalmente, ainda não conseguindo vencer-lhe à constância, mandou Daciano, Governador da província, que lhe metessem os pés naquele desumano instrumento que se chamava nervo e que assim, cruelmente atado, fosse lançado em um escuro cárcere, E não foi tudo. Mandou ainda que se semeasse no chão do cárcere agudos sacos, para que suas pontas sem cessar ferissem os pés e o corpo, já chagado, do santo, para onde quer que ele se voltasse,
Pois bem, em tal leito, qual se fosse um leito de rosas, adormeceu placidamente o invicto mártir.
Mas de súbito um clarão vindo do céu encheu aquela masmorra. Docemente despertado, viu Vicente um esquadrão da milícia celeste, não porém armado de lanças ou envergando pesada armadura, e sim composto todo de amabilíssimos anjos do Senhor.
E com a sua presença tudo se mudou: despedaçaram-se-lhe as cadeias e em flores se lhe transformaram os agudos cacos que atapetavam o chão.
E começaram a falar: “Reconhece, ó Vicente a bondade daquele Senhor, por cujo nome tão forcadamente estás combatendo. Sê, pois, de ânimo, pois dentro em breve deporás esse corpo de morte e te virás ajuntar aos nossos esquadrões". — E entoou um de seus suavíssimos cânticos.
E Vicente, como se já pertencesse aos coros Angélicos se lhes associou para cantar, antegozando o céu, os louvores de Deus.
Naturalmente que nada disso passou despercebido aos soldados que formavam a guarda do cárcere. Puseram-se a espreitar pelas grades, e tudo assistiram: viram a luz que enchia aquela escura prisão, e ouviram os cânticos dos Anjos. Sobretudo pasmaram diante de Vicente que passeava, embevecido e alheiado em Deus, sobre o chão coberto de frescas e cheirosas flores. E quando Vicente, mais tarde, lhes falou cheio de zelo do Senhor à que servia, abraçaram prontamente a fé.
Entretanto obstinava-se Daciano no seu satânico propósito de tentar por todos os meios e com todos os tormentos a apostasia do heroico cristão.
Mandou, pois, que fosse tirado para fora do cárcere e que lhe dessem um leito de brandas penas, Aplicaram-lhe, a mais, remédios sobre as chagas e procuraram restituir-lhes as forças.
Souberam disto os cristãos e de todas as partes acorreram a beijar aquelas chagas, e a recolher em paninhos aquele sangue que dera testemunho de Cristo.
Mas o santo Mártir, a quem os tormentos não haviam dado a morte, apenas colocado sobre aquele macio leito, exalou o espírito e foi pelos anjos levado para o céu.
O seu corpo, que por ordem de Daciano havia sido lançado às feras dos campos, foi igualmente objeto de cuidado por parte dos Anjos. Enquanto não lhe deram os cristãos honrosa sepultura, ficou sob a guarda dos esquadrões angélicos, que ainda o honraram com seus cânticos e hinos. (44)
Duas lições a colher daqui: a da honra que se deve prestar às relíquias dos santos, e a da guarda que os anjos têm não só das nossas almas mas também dos nossos corpos.

10 — As lágrimas dos penitentes são as delícias dos Santos Anjos

Quase não há passo, na vida dos santos monges e anacoretas do deserto, que floresceram no IV e V século, em que não se encontrem exemplos de amorosa solicitude dos santos Anjos.
O exemplo que referiremos é tirado da vida de S. Paulo, cognominado o Simples.
Foi ele um dos principais discípulos do grande S. Antão. E foi tão aproveitado que mereceu, prêmio de sua humildade e sincera obediência, entre outros grandes favores de Deus, o de ver o santo Anjo da Guarda ao lado de cada um dos fiéis que entravam na igreja.
Um dia ele viu entrar um homem de destaque do lugar, e sua comitiva. Eram os seus Anjos, aspecto alegre e festivo. Um, porém, trazia a tristeza estampada no rosto e de longe seguia o seu cliente. Via-se lhe também ao lado o demônio. Ébrio de satânica alegria, travara fortemente seu braço.
Começou, então o santo a derramar copiosas lágrimas e à implorar com altos gemidos a divina misericórdia. E foi ouvido.

(44) Rainart, Acta Martyrum.

Ao sair a comitiva da igreja, viu-o santo festivo e todo alegre aquele anjo que de longe e tristemente, ao entrar, seguia o seu cliente. O demônio, ao invés, o ia seguindo penosamente, a padecer horríveis tormentos.
Aproximou-se-lhe Paulo cheio de alegria e rogou ao moço que quisesse explicar aquela maravilhosa mudança.
“Muitos e graves, disse o outro, são os pecados que cometi. Mas ao entrar na igreja ressoaram-me aos ouvidos estas palavras de Isaías que o coro cantava: “lavai-vos, purificai-vos, tirai-me depressa da vista os males dos vossos corações, cessai de pecar, aprendei a fazer o bem, e as vossas almas se tornarão brancas como a neve”. Fui tocado da graça divina ao ouvir tais palavras. Comecei a bater no peito e a chorar de contrição, e assim rezei: “Benigno Senhor meu, que viestes salvar os pecadores, fazei comigo o que pela boca do profeta Isaías me acabais de dizer. A Vós voltarei arrependido dos meus pecados e firmemente resolvido a observar todos os vossos mandamentos." (45).
Os anjos, portanto, como diz S. Bernardo, gaudent ad poenitentiam peccatoris, isto é, alegram-se com a penitência dos pecadores. Quod si deliciae Angelorum lacrimas meae, quid deliciae?
Se delicias para os Anjos lhes são as minhas lágrimas, que lhes serão as minhas delícias?”
Quem pode dizer que contentamento não proporcionam aos Anjos, as santas aspirações e afogueados afetos dos corações puros e fervorosos?

(45) Vida de S. Paulo o Simples, escrita por Ruffino, n. 18.
O fato que referimos no texto está vulgarizado por Cavalea, Vite diverse, p. III, V. 53.

11 — Bondade dos santos anjos para com os pecadores sinceramente arrependidos

São os santos anjos que movem as almas pecadoras a arrepender-se de seus desvarios e a voltar ao bom caminho. São eles, igualmente, que lhes dão forças para que resistam ao demônio, enfurecido pelo propósito que tomam as almas arrependidas de tornar ao caminho do céu, isto e à obediência aos mandamentos de Deus.
Belo exemplo disto extraímos da vida de santa Margarida de Cortona.
Estava, um dia, rezando pelos pecadores a grande santa — que também havia sido grande pecadora —, quando lhe apareceu Jesus Cristo e lhe disse que o seu divino Coração era sumamente desejoso de sua conversão e que estava pronto a perdoar-lhe. “Também os meus anjos, assim falou o piedosíssimo Redentor, são por mim enviados em sua ajuda, e com freguentes impulsos os incitam a abandonar o pecado e a detestá-lo."
Perguntou-lhe então à santa se esses puríssimos espíritos permaneceram sempre ao lado dos impuros pecadores. Disse-lhe Jesus que sim: que embora eles não façam sentir sempre os efeitos de sua presença, jamais os abandonam, não obstante, os pobres pecadores. E aí ficam para no momento oportuno e por vezes repetidas lhes falar ao coração e convidá-los à penitência.
Ao ouvir tais palavras, chorou amargamente a santa lembrando-se de sua resistência às internas vozes do seu bom Anjo da Guarda, quando ainda se não havia convertido. Mas consolou-a o Anjo, dizendo que de todo já se havia esquecido de suas ingratidões. E para prova do que dizia a cumulou de favores. Ele, igualmente, era quem a dirigia nas vias da santidade, a esclarecia nas dúvidas, defendia-a nas tentações, confortava-a nas angústias.
Um dia achava-se a santa grandemente perturbada e aflita em sua alma. Consolou-a o bondoso Anjo de sua guarda entoando-lhe a Ave Maria. Inútil dizer que se fez sereno o céu de sua alma e fugiram as negras nuvens de tristeza. Mas não foi tudo. Inundou-a de alegria aquelas celestiais modulações de música angélica. E de tal modo foi possuída de célica suavidade que desejou ver-se logo desatada dos laços do corpo para repousar eternamente no seio de Deus e junto de sua Mãe benditíssima. Por isto, perguntou-lhe por quanto tempo ainda teria de ficar nesta terra de exílio e neste vale de lágrimas. Respondeu-lhe o Anjo que bem longe ainda estava o dia de sua morte.
Mas que aproveitasse de seus dias de vida terrestre para semear boas obras, penhor de abundante colheita no céu.
Para tal obter, começou o santo Anjo a dirigi-la em todos os seus atos, em todas as suas operações, para que todas fossem santas.
Uma ocasião, ensinando-lhe a assistir perfeitamente a santa Missa, disse-lhe: “Enquanto tens forças para ficar de joelhos, sem genuflexório e com as mãos juntas ao peito, sempre orarás nesta postura. E se alguma vez te sentires muito enfraquecida, poderás ajudar--te um pouco do apoio do banco. No começo do Sacrifício toma água benta, e faze sobre ti o sinal da Cruz. Reaviva, então, a tua fé, e escuta com atenção a palavra de Deus que se lê durante a Missa. E se quiseres receber cotidianamente o sacrossanto corpo do Filho de Deus, nosso Criador e Senhor, sabe que plena licença Ele te concede. Se de tal forma assistires à santa Missa, experimentarás em ti um grande aumento de fervor e farás rápidos progressos em todo gênero de virtudes.

12 — Lições de sublime santidade dadas pelo Santo Anjo da Guarda.

