A profissão de fé!

Este livro deveria ser um dos livros de cabeceira de todos aqueles que professam a fé católica!

Santo Tomás de Aquino

Santo Tomás de Aquino

SANTO TOMÁS DE AQUINO

“SERMÃO SOBRE O CREDO”

Expositio in Symbolum Apostolorum

reportatio Reginaldi de Piperno

Tradução e Notas:

DOM ODILÃO MOURA, OSB

EDIÇÃO ELETRÔNICA

Rio de Janeiro, 2004

EDIÇÃO ELETRÔNICA PERMANÊNCIA

SEPARATA

Revista Permanência

nos. 63/1974 a 75/1975

 

INTRODUÇÃO

— A FÉ —

Durante a Quaresma de 1273, S. Tomás, entre outros sermões, proferiu este, que é uma das mais perfeitas exposições que existem sobre o Credo. Pronunciado em dialeto napolitano, foi traduzido fielmente (conforme atestam os testemunhos históricos) para o latim, pelos discípulos do Santo. Para ouvir a palavra do Doutor Angélico, acorriam às igrejas de Nápoles, os habitantes dessa agitada cidade medieval e os seus alunos universitários. Por isso o grande teólogo usava de uma linguagem mais acessível que a das suas obras teológicas. O conteúdo, porém, dos seus sermões, conserva a mesma profundeza doutrinária e a peculiar ortodoxia do Doutor Comum:

1 — O primeiro bem necessário para o cristão é a fé. Sem a fé ninguém pode ser chamado de fiel cristão.

2 — O primeiro bem é a união da alma com Deus. Pela fé realiza-se uma espécie de matrimônio entre a alma e Deus, conforme se lê no Profeta Oséias: “Desposar-te-ei na fé”. (Os 2, 20).

Quando o homem é batizado, deve, em primeiro lugar, confessar a fé ao responder à pergunta — crês em Deus? — porque o batismo é o primeiro sacramento da fé. O Senhor mesmo disse: “O que crer e for batizado será salvo” (Mc 16, 16).

O batismo sem a fé é destituído de valor. Deve-se, portanto, ter por certo que ninguém pode ser aceito por Deus sem a fé”. “Sem a fé é impossível agradar a Deus”, diz S. Paulo (Heb 11, 6).

Sto. Agostinho comentando este texto da carta aos Romanos — “Tudo o que não procede da fé é pecado” (14, 23), assim se expressa: “Onde não existe o conhecimento da verdade eterna e imutável, a virtude é falsa mesmo nas pessoas retas”.

3 — O segundo bem é este: pela fé é iniciada em nós a vida eterna. A vida eterna não consiste senão em conhecer a Deus, conforme lê-se em S. João: “Esta é a vida eterna, que Vos conheçam como único Deus verdadeiro”. (Jo 17, 3). Esse conhecimento de Deus inicia-se aqui pela fé, mas é completado na vida futura, quando O conheceremos tal como é. Por isso lê-se na carta aos Hebreus: “A fé é a substância das coisas que se esperam” (11, 11). Ninguém alcançará a bem-aventurança eterna, sem que tivesse primeiramente o conhecimento de fé, pois está escrito: “Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).

4 — A vida presente é orientada pela fé: eis o terceiro bem. Para que o homem viva bem, convém que conheça os princípios do bem viver. Se pelo próprio esforço devesse aprender esses princípios, ou não chegaria a conhecê-los, ou só os poderia conhecer após um longo tempo. Mas a fé ensina todos os princípios do bem viver. Ora, ela ensina que há um só Deus, que Deus recompensa os bons e pune os maus, que existe uma outra vida, e outras verdades semelhantes. Esse conhecimento é suficiente para nos levar a praticar o bem e evitar o mal, pois diz o Senhor: “O meu justo vive da fé” (Hab 2, 4).

Eis porque nenhum filósofo antes da vinda de Cristo, apesar do grande esforço intelectual que despendiam, pôde chegar ao conhecimento de Deus e dos meios necessários para alcançar a vida eterna, como depois do advento do Cristo, qualquer velhinha chegou pela fé. Eis porque Isaías profetizou assim esse advento: “Encheu-se a terra da ciência de Deus” (11, 23).

5 — O quarto bem é que pela fé venceram as tentações, conforme lê-se nas Escrituras: “Os santos pela fé venceram os reinos” (Heb 11, 23). As tentações procedem do diabo, do mundo, ou da carne.

O diabo tenta para que tu não obedeças nem te submetas a Deus.

Ora, é pela fé que o repelimos, porque é pela fé que conhecemos que há um só Deus e que só a Ele devemos obedecer. Por isso escreveu São Pedro: “O diabo, vosso adversário, está rondando para ver se devora alguém: a ele deveis resistir pela fé” (1 Pd 5, 8).

O mundo nos tenta, seduzindo-nos na prosperidade, ou nos atemorizando nas adversidades. Mas ambas as tentações vencemos pela fé. Ela nos faz crer numa vida melhor, e, por isso, desprezamos as prosperidades do mundo e não tememos as adversidades. Eis porque está escrito: “Esta é vitória que vence o mundo, a vossa fé” (1 Jo 5, 4). Além disso, a fé nos ensina a acreditar que há males maiores, isto é, que existe o inferno.

A carne nos tenta, conduzindo-nos para os deleites momentâneos da vida presente. Mas a fé nos mostra que por eles, se a eles indevidamente aderimos, perderemos os deleites eternos. Por isso nos aconselha o Apóstolo: “Tende sempre nas mãos o escudo da fé” (Ef 6, 16).

Por essas razões fica provado que é muito útil ter fé.

6 — Mas pode alguém objetar: é insensatez acreditar naquilo que não se vê: não se deve crer senão naquilo que se vê.

Respondo a essa objeção com os seguintes argumentos.

7 — Primeiro. É a própria imperfeição da nossa inteligência que desfaz essa dúvida. Realmente, se o homem pudesse por si mesmo conhecer perfeitamente as coisas visíveis e invisíveis seria insensato acreditar nas coisas que não vemos. Mas o nosso conhecimento é tão limitado que nenhum filósofo até hoje conseguiu perfeitamente investigar a natureza de uma só mosca.

Conta-se até que certo filósofo levou trinta anos no deserto para conhecer a natureza das abelhas. Ora, se a nossa inteligência é tão limitada assim, é muito maior insensatez não querer acreditar em algo a respeito de Deus a não ser naquilo que o homem pode conhecer por si mesmo d’Ele. Lê-se no livro de Jó: “Eis como Deus é grande e ultrapassa a nossa ciência” (36, 26).

8 — Segundo. Consideremos, por exemplo, um mestre que assimilou uma verdade e de um aluno pouco inteligente que a entendeu diversamente, porque não a atingiu. Ora, esse aluno pouco inteligente deve ser considerado como bastante tolo.

Sabemos que a inteligência dos Anjos ultrapassa a do maior filósofo, como a deste, a inteligência dos ignorantes. Portanto, seria tolo o filósofo que não acreditasse nas coisas ditas pelos Anjos. Ele seria muito mais tolo se não acreditasse nas coisas ditas por Deus. Lê-se, a esse respeito, nas Escrituras: “Foram-te apresentadas muitas verdades que ultrapassam a inteligência do homem” (Ec 3, 25).

9 — Terceiro. Se o homem não acreditasse senão nas coisas que vê, nem poderia viver neste mundo. Pode alguém viver sem acreditar em outrem? Como podes tu saber que este é teu pai? É, pois, necessário que o homem acredite em alguém, quando se trata de coisas que por si só não as pode conhecer. Ora, ninguém é mais digno de fé do que Deus. Por conseguinte, os que não acreditam nas verdades da fé não são sábios, mas tolos e soberbos. São Paulo refere-se a esses como sendo — “soberbos e ignorantes...” (1 Tm 6, 4). Por isso S. Paulo diz de si: “Sei em quem acreditei e tenho certeza...” (2 Tm 1, 12). Tudo isso é confirmado no Livro do Eclesiástico: “Vós que temeis o Senhor, acreditai n’Ele” (2, 8).

10 — Quarto. Pode-se ainda responder dizendo que Deus comprova as verdades da fé. Se um rei enviasse suas cartas seladas com o selo real, ninguém ousaria dizer que aquelas cartas não vinham do próprio rei. É claro que as verdades nas quais ossantos acreditaram e que nos transmitiram como sendo de fé cristã, estão seladas com o selo de Deus. Esse selo é significadopor aquelas obras que uma simples criatura não pode fazer, isto é, pelos milagres. Pelos milagres Cristo confirmou as palavras do Apóstolo e dos Santos.

11 — Pode, porém, replicar dizendo que ninguém viu esses milagres. É fácil responder a essa objeção. É conhecido que toda a humanidade prestava culto aos ídolos e que a fé cristã foi perseguida, confirmando-o, além do mais, a história do paganismo. Converteram-se todos, porém, em pouco tempo a Cristo. Os sábios, os nobres, os ricos, os governos e os grandes converteram-se pela pregação de poucos homens rudes e pobres.

Ora, de duas uma: ou se converteram por que viram milagres, ou não. Se foi porque viram milagres que se converteram, a tua objeção não tem sentido. Se não o foi, respondo que não poderia haver maior milagre que esse de todos os homens converterem-se sem terem visto milagres. Deves te dar por vencido.

12 — Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da fé do que nas coisas que vemos, por que a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é sempre infalível.

 

ARTIGO PRIMEIRO

— Creio em Deus, Pai todo poderoso, criador do céu e da terra —

13 — Entre todas as verdades nas quais os fiéis devem acreditar, em primeiro lugar devem acreditar que Deus existe 1.

Convém, além disso, considerar o que significa este nome — Deus.

Significa precisamente Aquele que governa e cuida de todas as coisas.

Acredita, por conseguinte, na existência de Deus, quem acredita que todas as coisas deste mundo são por Ele governadas, e estão subordinadas à sua Providência.

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O leitor deve estar sempre atento ao estilo de São Tomás, claro, conciso e lógico.

Não há palavras supérfluas. As palavras, no estilo do Doutor Angélico, têm o significado preciso e manifestam os conceitos de uma inteligência lúcida. Essa simplicidade despida de artifícios é adequada à comunicação da verdade pura.

Nota-se que São Tomás jamais apela para a emotividade ou para os recursos oratórios de sugestionamento. Ele quer que se aceite a verdade pela clarividência da verdade. Aceita a verdade pela inteligência, naturalmente a vontade inflamar-se-á de amor por ela. Esse método comunicativo de São Tomás é essencialmente humano. Para o homem de hoje, condicionado pelos processos comunicativos audiovisuais, pela propaganda subliminal e pelos recursos emocionantes, torna-se um tanto difícil, e por isso exige um esforço de atenção, seguir a tranqüila e pura apresentação da verdade feita por São Tomás. O seu estilo literário assemelha-se à pureza musical do estilo de Bach. O vocabulário de São Tomás por essa razão, não é muito rico, naturalmente dificultando a tradução, podendo parecer o seu estilo monótono. Mas se o leitor esforçar-se por penetrar na limpidez das suas frases, na rica repetição dos conceitos sempre com novas modalidades, sentir-se-á logo atraído pela beleza do estilo do Doutor Angélico e admirado pelas verdades que expõe. São Tomás é simbolizado pelo sol. O seu estilo tem os encantos da luz.

Atenta-se também neste sermão de São Tomás, que, provavelmente, seria mais de um sermão, o modo como a Sagrada Escritura é citada, ajustando-se espontaneamente, ao contexto e, fundamentando a doutrina exposta. Sem que se perceba, São Tomás aqui realiza uma atividade teológica inicial, quando a inteligência, usando apenas dos primeiros esforços do senso comum procura, sem argumentação metafísica e sem terminologia científica, penetrar no conteúdo das verdades reveladas.

Mas quem pensa que todas as coisas originam-se do acaso, não acredita na existência de Deus.

Não há ninguém tão insensato que não creia que a natureza seja governada, que esteja submetida a uma providência e que tivesse sido ordenada por alguém, vendo que tudo se processa a seu tempo, com ordem. Vemos o sol, a lua e as estrelas, e muitos outros elementos da natureza obedecerem a um determinado curso. Ora, isso não aconteceria se tudo viesse do acaso.

Eis porque seria um insensato o que não acreditasse na existência de Deus. tal asserção é confirmada pelo salmista: “O insensato diz em seu coração: não há Deus” (Sl 13, 1).

14 — Alguns há que acreditam que Deus governa e ordena as coisas naturais, mas não acreditam que Deus atinja, pela sua Providência, os atos humanos. Evidentemente pensam que os atos humanos não são ordenados por Deus. porque vêem no mundo os bons sofrerem e os maus prosperarem, concluem que a Providência Divina não atinge os homens.

Por eles falou Jó: “Deus anda pelos caminhos do céu, mas não cuida de nós” (22, 14).

Afirmar tal coisa, é grande insensatez. Acontece com os que assim pensam, o que acontece àqueles que vendo o médico bom conhecedor da medicina dar a um doente água e a outro vinho, julgassem, no seu desconhecimento da medicina, que o médico estava curando por acaso, e não, por motivo ponderado.

15 — Deus também age como médico. Por motivo justo e pela sua Providência dispõe Ele as coisas necessárias para os homens, quando aflige alguns bons e permite que alguns maus prosperem.

Quem acreditasse que isso fosse obra do acaso, evidentemente deveria ser um insensato, como de fato o é. Assim pensa, porque desconhece a maneira de Deus agir, e a razão pela qual dispõe as coisas. Lê-se também em Jó: “Oxalá Ele te revele os segredos da sua sabedoria e a multiplicidade dos seus planos” (11, 6). Por conseguinte deve-se crer firmemente que Deus governa e ordena as coisas naturais e também os atos humanos. Lê-se no Livro dos Salmos: “Disseram (os maus): Deus não vê. O Deus de Jacó não percebe as coisas. Compreendei agora, ó néscios! Ó estultos, até quando sereis insensatos? Aquele que nos deu as orelhas, não ouve? Aquele que nos pôs os olhos, não vê? O Senhor conhece os pensamentos dos homens” (103, 7-10).

Deus vê todas as coisas, os pensamentos e os segredos das vontades dos homens. Já que tudo o que pensam e fazem está patente aos olhos de Deus, os homens, de modo muito especial, são obrigados a praticar o bem. Escreve S. Paulo aos Hebreus: “Tudo está nu e descoberto aos seus olhos” (4, 13).

16 — Deve-se acreditar que este Deus que dispõe todas as coisas e as rege, é um só Deus. A razão por quê devemos acreditar nessa verdade é a seguinte: o governo das coisas humanas é um bom governo, quando um só as dispõe e as governa.

Uma multiplicidade de dirigentes constantemente provoca disenções entre os súditos. Ora, como o governo divino é superior ao humano, torna-se claro que o governo do mundo não pode ser feito por muitos deuses, mas por um só.

17 — Os homens são levados ao politeísmo por quatro motivos:

O primeiro, é a fraqueza da inteligência humana. Há homens, cuja fraqueza de inteligência não lhes permitiu ir além das coisas corpóreas, e, por isso, não acreditaram na existência de alguma natureza superior aos seres corpóreos.

Pensaram então que, entre aqueles seres corpóreos, os mais belos e mais dignos deveriam presidir e dirigir o mundo, e prestaram a eles um culto divino. Consideraram como sendo os corpos mais sublimes, os astros do céu: o sol, a lua e as estrelas. Acontece com eles o que aconteceu com aquele homem que, desejando ver o rei, foi à corte, e confundiu com o rei quem logo encontrou bem vestido, ou exercendo alguma função de ministro. Refere-se a esses o Livro do Profeta Isaías: “Levantai bem alto os olhos, e vede a terra por baixo. Os céus evaporar-se-ão como a fumaça, a terra envelhecer-se-á como as vestes e os seus habitantes perecerão como ela. Mas a minha salvação será eterna, e a minha justiça não terá fim” (51, 6).

18 — O segundo motivo, é a adulação dos homens. Muitos desejando adular os reis e os senhores, tributaram-lhes a honra devida a Deus. Obedeceram e se submeteram a eles. Houve quem os endeusassem após a morte, e houve os que os endeusaram também em vida. Lê-se na Escritura: “Todos saibam que Nabucodonosor é deus da terra, e além dele outro deus não há” (Jud. 5, 29).

19 — O terceiro motivo provém da afeição carnal para os filhos e parentes. Alguns, levados por excessivo amor pelos parentes, levantaram-lhes estátuas após a morte, e, assim foram conduzidos a prestar culto divino àquelas estátuas. É a eles que se refere a Escritura: “Deram os homens às pedras e à madeira um nome incomunicável, porque submeteram-se demais a afeição aos reis” (Sab. 14, 21).

20 — A quarta razão, pela qual os homens são levados a acreditar na existência de muitos deuses, é a malícia do diabo. Este, desde o início, quis ser igual a Deus: “Colocarei meu trono no Aquilão, subirei aos céus e serei semelhante ao Altíssimo” (Is. 14, 13).

Até hoje ele não revogou essa vontade. Por isso esforça-se o mais possível para que os homens o adorem e lhe ofereçam sacrifícios.

Não lhe satisfaz o ofertório de um cão ou de um gato, mas deleita-se quando lhe é prestado o culto devido a Deus. Disse o demônio a Cristo: “Dar-te-ei tudo isto se de joelho me adorares” (Mat. 4, 9). Para que fossem adorados como deuses, os demônios entraram nos ídolos e por meio destes davam respostas. Lê-se na Escritura: “Todos os deuses dos povos são demônios” (Ps. 95, 5).

“Quando os gentios oferecem sacrifícios, fazem-no aos demônios, não a Deus” (I Cor. 10,20).

21 — É muitíssimo desagradável a consideração dessas quatro causas do politeísmo, mas representam realmente as razões pelas quais os homens acreditam na existência de muitos deuses.

Muitas vezes eles não manifestam pelas palavras ou pelo coração que acreditam em muitos deuses, mas pelo atos. Aqueles que acreditam que os astros podem modificar a vontade dos homens, que para agir esperam certas épocas, naturalmente consideram os astros como deuses que dominam os outros seres e que fazem prodígios. Por isso somos advertidos pela Escritura: “Não temei os sinais dos astros que os gentios temem, porque as suas leis são vãs” (Jer. 10, 2).

Também aqueles que obedecem aos reis, ou aos que não devem obedecer, mais que a Deus, constituem a essas pessoas como os seus deuses. Adverte-nos também a Escritura: “Convém mais obedecer a Deus que aos homens” (At. 5, 29).

Assim também os que amam os filhos e os parentes mais que a Deus, revelam pelos atos que acreditam em muitos deuses. Ou mesmo aqueles que amam mais os alimentos que a Deus, aos quais se refere S. Paulo com estas palavras: “Dos quais o ventre é deus” (Tm 3, 19).

Os que praticam a feitiçaria e se entregam aos sortilégios acreditam nos demônios como se eles fossem deuses, porque pedem aos demônios o que só se pode pedir a Deus, como sejam revelações e conhecimentos de coisas secretas ou futuras.

Como tudo isso é falso, devemos acima de tudo acreditar que há um só Deus.

22 — Como dissemos, deve-se primeiramente acreditar que há um só Deus. Em segundo lugar, deve-se acreditar que este Deus é criador, que fez o céu e a terra, as coisas visíveis e invisíveis.

Deixemos por ora, de lado, os argumentos sutis e, por meio de um exemplo bem simples, esclareçamos como todas as coisas foram criadas e feitas por Deus.

Se alguém indo a uma casa e desce a porta fosse sentindo calor e cada vez que mais nela penetrasse mais calor sentisse, evidentemente perceberia que havia fogo no seu interior, mesmo que não estivesse vendo o fogo. Acontece o mesmo conosco ao considerarmos as coisas deste mundo. Todas as coisas estão ordenadas conforme diversos graus de beleza e de nobreza, e quanto mais estão próximas a Deus, tanto melhores e mais belas são. Ora, os astros são mais nobres e mais belos que os corpos

inferiores; as coisas invisíveis, que as visíveis.

Deves então acreditar que todas as coisas têm a origem num só Deus, que lhes dá a existência e a perfeição.

Lê-se na Sagrada Escritura: “São insensatos todos os homens que não conhecem a Deus, e que pelas coisas que viam, não compreenderam Aquele que existe, nem vendo as obras, conheceram o artista” (Sab. 43, 1). Lê-se no mesmo contexto: “Pela beleza e grandeza da criatura se pode conhecer e contemplar o seu criador” (43, 5).

Devemos, portanto, ter por certo que todas as coisas foram criadas por Deus.

23 — Com relação a isso, três erros devem ser evitados.

O primeiro, é o erro dos Maniqueus 2. Para eles, as coisas visíveis foram criadas pelo diabo, e só as invisíveis, por Deus.

Fundamentam o seu erro numa verdade, que Deus é o sumo bem e tudo o que por ele é feito, por um ser bom, deve ser bom também; mas não distinguindo o bem do mal, creram eles que tudo o que de certo modo tivesse algo de mal, seria totalmente mal. Dizem que o fogo é totalmente mal, porque queima; que a água é má, porque afoga; e, assim, das outras coisas que produzem um efeito mau. Ora, como nenhuma das coisas sensíveis é simplesmente boa, mas de certo modo má e deficiente, concluíram que todas as coisas visíveis não foram feitas por Deus, que é bom, mas por um ser mau.

Para refuta-los Santo Agostinho apresentou o seguinte exemplo:

se alguém entrasse na casa de um operário e aí encontrasse uma ferramenta que o ferisse, e, por esse motivo, concluísse que o operário era mau, porque usa tais ferramentas, seria um tolo, porque ele as usa tão somente para o trabalho. Eis porque é tolice dizer que as criaturas são totalmente más, porque em algum aspecto são nocivas.

Podem elas ser nocivas para uns, mas úteis, para outros. Esse erro vai contra a fé da Igreja, pois recitamos no Credo:

“Criador das coisas visíveis e invisíveis”. Fundamenta-se essa verdade na Escritura: “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn 1, 1). “Todas as coisas foram feitas por Ele” (Jo 1, 3).

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O Maniqueísmo é uma seita sincretista, com elementos de religião persa do Masdeísmo, das correntes gnósticas orientais e do cristianismo. Fundou-a Maní, persa, que viveu de 216 a 776. Ela expandiu-se pelo oriente e pelo ocidente cristão, tomando na Espanha, no século IV, a feição priscilianista, onde acrescentou-se à doutrina a prática de atos libidinosos, repercutindo ainda no século XII nas heresias dos cátaros e dos albigenses. Santo Agostinho foi maniqueu, mas antes da conversão para o catolicismo já havia abandonado o Maniqueísmo e se passara para o neo-platonismo. Combateu os erros maniqueus em quase todas as suas obras. Sob o aspecto doutrinário, o Maniqueísmo é um sistema gnóstico, isto é, unia princípios filosóficos a idéias religiosas, buscando nisso a libertação do homem. O fundamento do sistema maniqueu era o dualismo que afirmava haver dois reinos em conflito, o da luz, presidido por Deus, e o das trevas, pelo demônio. A vida na terra é uma repercussão desse conflito, onde Jesus entrou como elemento purificador, e, no fim dos tempos, haverá a vitória do reino da luz.

24 — O segundo erro que deve ser evitado é o dos que afirmam que o mundo é eterno 3. Coloca S. Pedro na boca dos que assim falam, estas palavras: “Desde que nossos pais morreram, tudo permanece como depois do começo da criação” (2 Ped. 3, 4).

Foram levados a essa convicção porque não souberam considerar bem o início do mundo. O Rabi Moisés comparou-os a uma criança que desde o nascimento fora levada para uma ilha onde nunca pôde ver uma mulher grávida, nem o nascimento de um homem. Se quando crescesse lhe fosse dito com um homem é concebido, como é carregado por nove meses no seio materno e como nasce, ele não acreditaria no que estava ouvindo, porque lhe pareceria ser impossível um homem ser gerado no seio materno.