Estas lições de santidade são a continuação das que lemos no capítulo precedente. São, portanto, também, extraídas da vida da santa penitente, Margarida de Cortona.
“Mostra-me, disse um dia ela ao seu Anjo da Guarda, mostra-me com que sinais podemos conhecer os virtuosos e perfeitos amigos de Deus” — Respondeu-lhe o Anjo: “Os perfeitos amigos de Deus são os que têm o coração inteiramente desapegado das coisas criadas e o têm unido unicamente a Deus, suspirando por Ele, dia e noite, com todo o impeto do seu coração”.
— E quais são, ajuntou a santa, as virtudes que lhe são próprias?
A primeira, replicou o anjo, é uma profunda humildade, à imitação e por amor daquele que se humilhou até à morte na Cruz, A segunda é uma perfeitíssima caridade. Isto posto, amigo de Deus é aquele em que se cumpre a divina palavra, beati mundo corde, bem-aventurados os puros de coração.
É amigo de Deus, continua ainda o Anjo, aquele que nega a si mesmo, ou melhor, que se mata a si mesmo por amor de Cristo, não, porém, com punhais ou semelhantes instrumentos, mas sim por meio da mortificação da própria vontade, e que está pronto a sofrer qualquer pena e mesmo a morte, pelo nome de Cristo, se tal coisa fosse necessária em defesa da fé católica. Mata-se, por “outro lado, por amor de Cristo, aquele que com a penitência mortifica os seus sentidos.
É amigo de Deus aquele que tem verdadeiramente compaixão e se apieda dos pobres e desvalidos, aquele que sempre fala a verdade, aquele cuja pureza de vida transparece na honestidade absoluta dos seus costumes.
É amigo de Deus quem procura por amor de Jesus Cristo ajudar os seus irmãos em seus trabalhos e sofrimentos, tomando-os a si, preferindo que ele mesmo e não o seu próximo sofra penúria de víveres, de vestes e habitação.
É enfim amigo de Deus aquele que se entristece e se aflige com a desgraça alheia, seja embora o desgraçado seu próprio inimigo; e que, sem sombra de inveja, se alegra de coração com a sua prosperidade”.
Belas palavras, sublime lição. Mas não passa, quanto havemos referido, de um estreito resumo das provas de bondade do Anjo de santa Margarida para com ela. Tão frequentes eram as suas aparições, tão benignas as suas palavras, que chegou a duvidar a santa da autenticidade de tais aparições. Não seria, pensava ela, o próprio espírito das trevas transformado em Anjo de luz?....
A mais, pecadora como se julgava, não lhe parecia possível que Jesus, sua Mãe Santíssima e os seus Anjos pudessem comunicar-se com ela tão intimamente.
Incumbiu-se Jesus Cristo de lhe tirar esta dúvida, que era como um espinho, que se lhe atravessava no coração; “Como poderia o demônio disse-lhe Jesus, infundir-te no coração tão pura alegria, ele, que dela e para sempre está privado?
Não tendo em si essa alegria que tu experimentas, tudo faz ele para ta poder roubar” (46).

(46) Da vida da santa, escrita por Fr. Giunta Devogado, seu confessor e citado pelos Bolandistas.

Ah, que a muitos, entretanto, principalmente os jovens inexperientes, rouba o demônio, a paz e alegria do coração! E como amarga então o ter se afastado alguém do serviço de Deus!...
Queira a sua divina Majestade conceder, a todos aqueles que em tal estado se encontram, a graça de se dobrarem humildemente no peso de tal sofrer e de voltarem ao caminho que leva no céu.

13 — Bondade usada pelos Anjos para com as almas inocentes

É bem claro que os Anjos não escapam a regra geral, amamos de preferência e com mais ternura e espontaneidade aos que se nos assemelham.
Uma criatura verdadeiramente angélica, verdadeiro Anjo em carne mortal foi santa Rosa de Lima. E, para glória da nação peruana, foi a primeira flor de santidade que germinou em terras de América Meridional.
Era ainda criança quando resolveu construir uma celazinha para recolher-se em oração, penitência e meditação das coisas celestes. Ora, uma noite, quando orava no seu pequenino oratório, subitamente se viu desamparada de forças, e como a desfalecer.. Obrigada a deixar a cela, que ficava no jardim, correu à casa para junto de sua Mãe. Vendo-a esta, assim pálida e aflita, mandou a criada que fosse imediatamente comprar algum chocolate e que o preparasse para Rosa.
Replicou, entretanto, Rosa que tal ordem não era necessária, pois da casa de uma tal Maria Usátegui, das relações da família, lhe enviariam em breve o alimento que desejava. A mãe julgou que a filha estivesse gracejando. “Não vês, disse-lhe, que ninguém em casa da Usátegui pode saber que tens necessidade de tal alimento? Não estavas em tua celazinha do jardim?... Só se de lá tivesses mandado alguém à casa de nossa amiga... Mas... quem lá mandaste? Portanto, vai, disse ela à criada, e cumpre com a ordem que te dei”. — “Não, Mamãe disse Rosa, rogo-lhe que espere ainda um instante. Não demora a chegar o criado de Maria Usátegui com o meu chocolate”.
Não eram acabadas estas palavras quando chegou o criado.
Diante de tal fato a mãe quis saber de toda a verdade. Quem havia sido mandado à casa dos Usátegui?
Candidamente Rosa explicou: “é o meu Anjo da Guarda, Mãezinha querida, que acaba de me prestar tal serviço. Logo que me senti desfalecente pedi ao meu santo Anjo que fosse a essa casa, é lá dissesse o que comigo se passava, e de que estava eu necessitada. Jamais deixa de conceder me o meu bom Anjo da Guarda o que quer que lhe peça”.
Bem mostra a naturalidade com que se expressou Rosa o quanto lhe era frequente fazer ao seu Anjo e dele receber tais provas de terna e santíssima amizade.
Deu-se um fato semelhante a este pouco tempo depois.
Era costume da Mãe de Rosa ir buscá-la à sua cela do jardim uma hora antes da meia noite, para levá-la ao seu quarto de dormir. Descuidou-se, entretanto, uma noite, e Rosa já lá ia ficando se não fosse o seu santo e bom Anjo da Guarda. Com efeito, vendo este que Rosa alí iria ficar, talvez a noite toda, encarregou-se de fazê-la sair da cela, conduziu-a pelo jardim e a fez entrar em casa, abrindo-lhe as portas que já estavam fechadas a chave. E quando percebeu a Mãe de Rosa o seu esquecimento, já a filhinha, com grande espanto seu, lhe entrava no quarto (47).

(47) Hansen, Vida da Santa, e, 15, m. 201. — Quanto aí fica narrado refere também Clemente X na bula da canonização da santa.

É sempre verdade que a “santa Igreja Católica” é verdadeiramente “santa”. Nenhuma religião teve jamais em seu seio anjos como Rosa de Lima.
E é sempre verdade que os Anjos do céu se comprazem na companhia e no trato dos Anjos da terra.

14 — Uma bela vitória sobre as tentações é premiada pelos Santos Anjos

É S. Tomás de Aquino, sem dúvida, um dos maiores doutores da Igreja. A sua inteligência clara e penetrante, assim como a heroica integridade da virtude da pureza, que lhe perfuma a personalidade, lhe valeram o cognome de Angélico.
A sua mente, desde a mais terna idade preocupou-se com os problemas da vida sobrenatural.
“Mamãe, perguntava ele ainda criancinha, que é Deus?...” — Mais tarde, compreendendo que Deus é o autor da vida, e que só a vida divina é a vida verdadeira, resolveu viver somente para esta vida divina, que nos é dada no batismo, e que nos faz filhos de Deus. Por isto, pensava em fazer-se religioso e em entrar na ordem do glorioso patriarca S. Domingos. Mas assim não pensavam os pais. Tomás era uma inteligência brilhante, e podia ser, no mundo, a grande glória da casa dos Aquinos.
Para dissuadir de uma vez seus pais, escapou, certo dia, da vigilância dos seus, e vestiu o hábito dos dominicanos.
Entretanto, foi malograda a fuga. Seguiram-no os parentes, tiraram-no da paz do convento dominicano e o encerraram no castelo do monte S. Giovanni. Deu-se aqui o fato de que nos ocupamos neste exemplo. Para tentá-lo, e fazê-lo cair em pecado, foi introduzida no castelo uma mulher má, pelos próprios irmãos do santo. São assim os maus: julgam que os bons são bons porque não provam o prazer envenenado do pecado. Infelizes! Incapazes de se deixarem atrair pelos prazeres do espirito, julgam que todo o prazer da vida consiste nas sensualidades da carne!
Mas Tomás de Aquino viu o perigo e recomendou-se fervorosamente ao céu. Ainda afogueado da oração levanta-se de súbito, toma de um tição em brasa e põe em fuga a imprudente mulher. Em seguida traçou com o lição uma cruz na parede e diante dela se prostrou em oração. Duas coisas pediu: uma, que Deus houvesse por bem receber os seus agradecimentos pela força que recebera na tentação, e a segunda que concedesse uma pureza angélica, com que jamais houvesse que temer de lutas futuras.
Diz-se que em sonhos, ou talvez em êxtase foi ouvida esta segunda parte de sua oração, Fosse em sonhos ou em êxtase, o fato é que se soube do seu confessor, depois da morte do santo, que dois anjos lhe apareceram e lhe disseram que eram mandados de Deus para lhe outorgarem o dom da perfeita virgindade, “de que, disseram, Deus te faz agora graça irrevogável”.
Depois de assim falarem tomaram os Anjos de um grosso cordão que consigo traziam e com ele cingiram o santo tão fortemente, à altura dos rins, que este recobrou o uso do sentidos, E de então em diante, diz o mesmo confessor de Tomás, que jamais o santo sentiu em sua carne obstáculo algum para prática da virtude. (48)
Ajuntamos, para utilidade dos nossos jovens leitores, que há uma irmandade, ou sodalício, instituído na Igreja, em memória desse singular privilégio outorgado a S. Tomás.

(48) Tonson, Vida de S. Tomás de Aquino, I cap. XIV.

Chama-se esse sodalício Milícia Angélica, e tem por fim ajudar os fiéis a conservar ou recuperar o precioso dom da castidade: “quo confratres castitatis donum, Deo dante, delicius ineatur, aut consequantur amissum (49).
Assim fazendo, isto é, procurando conservar-se puros de coração, conseguirão os nossos jovens leitores um certo triunfo em seus estudos. Sobretudo os que desejam maiores conhecimentos das coisas espirituais têm na prática da virtude angélica um penhor de consegui-lo, pois é esta aquela ciência de que fala S. Tiago “descendens a Patre luminum, isto é, o Pai das luzes o concede aos puros de coração. À perfeita observância da castidade é que em parte deve, sem dúvida, o nosso santo, aquela agudeza intelectual com que penetrava e resolvia as mais intrincadas questões teologais.

15 — Grandemente despraz, ao Santo Anjo da Guarda, ainda a mínima ofensa a Deus

Houve uma santa que, segundo se lê em sua vida, era assistida não somente de um anjo, como o comum dos mortais, mas também de um arcanjo.
Via-o, a mais, santa Francisca Romana (assim se chama essa santa), a seu lado, resplandecente como o sol e trajando uma veste branca como a neve.
E ao seu Anjo da Guarda ela o via não somente quando estava sozinha ou em oração, mas mesmo em suas ocupações ou quando em companhia de outros (50).

(49) Benedictas XIII in, Bella Pretinus, § III.
(50), Deus quí beatam Franciscom fomulam tuam, inter cae tera pratiae tuae duna, familiari Angeli contuctudine decorasti etc. Assim o Oremus da santa.

Ora, acontecia que em sua presença cometiam pequenas faltas os que com ela conviviam. Via então a santa que esse celeste espírito, como que se corava por tal falta, e voltava o rosto para a outra parte.
E lhe aconteceu, pois “sete vezes cai o justo” que a mesma santa caísse em algumas dessas faltazinhas. Ora, tão pequeninas faltas, cometidas antes por fragilidade que por malícia, eram bastantes para que o Santo Anjo se lhe ocultasse da vista. Por vezes nem a mesma Francisca advertia no momento que havia caído em falta. Mas, deixando o seu Anjo de lhe ser visível, caía em si, e examinando a consciência, detestava a sua falta com vivas lágrimas de compunção. E então mostrara-se-lhe novamente o santo Anjo. Aprendamos daqui a servir a Deus com perfeição, e que nenhuma falta merece desprezo (51).