Do mesmo modo comportam-se os que pensam que o mundo é eterno, porque não lhe viram o começo. Quem pensa assim, está também em oposição à fé da Igreja, pois recitamos no Credo a verdade: “Creio em Deus... que fez o céu e a terra”.

Ora, se as coisas foram feitas, é claro que não poderiam ter sempre existido. Lê-se na Escritura: “Deus disse, e as coisas foram feitas” (Ps. 148, 5).

3____________________

Que o mundo foi criado por Deus sem haver matéria preexistente, “ex-nihilo” é uma verdade que só se encontra na Revelação judeu-cristã. Aristóteles afirmava a eternidade do mundo, tese reassumida pelo filósofo árabe Averróis (1126-1198), cuja influência nos tempos de São Tomás foi considerável.

São Tomás nega, por ser a criação verdade revelada, a eternidade do mundo, mas admite que Deus poderia ter feito o mundo desde toda a eternidade, isto é, que não repugna à razão admitir a possibilidade da eternidade do mundo.

São Tomás assim explica o conceito de criação: “(Deus) por sua ação produz todo o ser subsistente, não pressupondo nenhum outro ser, pois que Ele é o princípio de toda existência, totalmente por si mesmo. Por esse motivo pode fazer alguma coisa do nada: essa ação chama-se criação” (De pot. 3, 1c.).

4____________________

Dois grandes pensadores judeus tiveram influência na formação da teologia católica: Filo, neo-platônico, que nos primeiros séculos do cristianismo trouxe farta contribuição para a Escola de Alexandria, e o Rabi Moisés, aqui citado por São Tomás, que viveu este em Córdova e Alexandria entre 1135 e 1204. É conhecido na filosofia com o nome de Maimônides. É considerado o maior teólogo do judaísmo. São Tomás refere-se a ele sempre com muito respeito.

25 — O terceiro erro a respeito da origem do mundo é seguido por aqueles que afirmam ter sido o mundo feito de uma matéria preexistente. Chegaram a esse erro, porque quiseram medir o poder de Deus pelo nosso. Como o homem nada pode fazer sem uma matéria preexistente, assim também Deus para produzir as coisas usou de uma matéria que já existia. Isso não é verdadeiro.

O homem nada pode fazer sem uma matéria preexistente, porque a sua capacidade de operação é limitada, e, assim só pode dar forma a uma matéria que já existia. O seu poder está limitado para operar só para esta forma, e, por isso, não pode ser causa senão dela.

Deus, porém, é a causa universal de todas as coisas, e não só cria a forma, mas também a matéria. Por isso fez todas as coisas do nada. Recitamos no Credo essa verdade: “Criador do céu e da terra”.

Há diferença entre criar e fazer: criar, é tirar alguma coisa do nada; fazer, é produzir uma coisa de outra coisa.

Se Deus criou as coisas do nada, deve-se também acreditar que ele pode refaze-las todas, se elas forem destruídas. Pode dar vista a um cego, ressuscitar um morto e fazer outros milagres. Diz a Escritura: “O poder está a Vós submetido, quando quereis” (Sb 12, 18).

26 — Das verdades acima enunciadas podemos tirar cinco conclusões práticas. Em primeiro lugar, como devemos considerar a divina majestade.

Se o artista é superior às obras, Deus, sendo o artista criador de todas as coisas, evidentemente é superior a tudo o que existe. Diz a Escritura: “Se os homem atraídos pela beleza dos seres consideraram-nos deuses, saibam eles em quanto o Senhor deles e mais belo que eles...; ou se ficaram admirados pelo poder dos seres e pelas obras que produzem, compreendam como é aquele que os fez é mais poderoso” (Sb 13, 34). Por isso tudo o que podemos compreender ou pensar de Deus, é inferior a Ele! Diz a Escritura: “Eis o Deus grandioso que está acima de nossa ciência” (Jó 36, 26).

27 — Em segundo lugar, devemos dar graças a Deus. porque Deus é o criador de todas as coisas, tudo o que somos e tudo o que temos, nos vêm de Deus. diz o Apóstolo: “O que tens, que não recebestes?” (1 Cor 4, 7). Lê-se no Saltério: “Do Senhor é a terra e tudo o que a enche; o mundo e todos os seus habitantes” (Sl 23, 1). Por isso devemos sempre render graças a Deus: “Que retribuirei ao Senhor, por tudo o que Ele me deu?” (Sl 115, 12).

28 — Em terceiro lugar, devemos suportar as adversidades com paciência. Pois se todas as criaturas vêm de Deus, e por isso são boas por natureza, mesmo se em alguma coisa nos prejudicam se nos trazem penas, devemos acreditar que essas penas foram enviadas por Deus. A culpa nossa, porém, não pode vir de Deus, porque nenhuma mal pode vir de Deus, a não ser que ela seja dirigido para um bem. Ora, se toda pena que nos vem é enviada por Deus, devemos pacientemente suporta-la. As penas nos purificam dos pecados, humilham os réus, desafiam os bons para o amor de Deus. lê-se no livro de Jó: “Se recebes os bens das mãos de Deus, porque não recebemos também os males?” (Jó 2, 10).

29 — Em quarto lugar, devemos usar bem das coisas criadas. As coisas devem ser usadas conforme as finalidades que lhes foram dadas por Deus. As coisas foram criadas para dois fins: para a glória de Deus, porque “todas as coisas para Si mesmo Deus as fez” (Pr 16, 4), e para nossa utilidade, porque “Deus fez todas as coisas para servirem aos povos” (Dt 4, 19).

Devemos usar de todas as coisas para a glória de Deus, e muito lhe agradaremos com isso, mas também para nossa utilidade, evitando sempre o pecado. Diz a Escritura: “De vós são todas as coisas e o que recebemos das vossas mãos, vos damos” (1 Paral. 29, 14).

O que quer que possuas, seja a ciência, seja a beleza, tudo deves usar e dirigir para a glória de Deus.

30 — Em quinto lugar, porque fomos criados por Deus, devemos reconhecer a nossa dignidade.

Deus fez todas as coisas para o homem, como se lê na Escritura: “Todas as coisas submetestes aos seus pés” (Sl 8, 8). O homem, depois dos anjos, é a criatura que mais se assemelha a Deus, como se lê no livro do Gênesis: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (1, 16). Não se referiu Deus neste texto nem às estrelas, nem aos céus, mas ao homem.

Não é, porém, pelo corpo, mas pela alma, que possui vontade livre e incorruptível, que o homem mais se assemelha a Deus que as outras criaturas.

Devemos, pois, considerar que o homem é, depois dos Anjos, o mais digno que todas as outras criaturas, e, por conseguinte, de maneira nenhuma queiramos diminuir essa nossa dignidade pelo pecado ou por algum desejo desordenado de coisas corpóreas, pois elas são inferiores a nós e foram feitas para nos servir. Que nos comportemos de acordo com os desígnios de Deus ao nos criar. Deus fez o homem para governar tudo o que há na terra, mas para que o homem ficasse submetido a Ele. Devemos, por isso, dominar e governar o mundo, mas nos submetendo a Deus, a Ele obedecendo e servindo. Por esse caminho certamente chegaremos à união com Deus. Amém.

 

ARTIGO SEGUNDO

— Creio em Jesus Cristo, Seu Único Filho, Nosso Senhor —

31 — Não é somente necessário crerem os cristãos que existe um só Deus, e que Ele é Criador do céu, da terra e de todas as coisas, mas também é necessário crerem que Deus é Pai e que Jesus Cristo é seu verdadeiro Filho.

Esse mistério não é um mito, mas uma verdade certa e comprovada pela palavra de Deus no monte, conforme a afirmação de S. Pedro: “Porque não foi baseando-nos em fábulas engenhosas que vos demos a conhecer o poder e a presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por termos visto a Sua Majestade com os nossos próprios olhos. Porque Ele recebeu de Deus Pai honra e glória, quando da magnífica glória lhe foram dirigidas estas palavras: ‘Este é meu Filho muito amado, em quem pus as minhas complacências’. E nós mesmos ouvimos esta voz vinda do céu, quando estávamos com Ele no monte santo” (II Ped. 1, 16-18).

O próprio Jesus Cristo muitas vezes chama a Deus como seu Pai, e, também, denominava-se Filho de Deus.

Os Apóstolos e os Santos Padres colocaram entre os artigos de fé que Jesus Cristo é Filho de Deus, quando definiram este artigo do Credo: “E em Jesus Cristo seu Filho”, isto é, Filho de Deus.

32 — Mas existiram alguns heréticos que acreditaram de um modo perverso nessa verdade de fé.

Fotino 5, um deles, declarou que Cristo não é filho de Deus senão como os outros homens bons o são, os quais, por viverem bem, merecem ser chamados filhos de Deus por adoção, enquanto fazem a vontade de Deus.

Do mesmo modo, dizem eles, Cristo, que viveu bem e fez a vontade de Deus, mereceu ser chamado de Filho de Deus.

O mesmo herético queria que Cristo não tivesse existido antes da Virgem Maria, mas que só começasse a existir quando nela foi concebido.

Cometeu Fotino dois erros: um, porque não disse que Ele era Filho de Deus segundo a natureza; o outro, porque disse que Ele começou a existir, conforme todo o seu ser, no tempo, enquanto a nossa fé afirma que Ele é por natureza Filho de Deus e eterno.

Ora, essa duas verdades encontram-se claramente expressas na Sagrada Escritura, opostas que são ao que ele afirma.

Contra o primeiro erro, declara a Escritura que Jesus Cristo não só é Filho de Deus, mas também Filho Unigênito: “O Unigênito que está no seio do Pai é que O fez conhecido” (Jo. 1, 18). Contra o segundo, lê-se: “Antes de Abraão existir, eu já existia” (Jo. 8, 58).

Ora, é certo que Abraão existiu antes da Virgem Maria.

Por esse motivo, os Santos Padres acrescentaram, em outro símbolo 6, contra o primeiro erro: “Filho de Deus Unigênito”; e, contra o segundo: “nascido do Pai antes de todos os séculos”.

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5 A heresia do Bispo Fotino de Sírmio (✝ 376) tem sua fonte próxima na do Bispo Marcelo de Ancira (✝ 374) e, remota, no Monarquismo Dinâmico. Esta, propalada em Roma pelo grego Teódoto em 190, condenada pelo Papa Vitor, ensinava que Cristo era simples homem e, no batismo, foi revestido de poderes divinos. Marcelo ensinava que havia uma mônada que evoluiu com o aparecimento do Filho, na Encarnação, e do Espírito Santo, em Pentecostes. No fim dos tempos voltarão o Filho e o Espírito para a mônada primitiva. Não há, portanto, trindade eterna.

Contra Marcelo foi acrescentado no Símbolo: “e o seu reino não terá fim”.

S. Tomás sintetiza fielmente o erro de Fotino neste sermão.

Fotino foi condenado várias vezes, destituído da Diocese de Sírmio e exilado. Os seus asseclas perseveraram até o século VII.

6 Sendo a fé, por parte do homem, primeiramente um ato de conhecimento da inteligência, devem ter sentido as palavras que exprimem as suas verdades. Por isso a Igreja, desde os tempos Apostólicos, exigia, dos que procuravam o batismo, inteligência das palavras da fé, que eram definidas. Para que essa finalidade fosse alcançada, formularam-se sínteses das verdades fundamentais da fé com palavras de sentido preciso, compreensível e tradicional. Eram os símbolos da fé. A palavra símbolo, que primitivamente, na língua grega, significava um objeto que se dividia em duas partes, como contra-senha para identificação posterior, na tradição católica designava o resumo das verdades da fé que identificavam a religião de Cristo. Como começava pela palavra Credo, esta tornou-se sinônimo de Símbolo.

Na antiguidade o Credo era unido ao ritual do catecumenato, isto é, na preparação para o batismo: os “electi” (eleitos) acabavam a sua preparação recebendo os ensinamentos do Símbolo da Fé (Traditio Symboli = entrega de símbolo), e depois deviam recita-lo diante do Bispo (redditio symboli = devolução do símbolo). Com o correr dos tempos, para maior defesa contra as heresias, passou para a Liturgia Eucarística. A sua posição atual, após o Evangelho das Missas, foi introduzida por Carlos Magno (✝ 794), para combater a heresia do adopcionismo.

Os Símbolos mais antigos e mais importantes são os seguintes:

I) Símbolo dos Apóstolos: É o mais antigo Símbolo da Igreja, chamado por Tertuliano de “Regula Fidei”, cujas origens vêm dos tempos dos Apóstolos, conforme a tradição. A sua mais primitiva fórmula, baseada nas Escrituras, seria a seguinte: “Creio no Pai Todo Poderoso; em Jesus Cristo, nosso Salvador; no Espírito Santo Paráclito, na Santa Igreja e na remissão dos pecados”.

Como se vê, nele estavam contidos os Mistérios da Trindade, da Encarnação e da Redenção. A fórmula atual do Símbolo Romano tem suas origens no século III.

Consta de 12 artigos.

II) Símbolo de Santo Atanásio: É uma profissão de fé mais ampla, atribuída a Santo Atanásio, mas provavelmente foi transmitida por Santo Ambrósio (séc. IV) que a recebera da tradição. Procura definir com bastante exatidão o Mistério da Santíssima Trindade.

III) Símbolo de Nicéia: Elaborado e aprovado no Concílio Ecumênico de Nicéia. O Concílio de Nicéia foi convocado pelo Imperador Constantino para pôr fim à heresia do arianismo (nota 8). Presidiu-o o Bispo Ósio e os representantes do Papa Silvestre. Participaram dele mais 300 Bispos. Na sessão de 19 de junho de 325 foi aprovado o “Símbolo de Nicéia”, onde é definido que o Filho é da mesma natureza do Pai: “Deus de Deus, luz de luz, verdadeiro Deus do verdadeiro Deus, gerado, não criado, da idêntica natureza do Pai”.

IV) Símbolo Niceno-Constantinopolitano: Elaborado e aprovado no Concílio Ecumênico de Cosntantinopla, reunido nesta cidade no ano de 31. Reproduz o Símbolo de Nicéia, fazendo alguns acréscimos, principalmente com relação à Terceira Pessoa da Trindade: “e (nós cremos) no Espírito Santo, Senhor e vivificador, procedente do Pai, que é adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, e que falou pelos Profetas”.

É na Igreja Oriental a fórmula única de profissão de fé.

Há outras profissões de fé na Igreja antiga, uma mais, outras menos, desenvolvidas, mas todas concordes no sentido das palavras e nos mistérios da fé.

33 — Sabélio 7, embora tivesse dito que Cristo existiu antes da Virgem Maria, afirmou que a Pessoa do Pai outra não era que a do Filho, e que o próprio Pai se encarnou. Desse modo, a Pessoa do Pai seria a mesma que a do Filho. Mas isso é um erro, porque destrói a trindade das Pessoas. Contra esse erro, há a autoridade do Evangelista S. João, que nos relatou as palavras do próprio Cristo: “Eu não sou Eu só; sou Eu e o Pai que me enviou” (Jo. 8, 16).

Ora, é evidente que ninguém pode ser enviado por si mesmo. Eis porque Sabélio errou. Acrescentou-se por isso, no Símbolo dos Padres: “Deus de Deus, luz de luz”; isto é, Deus Filho de Deus Pai; Filho que é luz, luz que procede do Pai, que também é luz. É nessas verdades que devemos crer.

34 — Ário 8, embora tivesse afirmado que Cristo existira antes da Virgem Maria e que era uma a Pessoa do Pai, outra, a do Filho, atribuiu, ao ser de Cristo, três erros: primeiro, que Cristo foi criatura; segundo, que Ele foi feito por Deus como a mais nobre das criaturas, não desde a eternidade, mas no tempo; terceiro, que não havia uma só natureza de Deus Filho com Deus Pai, e, por esse motivo, Cristo era verdadeiro Deus.

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7 Sabélio (século II) não aceitava a Trindade em Deus, mas confundia as Pessoas numa só unidade em Deus. Para ele, as Pessoas são modos em que Deus se manifesta. A sua heresia é denominada “monarquianismo modalista”, e, também, “patripassionismo”, ou, ainda, “sabelianismo”.

Admitia três manifestações de Deus: como Pai, na criação e legislação; como Filho, na redenção, e, como Espírito Santo, na obra de santificação.

8 O Arianismo foi a mais perigosa heresia dos primitivos tempos do cristianismo.

Foi seu criador um sacerdote de Alexandria, chamado Ario (✝ 336). Ensinava ele um certo subordicianismo, heresia mais antiga, que afirmava ser o Filho subordinado ao Pai, negando-lhe, desse modo, identidade de natureza. Para Ario, o Filho era um ser divino de segunda ordem, o qual, por ser desprovido dos atributos absolutos da divindade, podia realizar a criação e a redenção.

Há na doutrina de Ario dependência da mentalidade neoplatônica reinante no seu tempo. O arianismo ensinava que “houve um tempo em que o Verbo não era”, e “ele (o Verbo) provém do não ser”. Portanto, a Segunda Pessoa seria uma criatura.

Condenada a heresia pelo Concílio de Nicéia (nota 6), não cessou a sua obra deletéria nos meios católicos, tomando novo alento com os dois Imperadores arianos Constâncio (337-361) e Valente (364-378). O Imperador Teodório, o Grande (379-395), reafirmando a ortodoxia católica, conseguiu atenuar os males do arianismo, que por mais de 50 anos dilaceraram a Igreja. Foi definitivamente condenado pelo Concílio de Constantinopla, de 381, após polêmicas violentas, lutas e separações entre os católicos.

Se a Tradição ortodoxa teve a seu lado grandes doutores da Igreja como Atanásio, Basílio, Gregório de Lauzianze e grandes Bispos, os arianos conseguiram envolver

muitos Bispos e católicos nas suas ambíguas e imprecisas fórmulas heterodoxas.

A heresia tomou tal proporções nos meios católicos que S. Jerônimo chegou a descrever a situação com essas palavras: “Lastimou-se todo o orbe e admirou-se porque estava ariano”.

Tais afirmações são evidentemente errôneas por que contrárias à autoridade da Sagrada Escritura.

Lê-se no Evangelho de S. João: “Eu e o Pai somos um” (Jo. 10, 30), isto é, pela natureza. Ora, como o Pai sempre existiu, do mesmo modo o Filho; como o Pai é verdadeiro Deus, assim também o Filho.

Em oposição à afirmação de Ário, isto é, que Cristo é criatura, está declarado no Símbolo dos Padres: “gerado, não feito”.

Contra o erro propalado de que Ele não era da mesma substância do Pai, foi acrescentado no Símbolo: “consubstancial com o Pai”.

35 — Está, pois, esclarecido porque devemos crer que Cristo é o Filho Unigênito de Deus, e verdadeiro Filho de Deus; que sempre existiu com o Pai; que uma é a Pessoa do Filho, outra, a do Pai; que Ele tem uma só natureza com o Pai.

Cremos nessas verdades, aqui, pela fé; conhecê-las-emos, porém, na vida eterna, por uma perfeita visão.

Para nossa consolação, acrescentemos algumas palavras a essas verdades.

36 — Devemos saber que há diversos modos de geração, conforme a diversidade dos seres.9 A geração em Deus, é diferente da geração nos outros seres. Por isso, não podemos chegar a conhecer a geração de Deus, a não ser por meio da geração de criaturas que mais se aproximam de Deus e que mais se assemelham a Ele. Ora, como foi dito, nada se assemelha tanto a Deus, como a alma humana.

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9 Aqui S. Tomás esclarece-nos como a possessão do Verbo na Trindade é uma geração, donde a Segunda Pessoa denominar-se também Filho. No texto latino a palavra e o conceito são expressos pelo mesmo termo — verbum —, podendo-se então mais de perto seguir o pensamento do Doutor Angélico.

A questão é tratada com notável clareza na Suma Teológica em linguagem teológica, da qual neste sermão percebe-se a influência.

Define S. Tomás geração, conforme realiza-se nos seres vivos, como sendo a “origem de um ser vivo, de um principio vivo conjunto”. Aplica a definição à possessão da Segunda Pessoa:

“Portanto a possessão do Verbo em Deus tem a formalidade de uma geração. Ele procede à semelhança de ação inteligível, que é uma operação vital; de um princípio vivo conjunto, como foi dito anteriormente (isto é, da inteligência divina), e de modo semelhante, porque o conceito intelectivo é semelhante coisa conhecida; e na mesma natureza, porque em Deus ser e conhecer são a mesma realidade... Por conseguinte a processão do Verbo em Deus chama-se geração, e o próprio Verbo procedente chama-se Filho” (S. T. I. 7, 2; cf. I. 27, 1; cf. I. 34, 2).

Há, na alma, uma espécie de geração, quando o homem conhece alguma coisa pela própria alma, que se chama conceito intelectivo.

Esse conceito (efeito da concepção) tem a sua origem da própria alma, como de um pai. Chama-se verbo (isto é, palavra) da inteligência ou do homem.

A alma, portanto, gera o seu verbo, pelo conhecimento.

O Filho de Deus, também, nada mais é que o Verbo de Deus, não como se fosse um verbo (uma palavra) já pronunciado exteriormente, porque assim seria transitório, mas como um verbo (uma palavra) concebido no interior. Eis porque o próprio verbo de Deus possui uma só natureza de Deus, e é igual a Deus.

O Bem-aventurado João, quando falou do verbo de Deus, destruiu as três heresias acima definidas: a de Fotino, quando disse: “No princípio era o Verbo”; a de Sabélio, quando disse: “e o verbo estava em Deus”; e a de Ário, quando disse: “e o Verbo era Deus”.

37 — Mas o Verbo (a palavra) existe diversamente em nós e em 10 Deus. Em nós, o verbo é um acidente ; em Deus, o Verbo de Deus mais identifica-se com o próprio Deus, pois nada há em Deus que não seja essência de Deus.

Ninguém pode afirmar que Deus não possui um verbo, porque, se o fizesse, estaria também afirmando que em Deus não há absolutamente conhecimento. Como, porém, Deus sempre existiu, assim também o seu Verbo.

38 — Como o artista executa as suas obras de acordo com o modelo que prefigurou em sua inteligência, que é o seu verbo; assim também Deus faz todas as coisas pelo seu Verbo, que é como o seu pensamento artístico. Por isso lê-se em S. João: “Todas as coisas foram feitas por Ele” (Jo. 1, 3).

39 — Se o Verbo de Deus é o Filho de Deus e todas as palavras (os verbos) de Deus possuem alguma semelhança com esse verbo, todos nós devemos, em primeiro lugar, ouvir com satisfação as palavras de Deus. Se ouvirmos com prazer as palavras de Deus, isto é sinal de que amamos a Deus.

40 — Em segundo lugar, devemos crer nas palavras de Deus, porque é assim que o Verbo de Deus habita em nós, isto é, Cristo, que é o Verbo de Deus. Lê-se no Apóstolo S. Paulo: “Habitar Cristo, pela fé, em vossos corações”. (Ef. 3, 17). Lê-se também em S. João: “Não tendes o Verbo de Deus permanecendo em vós porque não acreditais n’Aquele que Ele enviou”. (Jo. 5, 38).

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10 S. Tomás assim precisa a noção de substância: “A substância que é sujeito tem duas propriedades: primeiro, não ter necessidade de um fundamento extrínseco para ser sustentada, mas sustenta-se em si mesma; segundo, ser fundamento dos acidentes, sustentando-os, e por isso diz-se que sub-está” (Pot. 9, 1). A substância subsiste em si mesma e sustenta os acidentes. Acidente é justamente o ser que existe, mas não subsiste, porque está ardente à substância. “Acidente — diz S. Tomás — é o ser cuja essência deve estar em outra coisa” (Qdc. IX, 5, ad 2) “Convém que o ser deles (isto é, dos acidentes) seja acrescido ao ser da substância, e dependente deste” (C. G. IV, 14).

O acidente é um ser secundário, mais imperfeito que o ser da substância e, sem a sua substância, o acidente não pode existir (a não ser por um milagre de Deus). “A substância, diz Aristóteles, é o simples ser e se realiza por si mesmo: todos os outros gêneros de ser diversos da substância, são seres de certo modo e existem pela substância. Por conseguinte, a substância é o primeiro entre os seres” (Met., VII, 1, 1028).

41 — Em terceiro lugar, convém que sempre tenhamos o Verbo de Deus, que permanece em nós, como objeto das nossas meditações. Não é conveniente apenas crer, mas é necessário também meditar, pois de outro modo, a fé não nos seria útil. A meditação sobre o Verbo de Deus é muito útil contra o pecado. Lê-se nos Salmos: “Escondi no meu coração a Vossa palavra, para não pecar contra vós” (Ps. 118, 11). Lê-se, ainda, a respeito do homem justo: “Meditarei dia e noite na Sua Lei” (Ps. 1, 2). Por isso sabemos que a Virgem Maria “conservava todas essas palavras, meditando sobre elas no seu coração” (Lc. 2, 51).

42 — Em quarto lugar, convém que o homem comunique aos outros a palavra de Deus, admoestando, pregando-a para eles e afervorando-lhes a fé. Encontram-se nas cartas de S. Paulo os seguintes textos: “Que nenhuma palavra má proceda da vossa boca, mas somente as boas palavras que edificam” (Ef. 4, 29).

“Que a palavra de Cristo habite em vós abundantemente, com toda sabedoria, culminando e admoestando uns aos outros” (Col. 3, 16); “Prega a palavra, insiste oportuna e importunamente, repreende, pede e ameaça com toda a paciência e com toda a doutrina” (II Tess. 4, 2).

43 — Em último lugar, devemos cumprir o que a palavra de Deus determinou. Lê-se em S. Tiago: “Sede realizadores da palavra de Deus e não apenas ouvintes, enganando-vos uns aos outros” (Tiag. 1, 22).

44 — Na mesma ordem, a Bem-aventurada Virgem Maria seguiu essas cinco recomendações, quando nela foi gerado o Verbo de Deus. Primeiramente, ouviu: “O Espírito Santo virá sobre ti” (Lc. 1, 35). Depois, consentiu pela fé: “Eis a escrava do Senhor” (Lc. 1, 38). Em terceiro lugar, recebeu o Verbo Encarnado e O carregou em seu seio. Em quarto lugar, ela O pronunciou quando a Ele deu a luz. Finalmente, nutriu-O e amamentou-o. Eis porque a Igreja canta: “A Virgem amamentava, fortalecida do céu, o próprio Rei dos Anjos”.

 

ARTIGO TERCEIRO

— Foi concebido do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria —

45 — Não é somente necessário ao cristão acreditar que Jesus é o Filho de Deus, como acima mostramos, mas também convém crer na Sua Encarnação. Por isso, o Bem-aventurado João, após ter falado muitas coisas elevadas e de difícil compreensão, logo a seguir nos insinua a Sua Encarnação, quando diz: “E o Verbo se fez carne” (Jo. 1, 14). Para que possamos aprender algo dessa verdade, darei dois exemplos: Sabe-se que nada é tão semelhante ao Filho de Deus como a palavra concebida em nosso interior, mas não pronunciada exteriormente. Ninguém conhece a palavra enquanto está no interior do homem, a não ser ele, que a concebeu. Mas logo que é proferida exteriormente, torna-se conhecida. Assim o Verbo de Deus não era conhecido senão pelo Pai, enquanto estava no seio do Pai. Mas logo que se revestiu da carne, como a palavra concebida no interior, pela voz, tornou-se manifesto e conhecido. Lê-se na Escritura: “Depois disso foi visto na terra, e conviveu com os homens” (Bar. 3, 38). Vejamos o segundo exemplo. A palavra, pronunciada exteriormente, é ouvida, mas não é vista, nem se pode nela tocar. Escrita, porém, em uma folha, pode ser vista e tocada. Assim também o Verbo de Deus tornou-se visível e palpável, quando foi, de certo modo, escrito em nossa carne. Ora, quando numa mensagem estão escritas as palavras do rei, ela também é chamada de palavra do rei. Do mesmo modo, o homem a quem está unido o Verbo de Deus numa só pessoa, deve ser chamado do Filho de Deus. Lê-se em Isaías: “Toma o grande livro e escreve nele com a pena de um homem” (Is. 8, 1). Declararam também os Apóstolos: “Que foi concebido do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria”.

46 — Com relação a este artigo do Credo, muitos caíram em erros. Por isso os Santos Padre, em outro símbolo, o de Nicéia, acrescentaram muitos esclarecimentos que nos permitem ver agora como esses erros foram destruídos.

47 — Orígenes 11 afirmou que Cristo nasceu e que veio a este mundo para salvar também o demônio. Disse ainda que todos os demônios seriam salvos no fim do mundo. Afirmar tal coisa, porém, é ir contra a Sagrada Escritura, pois se lê no Evangelho de São Mateus: “Afastai-vos de mim, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e para os seus anjos” (Mat. 25, 41). Por essa razão, foi acrescentado no Símbolo: “Que desceu dos céus para nós, homens (não se diz: para os demônios) e para a nossa salvação”. Essas palavras evidenciam, ainda mais, o amor de Deus para conosco.

11 Orígenes (185 – 253) é das personalidades mais discutidas da patrística. Filho do mártir Leônidas, cedo, pela sua notável inteligência, foi chamado para dirigir a Escola Catequética de Alexandria. Visitou Roma e todo o oriente católico. Para melhor seguir o Evangelho mutilou-se. Sendo ordenado sacerdote irregularmente, por esse motivo foi excomungado. Não abandonou, contudo, a Igreja, morrendo vítima das torturas que sofreu pela fé na perseguição de Décio. De cultura invulgar, tendo exercido atividade de ensino em Roma, Cesária e Alexandria, Orígenes escreveu obras de teologia em número imenso, ditando-as para diversos taquígrafos, tendo até pagãos em suas aulas, que eram atraídos pela sua sabedoria.

A influência de Orígenes, na teologia do Oriente antigo, equipara-se a de Santo Agostinho, na do Ocidente. Orígenes tentou formular um sistema teológico, fundamentando-o no neo-platonismo e, em parte, em Aristóteles. Esse ecletismo filosófico levou Orígenes a afirmar muitas teses falsas no plano da fé, como o traducianismo (os pais transmitem a alma aos filhos), a eternidade do mundo, a igualdade inicial de todos os seres espirituais, a sucessão cíclica dos mundos, a volta de tudo a Deus, no retorno final (“apocatastase”). Até o inferno desaparecerá no fim de tudo. Interpretava a Escritura, também de modo ambíguo. São Jerônimo considerou Orígenes: “o pai de todas as heresias”. Foi posteriormente condenado, diversas vezes, como herege. Orígenes foi vítima do subjetivismo na interpretação da Escritura e do otimismo, na consideração das coisas. Faltando-lhe a filosofia verdadeira, naturalmente caiu em erros. Todavia Orígenes sempre procurou ser fiel à Igreja, em muitos aspectos é o iniciador da teologia oriental, testemunho também, em outros, da tradição católica. É notável a sua influência nos Padres Capadócios. Devido à sua genialidade foi denominado “Adamantino”.

48 — Fotino 12, aventurada Manão obstante ter aceito que Cristo nasceu da Bemaventurada Maria Virgem, afirmou que Ele era um simples homem, que, por ter vivido bem e ter feito a vontade de Deus, mereceu ser considerado Filho de Deus, como o são os outros santos. Contra essa afirmação, lê-se na Escritura: “Desci do céu, não para fazer a minha, mas a vontade de quem me enviou” (Jo. 6, 38). Ora, é evidente que não teria descido do céu, se aí não estivesse; e, se fosse um simples homem, não poderia ter estado no céu. Para afastar esse erro, foi acrescentado: “desceu dos céus”.

49 — Manés 13 ensinava que Cristo foi sempre Filho de Deus e que desceu do céu, mas que não possuía verdadeira carne, pois que esta era apenas aparente. Isso é falso. Ora, não convinha ao Mestre da verdade, mostrar-se com alguma falsidade. Por isso, como apareceu em verdadeira carne, devia também possui-la. Lêse no Evangelho de São Lucas: “Palpai e vede, porque o Espírito não tem carne nem ossos, como me vedes possuir” (Lc. 24, 39). Para afastar tal erro, os Padres acrescentaram: “E se encarnou”.

50 — Com relação a Ebion 14, que era judeu, aceitava ele que Cristo tivesse nascido da Bem-aventurada Maria, mas de uma união carnal, e de sêmen humano. Isso, porém, é falso, porque o Anjo disse: “O que nascerá dela, é obra do Espírito Santo” (Mat. 1, 20). Para afastar esse erro, os Padres acrescentaram: “Do Espírito Santo”.

12 Fotino (ver nota n° 5). 13 Manés (ver nota n° 2). 14 Ebionitas. Propriamente não há o fundador Ebion, mas o nome da seita deriva do termo pobreza, em hebraico. Esta seita vinha dos tempos apostólicos, constituíamna judeus-cristãos que não aceitavam a doutrina do Apóstolo Paulo, nem a divindade de Cristo. Esperavam também um reino terreno messiânico de mil anos (Milenarismo = quiliasma). A seita espalhou-se pela Síria e perseverou até o séc. V.

51 — Valentino 15 aceitava que Cristo tivesse sido concebido pelo Espírito Santo, mas também ensinava que Cristo trouxera um corpo celeste e o depositara na Bem-aventurada Virgem, e que este corpo era o de Cristo. Por esse motivo, dizia, a Bemaventurada Virgem nada fizera senão ter-se dado como receptáculo daquele corpo, e, que este passava por ela, como por um aqueduto. Mas tal afirmação é falsa, porquanto o Anjo disse: “O santo que de ti nascer, será chamado Filho de Deus” (Lc. 1, 35). Do mesmo modo, o Apóstolo: “Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu Filho feito de mulher” (Gal. 4, 4). Eis porque os Padres acrescentaram no Símbolo: “Nasceu da Virgem Maria”.

52 — Ario 16 e Apolinário 17 afirmaram que Cristo era o Verbo de Deus e que nasceu da Virgem Maria, mas que não possuía alma, estando em lugar desta, a divindade. Mas isto é contra a Escritura, onde se encontram estas palavras de Cristo: “Agora, a minha alma está perturbada” (Mt. 26, 38). Para refutar o erro de ambos, os Santos Padres acrescentaram no Símbolo: “E fez-se homem”. Ora, o homem é constituído de alma e corpo. Por conseguinte, Ele possuiu tudo o que o homem pode possuir, exceto o pecado.

53 — Pela expressão — “fez-se homem” — são destruídos todos os erros acima enumerados, e todos os que possam surgir. Foi destruído, por essa expressão, principalmente o erro de Eutíquio 18 que ensinou ter havido uma mistura, isto é, que havia uma só natureza em Cristo, oriunda da divina e da humana, de modo que Cristo não era nem simplesmente Deus, nem simplesmente homem. Tal afirmação é falsa, porque, se não fosse falsa, Cristo não seria homem como fora definido: “fez-se homem”.

É destruído também o erro de Nestório 19 que afirmou que o Filho de Deus reuniu-se ao homem só por inabitação. É falsa também essa doutrina, porque então não estaria escrito apenas homem, mas no homem. O apóstolo declara que Cristo foi homem: “Foi reconhecido, conforme se apresentou, como homem” (Fil. 2, 7). Lê-se também em São João: “Por que me quereis matar, eu, um homem que vos disse a verdade que ouvi de Deus?” (Jo. 8, 40).

A heresia monofisita difundiu-se pela cristandade, aceitando-a ainda hoje as igrejas Ortodoxa da Armênia, da Abissína (coptas) e da Síria (jacobitas).

15 Valentino — Gnóstico Alexandrino que difundiu sua doutrina em Roma pelos anos de 136 a 160. Grande talento oratório, formulou um sistema doutrinário religiosofilosófico baseado na filosofia neoplatônica. Tornaram-se os valentinianos perigosos, porque usavam os mesmos ritos da Igreja e, assim, iludiam e atraiam os católicos.

16 Ario (Ver nota n° 8).

17 Apolinário — Bispo de Laodicéia, na Síria, aplicou a doutrina da tricotomia platônica a Cristo, de modo que Cristo não teria alma racional. O “Logos” fazia às vezes dela, sendo Cristo constituído de “carne”, “alma animal” e do “Logos”. Sem o perceber, Apolinário de fato ensinava que o verbo se encarnou em um ser irracional. Não obstante ter combatido o Arianismo, Apolinário, pelo conceito falso a respeito da humanidade de Cristo, caiu neste erro. Diversos Sínodos condenaram o “apolinarismo”, os Padres Antioquenos logo o rejeitaram e o Imperador Teodósio, em 388, exilou os seus adeptos. A heresia foi absorvida pela Igreja Ortodoxa, manifestando-se mais tarde na forma do nonofisitismo. Apolinário faleceu em 390.

18 Eutíquio era Arquimandrita de Constantinopla, piedoso, mas sem cultura teológica. Com Eutíquio inicia-se a grande luta monofisita, que terminará na Igreja com o Concílio Ecumênico de Calcedônia, 451. Em forte oposição ao nestorianismo (ver nota 19), os monofisitas ensinavam que em Cristo há uma só natureza, a divina, pois a natureza humana de Cristo foi divinizada, não sendo mais igual à nossa. Em Cristo haveria “uma e única natureza”. Eutíquiu agiu com muita violência contra os que afirmavam haver duas naturezas em Cristo, identificandoos com os nestorianos. No Concílio de Calcedônia, foi lida a carta do Papa Leão Magno (440-461) sob grande aplausos, na qual era condenado o monofisitismo e o nestorianismo. Assim escrevia o Papa: “Nós ensinamos e professamos um único e idêntico Cristo... em duas naturezas, não confusas e não transformadas entre si, não divididas, não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças, antes, cada uma das naturezas conservou as propriedades e se uniu com a outra numa única pessoa e numa única hipótese”.

19 Nestório, monge piedoso e bom orador, foi eleito Bispo de Constantinopla em 428. Seguindo a escola teológica antioquena, que exagerava de tal modo a distinção das duas naturezas de Cristo a ponto de parecer afirmar a existência n’Ele de duas pessoas, Nestório levou ao extremo as teses antioquenas negando haver em Cristo só a Pessoa Divina. Consequentemente, Maria era apenas mãe de Cristo, não Mãe de Deus (Teotókos). São Cirilo Alexandrino de modo contundente combateu o erro de Nestório, tendo o Papa Celestino I apoiado a doutrina deste Padre. Firme no erro e na Cátedra de Constantinopla que deveria renunciar, Nestório solicitou do Imperador Teodório II a convocação de um Concílio Ecumênico para dirimir a questão. Realizou-se este em Éfeso, no ano de 431, presidido por Cirilo, representante do Papa, sendo Nestório destituído da função episcopal e reafirmada a dualidade de natureza em Cristo e a unidade de pessoa. Maria foi declarada Teotókos. O Concílio, que é o terceiro ecumênico, não publicou novo Símbolo de fé, considerando o Símbolo Niceno suficiente. A heresia nestoriana difundiu-se pelo Oriente, entre os indianos, chineses e mongóes e no século XVI os nestorianos caldeos voltaram ao seio da Igreja Católica. Subsistem ainda adeptos do nestorianismo no norte do Iraque.

54 — Dessa exposição sobre o 3° artigo do Credo, podemos tirar algumas conclusões práticas para nossa instrução. Em primeiro lugar, para confirmação da nossa fé. Se alguém falasse de uma terra longínqua, na qual nunca estivera, não seria tão bem aceita a sua palavra como seria, se a conhecesse. Antes da vinda de Cristo, os Patriarcas, os Profetas e João Batista falaram algumas verdades a respeito de Deus. Os homens, porém, não acreditaram nelas como acreditaram em Cristo, que este com Deus, e, mais do que isso, constituía um só ser com Ele. Eis porque a nossa fé foi muito mais confirmada pelas verdades transmitidas por Cristo. Lê-se em São João: “Ninguém jamais viu a Deus. O Filho Unigênito, que está no seio do Pai, nos revelou” (Jo. 1, 18). Muitos mistérios da fé, que antes estavam velados, nos foram revelados após o advento de Cristo.

55 — Em segundo lugar, para elevação da nossa esperança. Sabemos que o Filho de Deus não sem elevado motivo veio a nós, assumindo a nossa carne, mas para grande utilidade nossa. Fez, para consegui-la, um certo comércio: assumiu um corpo animado, e dignou-se nascer da Virgem, para nos entregar a sua divindade; fez-se homem, para fazer o homem, Deus. Lê-se em São Paulo: “Por quem temos acesso pela fé nessa graça, na qual permanecemos, e nos gloriamos na esperança da glória dos filhos de Deus” (Rom. 5, 2).

56 — Em terceiro lugar, para que a nossa caridade seja mais fervorosa. Nenhum indício é mais evidente da caridade divina do que o Deus, Criador de todas as coisas, fazer-se criatura; o do Senhor nosso, fazer-se nosso irmão; o do Filho de Deus, fazer-se filho de homem. Lê-se em São João: “Tanto Deus amou o mundo, que lhe deu o Seu Filho” (Jo. 3, 16). Pela consideração dessa verdade, deve ser reacendido e de novo em nós afervorado, o nosso amor para com Deus.

57 — Em quarto lugar, para conservação da pureza de nossa alma. A nossa natureza foi a tal ponto enobrecida e exaltada pela união com Deus, que foi assumida para consorciar-se com uma Pessoa Divina. Por esse motivo o Anjo, após a Encarnação, não permitiu que o Bem-aventurado João o adorasse 20 , quando antes permitira que até os maiores Patriarcas o fizessem. O homem, pois, reconsiderando e atendendo à própria exaltação, deve perceber como se degrada e avilta a si e à própria natureza, pelo pecado. Por isso escreve São Pedro: “Por quem nos concedeu as máximas e preciosas promessas, para que nos tornássemos consortes da natureza divina, fugindo da corrupção da concupiscência que existe no mundo” (II Ped. 1, 5).

58 — Em quinto lugar, a meditação dos mistérios da Encarnação aumenta em nós o desejo de nos aproximarmos de Cristo. Se alguém, irmão de um rei, dele longe estivesse, naturalmente desejaria aproximar-se dele, estar com ele, permanecer junto dele. Ora, sendo Cristo nosso irmão, devemos desejar estar com Ele e nos unirmos a Ele. Com relação a esse desejo, lê-se em São Mateus: “Onde quer que esteja o cadáver, aí se apresentarão os abutres” (Mat. 24, 28). São Paulo desejava dissolver-se para estar com Cristo: esse desejo cresce também em nós pela consideração do mistério da Encarnação.

· 20 Lê-se no Apocalipse que João tentou adorar o “Anjo vigoroso” (Apo. 18, 21). Mas foi admoestado a que não o fizesse (Apo. 19, 10).

ARTIGO QUARTO

— Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado —

59 — Como é necessário ao cristão acreditar na Encarnação do Filho de Deus, é também necessário acreditar na sua Paixão e Morte, por que, como disse S. Gregório, “em nada nos teria sido útil o seu nascimento, se não favorecesse à Redenção”. Essa verdade, isto é, que Cristo morreu por nós, é de tal modo difícil que a nossa inteligência pode apenas conhece-la, mas, de modo algum, por si mesmo descobri-la. Isso é confirmado pelas palavras do Apóstolo: “Farei uma obra em vossos dias, que nela não podereis acreditar se alguém antes não a tiver revelado” (At 13, 41). Confirma-o também o que falou o Profeta Habacuc: “Será feita uma obra em vossos dias que ninguém acreditará quando for narrada” (Hab 1, 5). A graça e o amor de Deus para conosco são tão grandes, que Ele fez por nós mais do que podemos compreender.

60 — Não se deve, porém, crer que quando Cristo morreu por nós, a Divindade também morreu. N’Ele morreu a natureza humana; não morreu enquanto Deus, mas enquanto homem. Três exemplos esclarecerão essa verdade. Um deles, encontramos em nós mesmos. Sabe-se que quando um homem morre, na separação que há entre a alma e o corpo, a alma não morre, mas o corpo, a carne. Assim também na morte de Cristo não morreu a divindade, mas a natureza humana.

61 —Pode-se aqui fazer a seguinte objeção: — Se os judeus não mataram a divindade, evidentemente o pecado deles, matando Cristo, não foi maior do que se tivessem morto um outro homem.

62 — Respondamos a essa objeção: — Se alguém sujasse as vestes com as quais o rei estava vestido, cometeria falta tão grande como se tivesse sujado o próprio rei. Assim também os judeus. Como não puderam matar a Deus, matando a natureza humana assumida por Cristo, eles mereceram severa punição, como se tivessem assassinado a própria divindade.

63 — Como dissemos acima, o Filho de Deus é o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus Encarnado é como a palavra de Deus escrita em uma carta. Se alguém rasgasse a carta do rei, cometeria a mesma falta daquele que tivesse rasgado a palavra do rei. Por isso os judeus pecaram tão gravemente como se tivessem morto o Verbo de Deus.

64 — Mas perguntas: — Que necessidade havia de o Verbo de Deus padecer por nós?

— Grande necessidade, e por duas razões. Uma, porque foi remédio para os nossos pecados; outra, porque foi um exemplo para as nossas ações 21 .

21 Na “Suma Teológica” (III, 46), S. Tomás analisa as razões da Paixão de Cristo. Não havia necessidade absoluta da Paixão de Cristo (art. 1°), seria possível encontrarem-se outros modos de salvar o homem (art. 2°), mas baseado em Sto. Agostinho, o Doutor Angélico afirma que o modo redentor realizado pela Paixão foi o mais conveniente (art. 3°). Apresenta as seguintes razões de conveniência: o homem vê o quanto Deus o amou, e é levado a amar a Deus por gratidão; Cristo, na Paixão, deu exemplo de obediência, humildade, constância e justiça, virtudes necessárias à salvação; prometeu a graça e a glória, além de salvar o homem do pecado; lembrando-se de que foi salvo pelo Sangue de Cristo, o homem evita o pecado; a dignidade do homem é elevada, pois venceu o diabo pelo qual fora vencido; e a morte merecida pelo pecado, foi superada pela morte de Cristo.

65 — Foi sim, um remédio, porque contra todos os males que contraímos pelo pecado, encontramos o remédio na Paixão de Cristo 22. Contraímos pelo pecado cinco males.

66 — O primeiro, é a própria mancha do pecado 23. Quando um homem peca, conspurca a sua alma, porque, como a virtude embeleza, o pecado a enfeia. Lê-se em Barruch: “Por que estás, ó Israel, na terra dos inimigos, e te contaminaste com os mortos?” (Br 3, 10). Mas a Paixão de Cristo lavou esta mancha. Cristo, na sua Paixão, fez do seu sangue um banho para nele lavar os pecadores: “Lavaos do pecado no sangue” (Ap 1, 5) 24 . No Batismo a alma é lavada no Sangue de Cristo, por que este recebe do Sangue de Cristo a força regeneradora. Por isso, quando alguém batizado se macula pelo pecado, faz uma injúria a Cristo e o seu pecado é maior que o cometido antes do batismo. Lê-se na Carta aos Hebreus: “O que desprezou a lei de Moisés, após ouvido o testemunho de dois ou três, deve morrer” (Heb 10, 28-29). Como não deve merecer Note-se que estes Sermões sobre o Credo foram pronunciados quando Sto. Tomás escrevia a III Parte da Suma, em Nápoles, onde trata da Paixão de Cristo.

22 “Cristo pela sua Paixão libertou-nos do pecado como causa desta libertação, isto é, instituindo a causa da nossa libertação, em virtude da qual possam sempre quaisquer pecados serem perdoados — presentes, passados e futuros; como o médico que faz o medicamento capaz de curar todas as doenças, também as futuras” (S. T. III, 49, 1 ad. 3).