(51) Da vida de S. Francisca Romana escrita por D. Giovanni Mattioti, que foi Padre Espiritual da santa. Esta vida, de que fazem menção os Bolandistas, foi intimamente tirada de um código inédito dos arquivos da Santa Sé, e publicada sob os cuidados do prof. Mariano Armellini.

Uma outra santa, de que se lê exemplo semelhante, é santa Margarida Maria Alacoque. De maior interesse é o seu exemplo por um duplo motivo; primeiramente porque é mais dos nossos dias, e em segundo lugar porque ela o conta, com suas próprias palavras, na autobiografia que, por ordem do confessor, teve que redigir.
Assim diz: Em meio à tantas tentações — era eu frequentemente confortada pela presença visível do meu fiel Anjo da Guarda, e por ele era muitas vezes repreendida e corrigida. Certa vez, achei que devia falar do matrimônio de uma parente minha.
Fez-me então ver o Anjo da Guarda — que isso era indigno de uma alma religiosa e, repreendendo-me severamente, chegou até a dizer que se esconderia dos meus olhos se eu me metesse ainda em tais intrigas... Não sofria nem ainda a mínima falta de modéstia ou de respeito diante do meu senhor soberano, na presença de quem eu o via prostrado por terra, querendo que eu fizesse outro tanto. O que, o mais frequentemente que podia, também eu fazia”.

Ah, que diante de tais exemplos, deviamos chorar amargamente os grandes pecados cometidos na presença do Santo Anjo, e propor firmemente, com a ajuda de Deus, evitá-los para o futuro.

16 — Com que alegria vai o Santo Anjo da Guarda contando os nossos passos

A inveja, diz a definição do catecismo, é uma tristeza que se sente pelo bem alheio. E, portanto, pecaminosa, baixa, indigna. Da mesma forma, é das almas bem formadas, das almas generosas e dos espíritos superiores o alegrar-se com o bem do próximo. Os que amam o Reino de Deus, sobretudo, alegram-se com o seu progresso, verifique-se ele onde quer que seja, e por meio de quem quer que for.
Os Santos Anjos da Guarda nada têm mais a peito que o progresso do Reino de Deus, pois, como diz S. Paulo “são todos enviados para auxílio daqueles que se destinam à herança da salvação” (Heb.1,14). Por isto, com alegria vai contando as nossas vitórias e todos os passos que damos na demanda do Santo Reino de Deus, que é o Céu.
Conta-se, a propósito, que vivia um monge do deserto tão longe das fontes de água potável, que longa caminhada tinha que fazer todos os dias para fornecer do precioso liquido a sua solitária morada. Cansado, entretanto, de fazer todo dia o mesmo comprido caminho, pensou consigo o que segue. “Ora, por que haverei eu de me dar tanto trabalho para fornecer-me de água, se posso fazer a minha cela à beira da fonte límpida?” Assim pensava com o seu cântaro ao ombro a caminho da cela, e já estava a resolver-se à mudança, quando ouviu alguém, atrás dele, lhe ia contando os passos. Voltou-se, e viu um Anjo, Este lhe contava os passos, porque do número de passos dependia maior glória no céu... Aprendeu a lição. E derrubou a cela no lugar onde até então vivia, para transportá-la para mais longe ainda da fonte. E andou avisado (52).

Lembrem-se deste exemplo os nossos jovens leitores. É longe a igreja, a escola, a congregação? Tanto melhor. Quantos mais passos, tanto maior recompensa no céu e maior progresso na virtude, tanto maior alegria do nosso santo e bom Anjo da Guarda.

(52) Caralea, Volgarizzamento dello vito dei s.s. Padri, Vite diverte, p. III,cap. XI.

17 — Quanto amam os Santos Anjos as boas obras em geral

A confirmar quanto já dissemos sobre o valor, diante de Deus e seus Anjos, das obras de misericórdia, vem o seguinte exemplo, escolhido entre muitos outros semelhantes das vidas dos santos.
Passara um dia o grande apóstolo de Roma, S. Felipe Neri, pelas ruas dessa cidade, quando se lhe apresentou um mendigo, que se lhe prostrou diante, no ato de lhe pedir esmola.
Caridoso como era, não lhe negou o santo as poucas moedas que consigo trazia. Mas o mendigo, em vez de lhas tomar das mãos, recusou-se, e lhe disse sorrindo: “eu queria ver que é que farias...” E, tais palavras ditas, desapareceu.
Compreendeu então o santo quem fôra que se ocultara sob a aparência daquele mendigo, e qual o significado da celeste aparição. Como mais tarde ele próprio o contou a dois sacerdotes, íntimos amigos seus, era aquele mendigo, nem mais nem menos, o seu próprio Anjo da Guarda, que lhe quisera fazer compreender quanto a Deus e seus Anjos é agradável a esmola.
Com isto cresceu de tal forma em S. Felipe a compaixão para com os pobres, que quase se pode dizer que não deixou necessitado em Roma sem o seu socorro. Mas não eram só os pobres envergonhados que mereciam a sua atenção. Muitos jovens pobres dele recebiam dinheiro, roupa e livros. E até aos cárceres chegavam os efeitos de sua caridade.
Em troca, protegiam-no os Anjos com solícita caridade.
Um exemplo que o comprova:
Uma tarde, saindo a procura de pão para uma pobre família, caiu, ao atravessar a via del'Orso, em uma profunda cova, aí aberta para a construção de um novo edifício. Como de costume, apenas se viu vivo dentro daquela cova, chamou pelo seu Anjo da Guarda.
E sentiu-se levar para fora da fossa, são e salvo, seguiu o seu caminho e foi cumprir com a bela obra de caridade que o fizera sair de casa (53).
Também S. João de Deus punha ao serviço dos necessitados as suas forças e haveres. Por isto era, como S. Felipe Neri, grandemente favorecido dos Anjos.
Um dia, saindo de casa em busca de água para o seu hospital, — pois é ele o fundador de uma congregação religiosa para o serviço dos enfermos — aproveitaram os anjos a sua ausência para lhe poupar um grande trabalho. Varreram as salas dos enfermos, arrumaram as camas, lavaram a louça.
Grandemente surpreso no voltar, perguntou S. João aos doentes quem fora a boa alma que tão perfeitamente lhe poupara tanto trabalho. Ainda mais admirados, disseram que nenhum deles havia visto vivalma a trabalhar no hospital, a não ser... o próprio João! Dir-se-ia estarem porfiando por cansar cada qual maior espanto: João nos doentes, e os doentes em João.

(53) Gallonio, Vida de S. Felipe, cap, XV e seg.

Bem sabia S. João que a fonte onde fora era longe, e tinha consciência de não ter arrumado o que quer que fosse. Insistindo, entretanto, os doentes, em sua afirmação, concluiu que tudo isso fora obra do Santo Anjo da Guarda que, disfarçando-se em sua própria pessoa, havia feito com suas santas mãos todo aquele trabalho. Assim falou então: “Na verdade, irmãos meus, tem Deus um grande amor para com os pobres, pois envia os seus próprios Anjos a servi-los”.
Causou este fato grande admiração na cidade de Granada, que foi onde ele se deu, e muitos por esse motivo se foram oferecer ao santo para o serviço daqueles mesmos pobres que haviam sido servidos pelos Anjos.
De outra feita foi o pão que faltou para os pobres. Grandemente penalizado, já não sabia que fazer o santo, quando lhe apareceu o Anjo de Deus com uma grande cesta cheia de pães e lhe disse: “Toma, irmão meu, e leva para os teus pobres. Trago-lo dos mesmos armazéns da divina Providência”. E desapareceu. João e quantos presenciaram o prodígio ficaram pasmados diante de tanta dignacão de caridade e foram inundados de consolação (54).

(54) Vida do Santo, escrita por Francisco do Castro, sacerdote e reitor do hospital de Granada, 1,2, e 3.

De certo admiras-te, jovem leitor. Lembra-te que com isto Deus e seus Anjos te querem inculcar o amor aos pobres. Ama-os, pois representam a pessoa do próprio Cristo. E, na medida do possível, ajuda-os, dedica-se a eles, como fazia o Santo Tobias, e como aconselhava ao filho: “Faze esmola daquilo que tens, e jamais voltes as costas a pobre algum; assim, também jamais a face do Senhor se volverá de nós”.

18 — Amor de Deus e dos seus Anjos pela oração

O exemplo que segue é tirado da vida de S.Isidro, que foi um pobre agricultor das cercanias de Madri. Mas era tão pobre que nem terras tinha para cultivar. Por isto, para sustento seu e de sua filha, teve que trabalhar nas terras de um cidadão de Madri, chamado Juan de Vergas.
Ora, Isidro se habituara a não pegar dos seus instrumentos de trabalho sem primeiro dirigir a Deus as suas orações. Para isso, levantava-se bem cedo, e dirigia-se à igreja, principalmente à de N. Senhora de Arocha, para ouvir a santa Missa e praticar as suas devoções.
E chegada a hora do trabalho, ia-se pontualmente para o campo.
Não faltou, entretanto, quem o acusasse de faltar com o seu dever empregando-se a rezar em vez de trabalhar. “É um rezador, disseram ao patrão de Isidro, e passa a manhã a visitar igrejas...
O patrão, cheio de zelo, resolveu ir no próprio local do trabalho bem cedinho. Pensava que sim não o encontraria, e teria bastas razões para castigá-lo com o merecido castigo. Levantou-se, pois, bem cedinho, e foi ao campo. Mas lá chegando já lá estava Isidro com os seus bois a dirigir o arado. Ficou admirado... — Mas quem seriam os outros dois jovens dos outros arados?
Dirigiu-se depressa ao encontro dos três, mas, só encontrou Isidro. Os outros dois haviam desaparecido. Interrogou-o sobre os seus companheiros de trabalho, mas Isidro lhe respondeu: “Nunca chamei ninguém para me ajudar em meu serviço, a não ser o meu Deus, que sempre invoco, e que sempre prontamente me socorre”.
Maravilhado e compungido voltou Juan para casa, contou o que vira aos seus, e não duvidou em afirmar-lhes que o seu empregado era um santo, e que os Anjos, em prêmio de sua fé e sua piedade, o vinham ajudar no fatigante trabalho do campo (55).

(55) Esse fato é narrado no Breviário, no dia 5 de maio, com estas palavras: Dominus hinos Angelos candida veste, dupliet Boum jugo aranios, mediunque inter ilop Isidorum conspezit.
— Encontra-se mais pormenorizado na vida de S. Isidro escrita por João o Diácono, o que os Bolandistas transcrevem no mesmo dia.