23 “Mancha propriamente refere-se às coisas corpóreas, quando algum corpo limpo perde a sua pureza pelo contato com outro corpo, como vestes, ouro e prata. Nas coisas espirituais deve-se usar o termo mancha em semelhança com as coisas corpóreas. A alma do homem possui uma dupla nitidez: uma, derivada do resplendor da luz da razão; (...) outra, derivada da luz divina, isto é, da sabedoria e da graça. (...). Há como que um sentido de tato na alma, quando adere a alguma coisa pelo amor. Quando peca, adere a algumas coisas contra a luz da razão e a divina luz. Donde ser chamado o detrimento dessa nitidez, proveniente de tal contato, metaforicamente, de mancha da alma” (S.T. III, 86,1).

24 “Porque a Paixão de Cristo realizou-se como certa causa universal da remissão dos pecados, é necessário que seja aplicada a cada um para destruição dos próprios pecados. Isto é feito pelo batismo e pela penitência, e pelos outros Sacramentos, que possuem a eficácia derivada da Paixão de Cristo” (S.T. III, 49,1 ad. 4). maiores suplícios, aquele que pisou no Sangue do Filho de Deus e considerou impuro o Sangue da Aliança?

67 —O segundo mal que contraímos pelo pecado é nos tornarmos objeto da aversão de Deus. Assim como quem é carnal ama a beleza da carne, do mesmo modo Deus ama a beleza espiritual, que é a beleza da alma. Quando, por conseguinte, a alma se deixa contaminar pelo mal do pecado, Deus fica ofendido e odeia o pecador. Lê-se no Livro da Sabedoria: “Deus odeia o ímpio e a sua impiedade” (Sb 14, 9) 25 . Mas a Paixão de Cristo remove essas coisas, por que ela satisfez ao Pai ofendido pelo pecado, cuja satisfação não poderia vir do homem. A caridade e a obediência de Cristo foram maiores que o pecado e a desobediência do primeiro homem. Lê-se em S. Paulo: “Sendo inimigo, fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho” (Rm 5, 10) 26 .

68 — O terceiro mal é a fraqueza. O homem, pecando pela primeira vez, pensa que depois pode abster-se do pecado. Acontece, porém, o contrário: debilita-se pelo primeiro pecado e fica inclinado a pecar mais.

O pecado vai dominando cada vez mais o homem, e este, por si mesmo, coloca-se em tal estado que não pode mais se levantar. É como alguém que se lançou num poço. Só pode sair dele pela força divina. Depois que o homem pecou, a nossa natureza ficou debilitada, corrompida, e, por isso mesmo, ficou ele mais inclinado para o pecado.

25 “Assim como foram os homens os que mataram Cristo, também o foi o Cristo morto. A caridade do Cristo padecente foi maior que a maldade dos seus matadores. Por isso a Paixão de Cristo foi mais vantajosa para reconciliar Deus com todo o gênero humano, que para provoca-lO à ira”. (S.T. III, 49, 4 ad 3).

26 “A Paixão de Cristo causa a remissão dos pecados como uma redenção. Porque Ele é a nossa cabeça, pela sua Paixão, que suportou pela obediência e pela caridade, libertou-nos como membros seus do pecado, como se fosse isso o preço do pecado; como um homem que, pelos atos meritórios feitos pela mão, se redimisse do pecado cometido pelos pés. Assim como o corpo natural é um só constituído pela diversidade dos membros, também toda a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo, é considerada como se constituísse uma só pessoa com a sua cabeça, que é Cristo”. (S.T. III. 49, 1 c).

Mas Cristo diminuiu essa fraqueza e debilidade, bem que não as tenha totalmente apagado.

O homem foi fortalecido pela Paixão de Cristo e o pecado, enfraquecido, de sorte que este não mais o dominará. Pode, por esse motivo, auxiliado pela graça divina, que é conferida pelos sacramentos cuja eficácia recebem da Paixão de Cristo, esforçarse para sair do pecado. Lê-se em S. Paulo: “O nosso velho homem foi crucificado juntamente com Ele, para que fosse destruído o corpo do pecado” (Rm 6, 6). Antes da Paixão de Cristo, poucos havia sem pecado mortal. Mas, depois dela, muitos viveram e vivem sem pecado mortal.

69 — O qual mal é a obrigação que temos de cumprir a pena do pecado. A justiça de Deus exige que o pecado seja punido, e a pena é medida pela culpa. Como a culpa do pecado é infinita, porque ela vai contra o bem infinito, Deus, cujo mandamento o pecador desprezou, também a pena devida ao pecado mortal é infinita. Mas Cristo pela sua Paixão livrou-nos dessa pena, assumindo-a Ele próprio. Confirma-o S. Pedro: “Os nossos pecados (i. é., a pena do pecado) Ele carregou no seu corpo” (1 Pd 2, 24).

Foi de tal modo exuberante a virtude da Paixão de Cristo, que ela só foi suficiente para expirar todos os pecados de todos os homens, mesmo que fossem em número de milhões. Eis o motivo pelo qual aquele que foi batizado, foi também purificado de todos os pecados. É também por este motivo que os sacerdotes perdoam os pecados. Do mesmo modo, aquele cujo sofrimento mais se assemelha ao da Paixão de Cristo, consegue um maior perdão e merece maiores graças.

70 — O quinto mal contraído pelo pecado foi nos termos tornados exilados do reino do céu. É natural que aqueles que ofendem o rei sejam obrigados a sair da pátria. O homem foi afastado do paraíso por causa do pecado: Adão imediatamente após o pecado foi expulso do paraíso, e sua porta lhe foi trancada. Mas Cristo, pela sua Paixão, abriu aquela porta e novamente chamou os exilados para o reino 27 . Quando foi aberto o lado de Cristo, foi também a porta do paraíso aberta; quando o seu Sangue foi derramado, a mancha foi apagada, Deus foi aplacado, a fraqueza foi afastada, a pena foi expiada, e os exilados foram convocados para o reino. Por isso é que foi logo dito ao ladrão: “Estarás hoje comigo no Paraíso” (Lc. 23, 43). Observe-se que nesse momento não foi dito — outrora; que também não foi dito a outrem — nem a Adão, nem a Abraão, nem a David; foi dito, hoje, isto é, logo que a porta foi aberta, e o ladrão pediu e recebeu perdão. Lê-se na carta aos Hebreus: “Confiantes na entrada no santuário pelo Sangue de Cristo” (Heb. 10, 19). Fica assim esclarecido como a Paixão de Cristo foi útil, enquanto remédio contra o pecado. Mas a sua utilidade não nos foi menor, enquanto ela nos serviu de exemplo.

71 — Como disse S. Agostinho: “A Paixão de Cristo é suficiente para ser modelo de toda a nossa vida”. Quem quer que queira ser perfeito na vida, nada mais é necessário fazer senão desprezar o que Cristo desprezou na cruz, e desejar o que nela Ele desejou.

27 “Pela Paixão de Cristo fomos libertados, não apenas do pecado comum a toda a natureza humana, quer quanto à culpa, quer quanto ao reato da pena, pois Ele pagou o preço por nós; mas também dos pecados próprios de cada um de nós, que participamos da Sua Paixão pela fé, pela caridade e pelos sacramentos da fé. E assim, pela Paixão de Cristo nos foi aberta a porta do reino dos céus” (S.T. III 49,5 c).

72 — Nenhum exemplo de virtude deixa de estar presente na cruz. Se nelas buscas um exemplo de caridade, — “ninguém tem maior caridade do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo. 15, 13). Ora, foi o que Cristo fez na cruz. Por isso, já que Cristo entregou a sua vida por nós, não nos deve ser pesado suportar toda espécie de males por amor a Ele. “O que retribuirei ao Senhor, por todas as coisas que Ele me deu?” (Ps. 115, 12). 73 — Se procuras na cruz um exemplo de paciência, nela encontrarás uma imensa paciência. A paciência manifesta-se extraordinária de dois modos: ou quando alguém suporta grandes males pacientemente, ou quando suporta aquilo que poderia ser evitado e não quis evitar. Cristo na cruz suportou grandes sofrimentos: “Ó vós todos que passais pelo caminho parai e vede se há dor igual à minha!” (Jes. 1, 17) “Como a ovelha levada para o matadouro e como o cordeiro silencioso na tosquia” (I Ped. 2, 23) 28 .

28 “Considerando-se a suficiência, a mínima Paixão de Cristo seria suficiente para libertar o gênero humano de todos os pecados; considerando-se, porém, a conveniência, foi preciso que padecesse todas as espécies de sofrimentos” (S.T. 46, 5 ad 3).

“No Cristo padecente houve verdadeira dor sensível, que é causada pela que é nocivo ao corpo, e dor interior, que é causada pelo conhecimento de algum malefício, chamada tristeza. Ambas as dores foram máximas, em Cristo, entre as dores da presente vida”. (...) “A causa da dor sensível foi a lesão corporal, n’Ele muito forte devido ao sofrimento ter sido generalizado por todo o corpo, devido também ao tipo de sofrimento, por que a morte dos crucificados é a mais cruel e acerba...” (...) “A causa da dor interior foi, em primeiro lugar, o pecado de todo o gênero humano, pelo qual satisfazia sofrendo...; em segundo lugar, especialmente sofreu devido aos judeus e aos outros causadores da sua morte, e, principalmente, devido aos discípulos, que se escandalizaram pela Paixão de Cristo; em terceiro lugar, (a causa da dor interior) foi ter que perder a vida corporal, o que naturalmente é horrível à natureza humana” (S.T. III 46, 6 c).

Cristo na cruz suportou também os males que poderia ter evitado, mas não os evitou: “Julgais que não posso rogar a meu Pai e que Ele logo não me envie mais que doze legiões de Anjos?” (Mt. 26, 53) 29 . Realmente, a paciência de Cristo na cruz foi imensa! “Corramos com paciência para o combate que nos espera, com os olhos fitos em Jesus, o autor da nossa fé, que a levará ao termo: Ele que, lhe tendo sido oferecida a alegria, suportou a cruz sem levar em consideração a sua humilhação” (Heb. 36, 17). 74 — Se desejares ver na cruz um exemplo de humildade, bastate olhar para o crucifixo. Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer: “A vossa causa, Senhor, foi julgada como a de um ímpio” (Jo. 36, 17). Sim, de um ímpio, porque disseram: “Condenemo-lo a uma morte muito vergonhosa” (Sab. 2, 20).

O Senhor quis morrer pelo seu servo, e Aquele que dá a vida aos Anjos, pelo homem: “Fez-se obediente até à morte” (Fil. 2, 8) 75 — Se queres na cruz um exemplo de obediência, segue Àquele que se fez obediente ao pai, até à morte: “Assim como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores; também pela obediência de um só homem, muitos se tornaram justos” (Rom. 5, 19).

76 — Se na cruz estás procurando um exemplo de desprezo das coisas terrenas, segue Àquele que é o Rei e o Senhor dos Senhores no qual estão os tesouros da sabedoria, mas que na cruz aparece nu, ridicularizado, escarrado, flagelado, coroado de espinhos, na sede saciado com fel e vinagre e morto. Não deves te apegar às vestes e às riquezas, “porque dividiram entre si as minhas vestes” (Ps. 29, 19); nem às honras, porque “Eu suportei as zombarias e os açoites”; nem às dignidades, porque “puseram em minha cabeça uma coroa de espinhos que trançaram”; nem às delícias, porque “na minha sede deram-me vinagre para beber” (Ps. 68, 22) Comentando este texto da Carta aos Hebreus — “Que, apesar de lhe oferecerem alegria, suportou a cruz, desprezando a humilhação dela” (Heb. 12, 2) —, Agostinho, nos diz: “O homem Cristo Jesus desprezou todos os bens terrenos, para mostrar que devem ser desprezados”.

29 “Desse modo Cristo foi causa de sua Paixão e Morte. Poderia impedir a sua Paixão e a sua Morte, primeiramente reprimindo os adversários, de modo que não o quisessem ou não pudessem matar; em segundo lugar, porque o seu espírito tinha o poder de conservar a natureza da sua carne, para que não fosse oprimida por alguma lesão a ela infligida (a alma de Cristo, porque estava unida ao Verbo na unidade da pessoa tinha tal poder, como diz Agostinho). Por que a alma de Cristo não repeliu do próprio corpo o sofrimento infligido, mas quis que a sua natureza corporal sucumbisse sob aquele malefício, é dito que pôs a sua alma, ou que voluntariamente morreu” (S.T. III. 47, 1 c).


ARTIGO QUINTO

— Desceu aos infernos, ao terceiro dia ressurgiu dos mortos —

77 — Como dissemos acima, a morte de Cristo consistiu na separação da alma e do corpo, como na morte dos outros homens. Mas a divindade estava de tal modo ligada ao homem Cristo, que, apesar de a alma e o corpo terem se separado entre si, a própria Deidade 30 sempre esteve unida ao corpo e à alma de um modo perfeitíssimo. Eis por que no sepulcro estava presente o Filho de Deus, o qual desceu também com a alma aos infernos 31.

30 Usa São Tomás na mesma frase as palavras “divindade” (divinitas) e deidade (deitas), que, de certo modo, podem ter o mesmo significado. Mas “deitas” precisa de maneira mais perfeita o conteúdo da essência divina. “Quer dizer que a perfeição divina, a Deitas, creia acima, não apenas de tudo o que existe, mas de tudo que podemos conceber: [...] ela é uma outra perfeição, que não é nem a sabedoria, nem a bondade, nem a intelectualidade, nem nada do que são essas coisas, mas a Deidade, perfeição singular e transcendente, infinitamente simples” (H. Nicolas — “Dieu connu comme inconnu” — Desiclée — Paris, 1966, pág. 138).

A palavra divindade é usada para exprimir a essência divina enquanto conhecida pela razão abstrativa, ao passo que os teólogos usam mais “Deitas” para exprimir a essência divina enquanto conhecida pela fé: o conhecimento da fé atinge a vida íntima de Deus, que só se tornará perfeito na visão beatífica. (cfr. GarrigouLagrange, “De Deo Uno” Paris, 1937, pág. 245).

31 A questão da descida de Cristo aos infernos é longa e claramente tratada principalmente na Suma Teológica (III, q. 52). “Na morte de Cristo apesar de a alma ter sido separada do corpo, nenhum dos dois foi separado da Pessoa do Filho de Deus. Por isso deve-se dizer que, no tríduo da morte, todo o Cristo estava no sepulcro, porque toda a sua Pessoa estava aí pelo corpo a ela unido; semelhantemente esteve todo no inferno, porque toda a Pessoa de Cristo estava aí devido à alma a ela unida, e também (se pode dizer) que todo o Cristo estava em toda parte devido à sua natureza divina” (III, 52, 3, c).

De como Cristo esteve presente e atuou nas diversas partes do inferno, assim nos esclarece São Tomás:

“De duas maneiras pode estar uma coisa em algum lugar: de uma maneira, pelo seu efeito (e dessa maneira Cristo desceu em qualquer dos infernos, mas diversamente; no inferno dos condenados produziu o efeito de argüi-los da sua incredulidade e malícia: aos que estavam detidos no purgatório, deu a esperança de alcançarem a vida eterna; aos Santos Patriarcas, que apenas devido ao pecado original, entravam no inferno, infundiu-lhes o lumem da glória eterna). De outra maneira uma coisa é dita estar em algum lugar pela sua essência: e deste modo a alma de Cristo desceu somente ao lugar do inferno, no qual estavam detidos os justos, para que aos que Ele visitava segundo a divindade e interiormente pela graça, visitasse-os também segundo a alma e localmente. Desse modo estando em uma parte do inferno, estendeu o seu efeito a todas as partes do inferno, como tendo também sofrido em um só lugar da terra, libertou todo o mundo pela sua paixão” (III, 52, 2 c).

78 — Por quatro razões Cristo desceu com a alma aos infernos. A primeira, para que suportasse toda a pena do pecado, e, assim, expiar toda a culpa. A pena do pecado do homem não foi somente a morte do corpo, mas também uma punição na alma. Por que o pecado era também da alma, esta deveria ser punida pela privação da visão divina. Ora, não se tinha ainda apresentado uma satisfação para que esta privação fosse afastada. Por isso, antes do advento de Cristo, todos desciam aos infernos, até os Santos Patriarcas. Para Cristo carregar sobre si toda a punição devida aos pecadores, quis não somente morrer, bem como descer com a alma aos infernos. Lê-se nos Salmos: “Fui considerado como um homem caído na fossa; fiquei como um homem sem auxílio, livre no meio dos mortos” (Sl 87, 5-6).

79 — A segunda razão da descida de Cristo aos infernos foi ir em socorro de todos os seus amigos. Tinha Ele os seus amigos não só no mundo, mas também nos infernos. Manifestam-se alguns como amigos de Cristo, nisto: têm caridade. Muitos estavam nos infernos que para lá desceram possuindo caridade e fé no Esperado, como Abraão, Issac, Jacó, David, muitos outros homens justos e perfeitos. Como Cristo visitava os seus amigos no mundo, e os socorrera pela própria morte, quis também visitar aqueles amigos que estavam no inferno, e socorre-los, indo também a eles. Lê-se no Livro do Eclesiástico: “Penetrarei em todas as partes interiores da terra, e verei todos os que aí dormem, e iluminarei todos os que esperam no Senhor”. (Ecl 24, 45).

80 — A terceira razão, foi para que Cristo tivesse uma vitória perfeita contra o diabo. Alguém somente tem um perfeito triunfo sobre outrem, não apenas quando o vence no campo de batalha, mas até quando ainda lhe invade a própria casa, e se apodera da sede do reino e do palácio. Cristo já havia triunfado do diabo e já o vencera na Cruz, pois se lê em São João: “Agora é o julgamento do mundo, agora o príncipe deste mundo (isto é, o diabo) será lançado fora” (Jo 12, 31). Para que Cristo triunfasse sobre o diabo de um modo completo, quis tirar-lhe a sede do reino, e prende-lo na sua própria casa, que é o inferno. Por isso aí desceu, tirou-lhe todos os bens, aprisionou-o e apoderou-se da sua presa. Lê-se: “Despojando os principados e as sociedades, exibiu-os publicamente, triunfando deles na Cruz” (Cl 2, 15). Devemos considerar que, como Cristo recebera o poder e a posse do céu e da terra, deveria também ter a posse do inferno, como se lê na Carta aos Filipenses: “Ao nome de Jesus dobre-se todo o joelho, dos que estão nos céus, na terra e nos infernos” (Fp 2, 10). O próprio Jesus dissera: “Em meu nome expulsarão os demônios” (Mt 16, 17).

81 — A quarta e última razão, foi para libertar os santos que estavam nos infernos. Assim como Cristo quis submeter-se à morte para libertar os vivos da morte, quis também descer aos infernos, para libertar os que aí se encontravam: Lê-se: “Vós também (Senhor), pelo Sangue do vosso testamento, tirastes os Seus que estavam presos na fossa, onde não havia água” (Zc 9, 11). — “Ó morte, serei a tua morte, ó inferno, serei para ti como uma mordida” (Os 13, 14) 32 .

Bem que Cristo tivesse totalmente destruído a morte, não destruiu completamente o inferno, mas como que o mordeu, por que não libertou todos os que nele estavam, mas somente os que não tinham pecado mortal, nem o pecado original. Deste, foram libertados, enquanto pessoas indivíduos, pela circuncisão, e, antes da instituição da circuncisão, as crianças privadas do uso da razão, pela fé dos pais fiéis; os adultos, pelos sacrifícios e pela fé no Cristo que esperavam. Estavam no inferno devido ao pecado original causado por Adão, do qual não poderiam ser libertados, enquanto pecado que era da natureza humana, senão por Cristo. Deixou então os que aí desceram com pecado mortal, e as crianças incircuncisas 33 . Por isso disse ao descer ao inferno: “serei para ti como uma mordida” (Os 13, 14).

32 São Tomás cita neste local o texto latino da Vulgata (“erro mortua, o mors morsus tuus erro, inferne” — Os. 13, 14) e o traduzimos literalmente para dar sentido à explicação que o segue. Todavia a tradução literal do texto hebraico é a seguinte: “Onde estão, ó morte, as tuas epidemias? Onde está o teu contágio, ó abismo?”.

São Paulo aplica este versículo de Oséias, cujo sentido original é a respeito da vitória do povo israelita, à vitória de Cristo. A citação de São Paulo (I Cor. 15, 55), é em sentido livre (ver, “La Sainte Bible, traduite em français sous la direction de l’École Biblique de Jérusalem”, pgs. 1221, 1525).

33 Sobre a morte das crianças não batizadas e o seu destino eterno, ver o excelente livro de Charles Journet — “La vonlonté divine salvifique sur les petits enfants” — Desclée de Brower, Friburgo, 1958.

É sentença comum entre os teólogos que as almas das crianças mortas sem batismo, antes do uso da razão são privadas da visão de Deus, mas não sofrem nem por estarem privadas dessa visão, nem as penas dos sentidos.

São Tomás sempre negou que as crianças mortas em estado de pecado original sofressem qualquer pena, bem que tivesse primeiro afirmado que elas conhecessem a privação da visão (Sent. 2, 33, 2 a 2) e, mais tarde, o tivesse negado (De malo, 5, 3) “estarem privadas de tal bem (visão beatífica) as almas das crianças não sabem, e por essa razão não sofrem, mas o que possuem pela natureza, possuem sem dor”. São Roberto Belarmino admite um certo sofrimento nessas crianças. (cfr. Catechismus Catholics, q. 359 págs. 197, 479).

82 — Do exposto, podemos tirar quatro ensinamentos para nossa instrução. Primeiro, uma firme esperança em Deus, pois quando quer que o homem esteja em aflição, deve sempre esperar do auxílio divino e nele confiar. Nada há de mais sério do que cair no inferno. Se portanto Cristo libertou os que estavam nos infernos, cada um, se é de fato amigo de Deus, deve muito confiar para que Ele o liberte de qualquer angústia. Lê-se: “Esta (isto e, a sabedoria) não abandonou o justo que foi vencido (...) desceu com ele na fossa, e na prisão o não abandonou” (Sab. 10, 13-14). Como Deus auxilia aos seus servos de um modo todo especial, aquele que O serve deve estar sempre muito seguro. Lê-se: “O que teme ao Senhor por nada trepidará e nada temerá por que Ele é a sua esperança” (Ecl 39, 16).

83 — Segundo, devemos despertar em nós o temor, e de nós afastar a presunção. Pois, apesar de Cristo ter suportado a paixão pelos pecadores, e ter descido aos infernos, não libertou a todos, mas somente àqueles que estavam sem pecado mortal, como acima foi dito. Aqueles que morreram em pecado mortal, deixou-os abandonados. Por isso, ninguém que desça de lá com pecado mortal espere perdão. Mas ficarão no inferno o tempo em que os Santos Patriarcas estiverem no Paraíso, isto é, para toda a eternidade. Lê-se em São Mateus: “Irão os malditos para o suplício eterno, os justos, porém, para o Paraíso” (Mt 25, 46) 34 .

34 O “Cathecismus Catholicus” elaborado pelo Cardeal Gaspani com a participação de respeitáveis teólogos, aprovado pela Santa Sé, assim define, em apêndice, a doutrina a respeito do inferno e do purgatório: “Com relação ao inferno deve-se crer com fé divina: 1° — Que existe o inferno constituído pelos demônios e pelos que morreram em pecado mortal, mesmo que fosse um só. 2° — Que no inferno os condenados são atormentados por dupla pena: a de dano e a pena dos sentidos, sendo esta principalmente de fogo. 3° — Que as penas que os condenados do inferno cumprem são eternas, e jamais terão fim, nem serão atenuadas. 4° — Que não são as mesmas penas para todos, mas diversa, conforme o número e a gravidade dos pecados, que mereceram a condenação eterna.

84 — Terceiro, devemos viver atentos, porque se Cristo desceu aos infernos para a nossa salvação, também nós devemos com solicitude lá descer em espírito, meditando sobre às penas nele existentes, imitando o Santo Ezequias, que dizia: “Irão os malditos para o suplício eterno, os justos, porém, para o Paraíso” (Is. 38, 10). Desse modo, aquele que em vida vai lá pela meditação, não descerá facilmente para o inferno na morte, porque essa meditação afasta do pecado. Aos vermos como os homens deste mundo evitam as más ações por temor das penas infernais, como não deveriam eles muito mais se resguardarem do pecado por causa das penas do inferno, que são muito mais longas, mais cruéis e mais numerosas? Eis porque lê-se nas Escrituras: “Lembra-te dos teus últimos dias, e não pecarás para sempre” (Ecl 7, 40).

É teologicamente certo, bem que não de fé, que o fogo, com o qual os condenados do inferno são atormentados é um fogo real ou corpóreo, não metafórico. (...).

É disputado ainda livremente entre os teólogos: de que maneira o fogo real pode atormentar os espíritos puros, como o dos demônios, e as almas dos condenados antes da ressurreição dos corpos; qual a natureza do fogo do inferno; onde se encontra o inferno, se acima, ou abaixo da terra, se é um lugar, se é um estado... Com relação ao Purgatório, é de fé: 1°) Que existe o purgatório, onde são detidas as almas dos que morrem sem pecado mortal, mas que devem ainda cumprir por algum tempo algo devido às penas. 2°) Que no purgatório as almas são punidas pela pena de dano e pela pena dos sentidos, isto é, pela privação temporal da visão beatífica e por outras graves penas. 3°) Que as penas das almas no purgatório, quanto à duração e a dureza devida à pena de cada um, são dissemelhantes entre si. 4°) Que as penas dos que aí estão podem se tornar mais breves e mais leves pelos sufrágios realizados pelas suas almas. Não é de fé que as almas são atormentadas no Purgatório por fogo real ou corpóreo, não metafórico. (...). Livremente se disputa: se há o fogo do Purgatório e se a sua natureza é a mesma que a do fogo do inferno, bem que tenha menor força atormentadora; como esse fogo atinge as almas separadas dos corpos; em que lugar está o Purgatório; se é lugar, ou estado” (págs. 484 e 486).

85 — O quarto ensinamento tirado da descida de Cristo aos infernos, é nos ter Ele oferecido um exemplo de amor. Cristo desceu aos infernos para libertar os seus. Devemos também nós lá descer pela meditação, para auxiliar os nossos. Eles, por si mesmos, nada podem conseguir. Nós é que devemos ir em socorro dos que estão no purgatório. Se alguém não quisesse socorrer um ente querido que estivesse na prisão, como isso nos pareceria cruel! No entanto, seria muito mais cruel aquele que não viesse em socorro do amigo que está no purgatório, pois não há comparação entre as penas deste mundo e aquelas. Lê-se a esse respeito: “Tende piedade de mim, tende piedade de mim, pelo menos vós, ó meus amigos, porque a mão de Deus me socorre” (Jo 19, 21). — “É santo e salutar o pensamento de orar pelos defuntos para que sejam livres dos pecados” (Mc 19, 46).

86 — São auxiliados os que estão no purgatório principalmente por três atos, conforme disse Agostinho: pelas Missas, pelas orações e pelas esmolas. Gregório acrescenta um quarto: o jejum. Não deve causar admiração que assim seja, porque também neste mundo o amigo pode satisfazer pelo amigo. A mesma coisa acontece com os que estão no purgatório.

87 — É necessário que o homem conheça duas coisas: a glória de Deus e a pena do inferno. Elevados pela glória de Deus, e aterrorizados pela pena do inferno, os homens cuidam melhor das suas ações e afastam-se do pecado.  Mas é muitíssimo difícil para o homem conhecer essas duas coisas. Com relação à glória, lê-se: “Quem poderá conhecer as coisas do céu?” (Sb 9, 16). Isso é realmente muito difícil para os habitantes da terra, porque se lê em São João: “O que é da terra, fala das coisas da terra” (Jo 3, 31). Para os espirituais, porém, não o é, porque “o que veio do céu, está acima de todos”, conforme continua aquele texto. Por conseguinte, Deus desceu do céu e se encarnou, para nos ensinar as coisas do céu.

Com relação à pena do inferno, era também muito difícil conhecela. Lê-se no Livro da Sabedoria: “Não se conhece quem tenha voltado dos infernos” (Sb 2, 1). Essa passagem da Escritura refere-se às pessoas dos ímpios. Mas agora isso não mais pode ser dito, porque, como Ele desceu do céu para ensinar as coisas do céu, também ressurgiu dos infernos para esclarecer-nos sobre as coisas do inferno.

É necessário, pois, que creiamos não apenas que Ele se fez homem e que morreu, bem como que ressurgiu dos mortos. Por esse motivo é professado no Credo: “Ao terceiro dia ressurgiu dos mortos” 35 .

35 São Tomás aplica a doutrina hilemórfica para explicar a reunião da alma ao corpo de Cristo na Ressurreição. O corpo de Cristo conservou, após a morte, a sua unidade devido à Pessoa do Verbo à qual estava unido, e, por isso não se corrompeu (cfr. S. T. III, 50, 5). Sendo a alma a sua forma substancial e princípio da vida humana, refez-se a natureza humana de Cristo pela re-união da alma com o corpo. Não havia uma forma intermediária entre o corpo e a alma de Cristo assumiu (informou, vivificou) o seu corpo. “O corpo de Cristo tombou pela morte, enquanto foi separado da alma, que era a sua perfeição formal. Para que houvesse verdadeira Ressurreição de Cristo, era conveniente que o mesmo corpo de Cristo pela segunda vez re-unisse à mesma alma. E porque a verdadeira natureza do corpo vem da forma, deve-se concluir que depois da Ressurreição o corpo de Cristo era o verdadeiro, e da mesma natureza do primeiro. Se o seu corpo fosse fantástico, não teria havido verdadeira Ressurreição, mas apenas aparente”. (S.T. III, 54, 1 c). “O corpo de Cristo na Ressurreição foi da mesma natureza, mas de diferente glória. Portanto tudo o que pertence à natureza do corpo humano estava totalmente no corpo de Cristo Ressuscitado. É evidente que pertencem à natureza do corpo humano, as carnes, os ossos, o sangue, etc. Por isso todas estas coisas estavam no corpo de Cristo Ressuscitado, integralmente e sem diminuição alguma. De outro modo, não haveria perfeita Ressurreição se não fosse reintegrado tudo o que se separou pela morte”. (S. T. III, 54, 2 c).

88 — Lemos nos Evangelhos que muitos ressuscitaram dos mortos, como Lázaro, o filho da viúva e o filho do chefe da Sinagoga.

Mas a Ressurreição de Cristo difere daquelas e de outras, em quatro aspectos.

Primeiro, devido à causa da ressurreição, porque os outros que ressuscitaram, não ressuscitaram por próprio poder, mas pelo poder de Cristo ou, das orações de algum santo. Cristo ressuscitou por próprio poder, porque não era apenas homem, mas também Deus, e a divindade do Verbo jamais se separou nem da sua alma, nem do seu corpo. Por isso, o corpo reassumiu a alma e a alma o corpo, quando queria. Lê-se: “Tenho poder para entregar a minha alma, bem como para a reassumir” (Jo 10, 18).

Bem que tenha sido morto, não o foi por fraqueza ou por necessidade, mas, espontaneamente. Isto é verdade, porque quando Cristo entregou o seu espírito, deu um grito. Os outros, porém, que morrem, não o podem dar, porque morrem por fraqueza. O centurião exclamou no Calvário: “Ele era verdadeiramente o Filho de Deus” (Mt 87,54).

Como Cristo por sua própria força entregou a alma, reassumiu-a também por própria força. Por isso é dito no Credo — ressuscitou e não — foi ressuscitado, como se o fosse por outro. Lê-se nos Salmos: “Dormi, cai em profundo sono e ressurgi” (Sl 29, 10). Não há, porém, contradição entre este texto e o dos Atos dos Apóstolos: “Este Jesus, ressuscitou-O Deus” (At 2, 32), porque o Pai O ressuscitou, e o Filho também o ressuscitou, já que a virtude do Pai e do Filho são a mesma virtude.

89 — Difere, em segundo lugar, devido à vida que fora ressuscitada. Cristo ressuscitou para a vida gloriosa e incorruptível, conforme se lê na Carta aos Romanos: “Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai” (Cor 6, 4). Os outros, para a mesma vida que antes possuíam, como se verificou em Lázaro e nos outros ressuscitados.

90 — Difere ainda a Ressurreição de Cristo da dos outros quanto à sua eficácia e quanto ao seu fruto, porque foi em virtude daquela que todos ressuscitaram. Lê-se: “Muitos corpos dos Santos que dormiam ressuscitaram” (Mt 2, 7, 52) — “Cristo ressurgiu dos mortos, primícia dos que dormem” (Cor 15, 20).

Vede bem que Cristo pela Paixão chegou à glória, conforme está escrito em São Lucas: “Não foi conveniente que Cristo assim padecesse, para poder entrar na sua glória?” (Is 24, 26) — para nos ensinar como podemos chegar à glória: “Por muitas tributações devemos passar para entrar no reino de Deus” (Mt 14, 21).

91 — A quarta diferença é relativa ao tempo, porque a ressurreição dos outros foi retardada para o fim dos tempos, a não ser que tenha sido concedida por privilégio, como a da Virgem Santa, e, conforme se crê piedosamente, a de São João Evangelista.

Cristo, porém, ressuscitou ao terceiro dia porque a sua Ressurreição e a sua Morte realizaram-se para a nossa salvação, e Ele, portanto, só quis ressurgir quando fosse isso vantajoso para a nossa salvação.

Ora, se ressuscitasse imediatamente após a morte, não se acreditaria que Ele tivesse morrido. Se fosse demasiadamente protelada a ressurreição, os discípulos não perseverariam na fé, e nenhuma utilidade teria a sua Paixão. Lê-se nos Salmos: “Que utilidade haveria em ter eu derramado o sangue, se desci ao lugar da corrupção?” (Sl 29, 10). Ressuscitou no terceiro dia para que se acreditasse na sua morte e para que os discípulos não perdessem a fé.

92 — Sobre o que acabamos de expor, podemos fazer quatro considerações para nossa instrução.

Primeiro, que devemos nos esforçar para ressurgirmos espiritualmente da morte da alma, contraída pelo pecado, para a vida da justificação que se obtêm pela penitência. Escreve o Apóstolo: “Surge, tu que dormes, ressurge dos mortos, e Cristo te iluminará” (Ef 5, 14).

Esta é a primeira ressurreição da qual nos fala o Apocalipse: “Feliz o que teve parte na primeira ressurreição” (Ap 20, 6).

93 — Segundo, que não devemos protelar a nossa ressurreição da morte, mas realiza-la já, porque Cristo ressuscitou no terceiro dia.

Lê-se: “Não tardes na conversão para o Senhor, e não a delongues dia por dia” (Ecl 5, 8).

Por que estás agravado pela fraqueza, não podes pensar nas coisas da salvação, e porque perdes parte de todos os bens que te são concedidos pela Igreja, incorres em muitos males perseverando no pecado.

Como disse o Venerável Beda, o diabo quando mais tempo possui uma pessoa, tanto mais dificilmente a deixa.

94 — Terceiro, que devemos também ressurgir para a vida incorruptível, de modo que não mais morramos, isto é, que devemos perseverar no propósito de não mais pecar. Lê-se na Carta aos Romanos: “Assim também vós vos considereis mortos para o pecado, vivendo para Deus em Cristo Jesus. Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo, obedecendo-lhes as concupiscências; não exibais os vossos membros como armas de maldade para o pecado, mas deveis vos exibir a vós mesmos para Deus como vivos que saíram da morte” (Rm 6, 9; 11-13).

95 — Quarto, que devemos ressurgir para uma vida nova e gloriosa evitando tudo o que antes nos foram ocasião e causa de morte e de pecado. Lê-se na Carta aos Romanos: “Como Cristo ressuscitou de entre os mortos pela glória do Pai, também nós devemos andar na novidade de vida” (Rm 5, 4). Esta vida nova é a vida de justiça, que renova a alma e a conduz para a glória. Amém.

 

ARTIGO SEXTO

— Subiu aos céus está sentado à direita de Deus Pai Todo Poderoso —

96 — Depois de se afirmar a Ressurreição de Cristo, convém crer na sua Ascensão, pois Ele subiu para o céu após quarenta dias de ressuscitado. Eis porque se diz no Credo: “Subiu aos céus”.

Devemos considerar as três características principais deste acontecimentos, isto é, que ele foi sublime, racional e útil.

97 — Foi sublime, porque Ele subiu para os céus. Explica-se isto por três maneiras:

Primeiro, porque Ele subiu acima de todos os céus corpóreos 36, conforme se lê em São Paulo: “Subiu acima de todos os céus” (Ef 4, 10).

Tal ascensão foi realizada pela primeira vez por Cristo, porque até então o corpo terreno estivera somente na terra, sendo o paraíso, onde esteve Adão, situado também na terra.

36 “São Tomás fala conforme o sistema dos antigos que distinguiam muitos céus materiais, como nós distinguimos troposfera, estratosfera, ionosfera... A Ascensão de Cristo — acima de todos os céus materiais — significa que Ele saiu do cosmos” (Le Credo, Saint Thomas d’Aquin, Introduction, traduction et notes par un moine de Fontgombault, Nov. Ed. Latines, Paris, 1969, pág. 230) .

Na “Suma Teológica” São Tomás explica o que seja “subir acima de todos os céus”: “quanto mais alguns corpos participam da divina bondade, tanto mais estão acima da ordem corporal, que é a ordem local (...) Mais participa da bondade divina um corpo pela glória, que qualquer corpo natural pela forma da sua natureza. Ora, entre os demais corpos gloriosos, é evidente que o corpo de Cristo refulge por maior glória. Portanto foi convenientíssimo a Ele que fosse constituído sobre todos os corpos no alto. Comentando a carta aos Efésios, capítulo IV, — ‘Subindo ao alto’ —, assim lê-se na glossa: ‘Isto é, pelo lugar e pela dignidade’” (S. T. III, 57, 4 ,c).

Segundo, porque subiu sobre todos os céus espirituais, isto é, acima das naturezas espirituais, como se lê também em São Paulo: “Colocando (o Pai) Jesus à sua direita nos céus, sobre todo Principado, Potestade, Virtude, Dominação e acima de todo nome que se pronuncia não só neste século, mas também nos futuros, e tudo colocou sob os seus pés” (Ef 1, 20).

Terceiro, porque subiu até ao trono do Pai. Lê-se nas Escrituras: “Eis que vinha sobre as nuvens do céu como o Filho de Homem; Ele dirigiu-se para o Ancião, e foi conduzido à sua presença” (Dn 7, 13). Lê-se também em São Marcos: “E o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado subiu ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16, 19).

98 — A expressão direita de Deus não deve ser entendida no sentido corporal, mas em sentido metafórico. Enquanto Deus, dizse que Cristo está sentado à direita de Deus, porque é igual ao Pai; enquanto homem, diz-se que Cristo está sentado à direita do Pai, porque goza dos melhores bens. O diabo aspirou também semelhante elevação, como se lê em Isaías: “Subirei ao céu, acima dos astros de Deus colocarei o meu trono; sentar-me-ei no Monte da Promessa, que está do lado do Aquilão; subirei acima da elevação das nuvens, serei semelhante ao Altíssimo” (Is 14, 13) 37.

Mas a semelhante altura não se elevou senão Cristo, razão pela qual se diz no Credo: “Subiu aos céus está sentado à direita do Pai”, o que é confirmado no Livro dos Salmos: “Disse o Senhor ao meu Senhor, senta-te a minha direita” (Sl 109, 1).

99 — A Ascensão de Cristo foi racional por três motivos 38. Primeiro, porque o céu era devido a Cristo por exigência da sua natureza. É, com efeito, natural que cada coisa retorne à sua origem. Cristo tem sua origem em Deus, que está acima de todas as coisas, conforme Ele mesmo disse: “Saí do Pai, e vim ao mundo; deixo agora o mundo e voto para o Pai” (Jo 16, 18).

Disse também: “ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu” (Jo 3, 13).

Apesar de os Santos irem para o céu, todavia não o fazem como Cristo: porque Cristo o fez por seu próprio poder; os santos, porém, levados por Cristo. Lê-se no Livro dos Cânticos: “Leva-me na Vossa seqüência” (Ct 1, 3). Pode-se explicar de outra maneira porque se diz que ninguém subiu ao céu a não ser Cristo: os santos não sobem senão enquanto membros de Cristo, que é a cabeça da Igreja, conforme está escrito em São Mateus: “Onde estiver o corpo, aí as águias se congregarão” (Mt 24, 28) 39.

Em segundo lugar, a Ascensão de Cristo foi racional devido à sua vitória. Sabemos que Cristo veio ao mundo para lutar contra o diabo, e o venceu. Por isso mereceu ser exaltado sobre todas as coisas. Confirma-o o Apóstolo: “Eu venci, e sentei-me com o Pai no seu trono” (Ap 3, 21).

37 Assim precisa S. Tomás na “Suma Teológica” o sentido da expressão direita de Deus:

“Sentar-se à direita de Deus não significa estar simplesmente na bem-aventurança eterna, mas possuir a bem-aventurança com certo poder dominativo, quase próprio e natural. Esse poder só a Cristo convém, não a nenhuma outra criatura” (S.T. III. 58, 4, ad2).

38 Apesar de toda a exposição do Credo feita aqui por São Tomás ser no sentido de um trabalho teológico, no qual ele usa argumentos muito simples acessíveis ao senso comum, quis ressaltar mais, neste ponto, a conveniência da Ascensão de Cristo, demonstrada por motivos racionais. Esses motivos procuram sempre explicar um texto da Sagrada Escritura. A teologia não é apenas uma explicação filológica ou histórica da Revelação, mas é principalmente o esforço da inteligência humana para penetrar no sentido racional da Palavra de Deus revelada. Como a inteligência humana procura a verdade pelo raciocínio lógico e certo, a teologia é uma ciência especulativa coerente e racional. Objeto da ciência teológica refere-se “a Deus principalmente; às criaturas conforme referem-se a Deus como princípio e fim” (S. T. I. 1, 3 ad 1).

A teologia é ciência superior a todas as outras, quer às ciências especulativas, quer às ciências práticas, quanto à certeza das suas conclusões e quanto à dignidade do seu objeto (S. T. I. 1, 5). Porque a teologia apresenta a última e satisfatória explicação das coisas na última causa, que é Deus, é chamada de Sabedoria. “Esta doutrina (i. é. a teologia) é máxime a sabedoria entre todas as sabedorias humanas, não apenas em uma determinada ordem, mas de um modo absoluto”. (S. T. I. 1, 6c).

39 O mesmo texto escriturístico (Mt. 24, 28) é interpretado por São Tomás, anteriormente, com pequena diferença.

A Ascensão de Cristo foi racional, em terceiro lugar por causa da humildade de Cristo, que, sendo Deus, quis fazer-se homem; sendo Senhor, quis suportar a condição de escravo, fazendo-se obediente até à morte, segundo se lê na Carta aos Filipenses, (2, 1), descendo ainda até o inferno. Por isso mereceu ser exaltado até ao céu e sentar-se à direita de Deus. A humildade é, com efeito, o caminho da exaltação, como se lê em São Lucas: “Quem se humilha, será exaltado” (Lc 14, 11). Escreveu também São Paulo: “O que desceu do céu, este é o que subiu acima de todos os céus” (Ef 4, 10). 100 — A Ascensão de Cristo foi além de sublime e racional, também útil. Essa afirmação pode ser esclarecida em três dos seus aspectos:

O primeiro, refere-se ao fim da Ascensão, pois Cristo foi para o céu para nos conduzir até lá. Desconhecíamos o caminho, mas Ele no-lo ensinou. Lê-se: “Subiu abrindo o caminho na frente deles” (Mq 2, 13). Subiu ao céu também para nos fazer seguros da posse do reino celeste, conforme se lê em São Paulo: “Vou preparar-vos o lugar” (Jo 14, 2).

O segundo, refere-se à segurança que a Ascensão nos trouxe, pois subiu aos céus para interceder por nós. Lê-se: “Subiu por si mesmo ao Deus sempre vivo para interceder por nós” (Heb 7, 25). Lê-se também: “Temos um advogado junto ao Pai, Jesus Cristo” (1 Jo 21).

O terceiro para atrair a si os nossos corações, segundo está escrito em São Mateus: “Onde está o teu coração está o teu tesouro” (Mt 6, 21), e para que desprezemos as coisas temporais, como nos exorta o Apóstolo São Paulo: “Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus; saboreai as coisas do alto e não as da terra” (Col 3, 1).

 

ARTIGO SÉTIMO

— Donde há de vir julgar os vivos e os mortos —

101 — Julgar é função do rei: “O rei, que está sentado no trono da justiça, pelo seu olhar dissipa todo o mal”. (Pr 20, 8). Porque Cristo subiu ao céu e sentou-se à direita de Deus como Senhor de todos, evidentemente compete-lhe o juízo. Por isso pela Regra da Fé Católica confessamos que virá julgar os vivos e os mortos. Isto também foi dito pelo Anjo: “Este Jesus, que do meio de vós foi elevado aos céus, virá também assim como o vistes subir par aos céus” (Mt. 1, 11).

102 — Devemos considerar nesse Juízo três coisas: primeiro, a sua forma; segundo, que ele deve ser temido, e, terceiro, como para ele devemos nos preparar.

103 — No juízo devemos ainda distinguir três elementos concorrentes: quem é o juiz, quem deve ser julgado e qual a matéria do julgamento. 104 — Cristo é o Juiz, conforme se lê no Livro dos Atos: “Ele que foi constituído por Deus Juiz dos vivos e dos mortos” (Mt 10, 42). Pode este texto ser interpretado, ou chamando de mortos os pecadores e, de vivos, os que vivem retamente, ou designando vivos, por interpretação literal, os que agora vivem, e mortos, todos os que morreram. Ele é Juiz não só enquanto Deus, mas também como homem, por três motivos 40.

40 Conforme São Tomás, o poder de julgamento compete só a Deus, de modo comum à Santíssima Trindade, por apropriação (isto é, atribuição de uma ação comum das Três Pessoas a uma só, por motivos razoáveis) ao Filho (cfr. S.T. III, 59, 1c). A Cristo, enquanto homem, o poder judicativo compete-lhe por comissão de Deus, enquanto Cristo é a cabeça do corpo da Igreja e tem os membros desse corpo sob a sua jurisdição (cfr. S.T. III, 59, 2c).

Primeiro, porque é necessário, aos que vão ser julgados, verem o juiz. Como a Divindade é de tal modo deleitável que ninguém a pode ver sem se deleitar, e nenhum condenado poderia vê-la sem que não sentisse logo alegria, foi necessário que Cristo aparecesse só em forma de homem, para que fosse visto por todos. Lê-se em S. João: “Deu-lhe o poder de julgar, porque é Filho do Homem” (Jo 5, 27).

Segundo, porque Ele mereceu este ofício como homem. Ele, enquanto homem, foi injustamente julgado e, por isso, Deus O fez Juiz de todos. Lê-se: “A tua causa foi julgada como a de um ímpio; receberás o julgamento das causas” (Jo 36, 17).

Terceiro, para que os homens não mais desesperem, vendo-se julgados por um homem. Se somente Deus julgasse, os homens ficariam desesperados, devido ao temor. (Mas todos verão um homem julgar), pois se lê em São Lucas: “Verão o Filho do Homem vindo na nuvem” (Lc 21, 27). Serão julgados os que existiram, os que existem e existirão, conforme ensina São Paulo: “Convém que todos nós sejamos apresentados diante do tribunal de Cristo, para que cada um manifeste o que fez de bom e de mal enquanto estava neste corpo” (2 Cor 5, 10).

105 — Há quatro diferenças, segundo São Gregório, entre os que devem ser julgados. Estes, ou são bons, ou são maus.

Entre os maus, alguns serão condenados, mas não julgados, como os infiéis, cujas ações não serão discutidas, por que, como está escrito, “o que não crer já está julgado” (Jo 3, 18). Outros, porém, serão condenados e julgados, como os fiéis que morreram em estado de pecado mortal. Disse o Apóstolo: “o salário do pecado é a morte” (Rm 6, 23). Estes não serão excluídos do Julgamento por causa da fé que tiveram.