19 — Os devotos da Virgem especialmente amados dos Anjos

Raimundo Nonato, santo que floresceu no século treze, assinalou-se, no par de outras virtudes, por uma terna devoção para com a Rainha do Céu.
“Amaram-no por isto especialmente os Anjos, e lhe dispensaram extraordinários favores.
Entretanto a piedade de Raimundo fez desconfiar ao pai que o filho pensava em fazer-se religioso. Para demovê-lo de tal propósito, resolveu retirá-lo dos estudos que fazia e mandá-lo para uma sua herdade a cuidar de um pequeno rebanho que lá possuía.

Ora, nas proximidades dos pastoreios em que passava os seus dias, havia uma igreja dedicada a S. Nicolau bispo de Mira, e nessa igreja era venerada uma celebre imagem da Augusta Mãe de Deus. Era a consolação de Raimundo. Para lá se dirigia e com a Mãe celeste se desafogava de suas penas.
Um dia em que com maior fervor ele Lhe dirigia as suas orações, ouviu da Virgem Santíssima as seguintes palavras: “Não temas, Raimundo.
Trar-te-ei, doravante. debaixo da minha particular proteção. E quero que a mim, como à tua Mãe celeste, recorras confiante sempre que te vires aflito”.
Depois de ouvir tais palavras não tinha ânimo Raimundo de se apartar de perto de sua boa Mãezinha. Mas, e o rebanho? Quem o haveria de guardar Disso se incumbiu o santo Anjo da Guarda de Raimundo. E, por que? Para que Raimundo pudesse prestar à Virgem o obséquio de suas orações, e entreter-se com Ela em filiais colóquios.
Com efeito, já não podendo um dia reprimir o afeto que o levava para perto de sua Mãe do Céu, resolveu se de caminho para a igreja — de certo inspirado já pelo mesmo santo Anjo que, assim, como que se oferecia a substituí-lo no pastoreio. Viu, pois, de súbito, ao seu lado, o santo Anjo da Guarda, Era amável e todo resplendente de luz.
Reconheceu-o Raimundo e lhe rendeu vivas ações de graça por tão assinalado favor.
Um favor que se recebe com reconhecimento provoca a outro favor. Assim, ainda muitas outras vezes pode Raimundo satisfazer a sua devoção para com Maria Santíssima, graças aos caritativos préstimos do seu Anjo da Guarda.
Tal prodígio tantas vezes repetido não podia passar despercebido. Muitos o testemunharam, inclusive o pai de Raimundo. E diante de tal não houve quem duvidasse de que Deus destinava Aquele jovem pastor a grandes coisas. O pai de Raimundo foi o primeiro a cooperar com a obra de Deus. Tirou-o da guarda dos rebanhos e consentiu que realizasse o que ele dizia ser o seu ardente voto: “consagrar-se inteiramente a Nossa Senhora”, para ser para sempre dela.
Para tal recebeu o hábito de Nossa Senhora das Mercês, e logo foi enviado para as distantes terras da Costa da Barberia.
Sabe Deus que sofreu aí o seu servo pela sua santa fé. Todo empregou-se no resgate dos cristãos prisioneiros e na conversão dos infiéis daquelas paragens. Não havia então, como agora, tantos meios de difundir notícias. Mas foram tais as obras do grande santo que, chegando aos ouvidos de S. S. o papa Gregório IX, quis este honrar a púrpura cardinalícia revestindo dela o santo homem. Fê-lo, pois, cardeal da S. Igreja, com o título de S, Eustáquio.

Não podem deixar de nos escapar à percepção todos os atos da vida sobrenatural deste grande homem. Entretanto, um fato se deu nos últimos tempos da sua vida, que foi conhecido de muitos “como mais um sinal de predileção por parte dos santos Anjos. Foi a sua miraculosa comunhão, recebida por mãos dos Anjos, por não haver quem lha pudesse administrar. A veracidade deste fato, é atestada pelos padres Bolandistas nas suas vidas dos Santos, no dia 31 de agosto.

20 — Os santos Anjos amam as famílias verdadeiramente cristãs.

S. Antonino, que foi elevado à sede episcopal de Florença no ano de 1413, passando um dia pela paróquia de S. Ambrósio, viu, sobre uma pobre casinha de uma pobre rua, um festivo coro de Anjos. Sem trepidar, dirigiu-se à casa para ver quem nela moraria. Entrou, e viu uma pobre viúva com três filhas que descalças e mal vestidas se aplicavam ao trabalho.
Vendo tanto trabalho, e ao mesmo tempo tanta pobreza, exortou-as à confiança em Deus, e lhes prometeu auxílio. De fato deu ordens para que fossem socorridas abundantemente, e assim se fez.
Ora bem, passados tempos, passou o santo pela mesma rua e pela mesma casa, E que viu? Uma miséria ainda maior: sobre a casa tripudiavam demônios. Tomado de horror e de zelo, ainda desta vez atravessou a soleira da porta confiante e livremente, e se viu no meio de suas já, conhecidas ovelhas, Pôs-se a interrogá-las, e descobriu que os subsídios que ele ordenara que lhes trouxessem, lhes havia trazido uma abundância a que não estavam habituadas, e que, abandonando o trabalho e a oração, passavam o tempo em divertimento e passeios mundanos.
Da primeira vez que o santo lá estivera, nada lhes havia narrado do que vira sobre a sua casa.
Mas desta vez contou-lhes ambas as visões, “Vede, disse-lhes, quando em vossa casa reinava o trabalho e a oração, nela se compraziam os santos Anjos, qual se lhes fôra causa de contentamento o “vosso absoluto bem estar. Mas agora que com a ociosidade e a vaidade entrou nesta casa o aborrecimento pela oração, eis que nela se comprazem não os anjos e sim os demônios”. Continuou ainda a repreendê-las severa e paternalmente e acabou exortando-as a que santificassem o domingo com a oração, e os demais dias da semana com o trabalho. E reduziu-lhes a mais estreita medida as costumadas esmolas, (Bol. 2 de maio).

21 — Os santos Anjos ministram a comunhão a um santo e jovem peregrino.

Estanislau Kostka viveu apenas 18 anos e foi um grande santo.
Tinha pouco mais de quinze anos quando se deu o que vamos narrar.
Era polonês, mas cursava então as letras em Viena, e com o irmão Paulo, pouco escrupuloso em religião, hospedara-se em casa de um senhor da seita dos luteranos.
Nesta casa, objeto muitas vezes dos maus tratos do irmão, e cansado talvez por penitências e vigílias, caiu em gravíssima doença, que em breve o levou às portas da morte. Inocente como era, não eram “os medos da fria morte” que lhe davam cuidado. Era-o a iminência de uma morte sem viático. Morrer, sem poder dar um último amplexo no grande companheiro do nosso exílio, o divino Senhor Sacramentado! Pedi-lo a Paulo fôra inútil.
Seria mais fácil ao fanático luterano, dono da casa, permitir que entrasse o próprio demônio em sua residência, do que Jesus sacramentado nas mãos de um sacerdote católico.
Que fazer então? Estanislau voltou-se para o céu. Recorreu a Santa Bárbara de quem havia lido que não deixava morrer os seus devotos sem viático, e foi ouvido!
Uma noite, em que a violência do mal chegava ao auge, veio a ele a santa acompanhada de dois Anjos, um dos quais traz em suas mãos a hóstia consagrada. À tal vista, mandou que o áio se pusesse de joelhos, e ele próprio, fazendo um supremo esforço, ajoelhou-se no leito, três vezes disse o "Domine non sum dignus”, abriu modestamente a boca e, recebendo a sagrada comunhão, todo se recolheu em longos e ferventes colóquios com o seu Bom Jesus do Sacramento.
Não morreu, entretanto, desta enfermidade, Mas nela recebera uma ordem que era preciso executar. Nossa Senhora lhe havia aparecido com o Menino Jesus e lhe havia dito que encontrasse na “Companhia de seu Filho”.
Para tal resolveu fugir de Viena — pois todos os de sua família se opunham à execução de tal desígnio. Trocou, pois as suas vestes de nobre com um pobrezinho que encontrara na estrada, e se pôs a caminho de Augusta, donde foi a Dilinga, e finalmente a Roma.
Ora, durante tal peregrinar, recebeu uma segunda vez a comunhão das mãos dos Anjos. Deu-se isto numa aldeia por onde passara e onde vira a porta aberta e os fiéis a orar. Pensando ser uma igreja católica, entrou, desejando receber a comunhão. Mas percebendo ser o templo da seita dos luteranos, tamanha dor concebeu em seu ânimo, que se desfez em copioso pranto.
Comoveram a caridade dos Anjos tão justas e sentidas lágrimas. Viu-se, pois, de súbito, cercado por estes, trazendo-lhe um deles a comunhão.
Este, pois, aproximando-se, lha depositou nos lábios reverente e docemente. E deixando a Estanislau na companhia do seu dileto Senhor, desapareceram (56).

(56) Bartoli, Vida do Santo, 1, I, c. 5 e 8 — Boero, idem.

22 — O Anjo da Guarda nos assiste na hora da morte

São tantos os exemplos de santos que foram assistidos pelo Anjo da Guarda na hora da morte, que só esta narrativa daria para compor um livro.
Escolhemos entre esses os que seguem:

Estava S. João Gualberto para morrer, quando viu junto a si um jovem de dulcíssimo semblante, que se pôs a servi-lo. Perguntou então aos seus religiosos: “Por que não levastes convosco ao almoço este jovem que aqui está?” — Estes, que não viam o Anjo disseram: “mas de que jovem nos falais, ó pai?”
— “Falo-vos, respondeu o santo, desse belíssimo jovem que com tanto cuidado me está servindo.
Achava-se presente o beato Leto, abade de Passignano. Este tomando a palavra, lhe disse que aquele joyem, visível somente ao santo, era do monte do Senhor, isto é, um Anjo do céu.

A tais palavras Gualberto, também ele iluminado por Deus, compreendeu que aquele não era simplesmente um homem, mas o seu santo Anjo da Guarda que visivelmente se lhe mostrava, para assisti-lo, consolá-lo e conduzir-lhe a alma ao Paraíso (57).

(57) Vida do Santo, escrita pelo b. André, seu discípulo, n. 15.

Santa Margarida de Cortona, a santa penitente de que falamos nos exemplos 11 e 12 também teve, na hora de sua morte, a aparição do Santo Anjo da Guarda. A ocasião desse aparecimento foi a tentação de desconfiança com que o demônio procurava abatê-la nesse extremo momento da vida.
Para confortá-la, pois, apareceu-lhe o Santo Anjo visivelmente. Primeiramente se voltou para a demônio: “Que tens tu a fazer com esta alma, lhe disse, "que o Senhor nosso colocará no côro dos Serafins?” — Não temas, disse em seguida a Margarida, que eu, Guarda da tua alma, que é templo do Senhor, sempre estou contigo.