Entre os bons também haverá os que serão salvos sem o Julgamento, os pobres de espírito por amor de Deus. lê-se em São Mateus: “vós que me seguistes, na regeneração, quando o Filho do Homem estiver sentado em seu trono majestoso, sentar-voseis também sobre doze tronos, julgando as doze tribos de Israel” (Mt 19, 28).

Estas palavras não se dirigem só aos discípulos, mas a todos os pobres de espírito. Caso assim não fosse, São Paulo que trabalhou mais que todos, não estaria nesse número.

Este texto deve, portanto, ser aplicado a todos os que seguiram os Apóstolos, e aos varões apostólicos. Eis porque São Paulo escreve: “Não sabeis que julgamos os Anjos?” (1 Cor 6, 3). Lê-se ainda em Isaías: “O Senhor virá com seniores e com os príncipes do seu povo” (Is 3, 14).

Outros serão salvos e julgados, isto é, aqueles que morreram em estado de justificação. Bem que tivessem morrido neste estado, erraram todavia em alguma coisa durante a vida terrestre. Serão, por isso, julgados, mas receberão a salvação.

106 — Todos serão julgados pelos atos bons e maus que praticaram. Lê-se na Escritura: “Segue os caminhos do teu coração... mas fica certo de que Deus te levará ao julgamento por causa deles” (Ecle 11, 9); “Deus citará no julgamento todas as tuas ações, até as ocultas, quer sejam boas, quer sejam más” (Ecle 13 ,14).

Serão julgados também pelas palavras inúteis: “Toda palavra inútil pronunciada por alguém, este dará conta dela no dia do juízo” (Mt 12, 36).

Serão julgados, por fim, pelos pensamentos que tiveram. Lê-se no Livro da Sabedoria: “Os ímpios serão argüidos a respeito dos seus pensamentos” (Sb 1, 9).

Fica assim esclarecida qual a matéria do julgamento.

107 — Por quatro motivos deve ser aquele Juízo temido.

Primeiro, devido à sabedoria do Juiz, porque Ele conhece todas as coisas, os pensamentos, as palavra e as ações, já que, como se lê na Carta aos Hebreus, “todas as coisas estão nuas e descobertas aos seus olhos” (Heb 4, 13). Lê-se ainda na Escritura: “Todos os caminhos dos homens estão diante dos seus olhos” (Pr 16, 1).

Conhece Ele as nossas palavras: “Os seus ouvidos atentos ouvem tudo” (Sb 1, 10).

Conhece os nossos pensamentos: “O coração do homem é depravado e impenetrável. Quem o pode conhecer? Eu, o Senhor, penetro nos corações e sondo os rins, retribuo a cada um conforme o seu caminho e conforme os pontos dos seus pensamentos” (Jr 17, 9).

Haverá também neste Juízo testemunhas infalíveis, isto é, as próprias consciências dos homens, segundo se lê em São Paulo: “A consciência deles servirá de testemunho no dia em que o Senhor julgar as coisas ocultas dos homens, enquanto pelos pensamentos se acusam ou se defendem” (Rm 2, 15-16).

108 — Segundo, devido ao poder do Juiz, porque Ele é em si mesmo todo poderoso. Lê-se: “Eis que o Senhor virá com fortaleza” (Is 11, 10).

É poderoso também sobre os outros, porque toda criatura estava com Ele. Lê-se: “O universo inteiro combaterá com ele contra os insensatos” (Sb 5, 2); “Ninguém há que possa livrar-se da Vossa mão” (Jo 10, 7); e ainda: “Se subo aos céus, Vós ali estais; se desço aos infernos, estais lá também” (Sl 138, 8).

109 — Terceiro, devido à justiça inflexível do Juiz. Agora é o tempo da misericórdia. Mas o tempo futuro é tempo só de justiça. Por isso, o tempo de agora é nosso; mas o tempo futuro será só de Deus.

Lê-se: “No tempo que eu determinar, farei justiça” (Sl. 134, 3). “O varão furioso de ciúmes não lhe perdoará no dia da vingança, não atenderá às suas súplicas, nem receberá como satisfação presentes, por maiores que sejam” (Pr 6, 34).

110 — Quarto, devido à ira do Juiz. Aparecerá aos justos doce e deleitável, porque, conforme diz Isaías: “Verão o rei na sua beleza” (Is 33, 17). Aos maus, porém, aparecerá tão irado e cruel, que eles dirão aos montes: “Cai sobre nós, e escondei-nos da ira do cordeiro” (Ap 6, 16).

Esta ira em Deus não significa uma comoção do espírito, mas significa o efeito da ira, a pena infligida aos pecados, isto é, a pena eterna. A propósito disso escreveu Orígenes: “Como serão estreitos os caminhos no juízo! No fim estará o Juiz irado”.

111 — Contra este temor devemos aplicar quatro remédios.

O primeiro remédio é a boa ação. Lê-se em São Paulo: “Queres não temer a autoridade? Faz o bem e receberás dela o louvor” (Rm 13, 3).

O segundo, é a confissão dos pecados cometidos e a penitência feita por eles. Na confissão deve haver três coisas: a dor interior, a vergonha da confissão dos pecados e o rigor da satisfação por eles. São essas três coisas que redimem a pena eterna.

O terceiro remédio é a esmola que torna tudo puro, segundo as palavras do Senhor: “Conquistai amigos com dinheiro da iniquidade, para que, quando cairdes, eles vos recebam nas tendas eternas” (Lc 26, 9) 41.

O quarto remédio é a caridade, quer dizer, o amor de Deus e do próximo, pois, conforme a Escritura: “A caridade cobre uma multidão de pecados” (1 Pd 4, 8; Pr 10, 12) 42.

41 Conforme São Tomás, a esmola é um ato externo da virtude teologal da caridade, imperado pela virtude interior (efeito também da caridade) da misericórdia. Somente informada pela caridade a esmola realiza-se plenamente, isto é, por amor de Deus, prontamente, com prazer e adequada (cfr. S T. II. II, 32 c e ad 1). É obrigação para o cristão dar esmola para aos que estão em extrema necessidade; para os outros, é aconselhável (cfr. I, c. art. 5 c). Quer dada por obrigação, quer apenas por respeito ao conselho, a esmola manifesta a caridade que vai no coração do cristão.

Mesmo que o cristão esteja dando a esmola como satisfação dos pecados, que é ato de justiça; ou como a oferta a Deus, que é ato de religião, ela não deixa de ser imperada pela caridade (cfr. I. c. art. 1 ad 2).

Ainda em nossos dias, quando as obras de justiça social e de beneficência realizam aquilo que pertenceria à esmola, o amor de caridade faz com que o cristão execute aquelas obras com sentimento interior de misericórdia, e, que não deixe de dar esmola, quando se apresenta uma situação que a requer.

42 A caridade é uma virtude sobrenatural e somente a possuem aqueles que a receberam como um dom gratuito de Deus. não é apenas uma amizade efetiva ou compassiva ao próximo. Aos que assim a entendem, São Tomás responde:

“Essa razão seria certa, se Deus e o próximo fossem objeto da caridade no mesmo nível. Mas isso não é verdadeiro. Deus é o principal objeto da caridade; o próximo é amado com caridade por causa de Deus” (II. II. 23, 5 ad 1).

Deus deve ser mais amado que o próximo (aliás é doutrina evangélica), conforme o argumento de São Tomás:

“Qualquer amizade dirige-se em primeiro lugar para aquilo em que se encontra principalmente o bem sobre o qual se fundamenta a comunicação. [...]

A amizade de caridade fundamenta-se sobre a comunicação da felicidade, que consiste essencialmente em Deus, como no primeiro princípio do qual ela deriva para todos os que são capazes de alcançar a felicidade.

Por isso, em primeiro lugar, e máxime, Deus deve ser amado com caridade; o próximo, porém, como aquele que conosco juntamente participa da felicidade” (II. II, 26, 2c).

 

ARTIGO OITAVO

— Creio no Espírito Santo —

112 — Como foi dito, o Verbo de Deus é o Filho de Deus, como o verbo (mental) do homem é concebido pela inteligência. Mas algumas vezes o verbo (mental) do homem fica como morto, quando alguém pensa em realizar alguma coisa, mas a vontade de executa-la não se manifesta. Assim também quando alguém crê e não faz as obras, a sua fé pode ser chamada de morta, conforme se lê na carta de São Tiago: “Como o corpo sem alma é morto, a fé sem as obras é morta” (Tiag. 2, 26).

A carta aos Hebreus afirma que o Verbo de Deus é vivo, lendo-se nela: “é viva a palavra de Deus” (Heb. 4, 12). Por essa razão é necessário que haja em Deus vontade e amor 43. Escreve Santo Agostinho no seu livro De Trinitate: “O verbo sobre o qual pretendemos dar uma noção é um conhecimento com amor”.

43 São Tomás, neste Sermão, refere-se à processão do Espírito, conforme a sua última tese sobre tão atraente assunto teológico.

Nas primeiras obras. S. Tomás explicava a processão do Espírito Santo em analogia com o amor mútuo de duas pessoas: a Terceira Pessoa seria o fruto do amor mútuo entre o Pai e o Filho. É uma analogia tirada da vida social humana e prendese aos chamados atos nocionais das Pessoas Divinas. Como essa tese pode dar margem a antropomorfismo, o Doutor Angélico substituiu-a por outra fundamentada na psicologia individual: o Espírito Santo procede do Pai e do Filho enquanto Deus se ama. Assim como o Filho procede do conhecimento de Deus, o Espírito Santo do amor de Deus. (“Cum igitur in Deo seipsum intelligente et amante, Verbum sit Filius, is autem cuius est Verbum, sit Verbi Pater, necesse est quod Spiritus Sanctus qui pertinet ad amorem secundum quod Deus in seipso est ut amatum in amante, ex Patre procedat et Filio — Sicut igitur in divinis modus ille quo Deus est in Deo ut intellectum in intellegente exprimitur per hoc quod dicitur Filium qui est Verbum Dei, ita modum quo Deus est in Deo sicut amatum in amante exprimimus per hoc, quod ponimus ibi Spiritum qui est amor Dei” — COMPENDIUM THEOLOGIÆ, caps. 49, 46).

O assunto foi magistralmente tratado pelo nosso Pe. Maurilo Penido em diversas das suas obras, principalmente no trabalho Gloses sur la procesion d’amour dans la Trinité (Ephemerides Theologicæ Lovaniensis, fev. 1937, págs. 33 ss.).

Como o Verbo de Deus é o Filho de Deus, assim também o amor de Deus é o Espírito Santo. Por isso, quando o homem ama a Deus, possui o Espírito Santo. São Paulo escreve: “A caridade de Deus foi difundida em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado” (Rm 5, 5).

113 — Houve pessoas que mal compreendendo a doutrina sobre o Espírito Santo, afirmaram ser Ele criatura, que era menor que o Pai e que o Filho, que era ainda servo e ministro de Deus 44. Por isso os Santos Padres, para que tais erros fossem rejeitados, acrescentaram cinco palavras qualificativas do Espírito Santo, no Símbolo 45.

(Analisemos esses cinco termos e vejamos porque o Espírito Santo não é uma criatura, mas Deus).

114 — Primeiro. Apesar de existirem outros espíritos, os anjos, são contudo todos eles ministros de Deus, conforme a palavra do Apóstolo: “Todos são (os Anjos) ministros que servem” (Heb 1, 14). Mas o Espírito Santo é Senhor, conforme se lê em São João: “O Espírito é Deus” (Jo 4, 24), o que é confirmado por São Paulo: “O Senhor é Espírito” (2 Cor 3, 17), que acrescenta logo em conclusão: “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade”. Eis porque o Espírito nos faz amar a Deus e liberta-nos do amor ao mundo.

44 A heresia do arianismo (ver nota 8) negava a divindade do Filho. Logicamente deveria negar também a divindade da Terceira Pessoa. Como nas lutas dogmáticas contra o arianismo as atenções dirigiram-se para a pessoa do Filho, só mais tarde a Igreja condenou o erro dos que consideravam o Espírito Santo uma criatura, baseando-se estes, para tal afirmação, no texto da Escritura (Hebreus, 1, 14) que fala dos espíritos servidores de Deus. O Espírito Santo seria apenas um Anjo mais perfeito.

Santo Atanásio imediatamente levantou-se contra a heresia e no Sínodo de Alexandria (362) ela foi condenada. O bispo de Constantinopla Macedônio propalava essa heresia, sendo por isso deposto em 360. Os seguidores desse erro foram então chamados de macedonianos ou de pneumatômacos. O Concílio Ecumênico de Constantinopla, de 381, condenou definitivamente, para a Igreja Universal, esta heresia.

45 Trata-se do Símbolo Niceno-Constantinopolitano (ver nota 6) no qual foram acrescentados cinco qualificativos ao Espírito Santo, em formulação antimacedoniana: Et in Spiritum Sanctum, Dominum et vivificantem, qui ex Patre Filioque procedit; lá, qui ex Patre per Fillium procedit. Ambas as redações afirmam a divindade de uma só processão do Espírito Santo. Contudo, essa divergência foi motivo de muita controvérsia entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente.

115 — Segundo. No Espírito está a vida da alma que se une a Deus. Deus é então a vida da alma, como a alma é a vida do corpo. O Espírito Santo nos une a Deus por amor, porque Ele é o amor de Deus, e, consequentemente, nos vivifica 46. Lê-se em São João: “O Espírito é que vivifica” (Jo. 6, 64).

46 “O nome amor, em Deus, pode ser tomado essencialmente ou pessoalmente. Sendo tomado na acepção pessoal, é o nome próprio do Espírito Santo, como Verbo é o nome próprio do Filho (S.T. I. 37, 1 c.).

“Como nas coisas divinas aquele modo pelo qual Deus está em Deus, como a coisa intelecta na inteligência, é expresso pelas palavras — o Filho é o Verbo de Deus, assim também o modo pelo qual Deus está em Deus como o amado no amante, é expresso quando dizemos que o Espírito é o amor de Deus” (Compendium Theologiæ. cap. 46).

116 — Terceiro. Devemos considerar que o Espírito Santo é da mesma natureza que o Pai e o Filho: como o Filho é o Verbo do Pai, assim também o Espírito Santo é o Amor do Pai e do Filho. Por essa razão, procede de ambos; e como o Verbo de Deus é da mesma natureza do Pai, assim também o Amor do pai e do Filho. Por isso diz-se: “Que procede do Pai e do Filho”. Vê-se daí claramente que não é criatura.

117 — Quarto. O Espírito Santo é igual ao Pai e ao Filho quanto ao culto que recebe. Lê-se nos Evangelhos: “Os verdadeiros adoradores adorarão ao Pai em Espírito e verdade” (Jo 4, 23); “Ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 19). Foi por esse motivo acrescentado ao Símbolo: “Que com o Pai e o Filho é juntamente adorado”.

118 — Quinto. O Espírito Santo é igual a Deus, porque os santos profetas falaram por Deus. Ora, é evidente que se o Espírito Santo não fosse Deus, não se teria dito que os profetas falaram por Ele. Mas São Pedro o disse: “Inspirados pelo Espírito Santo, falaram os santos homens de Deus” (2 Pd 1, 21). Isaías, que foi profeta, assim fala: “O Senhor meu Deus e seu Espírito me enviaram” (Is 48, 16).

119 — Por esta última afirmação, dois erros são destruídos: o erro do Maniqueus 47, que afirmavam não ter vindo de Deus o Velho Testamento, o que é falso, pois o Espírito Santo falou pelos Profetas; e o erro de Priscila e Montano 48, que afirmavam que os Profetas não falavam por inspiração do Espírito Santo, mas como se fossem homens alucinados.

47 Sobre o Maniqueísmo ver nota 2.

48 Pelo ano de 179 grassou na Ásia Menor a heresia de Montano, que pregava o fim do mundo, grandes austeridades, apresentando-se como profeta. Seguido de duas visionárias, Maximila e Priscila, fez difundir a sua heresia até às Gálias. O grande escritor da primitiva Igreja, Tertuliano, aderiu, no fim da vida, aos erros de Montano.

120 — Muitos frutos provêm para nós do Espírito Santo.

Primeiro, porque Ele nos purifica do pecado. Ora, compete a quem criou uma coisa, refaze-la. A nossa alma foi criada pelo Espírito Santo, porque Deus fez todas as coisas por meio d’Ele, pois é amando a sua própria bondade que Deus faz tudo. Lê-se: “Amais todas as coisas que existem e nada odiastes do que fizestes” (Sb 11, 25).

Lê-se também no livro “Sobre os homens Divinos”, do Pseudo Dionísio: “O divino amor não se podia permitir ficar sem geração” (Cap. IV).

Convém pois que os corações dos homens destruídos pelo pecado fossem refeitos pelo Espírito Santo. Lê-se: “Enviai o Vosso Espírito e tudo será criado e renovareis a face da terra” (Sl. 103, 30).

Nem é motivo de admiração que o Espírito Santo purifique, porque todos os pecados são perdoados pelo amor, conforme se lê nas Escrituras: “Foram-lhe perdoados muitos pecados, porque muito amou” (Is. 7, 47); “A caridade cobre todos os delitos” (Pr 10, 12); “A caridade cobre uma multidão de pecados” (1 Pd 4, 8).

121 — Segundo, porque ilumina a inteligência, já que tudo que sabemos, o sabemos pelo Espírito Santo 49. Confirmaram-no os seguintes textos da Escritura: “O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas sugerirvos-á tudo o que vos disse” (Jo 24 ,26); “A sua unção ensinarvos-á tudo” (1 Jo 2, 27).

49 Subentende-se: tudo o que sabemos no plano sobrenatural, porque a própria inteligência, pela sua capacidade natural, sem a atuação do Espírito Santo, pode conhecer a verdade natural; bem que com dificuldade, mais lenta e parcialmente.

122 — Terceiro, porque o Espírito Santo nos ensina a observar os mandamentos, e, até de certo modo, no-lo obriga.

Ninguém pode seguir os mandamentos de Deus, se não amar a Deus, pois: “Se alguém me amar, observará os meus mandamentos” (Jo 24, 23). Ora, o Espírito Santo nos faz amar a Deus, e nos auxilia nesse sentido. Lê-se no Profeta Ezequiel: “Darvos-ei um novo coração, e colocarei no meio de vós um novo espírito; tirarei o coração de pedra da vossa carne; dar-vos-ei um coração de carne, e colocarei o meu espírito no meio de vós; e farei que guardeis os meus mandamentos e os pratiqueis” (Ez 36, 26).

123 — Quarto, por que Ele confirmará em nós a sua esperança da Vida Eterna, já que o Espírito Santo é o penhor da sua herança, conforme estas palavras do Apóstolo aos Efésios: “Fostes assinalados com o Espírito da promessa, que é o penhor da nossa herança” (Ef 1, 14). Ele é, com efeito, a garantia da Vida Eterna.

A razão disto está em que a Vida Eterna é devida ao homem, enquanto este é filho de Deus, e o é feito, enquanto se assemelha a Cristo. Assemelha-se alguém a Cristo pelo fato de possuir o Espírito de Cristo, que é o Espírito Santo. Lê-se na carta aos Romanos: “Não recebestes o espírito de servidão para recairdes no temor, mas recebestes o Espírito de adoção dos filhos, no qual chamamos Abba, Pai. O próprio Espírito certifica ao nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8, 15-16). Lê-se também em outra carta do Apóstolo: “Porque sois filhos de Deus, enviou Deus o espírito do seu Filho nos nossos corações, chamando — Abba, Pai”. (Gl 4, 46).

124 — Quinto, porque o Espírito Santo nos aconselha em nossas dúvidas e nos ensina qual seja a vontade de Deus. Lê-se: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2, 7); “Escutá-lo-ei como um Mestre” (Is 50, 4).

 

ARTIGO NONO

— Creio na Santa Igreja Católica —

125 — Observamos que em cada homem há uma só alma e um só corpo, mas muitos membros. Assim também a Igreja Católica é um só corpo com muitos membros. A alma que vivifica este corpo é o Espírito Santo 50. Por isso, após a profissão de fé no Espírito Santo é determinado que creiamos na Santa Igreja Católica. Donde este artigo do Símbolo — Creio na Santa Igreja Católica.

A respeito desse assunto, deve-se considerar que a palavra Igreja significa Congregação. Igreja Santa, pois, é o mesmo que congregação dos fiéis. Cada cristão é como um membro desta Igreja, conforme se lê: “Aproximai-vos de mim, ó ignorantes, e congregai-vos na casa da instrução” (Ecl 51, 31).

50 Está aqui esboçada a doutrina do Corpo Místico de Cristo, expressão que define a Igreja de modo mais perfeito. Assim escreve Pio XII na monumental Encíclica “Mystici Corporis Christi”:

“Para definir e descrever esta verdadeira Igreja de Cristo... nada há mais nobre, nem mais excelente, nem mais divino do que o conceito expresso na denominação “Corpo Místico de Cristo”; conceito que imediatamente resulta de quanto nas Sagradas Letras e nos escritos dos Santos Padres freqüentemente se ensina”

Nesta Encíclica, conforme o Pe. Maurilio Penido (“O Corpo Místico”, Vozes, 1944, pág. 147), o Papa, ao definir a Igreja como Corpo Místico de Cristo, o faz, infalivelmente, sendo, portanto, essa definição de Igreja dogma de fé.

Neste texto de S. Tomás não usa o termo místico como qualificativo de corpo. O termo não estava ainda consagrado pela teologia. Se-lo-á definitivamente pela Bula Unam Sanctam, de Bonifácio VIII (cfr. Maurilio Penido, o.c., pg. 95)

Contudo, o Doutor Angélico na Suma Teológica (em parte escrita contemporaneamente a este Sermão) já apresenta o essencial da doutrina do Corpo Místico.

“Os membros do corpo natural coexistem todos ao mesmo tempo, mas não assim os membros do Corpo Místico, e esta é a diferença que existe entre o corpo natural e o Corpo Místico da Igreja. Podemos considerar a não coexistência simultânea, quer com relação ao ser natural (a Igreja, com efeito, é constituída pelos homens que existiram desde o princípio do mundo até ao fim), quer com relação ao ser da graça (pois entre os membros da Igreja que vivem no mesmo tempo, há os que não possuem a graça, mas a possuirão, e há os que estão privados da graça, mas já a possuíram. Assim deve ser considerados como membros do Corpo Místico não só os que o são em ato, mas também os que o são em potência” (S.T. III, 8, 3 c).

Essa Igreja Santa tem quatro características: ela é una, é santa, é católica, isto é, universal, e é forte e firme.

126 — Com relação à primeira característica, deve-se esclarecer que muitos hereges criaram diversas seitas, mas eles não pertencem à Igreja porque estão divididos em partes. A Igreja, porém, é una. Lê-se nos Cânticos: “Una é a minha pomba, a minha perfeita” (Ct 6, 8).

A unidade da Igreja é resultante de três causas.

127 — Primeiro, da unidade da fé. Todos os cristãos que estão no corpo da Igreja crêem nas mesmas verdades. Lê-se: “Dizei a todos a mesma coisa, e não haja cisões entre vós” (1 Cor 1, 10); “Um Deus, uma só fé, um só batismo” (Ef 4, 4).

128 — Segundo, da unidade de esperança, porque todos firmamse numa só esperança de alcançar a Vida Eterna. Diz o Apóstolo: “Um só corpo e um só espírito, porque fostes chamados na esperança da vossa vocação” (Ef 4, 4).

129 — Terceiro, da unidade de caridade, porque todos estão congregados no amor de Deus, e, entre si, pelo mútuo amor. Lêse: “A caridade que me destes, eu lhes dei, para que sejam um, como nós somos um”. (Jo 17, 22).

Este amor, se é verdadeiro, manifesta-se também quando os membros são solícitos e compassivos uns para os outros. Lê-se: “Cresceremos em todas as coisas pela caridade d’Aquele que é a Cabeça, o Cristo. É por Ele que o corpo inteiro, coordenado e unido, em todas as suas junturas, opera o seu crescimento orgânico, segundo a atividade de cada uma das partes a fim de se edificar na caridade” (Ef 4, 15-16).

Assim, cada um, conforme a graça recebida de Deus, deve servir ao próximo.

130 — Por esse motivo, ninguém tenha por coisa desprezível ser rejeitado por esta Igreja, ou permitir que seja dela afastado. Realmente, não há senão uma Igreja na qual todos os homens se salvam, como também, antigamente, ninguém podia salvar-se fora da arca de Noé 51.

51 A falsa compreensão da doutrina da salvação dos infiéis pode levar a práticas impróprias do ecumenismo, abandonando-se o apostolado por se considerar que as outras religiões são meios determinados por Deus para a salvação dos que a elas pertencem.

131 — Com relação à segunda característica, deve-se observar que há uma congregação, mas dos maus, conforme se lê nos Salmos: “Odiei a Igreja dos Malfeitores” (Sl 25, 5). Mas esta é má, enquanto a Igreja de Cristo é Santa.

Lê-se: “O templo de Deus, que sois vós, é santo” (1 Cor 3, 17). Por isso o Símbolo acrescenta: Santa Igreja.

Por três motivos os fiéis são santificados na Igreja.

132 — Primeiro porque, assim como a Igreja é consagrada e materialmente lavada, os fiéis são também purificados pelo sangue de Cristo, conforme se lê: “Amou-vos e lavou-vos dos pecados no seu sangue” (Ap 1, 5); e, “Jesus, para santificar pelo seu sangue o seu povo, sofreu fora da porta da cidade” (Heb 13, 12).

133 — Segundo, devido à unção. Assim como a Igreja é ungida, os fiéis são também ungidos pela unção espiritual, para serem santificados. Se não tivessem sido ungidos, não poderiam ser chamados de cristãos, porque Cristo quer dizer ungido. Esta unção é a graça do Espírito Santo. Lê-se: “Deus que nos ungiu” (2 Cor 1, 21); e, “sois santificados no nome de Nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Cor 6, 11).

134 — Terceiro, devido à habitação da Trindade quer que Deus habite, este lugar é 52, porque onde santo. Lê-se: “Verdadeiramente este lugar é santo” (Gn 28, 10); e, “A vossa casa é de santificação” (Sl 42, 5).

135 — Deve-se acrescentar um outro motivo, isto é, a invocação de Deus. Lê-se: “Senhor, habitais entre nós, e o Teu nome foi invocado sobre nós” (Jr 14, 5).

136 — Devemos ter todo o cuidado para que, após esta santificação, não manchemos nossa alma pelo pecado, pois ela é o templo de Deus. Lê-se: “Se alguém violar o templo de Deus, Deus o perderá” (1 Cor 3, 17).

137 — Acerca da terceira característica da Igreja, devemos saber que ela é católica, isto é, universal, por três motivos: o primeiro, refere-se ao lugar, porque ela está espalhada por todo o mundo, mas os donatistas afirmam o contrário 53. Lê-se na Carta aos Romanos: “A vossa fé é proclamada por todo o universo” (Rom. 1, 8), e, em S. Marcos, “Ide por todo o universo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15). Anteriormente Deus era conhecido só na Judéia, agora, porém em todo o mundo.

52 Há na alma do cristão em estado de graça uma presença especial de Deus que se chama “habitação”. Essa nova presença é assim explicada por S. Tomás:

“Há um modo comum segundo o qual Deus está em todas as coisas por essência, presença e potência, como a causa está nos efeitos que participam de sua bondade. Além desse modo comum, há um outro especial que convém à criatura racional no qual se diz que se encontra Deus como o objeto conhecido naquele que o conhece, e o amado, no que ama. Como a criatura racional, conhecendo e amando, alcança por sua operação ao próprio Deus, conforme este modo especial não só se rediz que Deus está na criatura racional, mas também que nela habita como no seu templo. Por conseguinte, nenhum outro efeito que não seja a graça santificante pode ser razão de que a Pessoa Divina esteja de um modo novo na criatura racional” (S.T. I. 43, 3 c.).

João de S. Tomás completa a doutrina tomista, nestes termos:

“Esta presença de Deus, como possuído, não é só afetiva; mas também real e física, enquanto o próprio Deus pessoalmente é dado ou enviado, para que habite e esteja na alma; não apenas como na causa ativa, mas também como um amigo que convive com a alma, e por ela possuído. Esta união, porém, não é como a união pela espécie na visão da glória, mas tende para ela, como uma começada e imperfeita fruição e posse de Deus” (In. q. VIII, VI, 11).

A Igreja é constituída de três partes: uma, na terra; outra, no céu, e a terceira no purgatório.

138 — A Igreja é Universal, em segundo lugar, devido à condição dos homens que dela fazem parte, porque nenhum deles é rejeitado: nem senhor, nem servo, nem homem, nem mulher. Lêse: “Não há agora... nem judeu, nem gentio; nem escravo, nem homem livre; nem homem, nem mulher, mas não sois senão um só em Jesus Cristo” (Gl 3, 28). 139 — Finalmente a Igreja é universal com relação ao tempo. Alguns disseram que a Igreja deveria perdurar por determinado tempo somente. Mas isso é falso. Esta Igreja começou no tempo de Abel e durará até o fim dos séculos. Disse Cristo: “Estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mt 28, 20) 54.

140 — Quanto à quarta característica, sabemos que a Igreja é firme. Uma casa é chamada de firme quando, antes de tudo, está sobre bons alicerces. Ora, o principal fundamento da Igreja é Cristo, conforme afirma o Apóstolo: “Ninguém poderá por outro fundamento senão o que já foi posto, que é Jesus Cristo” (1 Cor 3, 11). O fundamento secundário são os Apóstolos e a doutrina deles. Por esse motivo ela é também firme. Está escrito no livro do Apocalipse que a cidade tem doze fundamentos, e que neles estavam escritos os nomes dos doze Apóstolos (cf. Ap 21, 14). Eis porque também se diz que a Igreja é apostólica. Para mais bem significar a firmeza da Igreja, S. Pedro foi chamado o seu chefe.

53 A seita dos Donatistas surgiu na África no século IV, tendo como principal promotor Donato, anti-bispo de Cartago, eleito em 315. A seita, que surgira das desavenças havidas durante as eleições de Celiano para Bispo daquela cidade (311), espalhou-se em breve pelas cidades africanas, chegando a congregar 300 bispos, e ensinava que a validade dos sacramentos dependia da dignidade do ministro. Só os seus adeptos, porque não eram traidores, podiam administrar validamente os sacramentos do batismo e da ordem. Condenados pelos bispos católicos da África, pelo Papa, combatida pelos imperadores, encontraram os donatistas em Santo Agostinho um forte opositor, que por muitos anos de sua vida em sermões e tratados os combateu, afirmando que a eficácia dos sacramentos derivava da validade objetiva dos mesmos. Nas lutas anti-donatistas, porque o braço secular, desde Constantino a Honório, viera em auxílio da Igreja, a doutrina sobre o recurso ao poder civil em questão religiosa foi também firmada, devido ainda aos esclarecimentos trazidos por Santo Agostinho. A seita desapareceu somente com as invasões árabes no norte da África.

54 A mesma Igreja passou e passará por diversas fases na sua vida pelos séculos, e encontrará a sua definitiva e integral perfeição no fim dos tempos, na visão beatífica de todos os justos.

141 — Verifica-se, em segundo lugar, a firmeza da Igreja, porque se ela for abalada, não poderá ser destruída. A Igreja jamais poderá ser destruída. Não a destruíram os perseguidores. Pelo contrário, ela cresceu ainda mais durante as perseguições, e os que a perseguiram, bem como os que ela combatia é que tombaram. Lê-se: “O que cair sobre esta pedra, quebrar-se-á; sobre quem ela cair, será esmagado” (Mt 21, 44).

Os erros não a destruíram. Pelo contrário: quanto mais os erros proliferavam, tanto mais era a verdade manifestada. Lê-se: “Os homens de espírito corrompido, pervertidos na fé, mas não irão além” (2 Tm 2, 8).

Nem as tentações do demônio a destruíram. A Igreja é como uma torre na qual se refugia todo o que luta contra o diabo. Lê-se: “É uma torre fortíssima, a casa do Senhor” (Pr 18, 10). Por isso, acima de tudo, o diabo se esforça para destruí-la, mas não prevalecerá, porque está escrito: “E as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 8). É a repetição do que já foi falado por Jeremias: “Lutarão contra si, mas não prevalecerão” (Jr 15, 20).

Eis porque só a Igreja de Pedro (a quem couber pregar o Evangelho por toda a Itália) sempre foi firme na fé. Enquanto em outros lugares não existe a fé, ou existe misturada com muitos erros, a Igreja de Pedro permanece na fé, e está purificada dos erros. Isso não pode ser motivo de admiração, porque o Senhor mesmo disse a Pedro: “Roguei por ti, para que tua fé não desfaleça” (Lc 22, 32) 55.

55 Nos primitivos Símbolos de fé as notas que acompanhavam o nome da Igreja eram santa e católica. Acrescentaram-se, após, apostólica e romana.

Sto. Tomás não fala de modo explícito neste sermão, da qualidade romana da Igreja Católica, mas pelo contexto se vê que ele não deixa de considerar esse aspecto. A Igreja é romana pelo fato de ter sido Roma a Sé diretamente subordinada a Pedro, além da Igreja Universal também a ele subordinada. Neste lugar, Sto. Tomás ressalta o primado da Igreja Romana sobre as outras e a sua indefectibilidade na fé. O primado e a infalibilidade são próprios do sucessor de Pedro na Sé Romana. O Papa tem o primado de jurisdição (governo) e de magistério (ensino) sobre toda a Igreja.

Assim define o Concílio Vaticano I (1870) a origem e a extensão do Primado do Papa:

“O qual (S. Pedro) vive, governa e julga através dos seus sucessores, os Bispos da Santa Sé Romana, fundada por ele e consagrada com o seu sangue. Por isso, todo aquele que suceder nesta Cátedra de Pedro, recebe, por instituição do próprio Cristo, o primado de Pedro sobre toda a Igreja” (Const. Dogmática Pastor Aeternus, 1824). “A Santa Sé Apostólica e o Pontífice Romano têm o primado sobre todo o mundo, e o mesmo Pontífice Romano é o sucessor de S. Pedro, é o verdadeiro Vigário de Cristo, o chefe de toda a Igreja e o Pai e Doutor de todos os cristãos; e a ele entregou Nosso Senhor Jesus Cristo todo o poder de apascentar, reger e governar a Igreja Universal” (1. c. 1826).

“Este poder de jurisdição do Romano Pontífice, poder verdadeiramente episcopal, é imediato. E a ela (à Igreja Romana) devem sujeitar-se, por dever de subordinação hierárquica e verdadeira obediência, os pastores e fiéis de qualquer rito e dignidade, tanto cada um em particular, como todos em conjunto, não só às coisas referentes à fé e aos costumes, mas também, nas que se referem às disciplinas e ao regime da Igreja, espalhada por todo o mundo” (1 c. 1828).

“No próprio primado Apostólico que o Romano Pontífice tem sobre toda a Igreja, está também incluído o supremo poder do Magistério (...) na Sé Apostólica sempre se conservou imaculada a religião católica e santa a doutrina. (...) O Romano Pontífice quando fala ex catedra, (...) quando define com sua suprema autoridade alguma doutrina referente à fé, e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre fé e moral” (1. c. 1832-1833-1839).

Essa doutrina tradicional, o Doutor Angélico já havia formulado no Suma Teológica, onde se expressa nos seguintes termos:

“A promulgação de um Símbolo compete à autoridade a cuja autoridade pertence determinar finalmente as coisas da fé, para que sejam por todos aceitas por ato de fé indiscutível. Isto pertence à autoridade do Sumo Pontífice, a quem se referem as principais e mais difíceis questões da Igreja. (...) Por isso pertence a ela exclusivamente a nova promulgação de um símbolo, como todas as coisas que pertencem a toda a Igreja, como convocar um sínodo geral, etc” (S.T. II, II, 1, 10 c).

As definições dogmáticas podem ser também promulgadas por um Concílio Ecumênico, mas só têm eficácia se aprovadas pelo Papa. É interessante de se notar que o Doutor Angélico já no século XIII formulou de modo preciso a doutrina do primado jurisdicional e doutrinário do Papa, quando nos séculos seguintes (XIV e XV) surgiram sérias controvérsias a respeito desse primado, afirmando muitos teólogos (Guilherme Occam, Gerson etc.) e concílios (Constança, Baziléia etc.) o chamado conciliarismo que subordinava o poder papal à autoridade dos Concílios Ecumênicos.

 

ARTIGO DÉCIMO

— Creio na Comunhão dos Santos e na remissão dos pecados —

142 — Assim como no corpo natural a atividade de um membro subordina-se ao bem de todo o corpo, também no corpo espiritual acontece o mesmo, isto é, na Igreja. E porque todos os fiéis são um só corpo, o bem de um comunica-se ao outro. Diz S. Paulo:”Somos todos membros uns dos outros” (Rm 12, 5). Por isso entre os artigos de fé proposto pelos Apóstolos, há este referente à comunhão dos bem entre fiéis, que se chama Comunhão dos Santos.

143 — Entre os diversos membros da Igreja o principal é Cristo, que é a cabeça. Lê-se: “Deus o colocou como cabeça de toda a Igreja que é o seu Corpo” (Ef 1, 22).

Os bens de Cristo são comunicados a todos os cristãos, como a energia da cabeça é comunicada a todos os membros. Essa comunicação é realizada pelos sacramentos da Igreja, nos quais opera a virtude da paixão de Cristo, de modo a conferir a graça da remissão dos pecados 56.

144 — São sete os sacramentos da Igreja 57.

56 A relação entre os sacramentos e a Paixão de Cristo é exposta de modo admirável neste artigo da Suma Teológica: “O sacramento opera para causar a graça, como instrumento. Há dois tipos de instrumento: o separado, como o bastão, e o conjunto, como a mão. O instrumento separado é movido pelo conjunto, como o bastão o é pela mão.

A causa eficiente principal da graça é o próprio Deus, ao qual a humanidade de Cristo é referida como um instrumento conjunto; os sacramentos, como instrumentos separados. Convém, por isso, que a força salutífera emane da divindade de Cristo, passando por sua humanidade, para os sacramentos.

A graça dos sacramentos ordena-se principalmente a duas coisas: a destruir os defeitos dos pecados passados, pois mesmo tendo os atos passado, permanece o efeito (a culpa); e a aperfeiçoar a alma com relação ao culto de Deus conforme a religião da vida cristã.

Ficou esclarecido, pelo que foi dito acima (questões 48 e 49), que Cristo liberounos dos pecados, principalmente pela sua Paixão, o que o fez como causa eficiente

e meritória, bem como causa satisfatória. Semelhantemente também pela sua Paixão iniciou o rito da religião cristã, ‘oferecendo-se a si mesmo a Deus como oblação e hóstia’ (Ef 5). Donde claramente se conclui que os sacramentos da Igreja possuem de modo especial a força da Paixão de Cristo, força esta que de certo modo se junta a nós pela recepção dos sacramentos. Como sinal desses sacramentos, do lado de Cristo pendente na cruz jorraram água e sangue, sendo um o sinal do Batismo, o outro, da Eucaristia, que são os principais sacramentos” (S.T.III, 52, 5 c).

Ver também as notas de 21 a 27.

57 O Concílio de Trento definiu como dogma de Fé que só há sete verdadeiros e próprios sacramentos. O Concílio Florentino (1445) já havia declarado essa doutrina que se encontra também na Suma Teológica (S.T. III, 65, 1). Os protestantes só admitem três sacramentos: Batismo, Ceia do Senhor e Absolvição. Estão também em contradição com a Fé católica quanto ao que se refere ao modo pelo qual os sacramentos operam. Quanto à Eucaristia, não aceitam também o dogma da transubstanciação. Não admitindo o sacramento da Ordem, conseqüentemente os protestantes não têm uma hierarquia de direito divino, e rejeitam a distinção específica que há na Igreja entre sacerdotes e leigos. As doutrinas da Igreja e do protestantismo referentes a esses assuntos são, portanto, inconciliáveis, bem como as atitudes práticas delas decorrentes.

O primeiro é o Batismo, que é uma certa regeneração espiritual. Como a vida carnal não pode existir sem que o homem tenha nascido carnalmente, assim também a vida espiritual, onde a graça não pode existir sem o nascimento espiritual. Essa geração faz-se pelo batismo, conforme se lê: “A não ser que alguém tenha renascido pela água e pelo Espírito Santo, não pode entrar no Reino do Céu” (Jo 3, 5).

Deve-se, além disso, saber que como o homem não nasce senão uma só vez, assim também é batizado só uma vez.

Eis porque os Santos Padres acrescentaram: “Confesso um só Batismo”.

A virtude do batismo purifica de todos os pecados, quer quanto à culpa, quer quanto à pena. Por esse motivo não se impõe, aos que saíram no batismo, nenhuma penitência, mesmo que eles antes tenham sido grandes pecadores. Morrendo eles logo após o batismo, imediatamente voam para a vida eterna. Pela mesma  razão, bem que só os sacerdotes batizam por ofício, em caso de necessidade qualquer um pode batizar, desde que siga a forma deste sacramento, que é: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

Este Sacramento recebe a sua virtude da Paixão de Cristo, conforme nos ensina S. Paulo:”Cada um de nós que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados na sua morte” (Rm 6, 3). Como Cristo esteve morto três dias no sepulcro, para simbolizar melhor a sua morte, fazem-se três imersões na água.

145 — O segundo sacramento é a Confirmação. Como para os que nascem corporalmente, são necessárias as forças para agir, assim também para os renascidos espiritualmente é necessária a força do Espírito Santo. Por isso os Apóstolos, a fim de serem fortes, receberam o Espírito Santo após a Ascensão de Cristo: “Vós ficareis na cidade, até que sejais revestidos pela força do Alto” (Lc 24, 29).

Esta força é conferida pelo Sacramento da Confirmação.

Eis porque os responsáveis pelas crianças, devem ter especial cuidado para que elas sejam confirmadas, sendo que na Confirmação é conferida uma grande graça. Quem recebeu a Confirmação, quando morrer, terá maior glória do que quem não a recebeu, justamente porque teve uma graça mais abundante.

146 — O terceiro sacramento é a Eucaristia 58. Como na vida corporal, após ter o homem nascido e estar fortificado, ele tem necessidade dos alimentos para sustentar-se e conservar-se, assim também na vida espiritual, que é o corpo de Cristo. Lê-se em S. João: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo 6, 54).

Por isso, todo cristão deve uma vez por ano receber o corpo de Cristo, naturalmente com dignidade e pureza, porque está escrito: “O que come e bebe indignamente” (isto é, sabendo que tem um pecado mortal e não confessou, ou que não se decidiu dele fugir) “come e bebe o seu próprio julgamento” (1 Cor 11, 29). 147 — O quarto sacramento é a Penitência. Acontece na vida corporal que as pessoas ficam doentes, e, se não tomaram remédio, morrem. Na vida espiritual pode-se também adoecer pelo pecado. Por este motivo, é necessário que se tome remédio para recuperar a saúde. A saúde é a graça conferida pelo Sacramento da Penitência. Lê-se: “Ele perdoa todas as suas faltas, que te cura de todas as tuas doenças” (Sl 102, 3). São necessários três elementos na Penitência: a contrição, que é a dor do pecado com o propósito de abster-se dele no futuro; a confissão íntegra, isto é, de todos os pecados, e a satisfação, que é realizada pelas boas obras.

148 — O quinto sacramento é a Extrema-Unção 59. Quando, porém, ele não traz a saúde do corpo, é porque talvez não convenha à salvação da alma que a pessoa viva mais tempo. Lê-se, com relação a este sacramento: “Está alguém doente entre vós? Chame os presbíteros da Igreja, que eles orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. E a oração com fé salvará o enfermo, e o Senhor o aliviará; e se ele tiver cometido pecados, estes lhe serão perdoados” (Tg 5, 14-15).

58 A Eucaristia é o primeiro dos sacramentos, sendo a Liturgia o centro e o ápice da vida da Igreja. O primado da Eucaristia entre os demais sacramentos é assim ensinado por S. Tomás: “Falando de modo absoluto, a Eucaristia é o mais excelente de todos os sacramentos por três motivos. Primeiro, devido ao que contém. A Eucaristia contém realmente o próprio Cristo, enquanto os outros sacramentos não contêm senão uma força instrumental recebida de Cristo por participação... Segundo, pela relação com os outros sacramentos. Todos os demais sacramentos estão ordenados à Eucaristia como para um fim. A Ordem tem por fim a Consagração da Eucaristia; o Batismo, a recepção da mesma; a Confirmação aperfeiçoa o batizado para que o respeito humano não o afaste de tão sublime sacramento; a Penitência e a Extrema-Unção dispõem o homem para receber duplamente o Corpo de Cristo, e, finalmente o Matrimônio aproxima-se da Eucaristia ao menos pelo seu simbolismo, enquanto representa o laço íntimo de Cristo com a sua Igreja, cuja união está figurada no sacramento da Eucaristia... Terceiro pelos ritos sacramentais. A administração de um ou todos os sacramentos completa-se na Eucaristia, como observa Dionísio” (S.T.III, 65, 3).

59 Só nos séculos XII e XIII este sacramento foi denominado Extrema-Unção. Chamava-se antes “Óleo bento” ou “Óleo dos enfermos”.

Os efeitos da Extrema-Unção são assim descritos por S. Tomás:

“O efeito principal deste sacramento é o afastamento dos restos dos pecados, e, em conseqüência, também da culpa, se existir na alma” (S.T. Sup. 30, 1 c.).

“A Extrema-Unção produz efeito correspondente ao do remédio corporal, isto é, a saúde do corpo... (Mas) pela administração deste sacramento nem sempre vem a cura corporal a não ser quando esta seja necessária para a cura espiritual” (1. c. art. 2 c.).

149 — Está, pois, claro que pelos cinco sacramentos dos quais tratamos realiza-se a perfeição da vida cristã. Mas como é necessário que determinados esses sacramentos DETERMINADOS ministros, TORNA-SE NECESSÁRIO TAMBÉM o sacramento da Ordem, por cujo ministério os outros sacramentos são conferidos. Nem se deve considerar na confecção dos sacramentos a vida dos ministros, se esta alguma vez tendeu para o mal, mas a virtude de Cristo, pela qual os sacramentos tornamse eficazes, dos quais os ministros são apenas dispensadores.

Lê-se: “Assim os homens nos considerem como ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1). Este é o sexto sacramento, a Ordem.

150 — O sétimo sacramento é o Matrimônio, no qual os homens, se viverem em pureza, salvam-se e nele podem também viver sem pecado mortal. Quando a concupiscência dos esposos não se dirige para fora dos bens do matrimônio, eles algumas vezes caem em pecados veniais; se, porém, fazem algo fora destes bens, então cometem pecado mortal 60.

60 Santo Agostinho enumerou, no seu livro “De bono conjugali” (24, 32), os três bens do matrimônio: “proles, fides, sacramentum” (filhos, fidelidade, indissolubilidade). A tradição posterior aceitou a doutrina de Santo Agostinho como adequada, pois de fato, naquela enumeração estão contidos os elementos essenciais. Na Suma Teológica, o Doutor Angélico desenvolve exaustivamente a doutrina sobre esses três bens do matrimônio (S.T. Sup. 49, 1 ss.).

Santo Agostinho assim explica o sentido dessas três palavras:

“Na fidelidade, tem-se em vista que, fora do vínculo conjugal, não haja reunião com outro ou com outra; na prole que esta se acolha amorosamente, se sustente com solicitude, se eduque religiosamente; com o sacramento, enfim, que não se rompa a vida comum, e que aquele ou aquela que se separa, se não junte a  outrem nem mesmo por causa dos filhos. É esta como que a regra das núpcias, na qual é enobrecida a fecundidade da incontinência” (De Gen. ad lit., 9, 7, 12).