Digno de memória é o que se conta de S. Felipe Neri. Um dia, querendo mover alguns religiosos, da Congregação dos Clérigos Regulares Ministro dos Enfermos, a que permanecessem fiéis no seu santo instituto, contou-lhes a seguinte visão, com que o havia favorecido Deus Nosso Senhor.
Enquanto, disse-lhes ele, dois dos nossos irmãos assistiam alguns moribundos, vi que lhes estavam ao lado Anjos do Senhor, e esses Anjos lhes sugeriam no ouvido as palavras que deviam fazer repelir nos enfermos, a fim de prepará-los a morrer santamente (59).

Ainda que os santos Anjos não se façam presentes de modo sensível, é certo todavia que jamais deixam de proteger e confortar na luta extrema os seus clientes de toda a vida. Nem se poderia razoavelmente supor o contrário.
O exemplo que segue mostra como então procuram os santos Anjos para os seus clientes a assistência do sacerdote.

Houve em Roma, no ano de 1596, uma grande mortalidade. Uma noite, cerca das vinte e quatro horas, apresentou-se à casa dos Padres Ministros dos Enfermos, de S. Camilo de Lelis, um jovem de dulcíssimo semblante, rogando instantemente fossem mandados dois religiosos a socorrer um moribundo.
Mandaram-nos prontamente. Acompanhou-os solícito qual guia, esse mesmo jovem, mas desapareceu-lhes da vista quando chegaram à casa do doente e lhe abriram a porta.
Era, pois, o dito jovem, segundo se pode conjecturar, o Anjo da Guarda “do moribundo (60).

(59) Vida do auto, de Jerônimo Bernaboe — Bolandistas, 26 de maio, — Nas lições do Breviário, no dia da festa de S. Camilo, diz-se que mais vezes teve S. Felipe a dita visão.
(60) Vida de S. Camilo de Lellis, pelo p. Cieateli.

23 — A devoção dos Santos Anjos instrumento de apostolado nas escolas católicas

“Hoje mais um anjo se foi juntar aos Anjos do Paraíso...” Assim os irmãos de hábito do P. Fernando Jeantier, da Companhia de Jesus, lhe anunciaram a passagem para a eternidade.

Nasceu o P, Jeantier em 1799, na aldeia de Liesle, não longe de Besançon.
Durante o seu longo viver, de 79 anos, todo se empenhara em cultivar em si mesmo e em instilar nos outros a devoção aos santos Anjos.
Foi recompensado nesta vida, na hora da morte. Morreu no dia da aparição de S. Miguel Arcanjo, e, nas orações da agonia, ao pronunciar o sacerdote oficiante as palavras “em nome dos Anjos e Arcanjos, em nome dos Tronos e das Dominações, em nome dos Principados e Potestades, em nome dos Querubins e Serafins”, todo se lhe iluminou o rosto num celeste sorriso. Não puderam os religiosos presentes, que lhe conheciam a vida, reter as lágrimas.
A devoção aos santos Anjos, bebeu-a, por assim dizer, como leite materno. Ao acordar ensinara-lhe à boa mãezinha a dar os bons dias ao bom Anjo da Guarda com a seguinte oracãozinha: “Bom dia, meu bom Anjo; a Jesus, a Maria, a José e a Vós me recomendo; como me guardastes nesta noite, guardai-me também neste dia".
A sua infância foi inocente em todo o rigor do termo. Com vinte anos entrou na Companhia de Jesus, e aí, por quarenta e cinco, se dedicou à formação da juventude. Foi por isto justamente chamado o apóstolo da juventude.
Ora bem, um dos principais instrumentos de que usava para conservar na inocência os jovens e fazê-los crescer na piedade foi precisamente à devoção para com os santos Anjos da Guarda.
Para instilá-la nos seus ânimos aproveitava-se das conversas, das exortações públicas, do tribunal da penitência.
E ainda não contente com isto, empregava na propaganda da sua cara devoção as Congregações Marianas de que foi diretor. Sob a sua perpétua direção estiveram as congregações dos Santos Anjos dos colégios de várias cidades de dentro e de fora da Franca. Exerceu esse cargo em Sant Acheul, Friburgo, Passagio, Turim, Bruxelas e Vannes (61).

(61) Duas são as Congregações que costumam fundar-se nas escolas e colégios frequentados por numerosa juventude: a da SS. Virgem, para os alunos mais adiantados, e a dos Santos Anjos quase que como preparação para a primeira, para os alunos de mais tenra idade.

Numerosos capítulos de sua biografia desenvolvem este único argumento: as pias indústrias de que se valia para infundir nos seus caros jovens o amor dos Santos Anjos. Exporemos, por brevidade, somente as principais.
Pode dizer-se que não havia festa ou prática alguma de devoção, durante o ano, em que ele não introduzisse oportunamente os santos Anjos da Guarda. Motivo para isso eram as festas de Natal, de Páscoa, as novenas e festas de N. Senhora, o mês de Maio, os domingos de S. Luis. Mas de tal modo agia que não só não desviava o sentido da festividade, mas até o corroborava.
Inútil dizer quanto não trabalhava e conseguia nas mesmas festividades dos bem-aventurados Espíritos. Havia, dentre estas, uma de sua invenção. Colocara-a, com delicada atenção pelos Anjos servidores de Jesus, no início da Quaresma, e visava honrar aqueles bem-aventurados Espíritos, que ministraram ao Salvador o alimento de que necessitara, após o seu jejum de quarenta dias no deserto.
Previdente, o seu maior cuidado era conseguir bons pregadores que preparassem os ânimos, dos seus congregados para cada uma dessas festividades. Rogava-lhes que lhes falassem viva e eficazmente: dissessem-lhes do melhor modo possível e com as mais claras explicações e comparações que são os Anjos, descrevessem-lhes as ricas roupagens, o formoso aspecto, a dignidade do porte, e enfim os movessem com acesas palavras a uma sólida, intima, profunda devoção para com eles.
Em seguida era a ornamentação de sua capela o objeto dos seus cuidados. Multiplicava por toda a parte as imagens de Anjos, para que em toda parte, na capela, tivessem os seus jovens diante dos olhos um Anjo de Deus.
E para que os divertimentos do recreio não dissipassem de todo os ânimos, e não fizessem esquecer a grande festividade que se aproximava, colocava nos pátios ou no jardim uma bela estátua do Anjo da Guarda, em cujo pedestal se liam, esculpidas em grandes caracteres, estas palavras: “ao céu!"
Além destas solenidades extraordinárias, havia as práticas comuns de todos os dias. Entre estas tinha lugar principal a Coroa dos Santos Anjos. Constava de várias orações, a maioria em sua honra. Materialmente, tinha a forma de um terço, com uma cruz ou medalha e dezessete grãos em que se recitavam as orações.

Não é fácil imaginar quanto estimava o P. Jeantier essa coroinha. Era-lhe cara como as pupilas dos seus olhos. Concedia-a aos que julgava dignos dela, e, no momento de a entregar, proferia com grande afeto as seguintes palavras: “Recebe, meu filho esta coroa, simbolo do verdadeiro congregado. Ela será a guarda do teu corpo e da tua alma. Por seu meio, graças à intercessão dos teus santos Anjos da Guarda, merecerás um dia conseguir a eterna felicidade do céu”. E, calorosamente, recomendava a sua diária recitação, aconselhava que a tivessem sempre consigo, que dela se valessem como de ajuda em todo perigo.
Quando se encontrava com algum dos seus jovenzinhos: “vamos, dizia-lhes, arrancai da espada, espada de S. Miguel”. E o compreendiam: puxaram do bolso a coroa dos santos Anjos e a mostravam ao padre.
Admirável o seu zelo durante a Missa que celebrava para os Congregados. Rezado o Evangelho, descia a percorrer os bancos. Todos deviam ter em uma das mãos o rosário de N. Senhora, e na outra a Coroa dos Anjos. Não adiantava esconder-se. Aos olhares do bom padre nada escapava. Ai de quem não estivesse de armas em punho! Fixava-se-lhe, severo, o olhar do P. Jeantier, numa muda mas eficaz repreensão: que vergonha! um soldado sem armas!
Nem tanto trabalho e zelo ficava sem abundante e precioso fruto. De tal forma tinha inculcado a devoção ao santo Anjo presente, que já se lhes tornara um pensamento habitual. Não se encontravam com o padre e não lhe entravam no quarto, quando o iam visitar, sem lhe dizer: “Padre, saúdo o bom Anjo de Vossa Reverência”. Estas palavras, proferidas com sumo afeto por parte dos seus jovens discípulos, provocava no padre afeto semelhante. “E eu, meu filho, saúdo também o teu Anjo”. Esta saudação lhes valia, junto do bom padre, o mesmo que, junto daqueles a que se recomendam, valem os títulos honoríficos às pessoas humildes.
O seguinte fato vem a propósito, e é bem expressivo. Certa feita levou o padre os seus congregados de Friburgo a assistirem não sei que peça de teatro. A certo ponto do drama aparece um trovador, que dirige à janela de um prisioneiro as seguintes palavras de conforto: “Coragem, sim, coragem. Aqui estão teus amigos de sempre”. — Ao ouvi-lo, voltaram-se ao P. Jeantier os Congregados e lhe disseram: Aqui estão os nossos amigos, os santos Anjos, no nosso lado, sempre!
— Tornou-se celebre, entre eles, de então em diante, o estribilho, ou melhor, a paródia do estribilho do trovador... — E como o sabiam do agrado do bom padre, não perdiam ocasião aqueles bons jovens de lho repetir ao ouvido. Alguns, trinta anos depois, ainda lho repetiam em suas cartas.
Fruto ainda mais precioso desse intimo sentimento da real presença do Anjo da Guarda era o horror, que nutriam, de toda palavra menos honesta, de toda conversa menos conveniente, numa palavra, de todo e qualquer pecado. — “Se para minha grande desgraça, disse uma vez aos companheiros um aluno do colégio de Friburgo, eu viesse a cair em culpa grave, não permaneceria nesse estado cinco minutos sequer. Iria logo ter com o bom P. Jeantier para confessar-me. Pois é assim que se pode viver em paz, disposto ao que der e vier”.
Juntamente com o horror do pecado inspirava-lhes a devoção dos Anjos a prática das obras mais santas. Tornaram-se amigos da oração, dos santos sacramentos, da obediência, do estudo, e até da própria mortificação, na vitória dos seus caprichozinhos e paixões a desabrochar.
Há um capítulo da vida desse grande homem em que se vê como foi profícua para a vida inteira essa suave devoção aprendida, nos tempos de escola, do seu inesquecível diretor de congregação. E o capitulo: “O P. Jeantier e os seus antigos alunos”. Só um exemplo, entretanto, aduziremos.
Um desses felizes e piedosos jovens foi, pois, retirado do internato de Friburgo e adscrito entre os alunos do Liceu de Lion. Era esse jovem um congregado dos mais fervorosos e dos mais devotos dos santos Anjos. Imagine-se qual não foi a sua perplexidade ao entrar pela vez primeira no dormitório comum do seu novo colégio, onde os atos de piedade eram de todo desconhecidos. Por outra parte não achava que poderia deitar-se sem se ajoelhar ao pé do leito, examinar a consciência e pedir a Deus perdão das faltas cometidas durante o dia — tal como o aprendera de sua mãe e fôra inculcado pelo seu diretor. A mais, como poder conciliar o sono sem ter invocado a Mãe Santíssima e o santo Anjo da Guarda?
Não é que o impedisse o respeito humano, oh, não! Bem sabia o P. Jeantier combatê-lo e fazê-lo vencer. O que o embaraçava era o pensamento de que iria expor tão belo ato de piedade às risotas e zombarias dos colegas. Que fazer?
Resolveu que na manhã seguinte escreveria ao P. Jeantier para dele receber direção. Entretanto não se entregou ao sono sem primeiro ter cumprido com suas devoções e sem ter recitado a coroa dos santos Anjos.
Na manhã seguinte, pois, escreveu ao padre.
E o fez em tão belos e comoventes têrmos que o P. Jeantier, após ter respondido à consulta, houve por bem lê-la aos seus congregados na primeira exortação.

Era esta, a mais, uma das muitas indústrias usada por ele para o bem espiritual dos seus dirigidos. Não havia bom exemplo, de que tivesse conhecimento, que não anotasse para a edificação dos seus congregados.
E os exemplos de proteção especial usada pelos santos Anjos para com os seus discípulos, ainda com maior cuidado era anotado e com maior calor referido. Não era para admirar que as suas exortações deixassem a todos viva e salutarmente impressionados e como que pendentes dos lábios.
É com prazer que oferecemos aos nossos leitores o seguinte trecho de uma de suas calorosas e práticas exortações. “Vede, pois, ó filhos, quem é que tendes todos por companheiros! (e indica um qualquer para quem todos os olhares se voltavam). Perguntai-lhe a quem seja ele devedor da vida e saúde que goza. À coroa dos santos Anjos. Ainda não faz dois dias que, de Mans, para cá para Vannes se dirigia. Mas uma coisa espanto lhe aconteceu em viagem. O trem em que vinha chocou-se com outro, e despenhou-se em um precipício. E sabeis que fez ele em tão grande perigo? — Cheio de confiança apertou em sua mão a coroa, invocou o seu Anjo da Guarda, e ficou são e salvo em meio a inumeráveis mortos e feridos”.

De uma outra exortação sua: “Ah!... não seja outra coisa esta casa, ó filhinhos meus, senão um como templo, em que todos os dias ofereçais à Rainha dos Anjos, e a cada um dos nove coros em que se dividem, um tributo de oração e de reconhecimento”. — Era isto, na verdade, o que ele procurava, como vimos, com todas as suas forças, e o que felizmente, pela bondade de Deus, pôde conseguir (62).

OBSÉQUIOS

INTRODUÇÃO

“Non diligamus verbo neque lingua, sed opere et eritate: Não amemos (diz o grande apóstolo da caridade, S. João) com palavras ou com a língua, mas com obras e em verdade”. — Quem, pois, deseja sinceramente ser devoto dos santos Anjos deve seguir esse conselho de S. João: deve amá-los com obras e em verdade. Pode-se dizer que não há devoção viva onde rareiam os obséquios, que onde eles são numerosos é viva e fecunda e que está moribunda onde eles faltam de todo. E assim é da mesma forma que as plantas, que serão vigorosas, sadias, cheias de vida, à medida que os seus frutos forem mais ou menos abundantes.

(62) (Le Pêre Jeantier ou L'Apótre des petita infants, par le R. P. Xavier Auguste Sojourné de la Compagnie de Jésus, — Poitiers. Oudin Frêres, 1880.

Há pois, como em todas as demais devoções, duas maneiras de obsequiar os Anjos. À primeira maneira é a do obséquio, por assim dizer, direto.
Consiste em lhes fazer orações, cantar-lhes hinos, meditar-lhes os benefícios, ler-lhes ou ouvir-lhes os louvores, visitar-lhes os altares, venerar-lhes as imagens, consiste, enfim, na prática de todos os atos que se dirigem imediatamente a prestar-lhes culto e visam honrar-lhes a excelsitude, a santidade, a glória,
A segunda maneira é a do obséquio indireto.
Consiste na recepção dos sacramentos, na prática da caridade para com os pobres, em jejuns por seu amor, e, para tudo compendiar em uma só palavra, consiste em praticar a virtude com o fim de lhes agradar.
Ora, a devoção que se define, segundo vários autores, umor obsequiorum, abrange uma e outra maneira de obséquios. Mas não se faz mister estar a discorrer longamente sobre isso... Todo o nosso livrinho a isto se dirige, e não poucas vezes sugerimos modos práticos de obsequiar os Santos Anjos. — Duas coisas, entretanto, parece-nos que ainda nos faltam. Iremo-las expondo nos dois capítulos que seguem.

Capítulo I
DEVOTAS PRÁTICAS EM HONRA DOS SANTOS ANJOS DA GUARDA

Em três classes se podem distribuir as práticas de devoção para com os Anjos: práticas cotidianas, práticas semanais e práticas anuais.

Apresentaremos aos nossos jovens as práticas de cada uma dessas classes, procurando, na sua escolha, atender à condição daqueles a quem dedicamos a nossa obrinha.
1 — Rezar de manhã e à noite o “Santo Anjo do Senhor”.
Costumam os Congregados de Nossa Senhora implorar-lhe de manhã e à noite a sua celeste proteção com a recitação de três Ave Marias. É um costume verdadeiramente pio e salutar. Nunca será demais louvá-lo e inculcá-lo. (63).

(63) Essa flor de inocência a de pureza, de que já falamos acima, é que se chamou Estanislau Kostka, vivia em Roma no noviciado de S. Audré, quando adotou o Seguinte costume, de muitos depois igualmente adotado: de manhã, logo ao despertar, e à noite antes do deitar, voltava-se para a Basílica do S. Maria Maior e inclinando-e à bentíssima Mãe de Deus, pedia lhe que o abençoasse. — Ver Bartoli, Vida do Santo.

Mas, dize-me, ó filho meu, não te parece justo que depois de ter invocado Aquela que qual Mãe te foi dada por Jesus na cruz, invoques também Aquele que Jesus te deu por guarda desde o primeiro instante da tua existência?
Nenhuma oração me parece mais indicada para isto que a que acima mencionamos, e que reproduzimos abaixo:
Anjo de Deus, que sois a minha guarda, e a quem fui confiado por celestial piedade, iluminai-me, guardai-me, dirigi-me e governai-me. Amém.

É uma curta oração, mas rica de sentido e de beleza, e assaz querida dos Santos, S, Luís de Gonzaga, p. exemplo, assim se refere a esta oração em um escrito do seu próprio punho: (65) “Recomendar-te-ás ao teu Anjo da Guarda três vezes por dia de modo especial. De manhã com o “Anjo de Deus”, à noite com a mesma oração, assim como também de dia, quando fores visitar os altares da igreja”.

(65) Cepari, Vida de S. Luís, p. II, c. 8 — O venerável servo do Deus José Benedito Cottolengo, tio conhecido pela Piecola Casa della Divina Providenza, por ele fundada em Turim, recomendava grandemente aos seus abrigados a devoção dos Santos Anjos, Juntamente com outras práticas, prescreveu também a seguinte, que todos deviam prestar antes de deitar-se: rezar teto vezes 'o “Anjo do Deus que sois a minha guarda”, com os braços em cruz, para que a santo Anjo da Guarda lhes assistisse durante a noite e para que depressa os fizesse levantar de manhã. — Guestaldi, Vida do V. Cottolengo, 1. V. c. 18.

S. Luís é o teu especial patrono, pois o é da juventude em geral. Deves, portanto, imitá-lo. Recitarás, como ele, de manhã e à noite a tua oração ao Anjo da Guarda. E, para imitá-lo ainda melhor, recita-o também todas as vezes que fores à igreja ou em visita ao S.S. Sacramento, ou para assistir a Missa, ou para confessar ou para comungar. O bom Anjo não se fará de rogado, e prontamente te virá em auxílio para te ajudar a cumprir exatamente com esses grandes atos de nossa santa religião.
Sabes, além disso, que ganharás 100 dias de indulgência todas as vezes que, ao menos com coração contrito disseres essa oração, conforme foi concedido pelo sumo pontífice, o papa Pio VI, em Breve do dia 2 de outubro de 1795. — E se todos os dias a recitares, ganharás indulgência plenária no dia da festa dos santos Anjos, a dois de outubro, se também nesse dia a recitares e fizeres visita a qualquer igreja ou público oratório, para rezar pelas intenções do sumo pontífice.
A mais, esta indulgência plenária pode ser ganha “In artículo mortis” por quem para ela esteja disposto e haja recitado a oração com frequência durante a vida.
Mais ainda. O santo padre Pio VII concedeu tal indulgência, plenária, a ser ganha mensalmente, num dia à sua escolha, por quem a haja recitado todos os dias e visitar a igreja e nela rezar como se disse acima. (66).

(66). V. Raecota di orazioi e pio opere, ece. Roma, ediz. 1898, p. 386.
 

2— A 2º feira consagrada aos Santos Anjos.

Uma outra prática dos congregados de Maria a de lhe oferecer todos os sábados algum obséquio especial. (67).

(67) Para aduzir um exemplo, S, João Berelimans conhecido pela sua terna devoção para com a SS. Virgem, tinha   por costume jejuar em todos os sábados e nas vigílias das festas de Maria Santíssima. Cepari, vida do santo P. II, § 20.

Outro tanto costumam fazer todas as segundas feiras os devotos dos Santos Anjos.
Em sua honra alguns ouvem devotamente a Santa Missa, outros fazem uma obra de caridade qualquer, outros alguma mortificação, ou ainda, recomendam-se com mais fervorosas orações ao seu poderoso amparo.
Poderás imitar aos que assim fazem, marcando, logo após o “Anjo de Deus” da manhã a espécie de obséquio a oferecer-lhe: “hoje (assim podereis dizer a vós mesmos) honrarei o meu bom Anjo invocando-o o mais frequentemente que puder, sendo obediente aos meus pais, aplicando-me ao estudo, — e assim por diante.
Também esta bela prática está apoiada nos exemplos dos santos e por eles ilustrada.
O B. Pedro Fabro, por exemplo, deixou-nos em seu memorial ou diário espiritual o que segue (2): “Toda segunda feira tenho por hábito fazer memória dos Anjos bons. Mas assim como é bom ter devoção para com os Anjos bons e invocá-los, assim também é proveitoso pedir nesse dia o auxilio de Deus e dos mesmos Anjos contra os espíritos malignos, que por tantas formas tentam enganar-nos e perder-nos”.
Enfim é a nossa própria mãe espiritual, a santa Igreja, quem tal nos sugere, quando designa a segunda feira para o culto dos Santos Anjos, podendo nesse dia, os sacerdotes celebrar a sua Missa e rezar o seu Ofício.