Pio XI explicou magistralmente a doutrina dos bens do matrimônio na Encíclica “Sobre o Matrimônio Cristão” (“Casti connubi” 31-12-1930), que pode ser considerada a “Magna Carta” dos esposos católicos.

151 — Por esses sete sacramentos consegue-se a remissão dos pecados. Por isso encontra-se no Símbolo: “na remissão dos pecados”.

152 — Foi também dado aos Apóstolos o poder de perdoar os pecados. Deve-se, por essa razão, acreditar que os ministros da Igreja, aos quais foi transmitido este poder pelos Apóstolos (aos Apóstolos o foi por Cristo), têm nela o poder de ligar e desligar, e que a Igreja tem o pleno poder de perdoar os pecados. Este poder, porém, é exercido por degraus, estendendo-se, a partir do Papa, para os outros prelados.

153 — Devemos saber que não apenas a Paixão de Cristo nos é comunicada, mas também o mérito da sua vida. O que de bom fizeram também todos os Santos, pela caridade comunica-se aos que aqui vivem, porque todos são um, conforme se lê: “Participo dos bens de todos os que O temem” (Sl 118, 3). Por isso, quem vive na caridade participa de todo bem que se faz no mundo inteiro. Mas aqueles para os quais se faz um bem especial participam de modo também especial. Pode, assim, uma pessoa satisfazer por outra, como acontece em muitas Congregações Religiosas que admitem novos membros para receberem benefícios dos outros membros.

154 — Por meio dessa comunicação conseguimos dois efeitos: primeiro, o mérito de Cristo que se comunica a todos; depois, o bem de um que se comunica ao outro.

Os excomungados, porque estão fora da Igreja, perdem parte de todos os bens dela. Este dano lhes é maior que um dano nos bens temporais. Há um outro perigo para os excomungados: como sabemos que pelo sufrágio dos bons o diabo é impedido de nos tentar, quando alguém dela é excluído, o diabo facilmente o tenta. Eis porque, na Igreja primitiva, quando alguém era excomungado, o diabo logo o atormentava corporalmente 61.

61 A doutrina sobre os demônios é desenvolvida por S. Tomás principalmente na Suma Teológica (I. q. 63, q. 64; I.II. q. 80). A tradição católica, com relação à influência dos demônios sobre os homens, ensina que, se Deus permitir, o demônio pode prejudicar os homens nos bens externos e na própria pessoa, apossar-se dos corpos humanos, e pela tentação excitar ao pecado; contudo, não podem prejudicar a salvação eterna de ninguém, a não ser que a pessoa livremente o permita. A existência dos demônios é verdade de fé, definida pelo IV Concílio de Latrão (Dz. 428).

 

ARTIGO DÉCIMO PRIMEIRO

— Creio na Ressurreição da carne —

155 — O Espírito Santo não só santifica as almas dos que pertencem à Igreja, mas também pelo seu poder ressuscitará os corpos. Lê-se: “Aquele que ressuscitou dos mortos a Jesus Cristo” (Rm 4, 24); e: “Porque a morte veio por um homem, por um homem também a ressurreição dos mortos” (1 Cor 15, 21).

Por isso nós cremos, conforme a nossa fé, na futura ressurreição dos mortos 62.

156 — Quatro considerações devem ser feitas acerca desse assunto: primeiro, quanto à utilidade da fé na ressurreição dos mortos; segundo, quanto às qualidades dos que ressurgirão referentes a todos; terceiro, quanto à ressurreição dos bons; quarto, quanto à ressurreição dos maus.

157 — No tocante à primeira consideração, a fé e a esperança na ressurreição nos são úteis por quatro motivos. Primeiro, para afastar as tristezas causadas pela morte. É realmente impossível que alguém não se entristeça pela morte de um ente caro. Mas como tem esperança na sua futura ressurreição, a dor provinda de sua morte fica bastante atenuada.

62 A verdade de fé referente à ressurreição da carne, além de abundantemente revelada na Sagrada Escritura, foi reafirmada pela Tradição dos Padres (S. Cirilo Alex., “In Joann. 8, 51; S. João Crisóstomo, “De ressurrectione mortuorum, 8; etc.), e pelo Magistério Eclesiástico (S. Leão Magno, Inocêncio III, etc.) O Concílio Ecumênico Laterancuse IV, assim a define:

“Todos ressurgirão com seus próprios corpos que agora têm, para serem retribuídos conforme as suas obras, quer tenham sido boas ou más; estes (os réprobos) terão, com o diabo, a pena eterna; estes (os eleitos), com Cristo, a glória sempiterna” (De fide Catholica contra Albigenses).

Lê-se: “Não queremos que ignoreis, irmãos, as coisas sobre os mortos, para que não vos entristeçais, como os outros que não têm esperança” (1 Ts 4, 13).

158 — Segundo, afasta o temor da morte. Se o homem não tivesse esperança em uma vida melhor após a morte, sem dúvida esta seria muito temível, e preferiria ele praticar qualquer mal para evitar a morte.

Nós como acreditamos que há uma vida melhor, à qual chegaremos após a morte, fica patente que ninguém deve temer a morte, nem fazer algum mal para evita-la. Lê-se: “Para que pela morte (de Cristo) fosse destruído aquele que tinha poder sobre a morte, isto é, o diabo; e libertados os que pelo temor da morte estavam por toda a vida na servidão” (Heb 2, 14-15).

159 — Terceiro, porque nos faz solícitos e cuidadosos na prática do bem. Se a vida humana se limitasse a esta que aqui vivemos, não haveria entre os homens muita solicitude para praticarem o bem; porque tudo o que fizessem seria considerado pouca coisa, pois o seu desejo não é dirigido para um tempo limitado, mas para a eternidade.

Como, porém, acreditamos que, pelo que aqui fazemos, receberemos na ressurreição bens eternos, esforçamo-nos para agir bem. Lê-se: “Se somente para esta vida estamos esperando em Cristo, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1 Cor 15, 19).

160 — Quarto, porque nos afasta do mal. Assim como a esperança do prêmio conduz à prática do bem, do mesmo modo o temor da pena, que cremos então reservada para os maus, nos afasta do mal. Lê-se: “E levantar-se-ão os que fizeram o bem, para a ressurreição da vida; os que fizeram o mal, para a ressurreição da condenação” (Jo 5, 29).

161 — Quanto à segunda consideração, isto é, a respeito dos efeitos da ressurreição para todos os homens, quatro deles devem ser apontados. O primeiro, com relação à identidade dos corpos que ressurgirão: o mesmo corpo que existe agora quer quanto à carne, quer quanto aos ossos, ressurgirá 63. Apesar de alguns disserem que este corpo que agora se corrompe não ressurgirá, o Apóstolo afirma o contrário: “Convém que este corpo corruptível seja revestido da incorrupção” (1 Cor 15, 33). Em outro lugar encontra-se escrito na Sagrada Escritura que este mesmo corpo ressurgirá para a vida: “Novamente serei revestido da minha pele, e, na minha carne, verei o meu Deus” (Jó 19, 26).

162 — O segundo efeito da ressurreição refere-se à qualidade, porque os corpos ressurgidos terão outra qualidade que o atual, já que os corpos dos bons e dos maus serão incorruptíveis. Os corpos dos bons estarão na glória para sempre; os dos maus, porém, para que por eles sejam punidos, na pena eterna. Lê-se: “Convém que este corpo corruptível seja revestido da incorrupção,

e que este corpo mortal seja revestido da imortalidade” (1 Cor 15, 53). Porque os corpos serão incorruptíveis e imortais não terão necessidade de alimento, nem usarão do sexo. Lê-se:

“na ressurreição nem os homens terão mulheres, nem as mulheres maridos; mas serão como Anjos de Deus no Céu” (Mt. 22, 30). Nesta verdade de fé não acreditam nem os Judeus, nem os Maometanos. Lê-se ainda: “Os que desceram aos infernos... não voltarão mais à sua casa” (Jó 7, 10) 64.

63 ) S. Tomás para explicar teologicamente, a identidade numérica do corpo ressurgido com o corpo atual, e, por conseguinte, a identidade integral do homem atual com o homem que ressurgirá após a morte, no fim dos tempos, recorre à doutrina aristotélica da matéria e forma. Após a morte a alma conserva a relação transcendental com o corpo, e, como é ela enquanto forma que dá existência, vida e especificação ao corpo, ao unir-se novamente a ela pela ação miraculosa de Deus na ressurreição, não o pode fazer senão transmitindo-lhe a mesma existência, a mesma vida e as mesmas especificações que nela permaneciam virtualmente durante a separação.

Negar esta identidade numérica do corpo na ressurreição é, para S. Tomás herético (cf. Sup. 79, 2 cl.). Explica-se assim o Doutor Angélico:

“O que se objeta em segundo lugar (i. é contra a identidade numérica) não impede que o homem possa ressuscitar idêntico numericamente. Pois nenhum dos princípios essenciais pode reduzir-se ao nada pela morte, já que a alma racional, que é a forma (substancial) do homem, permanece depois da morte, e já que também permanece a matéria que esteve sujeita a tal forma com as mesmas dimensões que a faziam ser matéria individual. Por conseguinte, com a união da alma e da matéria, ambas idênticas numericamente, será reparado ao homem” (C.G.L., 4, cap. 81).

 

163 — O terceiro efeito refere-se à integridade, porque os bons e os maus ressurgirão em toda integridade da perfeição corpórea do homem: não haverá cego, nem coxo, nem ninguém com outro qualquer defeito. Escreve o Apóstolo que “os mortos ressurgirão incorruptíveis” (1 Cor 15, 52) para significar que eles não sofrerão mais as corrupções atuais. 164 — O quarto efeito refere-se à idade, porque todos ressurgirão na idade perfeita, nos trinta e dois anos. A razão disto é que, os que ainda não atingiram esta idade, não chegaram a idade perfeita, e, os velhos já a ultrapassaram. Eis porque aos jovens e às crianças será acrescido o que falta, e, aos velhos, restituído. Lê-se: “Até que cheguemos todos... ao homem perfeito, na medida da plenitude da idade de Cristo” (Ef 4, 13) 65.

64) Entre os judeus, os saduceus negavam a ressurreição dos mortos, e os fariseus a afirmava (cf. At 23, 8). Sendo verdade sobrenatural revelada, toda tendência naturalista não a aceita. Os saduceus negaram também a existência dos anjos. Realmente, sem a fé teologal, não se pode aceitar o dogma da Ressurreição da carne. S. Paulo ao pregar aos intelectuais de Atenas, estes dele se afastaram: “Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, uns começaram a troçar, enquanto outros disseram: ouvir-te-emos falar sobre isto mais tarde” (At 17, 32).

Os maometanos (sarracenos, diz o texto latino) crêem na Ressurreição da carne, mas reduzem as alegrias do céu aos prazeres carnais e terrestres.

65 S. Tomás interpreta aqui literalmente o texto Paulino referente a idade de Cristo, supondo-a de 32 anos na sua morte. S. Paulo neste texto trata da perfeição do cristão que tende para a semelhança com a perfeição de Cristo, isto é, com a santidade de Cristo, não de idade física. Contudo, é na juventude que o homem atinge a plenitude do vigor corpóreo. Nesse sentido é válida a interpretação de S. Tomás, pois os corpos ressuscitarão sem deficiências.

165 — Quanto à terceira consideração, é de se saber que os bons receberão uma glória especial, porque os santos terão os seus corpos glorificados por quatro qualidades 66:

a primeira é a claridade. Lê-se: “Os justos resplendecerão como o sol no reino de seu Pai” (Mt 13, 43);

a segunda é a impassibilidade. Lê-se: “É semeado na ignomínia, ressurgirá na glória” (1 Cor 15, 43); e: “Deus tirará toda lágrima dos seus olhos; não haverá mais morte, nem luto, nem gemidos, nem dor” (Ap 21, 4);

a terceira é a agilidade. Lê-se: “Os justos resplendecerão e passarão pela falha com centelhas” (Sb 3, 7);

a quarta é a sutileza. Lê-se: “É semeado no corpo animal, ressuscitará num corpo espiritual” (1 Cor 15, 44); não se queira entender isso como se todo corpo se transformasse em espírito, mas que estará totalmente submisso ao espírito.

166 — Quanto à quarta consideração, isto é, com referência à condição dos condenados, esta é contrária à dos beatificados, porque aqueles sofrerão a pena eterna. Os seus corpos possuirão quatro qualidades más. Serão obscuros, conforme se lê: “Os seus rostos serão como fisionomias inflamadas” (Is 13, 8).

66 O “Catecismo dos Párocos”, assim resume a natureza dessas quatro qualidades dos corpos ressuscitados, aliás explicadas exaustivamente na Suma Teológica (Sup. 82, 1 ss):

“A impassibilidade faz com que os corpos gloriosos não sejam passiveis de qualquer dor ou incômodo. A ela segue-se a claridade, isto é, o brilho redundante no corpo da suma felicidade da alma, de modo que haja nele uma certa comunicação da bem-aventurança da alma. Junta-se à claridade a agilidade, pela qual o corpo facilmente é movido para onde quer que a alma queira. Finalmente, junta-se a sutileza, pelo poder da qual o corpo submete-se ao império da alma, serve a esta e a obedece totalmente”.

Serão passíveis, mas jamais corrompidos, pois arderão para sempre no fogo e nunca serão consumidos. Lê-se: “Os vermes nunca morrerão nos seus corpos, e o fogo neles nunca se extinguirá” (Is 66, 24). Serão pesados, porque as almas estarão como que acorrentadas. Lê-se: “Para prender os seus reis com grilhões” (Sl 149, 8). Finalmente, os corpos e as almas serão de certo modo carnais. Lê-se: “Os animais apodrecerão nos seus excrementos” (Jl 1, 17).


ARTIGO DÉCIMO SEGUNDO

— Creio na Vida eterna —

167 — É muito conveniente que a declaração das verdades que devemos crer termine por este artigo — “Creio na Vida eterna” — porque a vida eterna é também a meta final de todos os nossos desejos. Opõe-se essa verdade àqueles que afirmam que a alma morre com o corpo. Se esta afirmação fosse verdadeira o homem teria a mesma condição dos animais, e aos que a fazem, aplica-se isto escrito nos Salmos: “O homem posto em honrarias, não compreende as coisas. Pode ser comparado aos animais estúpidos, e a eles se assemelha” (Sl 48, 21).

A alma humana pela imortalidade, assemelha-se a Deus; pela sensualidade, assemelha-se aos animais. Por conseguinte, quem pensa que a alma morre com o corpo perde a semelhança de Deus e nivela-se aos animais. Tem ainda contra essas palavras o Livro da Sabedoria: “Não esperaram da justiça divina o prêmio de recompensa, nem consideraram a glória dada às almas Santas; porque Deus criou o homem para a imortalidade, e o criou segundo a imagem da própria natureza” (Sb 2, 22-23).

168 — Vamos agora considerar em que consiste a Vida eterna, (e, após, no que consiste a morte eterna).

Convém saber, em primeiro lugar, que na Vida eterna o homem se une a Deus, já que é próprio de Deus o prêmio e a finalidade de todos os nossos trabalhos aqui na terra. Lê-se: “Eu sou o teu protetor e a tua recompensa será grande” (Gn 15, 1). Esta comunhão consiste na perfeita visão 67. Lê-se: “Agora nós vemos como que por um espelho, mas lá, face a face” (1 Cor 13, 12). Consiste ela também no supremo louvor, como diz Santo Agostinho: “Veremos, amaremos e louvaremos” (De Civ. Dei, 22). Lê-se ainda na Escritura: “Haverá gozo e alegria, ação de graças e vozes de louvor” (Is 51, 3).

169 — Sabemos que na Vida eterna, em segundo lugar, há a perfeita saciedade dos desejos. A razão disto é que ninguém pode, nesta vida, ter os seus desejos satisfeitos, e nunca um bem criado sacia o desejo humano de felicidade. Somente Deus o pode saciar, e o faz excedendo infinitamente. Por isso esse desejo não é satisfeito senão em Deus, conforme escreve Santo Agostinho: “Fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto até que repouse em Vós” (Conf. I). Como os santos na pátria possuirão perfeitamente a Deus, evidentemente o seu desejo será saciado e ainda ultrapassado em glória. Eis porque se lê no Evangelho: “Entra no gozo do teu Senhor” (Mt 25, 21). Santo Agostinho acrescenta ainda: “Não é o gozo pleno que penetrará nos que o irão desfrutar, mas estes é que entrarão plenamente no gozo”. Lê-se também na Escritura: “Serei saciado quando entrar na vossa glória” (Sl 16, 15); e: “Aquele que enche de bens o teu desejo” (Sl 102, 5).

67 É verdade de fé que os justos no céu verão a Deus na sua própria natureza, conforme está revelado na Sagrada Escritura: “Ve-lO-emos como Ele é” (1 Jo 3, 2).

A felicidade da Vida eterna consiste essencialmente nesta visão da essência divina, direta (“face a face” — 1 Cor 13, 12), imediata, intuitiva. Todas as outras recompensas e alegrias do céu derivam desta.

As explicações teológicas a respeito da visão beatífica, apresenta-os o Doutor Angélico na Suma Teológica, I parte, questão XII. A afirmação do dogma da visão beatifica, a inteligência humana por si mesma não poderia chegar, pois se trata de uma verdade sobrenatural. S. Tomás começa mostrando a possibilidade da visão beatifica, devendo a felicidade do homem consistir na atividade de sua suprema perfeição, que é a atividade da inteligência, que encontra a sua máxima plenitude só na visão de Deus. Em seguida, afirma que esta visão não pode ser tida mediante alguma criatura semelhança de Deus, mas que “à essência divina se une ao intelecto criado como objeto atualmente conhecido que por si mesmo faz que a inteligência esteja em ato” (I. 12, 2 ad 3).

Como a inteligência humana por si mesma não pode ver a Deus, necessita de uma força especial que a eleve, uma graça criada que a disponha para a visão eterna que é denominada “lumen gloriae”. Não o meio “in quo” Deus é visto, mas o meio “quo” (I.c. 5 ad 2). A visão da essência divina não é compreensiva, mas apreensiva, isto é, apesar de haver intuição, a inteligência humana não esgota toda a realidade cognoscível de Deus. Com muita precisão exprime isso S. Tomás: “quem vê a Deus por essência vê que Ele possui uma maneira infinita de ser e que é infinitamente cognoscível; mas este modo infinito de conhecer não lhe compete, isto é, que o conheça infinitamente” (I. c. 7 ad 3).

170 — Tudo o que há de deleitável, haverá aí plena e superabundantemente. Se os deleites é que foram desejados, aí haverá o sumo e perfeito deleite, porque é o deleite proveniente da posse do sumo bem, de Deus. Lê-se: “Então colocarás as tuas delícias no Onipotente” (Jó 22, 26).

Se as honras é que foram desejadas, aí haverá todas elas.

O leigo deseja acima de tudo ser Rei; o clérigo, Bispo.

Ambas as honras aí estarão. Lê-se: “Fizestes de nós reis e sacerdotes para o nosso Deus” (Ap 15, 10). Lê-se também no Livro da Sabedoria, a respeito da vida dos justos após a morte: “Ei-los considerados filhos de Deus” (Sb 5, 5).

Se a ciência é que foi desejada, haverá aí a ciência perfeita, porque conheceremos a natureza de todas as coisas e toda a verdade., bem como tudo que desejávamos saber. Mais. Tudo o que desejávamos possuir, o possuiremos na Vida eterna. Lê-se: “Com ela, todos os bens vieram igualmente a mim” (Sb 7, 11); e: “Aos justos será dado o que desejaram” (Pr 1, 33).

171 — A Vida eterna consiste, em terceiro lugar, na perfeita segurança. Neste mundo não há segurança perfeita, por que, quanto mais se possuem muitos bens e quanto mais alguém se eleva, tanto mais se enche de temor e necessita de mais coisas. Não haverá, porém, na Vida eterna, nem tristeza, nem trabalhos, nem temor. Lê-se: “Afastado o temor dos males, gozarão da abundância” (Pr 1, 33).

172 — Consiste a Vida eterna, em quarto lugar, na sociedade alegre de todos os bem-aventurados, na mais deleitável das 9sociedades, porque cada qual possuirá todos os bens em comunhão com os outros. Cada um amará o outro como a si mesmo; por isso, alegrar-se-á com o bem alheio, como se fosse o seu. Desse modo, quanto mais crescerem o gozo e a alegria de um, tanto mais aumentará o gozo de todos, conforme está escrito: “É na grande alegria para todos habitar em Vós” (Sl 86, 7).

173 — Tudo o que aqui foi descrito, os justos terão na pátria, e, além disso, muitos outros bens inefáveis. Quanto aos maus, isto é, os que irão para a morte eterna, as suas dores e castigos não serão em menores proporções que o gozo e a alegria dos bons 68.

174 — É excessiva a pena dos maus, em primeiro lugar, pela separação de Deus e pela privação de Deus e pela privação de todos os bens. Esta é a pena do dano, que corresponde a aversão à Deus, maior que a pena dos sentidos 69. Lê-se: “Lançai o servo inútil nas trevas exteriores” (Mt 15, 30). Os maus, nesta vida, possuem as trevas interiores, isto é, pecado; no inferno, estarão nas trevas exteriores.

É excessiva a pena dos maus, em segundo lugar, pelo remorso da consciência. Lê-se: “Repreender-te-ei e colocar-te-ei diante de ti mesmo” (Sl 49, 21); e: “Gemendo estão sob a pressão do próprio espírito” (Sb 49, 21). Todavia tais sofrimentos e gemidos serão inúteis, porque não provêm do ódio do mal, mas da dor do castigo.

68 Como a glória eterna consiste na visão de Deus e no pleno amor de Deus, a condenação no inferno consiste na ausência desta visão de Deus e no ódio a Ele. À “perfectissima charitas” do céu, corresponde o “perfectissimo odium” do inferno (Sup. 98, 4 c.). Como não poderão pensar em Deus como princípio do bem, mas apenas como princípio da própria punição (I. c. art. 8c), os condenados às penas eternas odiarão a Deus, como odeiam à própria punição (I c. art. 5c). Toda a vontade dos condenados está dirigida para o mal, de modo que nada querem do bem como bem, e, “mesmo que algum bem queiram, contudo não o querem bem” (I. c. 1c).

Nos condenados também não pode haver esperança, isto é, nada de bom podem esperar, nem sair do estado de condenação, nem esperar felicidade (cf. II. II. 18, 3c). contudo, neles pode haver fé informe, que se torna um hábito ineficaz e corrompido (cf. I. c. ad. 2)

É acrescida ainda mais, em terceiro lugar, a pena dos maus, pela fortíssima pena dos sentidos, que atormentará a alma e o corpo. É um castigo dolorosissimo, conforme relatam os santos. Os condenados estarão sempre como que morrendo, mas jamais morrerão, e até sem a possibilidade de morrerem. Por isso a condenação é chamada de morte eterna. Estarão os condenados sofrendo sempre no inferno dores terríveis como as que envolvem os moribundos. Lê-se: “Como ovelhas foram colocados no inferno, e a morte os devorará” (Sl 48, 15).

Aumenta ainda mais a pena, em quarto lugar, com o desespero da salvação. Se a elas fosse dada, esperança de libertação da pena, a pena ficaria, por certo, mitigada.

Mas como toda esperança lhes foi tirada, a pena torna-se pesadíssima. Lê-se: “O verme que os corrói não morrerá, e o fogo que os queima não se extinguirá” (Is 66, 24).

175 — Evidencia-se, desse modo, a diferença entre fazer o bem e fazer o mal: as boas obras conduzem à vida, as más, porém, arrastam para a morte.

Deveríamos sempre revocar no espírito todas essas verdades, porque, o fazendo, seríamos estimulados para fazer o bem, e para repelir o mal.

De modo concludente e muito significativo colocou-se no término do Credo a Vida eterna, para que ela fique cada vez mais gravada em nosso espírito, para a qual nos conduza Nosso Senhor Jesus Cristo, o Deus bendito pelos séculos dos séculos.

AMÉM.

69 Ver nota 34.