3 — O dia dois de outubro, festa dos Santos Anjos da Guarda.

Fora da festa de S. Miguel Arcanjo, comum a todos os Anjos, não celebrava a Igreja antigamente nenhuma festa especial em honra do Santo Anjo da Guarda.
Isto começou a fazer-se mais tarde, e em algumas igrejas particulares.
Este piedoso costume, entretanto, dos fiéis, foi mais tarde aprovado por Paulo V, quando concedeu ao clero regular e secular a celebração da Festa dos Anjos da Guarda no primeiro dia livre depois de 29 de setembro (festa de S. Miguel). Em seguida a sagrada Congregação dos Ritos fixou-lhe um dia o dia dois do mês de outubro e isto a celebrar-se em toda a Igreja. Finalmente Leão XII elevou tal festa a rito duplo maior.
Ora, se em todos os dias do ano devemos venerar e honrar os santos Anjos, é justo o façamos “especialmente ao transcorrer a data da sua festa oficial. Antes de mais nada é aconselhável que nos preparemos com uma novena, a começar a 23 de setembro, Nesta, duas coisas deves considerar principalmente todos os dias: os benefícios que recebemos dos Anjos e a gratidão que lhes devemos.
Para isto, muitos são os livros que tratam dos santos Anjos. Não se tendo outro à mão, a tal efeito são dirigidas as considerações da 1º parte desta obrinha, devendo se lhes seguir a leitura dos exemplos da II parte. Ajunte-se a mais, a isso, os obséquios já indicados: oração, penitência, esmola, etc.
Tenha-se presente que dentre todos os obséquios o mais agradável. Aos Anjos é o de uma fervorosa comunhão no dia de sua festa, se não puder ser na novena. Também no primeiro domingo depois da festa pode este obséquio ser oferecido aos Anjos — caso haja impedimento no dia da festa.
Nesta novena, em que se recitarão orações aprovadas pela autoridade eclesiástica, se podem ganhar todos os dias 100 dias de indulgência, e indulgência plenária num dos nove dias da mesma, ou num dos oito dias que a seguem, se verdadeiramente arrependido, confessado e comungado, se rezar pela Igreja e pelo Sumo Pontífice. (68).

(68). Raceolto, p. 387.

4 — As outras festas dos Santos Anjos.

— O mês de outubro — O dia aniversário do próprio nascimento.

Três outras práticas ainda ocorrem que soem praticar os devotos dos Santos Anjos, e que merecem ser apresentadas à piedade dos nossos caros jovens. Indico-as aqui sucintamente.
A primeira consiste em celebrar com algum especial obséquio as demais festas dos Anjos, que são, a de S. Miguel Arcanjo a 8 de maio e 29 de setembro, a de S. Gabriel a 18 de março, e a de S. Rafael a 24 de outubro. — E saibam os, devotos dos Anjos que as mesmas indulgências da novena da festa dos Anjos da Guarda se podem ganhar nas novenas destas quatro festividades.

A segunda consiste em consagrar todo o mês de outubro aos Anjos da Guarda, da mesma forma que se consagra a N. Senhora o mês de maio.

A terceira, enfim, consiste em lembrar-nos de modo especial, do Santo Anjo da Guarda, no dia do nosso aniversário. E a razão é que esse dia, conforme comum opinião dos teólogos, é também aniversário de um grande ato de caridade do nosso Santo Anjo da Guarda: foi nesse dia que ele começou a exercer junto de nós a sua individual proteção (69). Assim fazendo, mereceremos do santo Anjo uma especial ajuda no último dia da nossa vida.

(69) V. S. Tomãs I p, q. CXIII a 5 ad 3. Aí ensina, como doutrina provável, que a criança, enquanto no seio materno, tem por Anjo da Guarda o mesmo Anjo de sua mãe. E aduz as palavras de S. Jerônimo já por nós citadas: “Magna dignitas animarum, ut unaguaeque habeat ob ortu nativitatia Angetum sibi deputatum”.

Capítulo II

Devotas orações em honra dos santos Anjos da Guarda

A oração já cilada “Anjo de Deus, que sois a minha guarda...” merece mais que qualquer outra ser recomendada. Não obstante, coisa útil e grata, de certo, nos meus leitores, será conhecer as principais orações em honra dos santos Anjos, para recitá-las em suas festividades.

1 - Oração de S. Anselmo, Arcebispo de Cantuária ao Anjo da Guarda.

Ó Espírito angélico, a cujos próvidos cuidados entregou-me Deus Nosso Senhor, rogo-vos que, sempre queirais guardar-me e proteger-me, assistir e defender de todo assalto do demônio, quer eu esteja acordado, quer dormindo. Oh sim, assisti-me noite e dia, a toda e a todo momento, sede sempre ao meu lado onde quer que eu me ache.
Afastai para longe de mim todas as tentações de satanás, e, do misericordiosíssimo Juiz e Senhor Nosso, que vos constituiu meu guarda e a vós me confiou, obtende-me por vossa intercessão a graça, que de todo desmerecem os meus atos, de permanecer imune de toda culpa em minha vida. E se por infelicidade eu me encaminhasse para a estrada do vício, fazei por reconduzir-me pela senda da virtude ao meu divino Redentor. Quando me virdes oprimido pelo peso das angústias, fazei-me experimentar a ajuda de Deus Onipotente. Peço-vos também, que me descubrais, se isto pode ser, o termo dos meus dias, e que não permitais que a minha alma, quando se desprender do corpo, seja aterrorizada pelos espíritos malignos, ou venha a ser objeto de escárnio para eles, ou deles seja presa desesperada. Não, não me abandoneis jamais, até que me tenhais conduzido ao céu, para gozar da vista do meu Criador, e ser eternamente feliz em companhia de todos os santos. Tal felicidade me seja dado atingir, mediante a vossa assistência e os merecimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo. (70).

(70) Oratio LXII ad Augelum Custodem, Migne, Patrol, 1st. tom. CLVIII, p. 967.

2— Oração de S. Sofrônio, Patriarca de Jerusalém

É a vossa benignidade que rogo e imploro, ó bons e imaculados Anjos e Arcanjos. A vosso poder recorro, ó intemeratos Espíritos! Obtende-me que pura seja a minha vida, inabalável a minha esperança, ilibados os meus costumes, perfeito e livre de toda ofensa o meu amor para com Deus e para com o próximo. Ah! tomai-me pela mão, conduzi-me, guiai-me por aqueles caminhos que são aceitos a Deus e salutares a mim.

3 — Protesto de S. Carlos Borromeu, ao santo Anjo da Guarda, em preparação para a morte.

Em nome da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, eu, infeliz e miserável pecador, protesto em vossa presença, ó Anjo Santo de Deus, que quero absolutamente morrer na Igreja Católica, Apostólica e Romana, em que morreram todos os santos, que até agora existiram, e fora da qual não há salvação, Assisti-me na hora da morte e fazei-me vencer o demônio, inimigo meu e vosso.
Protesto ainda, ó santo Anjo, que estou sob a vossa guarda e proteção: que quero partir desta vida com grande confianca em vosso socorro, e com firme esperança na misericórdia do meu Deus.
Desbaratai naquele último momento os inimigos da minha salvação, recebei a minha alma quando ela se separar do meu corpo, e depois da minha morte fazei que me seja propício Jesus Cristo meu Salvador.

Protesto igualmente, ó santíssimo protetor meu, que com o mais vivo afeto desejo participar dos merecimentos de Jesus Cristo Nosso Senhor, e que espero obter a remissão dos meus pecados, por virtude de sua morte e paixão. Detesto quanto cometi de mal em pensamentos, como em obras e como em palavras. À todos os meus inimigos perdoo, e quero morrer no amplexo da santa Cruz, para mostrar que ponho toda a minha esperança ma paixão do Salvador.
Protesto outrossim, ó amigo meu fidelíssimo, que me abandono aos vossos cuidados e afetuosa caridade no grande passo da minha morte, e que, embora seja verdade que desejo ir logo para o céu, estou entretanto pronto, para apagar com o sofrimento a enormidade dos meus pecados, estou pronto, digo, para suportar qualquer gênero de castigo que a divina justiça achar bem impor-me, ainda que fossem as mais atrozes penas do Purgatório. Assim, também estou pronto para abandonar os meus parentes, os meus amigos, o meu mesmo corpo e tudo aquilo que tenho de mais caro, a fim de mais depressa poder ir gozar de presença do meu Deus, e de testificar-lhe o quanto me pesa de o haver ofendido.

Protesto finalmente, ó Anjo sapientíssimo e vigilantíssimo guarda de minha alma, que vos constituo procurador da minha última vontade e executor deste meu ato testamentário. Dizei a Jesus meu Salvador, no momento da minha morte, o que eu talvez já não poderei dizer, e é que creio tudo aquilo que crê a Santa Igreja, que detesto os meus pecados, porque lhe desagradam, que todos os deposito no seu misericordiosíssimo Coração, e que de sua infinita bondade espero perdão para eles: que de boa vontade morro porque assim Ele o quer, e abandono minha alma e minha salvação em suas mãos: que o amo sobre todas as criaturas e por toda a eternidade o quero amar, Amém, (71).

(71) O P. Grassot traz este protesto no seu Tratado dos Santos Anjos, p. 4, devoc. 32, — Outros autores ainda a trazem, homeadamente "o p. Guilherme Nakateai no Caeleste Palmetum.

4 — Oração de S. Luis de Gonzaga.

Ó Santos e puros Anjos, ó vós verdadeiramente bem-aventurados, que de continuo assistis na divina presença, e que com tão grande júbilo estais contemplando a face daquele celeste Salomão, por quem fostes cumulado de tanta sabedoria, feitos dignos de tanta glória e ornados de tantas prerrogativas: vós brilhantes estrelas, que com tal felicidade resplendeis nesse bem-aventurado céu empíreo, infundi eu vos peço, em minha alma, os vossos bem-aventurados influxos, conservai sem mácula a minha vida, firme a minha esperança, os meus costumes sem culpa, inteiro o meu amor para com Deus e para com o próximo.

Rogo-vos, Anjos bem-aventurados, que com vossa ajuda vos digneis conduzir-me como pela mão, pela estrada real da humildade, por que vós primeiro caminhastes, para que depois desta vida eu mereça ver juntamente convosco a bem-aventurada face do Pai Eterno, e ser contado em vosso número também, no lugar de uma daquelas estrelas, que por sua soberba caíram do céu. (72).

(72) Meditações dos santos Anjos, e particularmente dos Anjos da Guarda, P. 7, ponto 4 — Esta meditação se acha entre as do p. Vicente Bruno; e é, como testifica o p. Copari no vida de S. Luís (p. 1 cap VITI), toda da composição do mesmo S. Luis. Não foi sem particular intenção que o P. Vicente Bruno encarregou ao santo de compô-la, pois sabia a particular devoção que S. Luís nutria para com os santos Anjos, de cuja conduta era ele um êmulo sem igual.

5— Orações de S. Afonso Maria de Ligório

I— Ó Santo Anjo da minha Guarda, quantas vezes com os meus pecados não vos obriguei a cobrir a face! Rogo-vos que mo escuseis, e que deles me impetreis o perdão junto a Deus, enquanto da minha parte proponho jamais desgostar a Deus ou a vós com as minhas faltas. “Anjo de Deus, que sois...

II — Ó quanto vos agradeço, ó Anjo da minha Guarda, das luzes que me haveis comunicado! Quem me dera vos houvesse sempre obedecido! Ai, continuai a iluminar-me, repreendei-me em minhas quedas, e não me abandoneis até o último momento de minha vida. Anjo de Deus...

III — Agradeço-vos, ó príncipe do Paraíso, Anjo meu, pois por tantos anos assististes junto de mim! Tenho-me esquecido de vós, mas não vos esquecestes de mim. Quem sabe quanto me resta de viagem para entrar na eternidade. Ah, Anjo da minha guarda, guiai-me vós pelo caminho do céu, e não deixeis de me assistir, enquanto não me virdes eterno companheiro vosso no Reino bem-aventurado. Anjo de Deus... (73).

(73) Da meditação para a festa dos santos Anjos da Guarda.

6 — Oração de S. Pedro Canísio.

A vossa tutela me recomendo, ó santo Anjo, pois à vossa guarda me confiou a divina bondade.
Sou cego, guiai-me; sou ignorante, instruí-me; sou fraco confortai-me; sou pequenino, protegei-me; sou um caminhante extraviado, reconduzi-me à estrada real; sou preguiçoso, excitai-me; sou tardo, estimulai-me a progredir no bem. E sobretudo fazei que aquela extrema e perigosa luta, que eu terei que sustentar com os demônios em minha morte, tenha termo feliz, para que, passando a ser companheiro vosso no céu, possa cantar alegremente o hino da vitória: “laqueus contritus est nos liberati sumus: rompeu-se-nos o laço e livres dali nos fomos” (74).

(74) Apud P. De la Cerda, de excell, encl. Spirituum, In primis de Angeli Custodia ministério, cap. ult. orat, 5.

7 — Oração de S. João Berchmans.

Anjo santo, amado de Deus, que por divina disposição tendo-me tomado sob a vossa bem-aventurada guarda desde o primeiro instante da minha vida, jamais cessais de defender-me, de iluminar-me, de reger-me; venero-vos como padroeiro, amo-vos como guarda, submeto-me à vossa direção, e todo me dou a vós para ser por vós governado. Peço-vos portanto e vos suplico pelo amor de Jesus Cristo, que por mais que eu tenha sido ingrato para convosco e surdo a vossos avisos, não me queirais por isso abandonar; mas que vos digneis reconduzir-me ao reto caminho, quando transviado, ensinar-me na ignorância, levantar-me quando caído, consolar-me quando aflito, sustentar-me no perigo, até que me introduzais no céu a gozar convosco uma eterna felicidade. Assim seja (75).

(75) Cepori, Vida de S, J, Berchmaus, p. V. O p. Pasquale de Mattel no seu belo livrinho sobre a devoção dos S.S. Anjos da Guarda também traz esta oração.

8 — Súplicas ao Santo Anjo da Guarda.

I — Ó meu bom Anjo da Guarda, ajudai-me a agradecer ao Altíssimo, por se ter dignado de vos destinar à minha guarda. “Anjo de Deus...”

II — Ó Príncipe celeste, dignai-vos impetrar-me o perdão de todos os desgostos, que dei a vós e a Deus, desprezando as vossas ameaças e os vossos conselhos. “Anjo de Deus..."

III — Ó amável protetor meu, imprimi em minha alma um profundo respeito por vos, de modo que jamais tenha o atrevimento de fazer coisa que, vos desagrade. “Anjo de Deus..."

IV — Ó piedoso médico de minha alma, ensinai-me os remédios e dai-me ajuda para curar-me dos meus maus hábitos e de tantas misérias que me oprimem a alma. “Anjo de Deus..."

V — Ó Guia fiel, impetrai-me força para superar todos os obstáculos que se encontram no caminho da virtude, e para sofrer com verdadeira paciência as tribulações desta miserável vida. “Anjo de Deus..."

VI — Ó eficaz intercessor meu diante de Deus, “obtende-me a graça de obedecer prontamente às vossas santas inspirações, de conformar a minha vontade em tudo e para sempre à santíssima vontade de Deus. “Anjo de Deus”...

VII — Ó puríssimo espírito todo aceso em chamas de amor de Deus, impetrai-me este fogo divino, e juntamente uma verdadeira devoção à vossa augusta Rainha e minha boa Mãe, Maria. “Anjo de Deus...”

VIII — Ó invencível protetor meu, assisti-me para corresponder dignamente ao vosso amor e aos vossos benefícios, e para empenhar-me com todas as minhas forças a promover o vosso culto. “Anjo de Deus..."

IX — Ó bem-aventurado Ministro do Altíssimo, obtende-me de sua infinita misericórdia, que eu chegue a preencher um dos lugares deixados vazios no céu pelos Anjos rebeldes. “Anjo de Deus”...

9 — Jaculatória em honra de S. Miguel Arcanjo.
Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio, ut non pereamus in tremendo judício. (76)

(76) Indulgência de 100 dias. Rac. p. 383.

10 — Oração em honra de S. Miguel Arcanjo composta por S.S. o Papa Leão XIII, e por sua ordem recitada depois da Missa.

Sancte Michael Archangele, defende nos im praelio: contra nequitiam et insídias diaboli esto praesidium. — Imperet illi Deus, supplices deprecamur: tuque, Princcps Militiac caelestis, Satanam aliosque spiritus malignos qui ad perditionem animarum pervagantur in mundo, divina virtute in infernum detrude.

11 — Hino enriquecido de indulgência, em honra de S. Miguel Arcanjo. (77).

(77), Pio VII, com rescrito da Congregação das Indulgências, 6 do maio do 1817, concedeu 200 dias do indulgência uma vez ao dia a todos os fieis que com o coração no menos contrito recitarem devotamente o hino Te splendor com a antífona e a oração em honra de S. Miguel Arcanjo; e aqueles que todo dia, por todo um mês, o tiverem recitado, concedeu indulgência plenparia, em um dia à escolha, contanto que nesse dia, tendo confessado e comungado, rezem pelas intenções do Sumo Pontífice, Rac, p. 373.

Te splendor et virtus Patris,

Te vita Jesu cordium,

Ab ore qui pendent tuo

Laudamus inter Angelos.

Tibi mille densa millium

Ducum corona militat:

Sed explicat victor

Crucem Michael Salutis signifer.

Draconis hie dirum caput

Im ima pellit tártara

Ducemque cum rebellibus

Caclesti ab arce fulminat.

Contra ducem superbiae

Sequamur hunc nos Principem,

Ut detur ex Agni throno

Nobis corona gloriae.

Patri simulque Filio,

Tibi sancte Spiritus,

Sicut fuit, sit iugiter

Saeclum per omne gloria. Amen.

Antiph. — Princeps gloriosissime Michael Archangele, esto memor nostri, hic et ubique semper deprecare pro nobis Filium Dei.
V. In conspectu Angelorum psallam tibi, Deus meus.
R. Adorabo ad templum sanctum tuum et confitebor nomini tuo.
Oremus
Deus qui miro ordine Angelorum ministeria hominumque dispensas concede propitius, ut a quibus tibi ministrantibus in caelo semper assistitur, ab his in terra vita nostra muniatur. Per Christum Dominum Nostrum. Amen.

12 — Hino em honra dos santos Anjos da Guarda.

Custodes hominum psallimus Angelos, Naturae fragili quos Pater addidit Caelestis comites, insidiantibus
Ne sucumberet hostibus.
Nam quod corruerit proditor angelus, Concessis merito pulsus honoribus, Ardens invidia pellere nititur
Quos caelo Deus advocat.
Huc custos igitur pervigil adyola Avertens patria de tibi credita
Tam morhos animi, quam requiescere Quidquid non sinit incolas.
Sanctae sit Triadi laus pia iugiter, Cuius perpetuo numine machina
Triplex haec regitur, cujus in omnia Regnat gloria saecula. Amen.
Antiph. — Sancti Angeli, custodes nostri, defendite nos in praelio, ut non pereamus in tremendo iudicio.
V — Angelis suis Deus mandayit de te.
R— Ut custodiant te in omnibus vis tuis,

Oremus.
Deus qui ineffabili providentia sanctos Angelos tuos ad nostram custodiam mitlere digneris, Jargire supplicibus tuis et corum sempre protectione defendi et aeterna societate gaudere, Amen.

 

CONCLUSÃO

Chegado ao termo desta obrazinha, ouso esperar, ó caros jovens. que vos não tenho sido de todo pesado ou enfadonho, e que conseguindo o seu escopo haja ajudado a fazer crescer em vós o amor para com os santos Anjos da guarda.
Prossegui, pois, a cultivar esta devoção, que a par de suave, justa, vantajosa, e também (conforme de início já indiquei) de modo especial adaptado aos tempos em que vivemos.
Caráter próprio do nosso século é a absorção do homem pela matéria, a ponto de só se ter em conta o que cai sob os sentidos e os pode lisonjear... Que pode haver de mais apta a sanar esta chaga que uma devoção que tem por objeto seres de todo independentes e desprendidos de tudo o que é material e terreno, e que levanta os ânimos a aspirar as coisas do céu?
Foi bem sob a influência dessa suave e celestial devoção que o grande homem que foi Silvio Péllico, após se haver transviado, voltou ao caminho do céu... Em sinal de reconhecimento ao seu Anjo da Guarda, que o havia reconduzido ao bom caminho, compôs um poemeto intitulado “Os Anjos”, que sentimos não poder reproduzir aqui, e que é um testemunho, do mais alto valor, de quanto seja profícua a devoção dos santos Anjos.

Praza a Deus possas também tu, leitor que me lês, seres por mãos dos Anjos reconduzido, se acaso te transviastes, ou, na melhor das hipóteses, ajudado eficazmente a trilhar inflexivelmente o caminho do céu.